H I S T Ó R I A E ANTOLOGIA DA L I T E R AT U R A P O RT U G U E S A S
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N.º 32
FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN 1
SERVIÇO DE EDUCAÇÃO E BOLSAS
HALP N. 32
Professores/Investigadores Anna Klobucka Ana Hatherly Dídia Outeiro Cruz Graça Abranches João Palma-Ferreira José Ares Montes Mafalda Ferin Maria Manuela Paulo
Agradecimentos Imprensa Nacional Casa da Moeda Musée des Beaux-Arts, Marselha
Ilustração Capa: Caravaggio “Madalena em êxtase”, 1606 Óleo sobre tela, 106,5×91cm Marseille (France), Musée des Beaux-Arts
Ficha Técnica Edição da Fundação Calouste Gulbenkian Serviço de Educação e Bolsas Av. de Berna 45A - 1067-001 Lisboa Autora: Isabel Allegro de Magalhães Concepção Gráfica de António Paulo Gama Composição, impressão e acabamento G.C. Gráfica de Coimbra, Lda. Tiragem de 11.000 exemplares Distribuição gratuita Depósito Legal n.° 206390/04 ISSN 1645-5169 Série HALP n.° 32 - Agosto 2005
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LITERATURA DE CONVENTOS AUTORIA FEMININA
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Índice
IX “A Pêga à Escrivã” .................................... 49 X “A Rôla à Celeireira” ................................ 51
Nota Prévia ................................................... 7
Triunfo do Rosário ..................................... 52 “Pérola e Rosa” ............................................. 52 “As três redenções do homem” ..................... 57
ESTUDOS, INTRODUÇÕES: Relação da Vida e Morte da Serva de Deos, a Venerável Madre Elenna da Cruz ............. 58
“Aves Ilustradas” Maria Manuela Paulo ..................................... 15
Cap. XIII ....................................................... 58
“Ecos de Calderón no teatro português” José Ares Montes ............................................ 18
Leonarda Gil da Gama / Sóror Madalena da Glória
Brados do Desengano contra o Profundo Sono do Esquecimento ............................................ 60
“O Triunfo do Rosário” Ana Hatherly ................................................. 20
Parte I – Primeira História ............................ 61 Terceira História, “Terceiro Desengano” ........ 65
“A alegoria de Reyno de Babylonia” Dídia Outeiro Cruz ....................................... 24
Reino de Babilónia:
“A varanda de onde se avista Mértola” Graça Abranches ............................................ 26
Cap. I ............................................................ 66 Cap. IV .......................................................... 68 Cap. VI .......................................................... 69
“Sóror Mariana Alcoforado: uma ficção literária” Anna Klobucka .............................................. 28
Orbe Celeste: “Dia de Sto Agostinho” ................................. 71 “Dia de S. João Bautista” ............................... 73
“A autobiografia de uma freira” João Palma-Ferreira ....................................... 31
Sóror Mariana Alcoforado
Cartas Portuguesas: I-V ................................. 74
“A voz de Antónia Margarida Castelo Branco” Mafalda Ferin ................................................ 34
Sóror Clara de Santíssimo Sacramento/ Antónia Margarida de Castelo Branco
TEXTOS LITERÁRIOS:
Autobiografia: Cap. 1º, 3º, 6º, 8º, 10º, 28º, 38º, 42º e 140º ..... 81
Sóror Maria do Céu
Enganos do Bosque, Desenganos do Rio ........ 39 Cap. III .......................................................... 39 Cap. IV .......................................................... 41 Aves Ilustradas .......................................... 44 I “O Pavão à Prelada” ................................... 44 V “O Pardal à Madre das Confissões” ............ 47
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participação cultural, quase desprovidas de uma voz própria, quer enquanto filhas quer depois quando casadas. Por isso, também a possibilidade de uma expressão literária sua lhes estava vedada. Basta termos presente o teor da Carta de Guia de Casados de D. Francisco Manuel de Melo, homem tão influente nas mentalidades do seu tempo, para podermos entender o que essa subjugação envolvia (Ver Boletim nº 31). Daí que nem sempre as vocações religiosas o fossem verdadeiramente: os conventos surgiam para muitas mulheres, conscientes das suas capacidades e com desejo de autonomia, como lugares de liberdade, onde encontravam campo aberto à sua expressão individuada. E não apenas na escrita como também na esfera do amor e dos afectos – dentro e nas margens dos espaços conventuais. (No próximo Boletim, teremos ocasião de ver alguma literatura satírica e panfletária, que directa ou indirectamente reflecte tais situações de procura de liberdade ou até de pura libertinagem de costumes.) Para além das autoras-freiras, outras mulheres escreveram textos tanto a lo divino como a lo profano. Por exemplo António dos Reis, no seu livro Enthusiasmus Poeticus dedicado a D. João V, faz o elogio de algumas das Autoras mulheres do século XVII, nomeando nesse livro um conjunto significativo de nomes (muitos deles não de religiosas) e suas obras1 . Também outras pesquisas, sobretudo as mais recentes, apontam um número considerável de obras. Ana Hatherly fez levantamentos importantes de autoras e obras, e editou textos hoje praticamente esquecidos. Alunos e alunas suas e de outros professores têm editado (por vezes em facsimile) ou feito levantamentos de textos e estudos úteis para o conhecimento
Nota Prévia Este número de História e Antologia da Literatura Portuguesa é consagrado a algumas obras seiscentistas de autoria feminina. Muitas são as Autoras que, no século XVII, em língua portuguesa e em língua castelhana, para além de poesia (ver Boletins nº 28 e 29), escreveram teatro, narrativa de ficção, apologética, alegórica, moral, mística; epistolografia, biografia, autobiografia, etc. De entre essas obras, muitas são escritas por freiras de diferentes ordens religiosas: um fenómeno que vemos sobretudo nos países em que a Contra-Reforma teve intenso e longo impacto, como é o caso de Portugal e Espanha. Trata-se de uma literatura que permaneceu fechada em bibliotecas ou nos próprios conventos, praticamente não reeditada depois do século XVIII. Em Portugal, devido ao trabalho recente, entre outros, de João Palma-Ferreira, Heitor Gomes Teixeira, e, sobretudo de Ana Hatherly e de Isabel Morujão, alguns desses textos foram reeditados ou, pelo menos, estudados; vários deles têm sido objecto de estudo de alunos de Mestrado e Doutoramento (a Bibliografia, no final deste Boletim, dá conta de alguns desses trabalhos). É certo que uma parte dessas obras não tem hoje mais que o interesse de um testemunho de época. No entanto, outras têm também dimensão literária e significado cultural para a história literária e a das ideias. Cá e noutros países, há estudos que procuram esclarecer as razões que levavam um número substancial de freiras a dedicar-se à escrita. E entre essas razões há a situação de as sociedades em que viviam serem excessivamente patriarcais, o que fez com que as mulheres, pelo simples facto de o serem, ficassem excluídas de uma
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M. Mendes dos Remédios. Escritoras doutros Tempos. Extratos das Obras de Violante do Ceo, Maria do Ceo e Madalena da Gloria. Com revisão e prefácio de M. Mendes dos Remédios. Coimbra: França Amado Ed., 1914, p. VIII-IX, onde são listados quinze nomes.
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dessas obras. (Entre outras, a dissertação de Mestrado de Mafalda Ferin da Cunha, sobre a Autobiografia de Sóror Clara do SSº Sacramento, identifica 21 outros textos autobiográficos escritos por freiras ao longo dos séculos XVII e XVIII.)
comunidade religiosa se apresenta modelos de comportamento espiritual e moral. (Textos editados na totalidade por Mª Manuela Paulo e, numa selecção antológica, por João Palma-Ferreira); – “Pérola e Rosa” e “Três redenções do homem” – dois autos incluídos em Triunfo do Rosário, Repartido em Cinco Autos, originalmente em castelhano. (Traduzido e editado por Ana Hatherly); – Fragmentos da biografia de uma freira, Madre Elenna da Cruz: Relação da Vida e Morte de [...]. (Editada por Maria Filomena Belo).
Neste volume, figuram excertos de textos diversos da autoria de quatro mulheres, todas elas freiras em conventos de Lisboa e de Beja (nenhuma, porém, coincide com as quinze autoras listadas por António dos Reis). São elas: Sóror Maria do Céu (que usa o criptónimo Mariana Clemência em algumas obras), Sóror Madalena da Glória (que assina com o pseudónimo Leonarda Gil da Gama), Sóror Mariana Alcoforado e Sóror Clara do Santíssimo Sacramento. (O uso de pseudónimos, nomes anagramáticos ou criptónimos é, aliás, frequente na literatura barroca.) Os textos são diversos, mas têm em comum densidade humana e espiritual, força imaginativa e, em vários casos, uma assinalável criatividade de linguagem, visivelmente barroca.
SÓROR MADALENA DA GLÓRIA, religiosa do mesmo convento da Esperança, aonde chega fugida da casa de seus pais. De alguns mestres, segundo Damião Perym, terá recebido ainda na família a arte da pintura de iluminação e óleo, que realizava na perfeição: “No Claustro do mesmo convento se admiram muitos rasgos do seu pincel em huma bem ornada Capella”. Além das obras a seguir nomeadas, terá também escrito uma biografia de Santa Rosa de Santa Maria. Temos aqui excertos de três dos seus mais significativos textos (assinados com o anagrama literal Leonarda Gil da Gama): – Brados do Desengano contra o Profundo Sono do Esquecimento – um conjunto de histórias, classificadas por Perym como novellas exemplares, que alegorizam o amor humano como figura do amor divino, convidando a um “retiro” interior, que “poupa o coração a tanto tropel”. O texto ilumina o carácter passageiro e enganoso do mundo, chamando o olhar para a ilusão oculta em toda a beleza: “tua fermosura não é mais que uma dissimulação de caveira, essa graça que representa tua vida, é só um veo”. (Texto disponível na BN, em micro-filme.) – Reino de Babilónia – uma alegoria moral, na mesma linha do texto medieval Boosco Deleitoso (do qual aparecem excertos no Boletim nº 9
religiosa no Convento da Esperança, escreveu obras de natureza muito diversa, umas assinadas com o seu próprio nome, outras com o criptónimo Marina Clemência. Entre elas, breves ou longos textos alegóricos a lo divino, vidas de santas, autos e até comédias em castelhano (En la Cura va la Flexa, Perguntarlo a las Estrellas, En la mas Escura Noche). Aqui, figuram excertos das seguintes obras: – Enganos do Bosque, Desenganos do Rio – texto que de modo alegórico constrói alternâncias de “enganos” e “desenganos”, através do que emergem algumas antinomias: efémero/eterno, amor humano/amor divino, naufrágio interior / salvação espiritual, etc. O propósito é o de apelar a uma “fineza” de alma e maior perfeição interior. (Texto consultável em micro-filme, na BN de Lisboa); – Aves Ilustradas – um conjunto de pequenos contos, construídos como alegorias, em que à
SÓROR MARIA DO CÉU,
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desta colecção), de Preciosa, de Sóror Maria do Céu (apresentado no Boletim nº 30) ou de Enganos do Bosque e Desenganos do Rio, presente neste volume. O fio que percorre esta escrita é apologético-moral, reflectindo sobre o engano das aparências – “A vida é nuvem que corre, fumo que se desvanece” – e incitando à capacidade de se entender a efemeridade de tudo: “que homem pode haver que seja senhor da sua duração [...]?”. (Texto facsimile, em dissertação de Mestrado, por Dídia L. da Cruz.) – Orbe Celeste – uma série de “práticas” para as festas de alguns Santos, que acentuam a necessária desilusão daquele que der crédito ao amor humano: “porque [esse amor] quanto mais promete então desaparece”. (Texto disponível em micro-filme, na BN.)
publicado nos EUA, com o título The Portuguese Nun: Formation of a National Myth. (Está agora no prelo uma tradução portuguesa.) Literariamente, o texto que mais directamente retoma estas Cartas Portuguesas, no século XX, é Novas Cartas Portuguesas, da autoria de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, publicado em 1972. Aí, esse palimpsesto, visível logo no próprio título, atravessa todo o livro, sendo visível em muitos dos fragmentos que o reinventam e diferem para outros contextos culturais e políticos. Três curtos exemplos: “[...] que Anas ou Marianas terão ainda de ser ressuscitadas?”; “estais tão prenha de vós própria, Mariana, que jamais vosso ventre engendraria outra vida que não a vossa e a vossa ainda e sempre”; “há sempre uma clausura pronta a quem levanta a grimpa contra os usos” 3 . Nesta Antologia, há excertos das cinco cartas de Lettres portugaises, cartas que eram, todas elas, endereçadas a um cavaleiro francês que terá estado na cidade Beja (aquando das guerras da Restauração) – o Conde de Chamilly –, por quem a freira Mariana Alcoforado se terá apaixonado. A versão portuguesa aqui usada é a de Eugénio de Andrade, que traduziu as Cartas em 1993.
a conhecida famosa “Freira de Beja”, é a suposta autora de um conjunto de cartas, escritas em francês e publicadas em 1669, em França: Lettres portugaises traduites en français. Essa autoria, porém, tem sido posta em questão. A sua atribuição ao francês Guilleragues foi, durante uma série de anos, tida como segura 2. Indagações mais recentes, embora sem quaisquer certezas apuradas, desaconselham tal atribuição, tendo sido quase definitivamente abandonada a hipótese daquela autoria masculina. Daí que, mito ou realidade, as Cartas continuem a ser vistas e pensadas como parte da literatura portuguesa seiscentista. E nesse contexto têm sido lidas, estudadas e re-escritas ao longo dos tempos. Lidas e reeditadas ao longo do século XVIII, elas contribuíram certamente para a noção romântica de um amor sem limites, como o nota Jacinto do Prado Coelho. Por exemplo em 2000, o texto das Cartas e a questão da sua autoria foram substancialmente discutidos por Anna Klobucka, num longo estudo
SÓROR MARIANA ALCOFORADO,
SÓROR CLARA DO SANTÍSSIMO SACRAMENTO – “no século” chamada Antónia Margarida
Castelo Branco – viveu nos finais do século XVII e inícios do XVIII. Caso particular, a Autora fora casada antes de entrar no convento, e a razão para professar, mais que a de uma verdadeira vocação, deve-se aos maus tratamentos do Marido, de quem acabará por ficar divorciada já depois de refugiada no convento. Escreveu uma Autobiografia – originalmente intitulada “A Fiel e Verdadeira relação que dá dos sucessos da totalidade da sua vida a creatura mais ingrata a seu Creador [...]”. 3
Novas Cartas Portuguesas. 1972; 3ª ed.: Lisboa: Moraes, 1980, p. 284, 84, 34.
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O nome de Guilleragues surge numa 2ª edição, do mesmo ano, como sendo o “tradutor” dessas cartas.
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Neste texto, explicitamente confessional, a autora dá conta da evolução da sua vida da infância ao casamento, na situação e experiência de casada, de divorciada e de religiosa professa. Trata-se de uma autobiografia espiritual, agónica, em que a travessia interior da escrita permite vislumbrar uma gradual abertura a outra visão da vida e a outro modo de paz, antes impensável e imprevisível. Estamos aqui perante uma consciência já moderna, pela atitude angustiada e crítica das próprias contradições, pelo dilaceramento de um eu, feminino, dividido entre corpo e alma, desejo e recusa da escrita, apelo humano e apelo divino. Lemos agora fragmentos soltos de nove dos 140 capítulos em que o texto foi organizado. (Edição de João Palma-Ferreira, 1984. Há outra edição, mais rigorosa na fidelidade ao Manuscrito, na dissertação de Mestrado de Mafalda Ferin da Cunha, 1992.)
ADVERTÊNCIA AOS LEITORES, RELATIVA AOS VOLUMES Nº 18 E Nº 19 DESTA ANTOLOGIA
Recentemente, leitores desta Antologia deramse conta da repetição do soneto «A fermosura desta fresca serra» em dois dos seus volumes. No nº 18, ele aparece atribuído a Camões (p. 36); no nº 19, atribuído a D. Manuel de Portugal (p. 39). Ante o que parece um simples erro (que o não é), impõe-se uma clarificação. Desde logo, há um problema antigo, bem conhecido entre os estudiosos de Camões, que é o facto de a diversidade de critérios aplicados ter convertido as edições da poesia camoniana, ao longo dos séculos, numa espécie de harmónio que – por uns editores – se expandia (ao incluírem um muito maior número de poemas, mesmo sem certeza da sua autoria) e que – por outros editores – se comprimia (ao excluírem todas as composições cuja autoria fosse duvidosa). O soneto em questão aparece pela primeira vez no códice 8920 da Biblioteca Nacional de Lisboa (copiado em 1576-1577), onde é atribuído a D. Manuel de Portugal. De esse códice, foi copiado anos depois para outro, da Biblioteca Pública de Évora, publicado por A.L.Askins com o título de Cancioneiro de Corte e Magnates, onde se mantém a atribuição a D. Manuel de Portugal. Curiosamente, nem Rythmas (1595) ou Rimas (1598) de Camões nem Faria e Sousa (em Rimas Várias, anterior a 1649) incluem esse soneto – apesar da conhecida tendência deste editor para expandir o “harmónio” camoniano em favor do “seu poeta”. Só Álvares da Cunha, em 1668, o faz entrar no corpus camoniano – mas sem razões claras, conforme foi demonstrado por Cirurgião e Jensen. E aí foi permanecendo até hoje. (Figura na edição dos sonetos de Camões, da autoria de Maria de Lurdes Saraiva, utilizada na selecção de poemas para o volume nº 18 desta Antologia.) E talvez
Lisboa, Julho de 2005 ISABEL ALLEGRO
DE
MAGALHÃES
NB: Nos textos sem edição recente, actualizei a grafia da época, mantendo-a apenas para salvaguardar as sonoridades; do mesmo modo, conservei a pontuação, de forma a não alterar o ritmo de respiração dos textos.
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seja mesmo aí que ele deve figurar, dado que a atribuição a D. Manuel de Portugal também não é fiável. Aliás, o mesmo acontece com uma grande parte do corpus lírico renascentista: o jogo de imitações, as atribuições duvidosas ou os simples “roubos” não têm fim. Por tudo isto, é tão legítimo publicar este soneto sob a autoria de Camões como sob a de D. Manuel de Portugal 4 . No entanto, uma nota explicativa, em ambos os volumes desta Antologia, teria sido útil aos leitores atentos e não familiarizados com esta problemática. Enquanto Autores dos volumes nº 18 e nº 19, respectivamente, pedimos desculpa por essa omissão. Julho de 2005 ISABEL ALLEGRO DE MAGALHÃES JOSÉ MIGUEL MARTÍNEZ TORREJÓN
4 Luís de Camões. Lírica Completa. II: Sonetos. Edição de Maria de Lurdes Saraiva. Lisboa: INCM, 1980. (Nesta edição, baseada em edições anteriores, Maria de Lurdes Saraiva adverte os leitores para esse “harmónio” aqui mantido, de certa forma, alargado: “Pretendi com esta edição: Coligir os sonetos conhecidos de Camões ou alguma vez atribuídos a Camões [...]”.) Manuel de Portugal. Poesia I: Prophana. Edição de Luís Fernando de Sá Fardilha. Porto: Instituto de Cultura Portuguesa, 1981. António Cirurgião e Gordon Jensen. “Poesia peninsular do século XVI: o seu a seu dono”. In Biblos (XLVII), 1973, p. 3-30.
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I N T RO D U Ç Õ E S ESTUDOS BREVES
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Aves Ilustradas
Maria do Céu, não obstante ter ido buscar aos géneros referidos alguns elementos essenciais. Foi dessa combinação de elementos já divulgados, aliados a outros novos resultantes de uma grande imaginação, criatividade e bom gosto, que resultaram as peças literárias de grande beleza e originalidade que nos legou.
(excerto) MARIA MANUELA PAULO*
A moral e a erudição Fontes:
Sóror Maria do Céu viveu cerca de metade da sua vida no séc. XVII, (nasceu em 1658 e morreu em 1753), pelo que a sua obra reflecte as ideologias e as características nos diversos campos artísticos dominantes nesse período, denominado Barroco, que em Portugal se prolongou até meados do séc. XVIII. Na sua obra surgem fundidas e assimiladas as influências religiosa e pagã resultantes respectivamente da Contra-Reforma, que se caracteriza por uma forte presença do catolicismo, e da cultura clássica, veiculada pelas obras dos autores clássicos amplamente divulgadas. Ana Hatherly, quando analisa a obra em prosa de Sóror Maria do Céu na sua Introdução a A Preciosa, escreve:
O divertimento proveitoso, que é uma adaptação do latim do prodesse et dilectare, é o princípio que está na base do programa didáctico geral adoptado pela nossa Autora e pela maior parte dos escritores seus contemporâneos. Em as Aves Ilustradas pode detectar-se ainda a convergência de diversas vertentes culturais, que incluem a fusão da simbologia moral e da erudição, e a presença das formas tradicionais da fábula, do apólogo e do conto exemplar aliadas a formas de retórica como a prosopopeia, utilizando por vezes como base, material proveniente da Idade Média, como os Bestiários. Como Sóror Maria do Céu é extremamente criativa e muito culta, consegue fazer sínteses sui generis dos modelos disponíveis no seu tempo, produzindo verdadeiras criações que, sendo estruturalmente híbridas, acabam por constituir uma unidade especial. O conceito de divertimento, podemos dizer que é semelhante ao que Freud propõe no séc. XX quando afirma que qualquer trabalho (ou aprendizagem) resulta muito melhor se dele derivar prazer. Nas alíneas que se seguem consideraremos cada uma destas vertentes separadamente, o que nos irá permitir, no final do capítulo, concluir sobre a originalidade destas composições de Sóror
“em geral em toda a sua obra, encontramos a defesa dos valores morais, sociais e estéticos vigentes na sociedade sua contemporânea. O seu referente ideológico principal é a ortodoxia católica na sua fase contra-reformista, ligada à escolástica medieval e per meada de platonismo e neoplatonismo.” (p. L). (1)
É notória a preocupação pedagógica que a Autora revela em todas as suas obras, bem patente quando transmite os ensinamentos colhidos na ortodoxia religiosa e sobretudo no misticismo. Esta vertente cristã surge, no entanto, impregnada de referências colhidas na cultura clássica, e nos mestres seus contemporâneos, cujas obras reflectiam o culto do espectáculo e do lúdico, característico da sua época. Sobre este assunto, na obra atrás citada, Ana Hatherly diz:
* “Comentário”. In Aves Ilustradas de Sóror Maria do Céu. Ed. actualizada precedida de um Comentário. Diss. Mestrado FCSH, UNL, 1994.
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“a obra de Sóror Maria do Céu afigura-se-nos como essencialmente didáctica, didáctico-recreativa. Não obstante a presença duma profunda religiosidade e até de claro misticismo em alguns casos, parece-nos que há nela mais uma visão mística do que o relato de uma experiência mística...”. (p. LI)
que era uma pessoa modesta, não seria para exibir a sua erudição, como acontecia com outros escritores cultos, mas para reforçar o valor do exemplo, uma vez que, assim, provava que ele já vinha do passado e de autores de grande prestígio. A principal finalidade de obras como Aves Ilustradas era, portanto, funcionar como veículo de ideias morais e modelos de comportamento, colhidos em obras ou testemunhos merecedores de todo o respeito e crédito. Dela retirámos as seguintes passagens comprovativas do que acabamos de afirmar: [...] Nas Aves Ilustradas encontramos permanentemente os animais irracionais – as aves – a falar aos humanos, às religiosas, procurando dar-lhes ensinamentos, transmitindo-lhes mensagens de elevado valor moral, para sua edificação e vida no convento. Trata-se pois, como vimos, de fábulas mistas, geralmente conhecidas por apólogos. A própria Autora os classifica como tal. O diálogo é feito de forma leve e muitas vezes quase infantil, revelando sempre uma intenção pedagógica. Em alguns discursos, os irracionais falam entre si, como nos apólogos das abelhas e das corujas, respectivamente nos discursos IV e XIV. Aproveitando o episódio protagonizado pelas corujas, e através dos ensinamentos veiculados pela Águia, rainha das aves que recebe os ensinamentos directamente do Sol, a Autora refere que não se deve pretender passar pelo que se não é, dizendo expressamente:
Os primeiros ensinamentos religiosos, colheu-os na doutrina da Igreja, nos sermões, nas vidas de santos e de figuras exemplares; os segundos, resultam da muita erudição que revela ter, excepcional no seu tempo, especialmente numa senhora que tão nova ingressou no Convento. Os Conventos eram locais privilegiados para a aquisição de conhecimentos, especialmente quando se tratava de uma pessoa interessada, inteligente e excepcionalmente dotada. Ana Hatherly, na sua Introdução à A Preciosa, de Sóror Maria do Céu, refere: “No panorama da literatura portuguesa do séc. XVII, particularmente no campo da prosa de ficção e não obstante a sua especialização na área das narrativas alegóricas a lo divino, a obra de Sóror Maria do Céu nada tem a recear do confronto com autores como Francisco Rodrigues Lobo, D. Francisco Manuel de Melo ou Alexandre de Gusmão [...] A sua produção, prolongando-se até meados do século XVIII, representa bem a pujança artística que o Barroco assumiu em Portugal, ilustrando nos seus múltiplos aspectos toda a riqueza e toda a variedade de pensamento e expressão que esse período abarca. Sóror Maria do Céu é, de facto, um expoente extremamente representativo dos valores morais e estéticos vigentes durante o período barroco em Portugal e na Península Ibérica.” (p. XLII) (1)
Da assimilação da vertente moral e da erudição resulta uma hibridização que é uma das principais características do Barroco literário. Aves Ilustradas está repleta de intenções morais: são inúmeras as histórias e exemplos apresentados pela Autora para comunicar ao leitor a sua mensagem pedagógica de elevado teor moral e religioso. Ao utilizar este processo, Sóror Maria do Céu revela a cada passo a sua enorme cultura e erudição. Esta preocupação de citar obras de autores clássicos, no caso de Sóror Maria do Céu,
“Este caso, senhora, que vos parecerá uma fábula, se o aprofundardes vos parecerá um exemplo; tirai-lhe a concha e aproveitai-vos da pérola, e enunciai-o a vossas irmãs.” (p. 152)
Segundo afirma Palma-Ferreira na sua Introdução aos Contos e Histórias de Proveito e Exemplo: “O provérbio é quase sempre o remate de uma fábula que na sua simplicidade se revela um instrumento de educação apropriado para almas jovens e simples.” (p. LIII)
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Os apólogos de Aves Ilustradas não terminam com provérbios, mas sim com poemas em castelhano que resumem e reforçam a mensagem transmitida ao longo do conto. Também nas definições encontradas e transcritas para este género literário se refere que as fábulas são geralmente escritas em verso. No caso presente isso não se verifica. Apenas na conclusão de cada Discurso encontramos um poema alusivo. Por tudo o que ficou dito, julgamos poder concluir, como afirmámos no início deste capítulo, que a obra em estudo – Aves Ilustradas, de Sóror Maria do Céu – foi escrita dentro do género em moda na ocasião – conto – fábula. Sem no entanto podermos considerá-lo como um género puro, antes podemos considerá-lo híbrido porque nele participam elementos da fábula, do apólogo e do conto exemplar, constituindo uma unidade especial. Nestes discursos encontramos sempre presente o conceito de divertimento proveitoso, conceito básico da acção didáctica adoptado por Sóror Maria do Céu, nesta e em outras obras suas. [...] Sóror Maria do Céu terá ido buscar certas ideias que apresentou na sua obra Aves Ilustradas a esta e outras obras medievais. Quando põe o Pavão a dar avisos à Prelada, é evidente a relação entre as características atribuídas à ave e a autoridade de que se reveste aquela religiosa devido às funções que desempenha dentro do mosteiro; no caso da Andorinha e da vigária da Casa são equiparadas as características das duas; quando refere que a Águia, rainha das aves, vai buscar ao Sol os ensinamentos que transmite através das aves, simboliza os homens de sábio entendimento; e o mesmo sucede quando utiliza as Corujas para dar um exemplo negativo. Por tudo o que nos foi dado observar e aqui reproduzido, julgamos poder concluir que obras como as que aqui foram referidas, poderão ter sido conhecidas por Sóror Maria do Céu e ter estado na base do grande interesse que autores
cultos como ela manifestaram pela sua utilização, nas suas obras, fazendo dos animais (neste caso, as Aves), das suas características dominantes e dos seus hábitos de vida, hábil e inteligente transposição para os dos homens, extraindo daí exemplos de conduta moral.
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Ecos de Calderón no teatro português
espectadores, monjas - tal vez también intérpretes – e invitados. La historia evangélica, la mitología o la pastoral predominan con sus alegorías en unos autos o se combinan con cauta armonía en otros. Sin embargo, pese a las naturales referencias al sacramento de la Eucaristía, muy concretas en tres autos, lo que predomina en todos ellos es, como ya indica el título del libro, la exaltación del culto del Rosario, lo cual, unido a la insistencia en unas mismas ideas, les da, a la vez que cierta monotonía, una evidente unidad temática. Como suele ocurrir en este género dramático, los personajes se dividen en buenos y malos: Dios, Cristo y María de un lado; Luzbel, la Culpa y sus secuaces, del otro, y en medio, el Alma o el Hombre, debatiéndose en una lucha desigual, pero finalmente siempre vencedor, redimido de sus pecados y digno de la Gracia, merced a las virtudes del Rosario. En este bien peinado jardincillo de alegorías y símbolos se descubre a veces a la dama y al galán de la comedia profana o irrumpe con gracias chocarreras la figura del donaire, como ocurre en Perla y Rosa. En fin, la aquitectura escénica tiene cimientos resistentes, las alegorías se suceden sin veladuras infranqueables, los personajes se mueven con soltura, hablan un castellano aceptable, donde irisan algunos lusismos disculpables y no siempre achacables a la autora, y el verso, casi siempre correcto, se somete a las combinaciones métricas predominantes en Calderón: romance, redondilla y silva pareada en las partes habladas, y formas más complejas en las cantadas. Veamos ahora más de cerca el contenido de estos autos. [...] Perla y Rosa, se basa en la parábola del Buen Pastor. El engaño conduce ante el Universo, Gran Príncipe de Babilonia, a la serrana Perla (el Alma), ahora la Perdida, porque abandonó el hato del Buen Pastor. Este se entera por la pastora Preciosa
(excerto) JOSÉ ARES MONTES*
[...] En cuanto a los cinco autos del Triunfo do Rosário, sus títulos son, por orden de aparición en el libro, los siguientes: La flor de las finezas, Rosal de María, Perla y Rosa, Las rosas con las espigas y Tres redenziones del hombre. No he encontrado datos fidedignos sobre representaciones públicas y callejeras de autos sacramentales en Portugal durante las fiestas del Corpus, aunque sí parecen haber existido danzas y juegos que acompañaban a la procesión del Santísimo, y que, según Teófilo Braga, fueron prohibidos por irrespetuosos en 1621. Los autos de nuestra monja serían, pues, escritos probablemente para solaz y edificación conventual. Sin la compleja hondura teológica de los autos de Calderón, los de Sóror Maria do Céu llevan también a la escena la doctrina de la gracia, la libertad humana y la redención del hombre. Muestran un buen aprendizaje de la fórmula calderoniana, en la estructura escénica, en el verso, en la utilización de la música – abundan las partes cantadas, hasta el punto de que Rosal de María podría calificarse de zarzuelita a lo divino – y en los recursos plásticos – apariencias y tramoyas -, que harían las delicias de los presuntos * In Anejos de la Revista Segismundo (6) Madrid, 1981.
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(María), que Perla está en Babilonia por su libre arbitrio, encantada en su nuevo paradero: viste suntuosas galas, todos la miman. Durante un paseo con el Universo se siente desfallecer y aquél le ofrece una rica bengala donde apoyarse. Aparece embozado el Buen Pastor y, a su vez, le ofrece un cayado rematado en cruz. Perdida prefiere la bengala, que se le quiebra al apoyarse en ella, y cae al suelo, porque, dice.«si la caña es vanidad, / ¿que mucho que me despeñe?» (pág. 149). La serrana ve aquí un aviso y decide regresar a su valle. El Universo quisiera retenerla, pero:
sonajes. Y mientras el Buen Pastor sube con su esposa Perla a sus «planicies altas», aparece Preciosa y todos entonan un canto de alabanza, acróstico y con recolección final [...]
No la puedo violentar por más que mi poder sea, que quando de su querer no busque el Alma el profundo, bien la podrá todo el mundo contrastar, mas no vencer. Toda mi fuerça y mi ley sin su alvedrío está vana, tan reyna es, aunque serrana, y yo tan esclavo, aunque rey.
Toda la corte babilónica intenta retenerla. [...] Perdida decide quedarse algún tiempo más. En otra escena, Preciosa y el Buen Pastor lamentan la decisión de la serrana, cuyo albedrío tampoco el Buen Pastor se atreve a doblegar. Preciosa recuerda entonces que tiene un rosal con quince bellas rosas – los misterios del Rosario – y espera que Perdida las prefiera a las rosas de la vanidad de Babilonia. Pero cuando, en efecto, Perdida decide regresar a su origen, el Universo desata una horrible tempestad [...] Aterrada, Perdida pide protección en una breve aria, y entonces «ábrense las puertas y descúbrese el Rosal con luzes furtadas y en él, accomodados como mejor puedan, los Mysterios del Rosario». Perdida, de nuevo Perla, ha sido rescatada y contempla los prodigios del Rosal de María, cuyas virtudes y excelencias reconocen todos los per-
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Notas sobre O Triunfo do Rosário
fim de época do Barroco português na sua vertente contrarreformista, culminância tardia dum estilo e duma maneira de conceber o mundo que iriam em breve ser destronados pela implantação das novas tendências racionalistas. Da sua produção teatral conhecem-se actualmente nove peças, todas publicadas na primeira metade do século XVIII, mas não obstante estarem disponíveis na Biblioteca Nacional, não consta que alguma vez tenham sido representadas no nosso século, nem tão pouco comentadas (ou até talvez lidas) pela maior parte dos estudiosos da literatura portuguesa. A explicação para esse facto é simples: o teatro produzido por autores portugueses no período barroco (e não só no reinado de D. João V) deve ser a área da história da nossa literatura menos conhecida e estudada. Ora sabendo-se, como se sabe, que, durante esse cerca de século e meio em que hoje se situa o Barroco português na literatura, a produção dramática em vários géneros foi considerável, como explicar esse desinteresse, que quase só abre excepção para o Fidalgo Aprendiz e para as obras de António José da Silva? A razão desse desinteresse é conhecida: a quase totalidade desse teatro está escrita em castelhano ou em latim. Mas, fora das obras citadas, mesmo o que se julga ser uma insignificante parte do teatro barroco escrito em português (entremezes, etc.) só há bem pouco começou a merecer a atenção de alguns estudiosos. Quanto a nós, à justificação do desinteresse pelo nosso teatro dessa época por motivo da língua (ou línguas) em que foi predominantemente escrito, deve acrescentar-se o anátema que desde a crítica neoclássica tem pesado entre nós sobre o estilo barroco, e sobretudo o desconhecimento material de quase toda essa produção, pois dessas obras conhecem-se, na maior parte dos casos, apenas referências bibliográficas que não foram confirmadas por levantamentos sistemáticos.
(excerto) ANA HATHERLY*
PRÓLOGO Do ponto de vista artístico, o reinado de D. João V foi suficientemente longo, rico e diversificado para permitir a confluência de correntes de pensamento tão opostas como o Barroco e o Iluminismo, que nele coincidiram em fases também opostas: o primeiro atingindo o seu declínio enquanto o segundo despontava já com a característica agressividade do novo. No que diz respeito à literatura, e apesar dos inegáveis sintomas do seu ocaso, o estilo barroco, nessa sua etapa final, ainda deu origem a algumas obras de verdadeira apoteose de todo um tesouro de saber e de experiência que se despedem numa espectacular explosão de beleza. Quando se desenha já no horizonte a iminência do inutilia truncat, num último momento do que se poderia chamar o carpe diem das formas opulentas, assiste-se ainda a um derradeiro mergulho no prazer do excesso, e a um derradeiro brado dos ditames da Contra-Reforma. O teatro de Sóror Maria do Céu, publicado durante o reinado de D. João V, pode bem ser considerado como uma espécie de epítome desse * “Apresentação”. Triunfo do Rosário [...]. Trad. e apres. de A. Hatherley. Lisboa: Quimera, 1992.
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Portanto, enquanto não for feito um levantamento exaustivo dessa produção e não forem ultrapassadas as dificuldades com o estilo e com a língua, será difícil atingir-se um conhecimento suficientemente aprofundado e, sem ele, não se poderá fazer um juízo de conjunto que seja válido. A nossa tradução e apresentação dos cinco Autos que constituem o Triunfo do Rosário de Sóror Maria do Céu é um contributo no sentido de chamar a atenção, não só para a obra em si, mas para o teatro dos autores portugueses dessa época. Estes cinco autos, bem como as outras peças de Sóror Maria do Céu, foram publicados em Lisboa em castelhano e, por isso, constam tanto da História do Teatro Espanhol como da História do Teatro Português. Em 1981, o teatro desta autora portuguesa foi objecto dum breve mas notável estudo do lusófilo José Ares Montes, que o comparou ao de Calderón de la Barca e ao de Sor Juana Inés de La Cruz. O Triunfo do Rosário, ponto culminante na extensa obra dessa magnífica escritora, integra-se perfeitamente no conjunto da sua produção em prosa e em verso, quer na temática quer no estilo, já que toda ela gira à volta dos problemas centrais da salvação da alma e dos meios para a atingir. Do mesmo modo que Calderón de la Barca, no seu teatro alegórico, Sóror Maria do Céu faz o seu «sermão artístico», integrando-se assim no quadro mental que produziu aquela cultura dirigida que Maravall definiu como característica do período barroco. De facto, a afincada insistência posta na propagação dos princípios da Fé e na observância do culto que, destinados a salvar o Homem, fundamentam a política da Igreja contrarreformista, encontra-se na obra de Sóror Maria do Céu, como na de outros escritores seus coetâneos. Mas a obra de Sóror Maria do Céu excede em muito os limites duma arte ao serviço da religião,
impondo-se, para além da mensagem edificante, como exemplo duma criatividade esplêndida servida por uma segura arte da escrita. Todos estes aspectos convergem nos cinco Autos do Triunfo do Rosário produzindo um conjunto que não deixará de impressionar todos os que forem sensíveis à sua qualidade artística, mesmo que o não sejam já à sua mensagem ideológica. Cremos bem que estas obras, sendo paradigmáticas duma visão do mundo que já não é a nossa, de qualquer modo fazem parte duma herança cultural que nos compete estimar e defender. [...]
III Pérola e Rosa Auto do Rosário pela Parábola do Bom Pastor Perdida (a Alma), ovelha tresmalhada do divino rebanho, é atraída pelos encantos do Universo (Mundo), que deseja conhecer, com o que causa grande aflição ao Bom Pastor (Cristo), que comenta com Preciosa (Maria) a presença de Perdida em Babilónia (Mundo, confusão), resolvendo partir ao seu encontro para a trazer de novo para o divino redil. Universo e Bom Pastor, cada um com os seus argumentos, vão lutar pela posse de Perdida que, porém, só poderá salvar-se se tomar voluntariamente (por livre-arbítrio) a decisão acertada, que é a de abandonar as seduções do Mundo para seguir o Bom Pastor. Perdida rejeita o auxílio (cana/bordão) que o Bom Pastor lhe oferece e opta pelas vaidades de Babilónia. Mas em breve, reconhecendo o seu erro, quer regressar à sua origem, no que encontra forte oposição por parte do Universo e seus servidores. Perdida sente-se infeliz, mas sem forças para tomar a decisão de abandonar o Universo. O Bom Pastor e Preciosa lamentam a situação de Perdida. É então que Preciosa descreve as 15
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rosas do seu rosal (que são os 15 Mistérios da Fé em que se medita no culto do Rosário), plantado por São Domingos. Perdida é confrontada com esse divino rosal (que surge em cena) e é por ele atraída, conseguindo vencer a oposição dos sequazes do Universo. Surgem então em cena os próprios Mistérios do Rosário e, além deles, dois rosais: o de Babilónia – rosal da tentação e da Culpa –, e o rosal de Sião – rosal de Maria, que é o da salvação. Perdida está ainda hesitante, mas por fim a força do rosal de Maria resgatará não só Perdida mas todo o mundo, pois representa o resgate geral da Culpa.
O processo de «divinização» de textos e temas profanos, que é a base dos contrafacta, é facilitado pelo uso da alegoria que, como vimos, está na base dos Autos Sacramentais e seus afins, permitindo uma fácil assimilação da tradição pagã, que se converte em exemplo. Um dos aspectos mais salientes da «divinização» de temas profanos, de que se pode ver um exemplo no Auto II do Triunfo do Rosário, é a questão do embate entre o «amor divino» e o «amor humano», ligado ao casamento espiritual da Alma, fulcro de grande parte do misticismo barroco. Bruce Wardropper também estudou esta questão, exemplar da dualidade essencial em que o Homem se debate, já que, no fundo, ela não é mais do que uma das facetas da oposição básica entre o Mal e o Bem, cujo conflito pesa sobre o destino da humanidade religiosamente concebido. O que importará aqui destacar é o uso que, nas obras de carácter sagrado ou a lo divino, é feito da terminologia, da retórica e da casuística do amor profano sem que tal cause estranheza ou condenação por irreverência. A origem deste costume que, como observou Weisbach, remonta a Orígenes, mas que S. Boaventura e S. Bernardo contribuíram para difundir, veio a generalizar-se ao longo dos tempos adquirindo aspectos verdadeiramente excessivos em alguns autores da época barroca, que transformaram essas «divinizações» em verdadeiras «paródias piedosas». A interpretação do amor como forma nuclear da tensão entre o sagrado e o profano remete para os dois tipos de amor historicamente consagrados: o eros e o agapé, sendo o primeiro o amor profano e o segundo o amor espiritual, altruísta. O modelo do amor cortês, amor profano, mas de um tipo que exige ao «fino amante» o «serviço» da Dama e que, em Dante e Petrarca, se aproxima de um culto religioso, é uma maneira de «divinizar» o amor humano. O revivalismo
O TRATAMENTO «A LO DIVINO» O leitor do século XX que não esteja familiarizado com a mentalidade contrarreformista, nomeadamente no aspecto de doutrinação e estímulo piedoso dos fiéis através da criação artística, poderá sentir-se algo perplexo ao verificar que em alguns destes Autos o sagrado e o profano vão de par, entrecruzando-se ou sobrepondo-se sem a menor estranheza. Trata-se, evidentemente, duma transposição a lo divino, ou seja, da transformação de um conteúdo profano em sagrado, processo já usado na Idade Média, mas que durante o longo período contrarreformista esteve particularmente em voga. Bruce Wardropper, que estudou aprofundadamente a questão do tratamento a lo divino nos textos produzidos após o Concílio de Trento, põe em destaque o aspecto de «guerra sin trégua que en la literatura se libra entre las fuerzas del cristianismo y las del Mundo», pois o processo de «divinização», quer dizer, de «moralização» de textos ou temas profanos, é um claro expoente da tentativa de afirmação da vitória do sagrado sobre o profano.
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do pensamento helenístico, que veio aproximar o culto da beleza da Dama do culto da beleza da Alma, tornando-o um veículo de intensificação da aspiração ao divino, facilitou a passagem do eros ao agapé. O processo atingiu no Barroco uma intensidade inusitada eliminando ou fundindo fronteiras anteriormente definidas. Daí que o léxico e toda a retórica se tenham tornado idênticos, acabando por surgir indistintamente tanto nos textos sagrados como nos profanos, ou nos textos a lo divino, que são híbridos. Assim o que hoje nos surpreende como estranho foi costume aceite, expressão convencionada. Se em toda a obra de Sóror Maria do Céu a vertente erótico-mística desempenha um papel axial, também nestes Autos ela está presente na relação amorosa entre o Criador e a Criatura e na relação da Alma com Cristo, glosada através do modelo pastoril a lo divino, que não rejeita e até privilegia a fábula mitológica, com o que acentua o seu carácter «culto». Portanto, se para alguns leitores do século XX pode ser surpreendente encontrar nestes Autos do Rosário a figura de Cristo «confundida» com a de Adónis, ou a de Deus Pai com a de Maioral do Olimpo, ou a da Graça com a de Ariadne, para o leitor de então era um expediente artístico usual, remontando a uma tradição sedimentada já na Idade Média, quando se procedeu à transformação a lo divino de obras de Virgílio e Ovídio, que se tornaram veículo de enxertia da cultura clássica na cristã, como já acontecera com Platão e Aristóteles, etc. Conceitos-imagens como os de «Divino Orfeu», «Divino Cupido», ou «Divino Narciso», que se tornam personagens no teatro alegórico a lo divino, onde vamos encontrar Vénus, Adónis, Marte, e outros personagens do paganismo desempenhando papéis «morais», em virtude do seu excessivo uso, acabam por tornar-se verdadeiros lugares-comuns, correntes em todas as áreas da arte da palavra, inclusive a da oratória sagrada.
Como observou Bruce Wardropper, desde o momento em que o mistério divino é concebido em termos humanos, ou transposto por eles, torna-se inevitável a apropriação e a indistinção entre a expressão do amor profano e a do amor divino.
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A alegoria de Reyno de Babylonia
A “Exposição” opera a transferência ao atribuir a Angélica a situação que se tinha descrito da Alma: “Perdida já na noute do descuido / Angelica sem luz nos descaminhos; / Amor, que a destinava a melhor dia, / Luzes lhe dá, que aclarem seu perigo. (p. 1) Mediante este engenhoso artifício, o leitor encontra-se localizado em dois planos de sentido. Este funcionamento continuará sendo auxiliado por notas marginais que interagem com o texto central, forçando a descodificação pretendida, como nesta passagem:
(excerto) DÍDIA OUTEIRO CRUZ*
“começou a enriquicê-la, adornando-a das joyas mais preciosas dos seus thezouros, dando-lhe para assistilla fieis companheiras, que a todas as horas lhe acudissem, e hum dos mais confidentes dos seus vassalos.” (p. 2)
[...] Na literatura portuguesa, o protagonismo da intriga por uma alma personificada aparecera anteriormente, em obras como: Boosco Deleitoso, (século XIV ou XV); o Auto da Alma, de Gil Vicente; Enganos do Bosque Dezenganos do Rio e A Preciosa de Soror Maria do Céu. Da mesma forma, o tema do combate espiritual entre Babilónia e Jerusalém (o Empíreo) apresenta antecedentes. Mário Martins, menciona o poema de Camões Babel e Sião que se inspira no Salmo 136, de David, referindo ainda a História do Predestinado Peregrino e seu irmão Precito de Alexandre de Gusmão. Não se esqueça, todavia, que este é um motivo tradicional da literatura, bebido na própria Bíblia, pelo que será fácil encontrá-lo em todas as épocas da história literária. [...] Ao anunciar, através do título, o seu livro como uma psicomaquia, a autora coloca-o imediatamente no plano alegórico. Encimando o primeiro Capítulo, lê-se uma frase que continua a funcionar no mesmo plano: “Primeiro impulso da Alma, que se acha perdida na noute da culpa” (p. 1).
A função das notas marginais não se esgota aqui. Ao citar a Bíblia, uma simples frase como a da página 3, “Aperi mihi Sponsa.” (p. 5) transporta para o poema toda uma carga significativa que podia ser-lhe alheia. Este verso evoca o Cântico dos Cânticos. Localiza a acção num plano diferente, dando-lhe uma dimensão geral, quando era particular. Permite, sem ambiguidade, a utilização de vocabulário do campo semântico do Amor e de uma situação que, de outra forma, seria dúbia. Por sua vez a leitura do poema provocará, decerto, uma nova recepção do Cântico dos Cânticos. A direcção da leitura, imposta com tanto cuidado, visa o maior controlo possível sobre o leitor. Embora Aguiar e Silva não estivesse, no momento, especialmente preocupado com a alegoria, cabe neste contexto a sua observação: “Os significados plurais do texto são construídos no âmbito de uma cooperação interpretativa que envolve o texto, com as suas peculiares condições de legibilidade com o seu protocolo de leitura implícita, explícita, ou ironicamente formulado, e o leitor empírico, com a sua «competência» literária, com a sua enciclopédia, com as suas estratégias descodificadoras, com a sua liberdade semiótica. Assim, a
* “Introdução”. In A Conquista do Reino dos Céus [...], Vol. I. Diss. Mestrado FCSH, UNL, 1993.
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plurissignificação é sempre, em parte variável, um fenómeno da recepção literária, implicando portanto parâmetros pragmáticos muito importantes. (...) (poder-se-á dizer que, a nível da recepção, existe um fenómeno peculiar de intertextualidade (...)”
O receptor é sujeito de aprendizagem, como a alma. A delineação de modelos visa o receptor; o medo é utilizado para dirigi-lo. As noções veiculadas de mundo, Paraíso, amor, pretendem agir sobre ele.
Se a leitura desta transcrição, tiver em mente as notas marginais do texto de Madalena da Glória, ver-se-á que uma das suas intenções se prende com o aspecto da liberdade interpretativa. Parece bastante esclarecida a sua avaliação do potencial receptor, participante de um universo cultural definido. O fenómeno da intertextualidade pode produzir-se sem a intervenção voluntária da autora. A sua obra decorre de uma tradição a que o receptor terá tido maior ou menor acesso. De qualquer forma, ele é conscientemente utilizado, tanto nas notas marginais, como no texto central. Ressalvando o facto de que a existência de vários níveis de interpretação não permitirá uma sucessão de sentidos, já que a apreensão da mensagem é um processo global, por comodidade dar-se-á uma notícia compartimentada dos níveis detectados.
Se, por puro exercício, se considerar lícita a analogia entre a exegese bíblica e a alegoria literária poder-se-á dizer que os dois primeiros níveis condensam o que era chamada interpretação literal – que englobaria a denotação do texto, mas também a descodificação das metáforas, etc. Do segundo nível poderá ser retirado o significado anagógico (espiritual ou místico) – a salvação da alma. O sentido tropológico (moral) será, então, o terceiro nível encontrado. A análise proposta procurará desmontar a complexidade da mensagem alegórica, tendo em especial consideração o que se designou terceiro nível. Neste plano se poderá detectar a difusão de uma cultura contra-reformista, conservadora e dirigida.
1) História amorosa: um simulacro de novela pastoril. A pastora Angélica escolhida pelo Príncipe hesita no seu amor. A aprendizagem conduzi-la-á à resolução do conflito amoroso. Prepara-se para as bodas.
– Contra-reformista, porque está impregnada das decisões do Concílio de Trento, realçando nomeadamente, a importância dos Sacramentos, da disciplina, da devoção; mas sobretudo, porque o seu eixo é a doutrina jesuítica em cuja base está o domínio da vontade.
2) Percurso da alma: combate espiritual entre o bem e mal. A alma iludida pelo mundo, passará pelo erro e sofrimento para mais tarde compreender e aceitar o caminho que leva à união com o divino.
– Conservadora, porque Angélica é uma figura feminina, com paralelo numa sociedade que enclausura especialmente as mulheres. A narrativa defende a ordem vigente na medida em que justifica todo um sistema, apresentando como fruto do esclarecimento e do desengano, uma situação que nasce de condições sociais determinadas.
3) Discurso moral: a subtil implicação do receptor como destinatário da mensagem.
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– Dirigida, porque são utilizados vários recursos persuasivos, com vista a conduzir as mentalidades e o comportamento. Desses recursos se destacam: a criação de modelos, a utilização do medo e da emoção com intenção de mover o leitor.
A varanda de onde se avista Mértola (excerto) GRAÇA ABRANCHES*
La révélation – l’altérité, les chemins à refaire D’une part ce qui nous est omis, d’autre part ce qui nous est révélé. Mais, en fait, quelles sont les révélations dans les Lettres portugaises? C’est d’abord, et à un premier niveau, ces secrets fondateurs, déjà référés comme imposés par la doxa mais qui ne le sont jamais dans le texte – la lettre, la passion. C’est ce qui définit les rapports entre les personnages et qui permet l’existence, non seulement de ce roman, mais du genre même lettres d’amour – la passion comme thème, la lettre comme moyen de l’exposer. Curieusement, comme nous l’avons vu, qui parle d’abord de moyens c’est Guilleragues, qui dit les avoir trouvés. L’exhibition de la passion se présente dans le texte déterminée par des impératifs d’ordre sentimental - «Je veux que tout le monde le sache, je n’en fais point un mystère, et je suis ravie d’avoir fait tout ce que j’ai fait pour vous contre toute sorte de bienséance; je ne mets plus mon honneur et ma religion qu’à vous aimer éperdument toute ma vie, puisque * In “Le balcon d’où l’on voit Mértola: le mirage des points de repère dans les Lettres Portugaises”. In Ariane (6), 1988.
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cation éloigne cette Mertola inconnue de son signifié premier et la fait devenir support d’une autre signification. Mertola pourra être l’image de toutes les réponses que le texte ne nous donne pas, méme quand il feint de nous montrer les moyens de les obtenir. Toutefois, à un autre niveau du texte il y a une vraie révélation - la révélation d’une subjectivité qui s’expose, qui s’élance éperdument dans l’écriture, qui n’a vraiment de rapport amoureux qu’avec celle-ci. On a déjà assez signalé l’importance du «mon amour» qui ouvre la première lettre et on sait depuis longtemps que cette expression définit un rapport de Mariane avec sa passion et non pas avec l’autre (le prétendu destinataire des lettres). L’absence de l’autre, dont nous n’avons point de lettres, ressort encore renforcée de ce que l’on a appelé le soliloque initial. Mais tout simplement il s’agit de l’écriture: écrire «mon amour», c’est créer le rapport et la lettre est sa concrétisation. Il n’est donc pas question d’autre acte d’amour, d’autre rapport que celui qui se crée entre le je qui écrit et le je écrit, l’écrivain et l’écriture, l’amoureuse et ses lettres. L’absence de rapport avec l’autre déchire le je et les voies dispersées par où il le cherche ne sont plus que des essais de se chercher soi-même dans les débris de la passion. Lettres sans destinataire, elles refusent la réponse. Celle-ci servira de prétexte pour ne plus écrire, comme son manque a été prétexte à écrire, laissant toutefois ouvertes les hypothèses de suite: «suis-je obligée de vous rendre un compte exact de tous mes divers mouvements?» (V, p. 95). Une fois encore, il est possible de rapprocher, par un procédé de rétroaction, les lettres et l’avis. D’une part, l’effort de Mariane pour recouvrer dans l’écriture un autre jamais atteint et qui ne la fait que retourner à son je éclaté par la passion éclaire d’une lumière nouvelle ces «soins» et «peine» qui ont marqué, selon Guilleragues, la récupération des lettres. Récupération qui ne
j’ai commencé à vous aimer» (II, p. 76); des impératifs du même ordre jouent aussi dans la publication des lettres – faire «un singulier plaisir» à «ceux qui se connaissent en sentiments». D’ailleurs d’autres révélations convergentes, secondaires, se trouvent soit dans l’avis soit dans les lettres. L’avis révèle un auteur «religieuse portugaise» que les lettres ne se limitent pas à confirmer, elles précisent l’identification – Mariane, religieuse dans un couvent où il y a un «balcon d’où l’on voit Mertola» (IV, p. 85). L’apparente précision de la référence a pu donner assez de crédit à ceux qui défendent l’authenticité des Lettres, c’est-à-dire ceux pour qui l’auteur est Mariana Alcoforado. Cependant, ce point de repère n’est qu’un mirage, car il n’y a aucun lieu de Beja - ville où se situe le Convento da Conceição (Couvent de la Conception) où Mariana Alcoforado a vécu – d’où l’on puisse «voir Mertola». Mertola devient par ce fait beaucoup plus riche de signification qu’elle n’en était. Elle pourrait ne pas être au départ que le renforcement de la prétention d’authenticité, un effet de réel - cette précision situait à peu prés l’histoire, créait l’illusion de référencialité. On pourrait croire ou ne pas croire à l’authenticité de ce point de repère. Mais du fait que l’on a cru absolument à cette illusion et que l’on est allé .plus loin, assurant une identification précise pour Mariane, pour son entourage, pour les lieux où elle a vécu, prétendant qu’il s’agissait vraiment de Mariana Alcoforado, on a altéré Mertola. On l’a traduite pour «les portes de Mertola». On lui a conféré la valeur d’un ailleurs, du mirage, car en effet elle n’a pas de réalité à partir de ce «balcon » d’où l’on a voulu l’apercevoir. Contrairement à ce que lon a prétendu, on a déconstruit la référence. Mertola est l’invisible du texte, la certitude que l’on n’atteint jamais. Le même écart qui ne nous rend ni les lettres de l’autre ni son identifi-
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Sóror Mariana Alcoforado: uma ficção literária
serait donc autre que l’écriture elle-même où se recouvre un je écrivain en essayant de communiquer avec un autre – le public – mais dont le rapport premier s’établit avec l’écriture elle-même, qu’il y ait ou non communication. D’autre part, ce même éclatement du je de Mariane réfléchit les différentes figures – traducteur, copiste, éditeur – qui prennent place dans l’avis comme ayant été nécessaires à la récupération et qui ne seront alors qu’un seul – un je d’auteur aussi multiplié. En effet ils se rapprochent, par ce moyen, l’auteur et Mariane. Mariane qui est toujours elle-même et une autre, déchirée et exposée, en excès de révélations: contre celle du présent se dresse celle du passé; contre celle qui espère, celle qui désespère; contre celle qui aime, celle qui haït; contre celle qui implore, celle qui reproche. La division qui la dilacère déborde sur le lecteur qui ne sait jamais où elle se/nous conduit, ce qui instaure tous les secrets possibles et incertains que l’on a déjà signalés. On se perd également dans l’avis si, suivant les indications de l’auteur, on part à la recherche de ces différentes figures éparses dites sujets de la récupération. Mais ces autres du je sont aussi les autres du temps et de l’espace, les autres de toute identification – l’éclatement des références. La figure de l’amant se brise aussi dans la lettre dans une pluralité - celle qui a existé dans un passé mythifié (réélaboré par la mémoire, donc déjà un autre), les figures différentes que Mariane lui attribue – amoureux, désintéressé, infidèle, indigne – selon sont état momentané; quelqu’un qui n’a pas d’être, une figuration multiple et trompeuse de destinataire (de lecteurs) qui justifie l’écriture. En réalité le motif central réunificateur n’est que l’absence. Il n’y a donc pas de secrets dans les Lettres portugaises mais un excès de révélations illusoires et divergentes qui instaurent la perte du savoir.
(excerto) ANNA KLOBUCKA*
[...] Ao contrário de muitas outras figuras femininas historicamente importantes, cujas vidas e obras, apesar de fortemente mitologizadas ao longo dos séculos, são todavia, de algum modo, objecto de registo factual verificável, Soror Mariana Alcoforado pode ser considerada como uma invenção quase totalmente ficcional, só tenuamente suportada pela evidência histórica. Como a poetisa grega Safo, que Joan DeJean (1989) considerou corno unia criatura da tradução e da interpretação, uma ficção cujas características mudavam com os costumes sociais e as normas estéticas vigentes, Mariana também foi, em primeiro lugar, unia ficção cultural avidamente cultivada. Ao contrário de Safo, é muito provável que não tenha escrito as famosas cartas de amor que são a sua única pretensão à celebridade e a raison d’être do seu mito. E justamente por isso parece apropriado vê-la como urna irmã mítica de Judith Shakespeare, a inexistente irmã de William, celebremente imaginada por
* In A Freira Portuguesa. Formação de um Mito Nacional. Lisboa: INCM, 2005. (The Portuguese Nun. Formation of a National Myth. Lewisburg/London: Bucknell UP/Assoc. UPresses, 2000, p. 114-17.)
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Virginia Woolf, ainda que as circunstâncias históricas dos respectivos processos de invenção dificilmente pudessem parecer mais diferentes, á primeira vista. Simultaneamente, como Hilary Owen demonstra, existem paralelismos significativos entre A Room of One’s Own e a mais importante reapropriação moderna do mito da freira portuguesa, Novas Cartas Portuguesas. Segundo Owen, “as Novas Cartas Portuguesas das “Três Marfas” e o Room de Woolf suscitam comparações em dois aspectos: ambos utilizam uma voz múltipla no seu tratamento da relação entre o género e a escrita, e desempenham uma função política semelhante no desenvolvimento da escrita feminina nas respectivas tradições nacionais” (1995, 180). A isto poderíamos acrescentar uma percentagem comparável de realidade e de ficção lias histórias narradas nos dois livros como outro aspecto que também legitima uma justaposição de Judith Shakespeare e Mariana Alcoforado. Contudo, o principal interesse de um tal confronto para a minha argumentação reside na transformação gradual dessas histórias em narrativas propriamente míticas, ou seja, narrativas que um selo de aprovação colectivo valida como sendo, em algum sentido, exemplares e normativas. Mais crucialmente, desejo considerar, a utilização de cada uma delas como alegorias especificamente feministas de oportunidade e evolução históricas. Nas décadas que se seguiram à publicação de A Room of One’s Own, mas sobretudo desde a década de 1970, a criação de Virginia Woolf influenciou profundamente as criticas feministas que tentavam delinear a tradição da escrita feminina em língua inglesa. Como Margarete Ezell demonstra, “as ligações entre a análise de Woolf e o conteúdo da actual história da literatura feminina são imediatas e impressionantes. A Room of One’s Own é repetidamente citado para glosar textos históricos e o seu impacto está patente nas colecções de ensaios sobre a teoria feminista
da literatura... Vê-se o poder da narrativa [de Woof] mais claramente na estrutura das antologias existentes: quase todas as antologias que tratam da escrita feminina com uma perspectiva histórica citam a teoria de Woolf sobre a artista isolada e auto-destrutiva” (1990, 584-85). Ezell denuncia este recurso, no seu entender, excessivo ao mito de rudith Shakespeare, fazendo notar que ele serviu para recusar o reconhecimento às muitas mulheres que efectivamente escreveram e até publicaram em Inglaterra durante o Renascimento e o século XVII, de acordo com os volumosos dados históricos descobertos desde a época de Woolf. Por ironia, “o modelo inicial da mulher renascentista silenciada e alienada pode ter resultado da tentativa de uma escritora do século XX de criar uma voz para ela” (583). Aparentemente conduziu para a direcção oposta, reforçando um estereótipo mítico que, por força da mudança de registo e das circunstâncias históricos, se metamorfoseou de uma crítica progressista da opressão das mulheres num mecanismo repressivo de exclusão de uma “tradição” recém-criada da escrita feminina. O exemplo de Judith Shakespeare mostra claramente quero poder duradouro do mito quer a sua natureza contraditória: sendo, por definição, uma história intemporal de acontecimentos primordiais, universais, revela-se, na verdade, profundamente enredado na história, como uma narrativa cujo significado e função depende de “um momento histórico especifico e de uma prática discursiva” (Godard 1991, 9). Encontramos forças semelhantes em acção sobre a figura mítica de La Malinche, um dos ícones culturais mais complexos da América pós-conquista, diversamente imaginada corno uma traidora desprezível do seu povo, como a trágica La Chingada, a mãe violada de todos os mexicanos e, por último, como um modelo e uma inspiração para as escritoras feministas mexicanas e chicanas do século XX. Particularmente neste
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último caso, como Mary Louise Pratt mostrou, a “transculturação” de La Malinche para o repertório simbólico do movimento chicano forneceu “um sítio vital, ressonante, para [as suas militantes] se definirem e simbolizarem” e, sobretudo, “para explorarem as relações frequentemente conflituosas... entre o feminismo e o nacionalismo étnico” (1993, 175). De forma não muito diferente de La Malinche, a figura da freira portuguesa adquiriu uma capacidade prodigiosa para acolher um vasto reportório de significados simbólicos e ideológicos. As autoras das Novas Cartas, embora utilizem o potencial mítico gerado pela história de Soror Mariana, demonstram uma consciência aguda daquilo a que Godard chama “armadilha do mito” “É impossível vencer o mito desde o interior, porque qualquer tentativa que façamos para nos libertarmos dele torna-se, por sua vez, presa do mito, o qual pode significar apenas a resistência que se lhe opõe”. Consequentemente, preferem seguir o caminho teorizado por Barthes criando um mito declaradamente artificial, que despoja o discurso mítico do seu poder através da distância intelectual e da colocação auto-reflexiva das suas próprias intenções ideológicas em primeiro plano. Nisto, antecipam a prática feminista desconstrutiva “de repetição e oscilação contínuas”, explorando “a diferença entre citação e paródia em que as palavras do discurso dominante são repetidas e remarcadas com a diferença do adiamento” (Godard 1991, 17): a différence de Derrida. Contudo, este tipo especificamente desconstrutivo de remitifcação feminista parece carregar consigo os seus próprios dissabores potenciais. No centro do feminismo estão, afinal, os seus objectivos políticos: qualquer poética feminista é validada ou desacreditada por um diagnóstico da eficácia potencial ou real da sua política. Como alguns críticos da ligação feminista-desconstrutiva fizeram notar, o “ponto de vista de lado
nenhum” e o “sonho de toda a parte” da desconstrução conduzem a práticas textuais que “acabam por ser pouco consistentes; através do paradoxo, da inversão, da auto-subversão, da dança textual superficial complicada, apresentam-se muitas vezes sem regras fixas, para chegarem à conclusão que lhes convém. Recusam-se a assumir uma forma pela qual tenham de se responsabilizar” (Bordo 1990,144). Embora, no meu entender, as políticas textuais das Novas Cartas Portuguesas sejam, ao mesmo tempo, fortemente feministas e fortemente desconstrutivas, as preocupações de Susan Bordo em relação à responsabilidade discursiva parecem ser justificadas por uma obra literária portuguesa mais recente, um pequeno volume de poemas de Adília Lopes, que, quinze anos após a publicação das Novas Cartas, se serviu do mito de Soror Mariana de uma maneira bastante distinta de Barreno, Horta e Velho da Costa (embora seja discutível até que ponto isso a invalida inteiramente como gesto político feminista). No período decorrido entre as duas encarnações literárias de Mariana Alcoforado, a cultura e a sociedade portuguesas sofreram muitas mudanças profundas e numerosas convulsões políticas, para surgir, em meados da década de 1950, como uma democracia estável de tipo ocidental, com uma economia em crescimento constante, um governo solidamente centrista e uma cultura popular largamente despolitizada e consumista. O apogeu do radicalismo de meados e finais da década de 1970 parece, se não esquecido, pelo menos enterrado num passado irrecuperável; e o lugar do feminismo cultural militante foi ocupado por algo rotulado (mas nunca ou quase nunca analisado) como “pós-feminismo”. Lopes, nascida na década de 1960, é uma filha do Portugal pós-revolucionário, pós-tudo, e as modulações desapaixonadas e irónicas da sua poesia apresentam um forte contraste com a tonalidade ardentemente engagêe da escrita praticada pelas autoras
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A autobiografia de uma freira
das Novas Cartas. O seu livro, intitulado Marquês de Chamilly: Kabale und Liebe, contém algumas deliciosas glosas modernizadas da paixão do século XVII: Mariana viaja de metropolitano, reflecte sobre os mistérios dos códigos postais e escrevinha “M.A. loves Ch.” nas vidraças embaciadas das janelas. Todavia, o teria que adquire maior destaque à medida que a sequência se desenvolve é o do adiamento e do desvio crescentes do discurso amoroso de Mariana: as suas cartas perdem-se ou são desencaminhadas pelos correios, deixadas cair por um carteiro descuidado numa rua parisiense. Por fim, Chamilly responde-lhe, mas apenas para explicar educadamente que nunca conseguira decifrara caligrafia da sua insistente correspondente e pedir-lhe se ela se importava de escrever a sua próxima missiva em letra de forma. O último poema faz este romance epistolar descambar para um mise en abîme de simulacros potencialmente interminável, fazendo entrar em cena outra freira e outro marquês, [...]
(excerto) JOÃO PALMA-FERREIRA*
[...] maior valor das autobiografias de frades e freiras [...] é que não foram conscientemente concebidas com o intuito de ilustrar ou de dar publicidade a um tipo de vida ou a um tipo de sociedade ou a um problema íntimo. Escritas no coração dos conventos e para os conventos, não eram «obras» literária ou socialmente endereçadas e por isso mesmo muitas se perderam na voragem que levou algumas livrarias quando as congregações foram extintas. É, aliás, através destes livros manuscritos, muitos dos quais se encontram resumidos em diversas crónicas monásticas, obras de paciência e de exercício espiritual, textos de exemplo cristão destinados a exaltar as excelências do recato religioso e dos caminhos de Deus, opondo a beatitude do seu universo de conceitos e padrões morais aos descaminhos caprichosos da vida secular, que é possível recriar o quotidiano conventual sem cedências perante as tentações do pitoresco e as descrições de segunda mão. Se a liberdade dos conventos, entre meados do século XVII, e meados do século XVIII, tem sido descrita nos limiares da licença, senão da libertinagem e se os mosteiros tenderam, então, a * “Prefácio”. In Antónia Margarida de Castelo Branco. Autobiografia (1652-1717). Pref. e transcrição de J. Palma Ferreira. Lisboa: INCM, 1984.
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transformasse, de facto, em centros de activa e fútil vida social, e até de rebelião contra as disposições de reforma de D. Pedro II, em 1674, com sedição pública em Braga e conflitos generalizados noutros locais, não há dúvida que a facilidade do retrato convencionalizado por comentários à superfície de convicções fortemente jacobinistas tem concorrido para manter no esquecimento os testemunhos, cremos que fidedignos, sobre o carácter profundo da reclusão monástica e sobre os dramas, pequenos e grandes, que diariamente se desenrolavam atrás das grades. É que ao lado da sociedade laboriosa, dos burocratas nobres, da classe militar e do clero secular, no recôndito dos grandes e pequenos conventos, florescia uma sociedade subterrânea, irmanada por sólidas afinidades e enclausurada por um terrível destino: o de cumprir uma missão entre divina e terrena, mas sempre assumida como fatalmente indiscutível, construindo um «mundo» renunciado do século mas que deste não deixava de recolher a memória do tempo passado. A insipidez e por vezes insuportável vacuidade das crónicas monásticas, onde em conjunto se relataram as vidas de frades e freiras, tais como as crónicas de Frei Jacinto de Deus, Frei João Freire, Frei Pedro de Jesus Maria José, P.e Manuel Monteiro, Frei Francisco de Paula Bossio, Frei João dos Prazeres, P.e Fernão de Queirós, Frei Agostinho de St.ª Maria, Frei Francisco de Santiago, Frei Henrique de Santo António, Frei Martinho de S. José, Frei Manuel de S. Luís, entre outros, têm contribuído para que não se preste a devida atenção a textos que, como poucos no seu tempo, são um auxiliar precioso para o estudo íntimo de toda uma época e de uma sociedade. As religiosas provinham frequentemente de classes abastadas. Ou eram reclusas à força de imposições reais, por suspeitas de escândalos ou por conveniências políticas, ou eram as filhas solteiras que as famílias levavam ao convento para que os
patrimónios não fossem afectados por casamentos cujos contratos nupciais incluíam dotes que poucas podiam cumprir sem penhores e empenhos. O contrato nupcial de Antónia Margarida é típico do século XVII. Sua mãe não poderia satisfazê-lo sem prejudicar gravosamente o pecúlio do filho segundo que, para mais, era varão e destinado, portanto, a preservar e continuar o morgadio. A satisfação do dote, porém, era imprescindível ao marido de Antónia Margarida, modelo do fidalgo arruinado após a Restauração brigantina, filho de um trânsfuga protegido por Filipe IV, com quase todas as propriedades confiscadas em Portugal. A pobreza da residência do senhor da Lamarosa não nos deve espantar e muito menos a falta de recursos do jovem casal, destinado a viver, primeiro, em casa da sogra, no Lavradio, devorando nas despesas domésticas o dote de Antónia Margarida e recorrendo, quiçá para a sobrevivência noutros domínios, às vendas de mobiliário e bens que Antónia Margarida vitupera a Brás Teles; depois, em casas de fidalgos amigos, um pouco ao acaso de gentilezas patrícias, ou na mediocridade rural da Erra e da Lamarosa. O filho do conde de Arada, hostilizado por um meio em que a nobreza triunfante não perdoava o castelhanismo do pai, não obtém os empregos de Estado que eram o único recurso da classe dominante, uma vez impossibilitada de viver de rendas e comendas. É bem clara a referência que o autor das Monstruosidades do Tempo e da Fortuna (cita-se a edição do Porto, de 1930, volume II, p. 107) faz à família de Brás Teles: Entrou o mês de Janeiro de 671, com um sucesso que deu muito que ajuizar a toda a Corte. Fernão Teles, cuja infâmia fará durável Sua memória, deixou um filho bastardo em Lisboa (meio-irmão de Brás Teles); de volta de Castela e entrando no Páteo das Comédias a ver representar uma, picou com uma espora a um Cavaleiro. Seria desatento, porém a opinião o fez parecer propósito; à queixa do ofendido, houvera de sair a satisfação e saiu a liberdade; remeteu-se a razão às
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espadas e com elas se definiu a razão; apartou-se a briga, fugiram os agressores à obrigação da justiça e cada uma das partes seguiram os amigos; e passando pela rua dos Escudeiros, o Teles, dizendo aos seus como deixava passado com uma estocada mortal a seu contrário, caiu morto de uma que seu contrário lhe havia dado, que ele não havia sentido ou por soberba calava dissimulado. Admiraram-se todos que, como não sabiam da ferida, presumiram que o matara a jactância; despiram-no e ponderaram que ao tempo da jactância o matara a ferida. A justo juízo de Deus o atribuíram (costume do vulgo), porém nesta ocasião e neste homem, ponderação do escândalo. Correu-se a vida de animar sangue tam manchado da infâmia, que herdou no sangue. A existência de Brás Teles decorre no horizonte social escasso em que, por tradição de lazer e de boémia seiscentista, se exerce uma arrogância aristocrática que não tem ocupação possível: nem nos exércitos, nem na administração, nem na corte. O jogo, a caça, as aventuras sentimentais fáceis e as comédias fecham o pequeno círculo onde estiola um estilo de vida já sem autêntica padronização cívica, nem mesmo na segunda metade do século XVII português. Antónia Margarida é o único suporte financeiro da família e espelho da mulher nobre e rica que sustenta o marido dominador, brutal, ciumento, perdulário e crédulo. Na realidade, são estas condições de vida e sociais em geral que a encaminham para a única solução viável: a reclusão monástica. No entanto, e em estrita conformação ao espiritualismo da época, Antónia Margarida considerará – e repetidas vezes o afirma – que todas as humilhações impostas pelo marido (algumas tangentes à monomania persecutória e ao sadismo) não são mais do que formas pelas quais Deus se lhe revela; são elas mesmas obras de Deus de que o marido é instrumento activo. A praxis moral de seiscentos não permite ainda outro tipo de considerações, nem à mulher era dada outra alternativa.
Símbolo da condição do feminismo, em tempo de subalternizarão da mulher e em face dos imperativos atávicos de uma sociedade dominada pelo instinto da posse e do poder do homem, Antónia Margarida bem poderá ser aceite como o arquétipo da religiosa que ingressa no claustro após a frustração total da vida doméstica, cívica e social. Parece haver, contudo, uma contradição de fundo entre a religiosidade conformista que transparece das biografias e autobiografias de religiosas e o que, através de outros meios de informação, vamos descobrindo sobre a vida interna das congregações, ciosamente preservada da curiosidade dos leigos. As histór ias e crónicas conventuais, escritas dentro e fora dos claustros, não abundam em pormenores que possam esclarecer-nos sobre a prática da observância das regras monásticas, ou encobrem-nos sob a tecitura de um formalismo tão rigidamente concebido que nada escapa ao perfil do modelo, mesmo quando, na candura dos factos, pressentimos o eclodir das rebeldias e das dúvidas, até dos desesperos. Nas manifestações íntimas, os religiosos reiteravam a sua humildade, conformando-se com os «trabalhos» e «misérias» que o cumprimento dos votos lhes acarretava, mas na vida diária, a aceitação de normas e sacrifícios não se processava sem choques e questões, algumas das quais, apesar da vigilância em contrário, passaram ao domínio público, contribuindo para a má imagem de diversas Ordens. Para lá do que tantas vezes tem sido vulgarizado, sabe-se que nem sempre as decisões claustrais eram cumpridas de boa mente pelos congregados (Antónia Margarida encarece frequentemente a sua incapacidade de acção para deplorar as funções de porteira que lhe designam), nem as devoções e obrigações agradavam puramente aos religiosos. Em Fevereiro de 1743, segundo acta manuscrita que se conserva, um Fr. António da Virgem Maria, algures num convento de Lisboa, foi cha-
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A voz de Antónia Margarida Castelo Branco
mado à culpa por ter faltado ao acto de exame de consciência, do que se escusou afirmando que não comparecera porque o tempo estava muito frio. [...] O que nos parece mais singular, no caso de Antónia Margarida, é que os problemas temporais transitavam para o convento, mau grado o silêncio claustral. A sociedade enclausurada prosseguia, atrás das grades, o eco da vida mundana e os conflitos pessoais, mudando embora de expressão, mantinham-se já como memórias que era necessário reavivar para melhor esclarecer os fundamentos e os caminhos da fé, já como nostalgias profundas que nem a prática diária da espiritualidade conseguia extirpar completamente. É o que pressentimos no âmago da Autobiografia de Antónia Margarida apesar do manto de religiosismo que a encobre e por vezes altera. Para a compreensão do ponto de vista em que a religiosa se coloca face à vida secular passada, convém sublinhar que a renúncia ao mundo não significa a demissão ou o silêncio, mas sim uma alteração de rumo; a história, e com ela a acção humana, abre-se ao ultraterreno e adquire assim nova fertilidade. A própria mística não consiste tanto em sair deste mundo como em inserir a vida pessoal na história sagrada. O catolicismo militante, evangélico ou reformador, impregna de sentido a história e a negação deste mundo traduz-se finalmente numa afirmação da acção histórica. É no sermão de António Vieira sobre «as finezas de Cristo» e na crítica que despertou que vamos encontrar o modelo acabado de espiritualidade barroca que domina os finais do seiscentismo português e ecoa, aliás, por todo o orbe católico. [...]
(excerto) MAFALDA FERIN*
[...] A reflexão acerca da escrita da autobiografia constituiu também um motivo recorrente. Todas as religiosas esclareceram que escreveram por obediência aos seus confessores e aos seus prelados e muitas se queixaram do temor de estar a registar enganos ou de vir a tornar-se objecto da admiração dos futuros leitores, afirmações que, repetindo-se ao longo de todas as autobiografias, nos levam a pôr a hipótese de se tratar de uma convenção do género. Soror Clara do Sacramento, como veremos adiante, e Rosa Maria de Santa Catarina desejaram mesmo destruir os seus papéis, o que talvez resulte das circunstâncias específicas em que as duas religiosas viveram: Soror Clara do Sacramento continuamente enredada na sua contenda interior e no seu labirinto interior e Rosa Maria de Santa Catarina atormentada pelos padres da sua ordem que a acusavam de aliança com o demónio, a tal ponto que recorreu aos padres jesuítas para a revisão dos seus papéis. * “Introdução”. In “A Fiel e Verdadeyra relação [...]: um género, um texto único”. Dess. Mestr. FCSH, UNL, 1992.
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O relato das múltiplas mercês que o Senhor concedeu às religiosas constitui talvez o grande motivo destas autobiografias, o qual se pode desdobrar em vários sub-motivos: forma como sentiram e gozaram, fisicamente ou através do recolhimento, a presença do Senhor, visões que experimentaram, locuções com que foram favorecidas, revelações que lhes foram feitas. Todas as religiosas experimentaram incêndios de amor divino, todas abrasaram no amor de Deus, todas sentiram regalos e suavidades provenientes de Deus. Ao recolher-se encontraram-n’O no seu interior e experimentaram a Sua presença. Todas sentiram saudades do seu Senhor, todas atingiram a união com Deus e quase todas afirmaram terem sido trespassadas por uma seta trazida por um anjo ou mesmo por Deus. Algumas religiosas descreveram mercês divinas mais específicas: foi o caso de Soror Joana de Albuquerque e de Soror Maria da Assunção (o n.º 10 da lista) que descreveram como entregaram o seu coração ao Senhor, de Rosa Maria de Santa fazer-Lhe pedidos, quase sempre respeitantes à salvação das almas de outras criaturas, os quais o Senhor acolheu. O pedido e o seu despacho constituem assim outro motivo destas autobiografias. Estes favores divinos tornaram-se maiores e mais frequentes, em muitas autobiografias, sempre que as religiosas estavam doentes, o que acontecia com frequência. A doença é outro dos motivos mais recorrentes nestes textos e todas as autoras descreveram com pormenor tanto os seus achaques como as curas que tiveram de suportar. [...] Os problemas que as religiosas experimentaram com os seus confessores, que por vezes se recusaram a confessá-las, constituem outro motivo recorrente nestas autobiografias, bem como as perseguições que lhes foram movidas por outras criaturas, fossem os referidos confessores, fossem os prelados, fossem as outras religiosas. Estas perseguições levaram-nas a buscar maior silêncio e
afastamento, projecto que surge em muitas autobiografias. Outros motivos presentes nestas autobiografias são o desejo de comungar e as mercês recebidas depois da comunhão, o dever de obedecer (sobretudo aos superiores e aos confessores), o dever de se desapegar da própria vontade, a consideração dos pecados cometidos e das misérias próprias que levam sempre as religiosas a considerar-se piores que todas as outras criaturas e indignas dos favores divinos. Desta forma, a mortificação da própria vontade através da obediência e da humildade assumiu muito maior importância nestas autobiografias do que a mortificação corporal. Embora quase todas as religiosas se tenham referido à importância de tomar disciplinas, só Rosa Maria de Santa Catarina, Soror Maria de São José e Soror Isabel do Menino Jesus o fizeram com alguma frequência. [...] As religiosas poderão ainda ter recolhido os motivos que constam das suas autobiografias noutros textos que na época não tinham ainda perdido a sua vitalidade: nas obras hagiográficas, onde confluiam a finalidade edificante, a descrição de factos maravilhosos e o tema da humildade, tão marcante nas obras que indicámos, nas crónicas monásticas, onde se multiplicavam as vidas edificantes, nos sermões escutados por ocasião da profissão de uma religiosa, nos elogios fúnebres, nas biografias avulsas de religiosos e religiosas. Em Portugal circularam diversas biografias de religiosas de carácter edificante. [...] Leriam muito as religiosas? Leriam este tipo de obras? Sanchéz Lora considerou que em Espanha, as hagiografias fantasiosas faziam parte das leituras de cabeceira das religiosas. Nesta parte da «Fiel e Verdadeyra Relaçaõ Que dá dos Sucessos de Sua Vida a Creatura mais ingrata a seu Creador...» encontramos precisamente um aumento da matéria do discurso, obtido não através da repetição de um mesmo pensamento, mas do relato de situações idênticas, o
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que provoca um alargamento da expressão. Estas situações são «situações interiores», estados de espírito de Soror Clara do Sacramento, despoletados por um número reduzido de motivos como adiante veremos, que incessantemente alternam e regressam no texto. Dado que a religiosa constantemente duvidava ou vacilava a respeito dos mesmos factos, a seu texto converteuse numa alternância contínua entre a tranquilidade e o desassossego, a confiança e a desesperança. É assim que a «Fiel e Verdadeyra Relaçaõ Que dá dos Sucessos de Sua Vida a Creatura mais ingrata a seu Creador...» reflecte uma contenda interior, pois há sempre duas certezas ou dois sentimentos em luta dentro da religiosa, e de um labirinto interior, pois a religiosa vive momentos de grande perturbação, ignorando qual o caminho que deve seguir para encontrar o sossego interior. Soror Clara do Sacramento foi a única religiosa que recorreu, para amplificar a matéria e a escrita dos seus cadernos, à apresentação da sua constante vacilação interior, tendo as autoras das restantes autobiografias preferido o relato das suas experiências de oração, das suas visões, das suas revelações e das suas locuções. Embora o registo da contenda interior e do labirinto interior surja assim como uma característica singular da «Fiel e Verdadeyra Relaçaõ Que dá dos Sucessos de Sua Vida a Creatura mais ingrata a seu Creador...», a explicação e o sentido esta escolha, porém, podem provir não só da subjectividade da religiosa, como das estruturas culturais e mentais em que ela estava inserida. [...] Embora não se possa atribuir a Sóror Clara do Sacramento uma reflexão tão profunda acerca da natureza do ser do homem, cremos que se pode dizer que ela viveu na plena consciência da constante alteração dos seus estados de espirito e das suas crenças, vendo-se a si mesma como uma criatura incerta e flutuante.
Uma obra dentro do género Depois de termos analisado a «Fiel e Verdadeyra Relaçaõ Que dá dos Sucessos de Sua Vida a Creatura mais ingrata a seu Creador...» tornou-se claro que ela constituia uma autobiografia espiritual produzida por uma religiosa e, por outro lado, que continha características que ultrapassavam as atribuídas a este tipo de autobiografia, situando-se num lugar específico e único que tentaremos determinar depois de a integrar no subgénero autobiografia espiritual. [...] A autobiografia de Soror Clara do Sacramento constitui uma narrativa em prosa na qual a autora apresenta a sua vida e a sua personalidade, embora o faça dentro de alguns limites.
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TEXTOS LITERÁRIOS
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Sóror Maria do Céu*
custa de teus escarmentos. Dize-me aonde fazes teus fumos, se é que os não levantas de teu pó, pois tal é teu desvanecimento, que até do pó levantarás os fumos, e nem à tua vileza perdoará assim tua vaidade, e sendo esta vento para despenhar-te, a fazes asas para subir-te. Dize ao nobre que nasça como nenhum, que cresça como só, que acabe como único; mas se o nobre nasce pranto, cresce perigo, acaba desengano, de que se desvanece o nobre? Olhai para o seu berço, achareis lágrimas, para o seu palácio, vereis sobressaltos, para o seu sepulcro, descobrireis horrores, e ainda que ao sepulcro levantem mármores, ao palácio enobreçam títulos, ao berço cubram púrpuras, dizei-lhe que isto é o que tem de seu, e aquilo é o que tem de si, mas esquece-se ele do que tem de si, mas esquece-se ele do que tem de si por se lembrar do que tem de seu. Se choras, Nobre, ao nascer as misérias, para que nasces, por que te não lembras destas misérias quando vives? Lamentas teu mal quando sem entendimento, descuidas-te de teu mal quando com razão, e não advertes que este é o maior mal; ao nascer choras tua fragilidade, ao viver procuras tua adoração: se perguntares ao que choras pelo que procuras, primeiro choras-te perigo, ao depois fazes-te Divindade, sem advertires que ficou desmentida tua Divindade em teu perigo; como queres cultos de Divino ao durar, se trouxeste sentimentos de humano ao nascer? Mal pode tua soberba endeosar-te, se tua mortalidade há-de consumir-te; não porfies, ó Grande, em ser Ídolo, que o que hoje é sacrifício, amanhã será fogo, e assim te abrazaram teus sacrifícios, fumos em tua vida para a presumpção, incêndios em tua alma para o castigo; entraste no Mundo chorando-te, e cresces no Mundo desvanecendo-te, quando ignorante como quem sabe, quando sábio como quem ignora, mas tu fizeste de tua razão malícia, por isso fazes de teu pranto inocência; bem sabes, ó miserável Soberano,
ENGANOS DO BOSQUE, DEZENGANOS DO RIO CAPÍTULO III Desengano I Quem és tu, ó Nobreza de ser humano, sendo de humano ser; como te levanta tua soberba às Estrelas, quando no lodo podes manchar o Firmamento, pois nem o aço de tua arrogância bastou a gastar o aço de teu princípio; porém tu tiras os olhos do que começaste, e por isso te persuades a que creceste; aonde está esta grandeza, de que te jactas, se para a duração cabe em um instante de tempo, se para o lugar caberá em dous palmos de terra? Respondes-me que te alargas em quem te deixas, e em quem te deixas, já que me respondes? Deixas-te em quem por herdar-te ser tão pouco, não pode passar de tão pouco ser, deixas-te em quem por herdar-te os perigos, se há-de estreitar às fragilidades; deixas-te em quem por herdar-te tão pouca vida não pode desagravar-te das injúrias da morte; deixas-te em quem por herdar-te as condições de barro, te não pode satisfazer as queixas da duração, e finalmente deixas-te em outra tu, que quando mais, não pode ser menos; pois, se isto é assim, ó Feniz de misérias, quanto melhor te estava ser mariposa de luzes? Melhor te estava, ó mulher Nobreza, acabares tua vaidade às luzes de teu desengano, que renascerem tuas presumpções à * Lisboa Occidental: 1736. (Leitura a partir de Microfilme.)
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que choraste ao nascer como menino, porém que de menino não choraste, olha, e teme que nasces pranto para durar suspiro; mas tu descuidas-te de teu lamento passado, porque desprezas teu perigo presente, sendo aquele lamento este perigo; nasces com fragilidade de vidro, vives com confiança de bronze, dize, ó Grande, quem te deu tanta confiança? Que queira fazer tua culpa o que não pode fazer tua natureza! Se vives para viver, trata-te como eterno, se vives para morrer, vê-te como mortal, não procures encobrir com as vaidades os desenganos, que isso é querer dourar as sombras, e esconder as luzes, olha que desenganos dissimulados são enganos conhecidos. Todos teus borcados não podem encobrir tua vileza, todos teus diamantes não podem desmentir tua fragilidade, toda tua arrogância não pode afugentar teu risco, todo teu ouro não pode dissuadir teu pó, toda tua prata não pode esquecer teu lodo, todas tuas pérolas não podem desviar tuas lágrimas, todo teu fausto não pode dissimular tua miséria, todo teu título não pode dourar teu ser, todo teu palácio não pode escusar tua tumba, toda tua púrpura não pode desterrar tua mortalha; como fazes logo tua soberania do que não podes desfazer tua baxeza, levantando-te em cabeças de ouro, quando te não podes segurar em pés de barro, que importa, ó Nobre, que a vida te trate como grande, se a morte te há-de tratar como pequeno? Descuidas-te do teu fim, quando para teu fim caminhas; quem continuando à jornada, se pode esquecer do termo dela, senão aquele, que delirante perdeu o entendimento na jornada? Porém tu, a quem tua vaidade tem louco esqueces-te do termo, porque perdes a razão; sabe pois que cada passo, que dás, ainda sendo para teu divertimento, o dás a teu sepulcro, cada Sol, que se põe, te diminui as luzes da vida, cada sombra, que se te passa, te avizinha às sombras da morte, e finalmente cada respiração, que tomas para viver, te
põe mais perto de acabar, persuade-te, ó Grande, a que chegas, e não a que sobes; mas tu nem a que sobes, nem a que chegas te persuades, cuidas que páras a não poder ser mais, e corres, miserável, a não poder ser menos; à tua fantástica grandeza responda Alexandre, que não coube no Mundo, e coube na sepultura. Se o fingido Deus da Monarquia aérea se lembrara de sua presumpção, muito dilatara seu império, trinta e dois ventos contou em sua Região, trinta e dous mil acharia em tuas vaidades, e o peior é que fias do vento. Os Gigantes fabulosos levantaram montes sobre montes para subir, mas tu levantas montes sobre ares para estar, com que é maior tua loucura que a dos Gigantes. Fazes teu merecimento de teu nome quando só devias fazer teu nome de teu merecimento; tuas obras haviam de ser tua nobreza, que não há maior nobreza, que a de bem obrar, mas fidalguias no sangue, e vilezas na alma, é querer ser tudo na terra, e nada no Céu, assim escolhes cego fazendo-te fidalgo de tempo, vil de eternidade, tua soberba não passa de tua vida, e é maior desgraça de tua soberba; neste Mundo fazes fantasia de ser mais, no outro não fazes descrédito de ser menos, aqui queres exceder aos maiores, lá não tratas de te igualar aos grandes, aqui desejas tocar com o dedo nas Estrelas, lá não reparas tocar aos abismos, tão pequeno és, ó Soberano, que ainda em tua soberba não pudeste ser grande. Nobreza, nobreza, não está teu ser em ascendências passadas, está tua realidade em virtudes presentes; se se ensoberbece a Majestade de teus maiores, levanta as pedras a seus monumentos, ali verás quem foram teus maiores, e os que tem sido engano, fiquem teu espelho. Se te desvanecem teus títulos, são para a vaidade nomes dourados, porém para a valia não podem ser ouro de nome: se te ensoberbecem teus Estados, são muitas léguas para o cuidado, e mais dois palmos de terra para a soberania, se te endeosa tua estimação, é uma adoração, que te
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mente ídolo, mas não é adoração, que te desminta humano; se te enlouquecem tuas galas, são tarefa de bichos tecida em vaidade de homens, se te elevam tuas riquezas, são cabedal, que te não pode comprar mais duração, e só te pode valer mais fantasia; e finalmente, se as riquezas, as galas, os Estados, os títulos, a estimação, e a fidalguia te ensoberbece por ser da vida o melhor, olha que o Sábio dos homens chamou a tudo o melhor da vida vaidade de vaidades; a virtude é, ó Nobre, a que pode eternizar tuas coroas em melhor Reino, fazer perpetuar tuas memórias em melhor fama, levantar teu mausoléo em melhor pira, elevar tua estátua em melhor nome, dilatar tua soberania em melhor domínio, duplicar teus títulos em melhor Corte, conservar tuas riquezas em melhor erário. Queres ser grande, ó Nobre? Sê Santo, que só sendo Santo serás grande. Calou o Rio o fatal desengano não voluntário, mas respectivo, vendo que do Olimpo até o Bosque media os ares Orfeu de pena com corpo de ave, voz doce, gala de neve, conceito de luz, e cantou assim:
Y robas lo Celeste, Por luzir lo mortal. Espera un poco, y mira, Mas ay dolor fatal, Que ese poco no sé Si puedes esperar. Tu ser, y fantasia En ti luchando estan, El humo por subir, La tierra por baxar. Si sorda al dezengaño Dudas de la verdad, Pregunta a lo que fuiste, Y ve lo que serás. Y tanto me lastima Tu loca ceguedad, Que, si llorar supiera, No bolviera a cantar. Vanidad, vanidad, Falsa nobleza, prevencion fatal, Si no puedes ser menos, Como puedes ser más? Vanidad, vanidad.
Vana deidad Nobleza, Solo de verte está Democrito a reir, Heraclito a llorar. Tu pompa com el viento Hey hé visto pezar, Y siendo el viento nada, El viento pezó más. Si tan poco, Nobleza, Vale tu vanidad, De lo que hazes tu ayre, Puedes hazer tu ay. Mas tu locura es tanta, Que en tal fatalidad, Viviendo entre suspiros, No sabes suspirar. Que es tu lustre de Estrellas Sobervia informarás,
CAPÍTULO IV Em que a alma é levada ao segundo Ídolo do Mundo Fermosura, e indo a cegar-se em suas luzes, a socorre o Desengano com suas vozes. A Peregrina, que já adorava reverente a primeira Divindade do Bosque Nobreza, trocando o nada da sua coroa na que se lhe ofereceu, ouvindo o menos de seu ser no que se lhe murmurou, advertindo-a corrida no que fugiu, de todas estas circunstâncias fez um motivo para desestimá-la, deixando-a para fantasia, sem buscá-la para Divindade, e querendo arguir de sua falsidade as Caçadoras, e Ninfas, se achou só com a queixa, porque não viu a quem fizesse o queixume: adiantou o passo, passeou os olhos a ver se as encon-
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trava, e a pouca moléstia da planta, e menos fadiga da vista as descobriu devotas ao segundo culto de tão indigna Deusa. Era esta uma belíssima mulher, com quem as três Graças eram uma inveja, sendo seus olhos uma esfera de luzes, sua boca um tesouro de rubins, sua brancura uma alva de açucenas, suas faces um Abril de rosas, seu composto um todo de perfeições; vestia cor celeste, porque em tudo se fingisse Celestial, de prata em corações partidos guarnecia a gala, que esta mulher fazia gala de partir corações; o toucado brincava em mariposas de ouro, que se lhe iam queimar às luzes dos cabelos; no peito prendia um espelho, de donde a espaços o trasladava aos olhos saudosa de ver-se, porém não tinha saudades de presumir-se; fazia esfera de um belíssimo rosal, luzes, e flores mostravam tanta fermosura, que aqui se desdenhavam de servir as Estrelas, sendo da Majestade a melhor púrpura, do coral a melhor folha, do sangue de Adonis a melhor tinta, e à Divindade, a quem teciam solio de tanto nacar, a melhor pérola. A Peregrina, que escarmentada ao primeiro Ídolo dava coisas, agora namorada já ao segundo fazia rosto, perdida pela beleza que via, já não formava ideia no desengano, que deixava, e mariposa daquelas luzes caducas se arrojava a tocá-las persuadida da sua devoção, quanto esquecida da sua fé. Quem és, ò soberana Deusa, lhe perguntava, cuja beleza faz Paraíso deste Bosque, Céu deste verde, luz desta sombra? Respondeu a endeosada humana, sendo partido cravo fragrância aos Zéfiros, prisão aos ventos, notícia à Peregrina.
Reyna de amor por imperio, El mismo amor por fuerça, Que el por mis ojos tira, Y yo veo por sus flechas. De mi belleza en las luzes Aciende amor sus hogueras, Porque el mismo amor no arde, Si en ellos no se quema, Incendio, incendio, adonde El fuego es la materia. Baxan los Dioses por verme De las esferas supremas, Y aquel que llega adorado, A adorarme se queda, Que a merecerme humana La misma Deidad ruega. Soy el Cielo de la vista, Quando a mirarme se eleva, Mas si de los ojos gloria, Tambien del alma pena, Que lo que es luz a ellos, Es solo fuego a ella. Soy el incendio de Troya, Porque quando se fomenta, No fuera Troya cenizas, Si yo las luzes no fuera, Y en ellas arden Paris, Y renacen las Helenas. Soy el desvelo de Apolo, Quando pastor galantea, Que el Sol por arder en mi, De abrazarse en si dexa, Y duplica los rayos, Trocando las esferas. Soy quien al Leon Thebano Afeminó la braveza, Mudando valor de roca. En el uso de rueca, Quando amor hazer supo Hilo de la cadena. [...]
Yo soy aquella Deidad, Que al Cielo hurtó las Estrellas, Al campo robó las flores, A los mares las perlas, A Jupiter los rayos, Al Amor las saetas. Soy madre de amor por Venus, Hija de amor por belleza,
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Desengano II
perguntas-lhe o que és, ele diz-te o que pareces, e tu cuidas que o que pareces é o que és; mostra-te as boas cores de tua beleza, esconde-te o achaque de tua fragilidade, e correndo tua fermosura a morrer, te persuade que para a matar; se o buscares, fermosura, como desengano, não te falará como espelho: belezas do Mundo, até dos espelhos fazei os desenganos, e se vos não tratarem como cristais, quebrai-os como vidros; fazes pois de teu espelho uma Divindade presumida, aonde a idolatria te deixa uma Divindade lisonjeada, sem advertir que te busca humana o mesmo, que te apelida Divina; só Deos foi Deos, e homem, e tu, fermosura, queres ser mulher, e Deusa, o que pode unir seu poder, quer aqui vincular tua presumpção, grande presumpção a que se atreve ao poder de Deos, essa foi a que lançou a Lusbel no abismo; tem-te, fermosura, que ele também era Anjo de luz. Não dás crédito à tua realidade, por dar ouvidos à tua lisonja, e quiseras desfazer-te de teu ser, por te fazeres de teus hipérboles; teu ser é um pouco de pó, teus hipérboles um muito de mentiras, e melhor te está, ó fermosura, que tua mentira tua terra, esta cuidada pode valer-te um desengano, aquela escutada pode levar-te a um precipício; cerra pois os ouvidos à lisonja, que te despenha, abre os olhos à miséria, que te compõe, e porque primeiro que em tua apreensão a vejas, em minhas vozes ouve qual é tua miséria: sabe, beleza, que toda a cor de tua fermosura não é mais que uma dissimulação de caveira, essa graça, que representa tua vida, é só um veo, que esconde tua morte, desengano coberto de flores, horror embuçado de luzes, e que estando tua caveira por alma de tua fermosura, te esqueças por tua fermosura de tua morte, isto é adorar o engano sobre o cadáver, quanto melhor te fora adorar a verdade debaxo do engano. Se tua beleza em sua luz atrai tanta borboleta errante a consumir-se, a manhã em seu ocaso chamará bicho faminto a sustentar-se; se agora a mariposa rodea
Quem te elevou, ó pedaço de terra, a mentir-te verdade do Ceo, que tens do Ceo para competi-lo, ou que tem o Ceo de ti para assemelhar-te? Não és Sol, porque o Sol nasce do seu ocaso, e tu não has-de tornar do teu sepulcro; não és Lua, porque a Lua padece seus eclipses por acidente, e tu a qualquer acidente verás final eclipse: não és Estrela, porque has-de cair antes do dia do Juízo, e pode ser que seja teu juízo neste dia; não es regozijo, porque quando glória de quem te vê, es logo Inferno de quem te ama: não és Serafim, porque ainda sem medir as mais desproporções os Serafins vivem de amar, e tu vives de amante; não és paz, porque da guerra alhea fazes a vitória própria: não és bem, porque nasces a crescer mal: não es seguro, porque vives perigo; não és eternidade, porque só duras inconstância: se pois, ó fermosura, não és Sol, Lua, Estrela, Serafim, glória, paz, bem, seguro, eternidade, que tens de Ceo senão o nome, que te deu teu desvanecimento: este chama-te Ceo, o desengano chama-te flor, e certo que nem o desengano te acertou o nome: a efimera mais caduca da Primavera, ou já preza à esfera própria, ou já lisonja na mão alhea, tem de vida a idade de um dia, e tu na incerteza de um dia não tens de seguro nem uma respiração; a flor aquela pouca duração tem-na de posse, a fermosura nem duração tão pouca pode ser senão em esperança; a flor logra um seguro breve, a fermosura nem um engano dilatado; a flor sabe quando vive, a fermosura não sabe quando morre; a flor corre as suas horas sem sobressalto, a fermosura nem os instantes pisa sem susto; a flor olha para o seu tempo como seu, a fermosura para todo o tempo deve olhar como alheio, com que excede muito a flor à fermosura; senão és pois nem o que te chama o desengano, como serás o que te chama a vaidade: consultas com teu espelho teu ser, e não advertes o que te dissimula teu espelho; tu
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lhes deve os unguentos: para as sãs haveis de vigiar, se lhes falta o sustento; para as enfermas, se lhes falta o regalo; não haveis de descansar na enfermeira; que vós dais, e ela administra; vós mandais, e ela obedece; ela põe, e vós dispondes. Haveis mister os olhos da serpente para ver, e medir todas as cousas com prudência: não seja que sobeje da justiça para o rigor, nem da misericórdia para a omissão, nem de todo haveis de desembainhar a espada, nem de todo haveis de derramar do vaso o óleo; descobri uma mediania, que sem vos negar de mãe, vos deixe juíza. Haveis mister os olhos do leão, para que, ainda dormindo, os tenhais abertos; quem governa, a nenhuma hora os há-de ter fechados; haveis de vigiar de dia, e haveis de vigiar de noite: adverti, senhora, que o esposo ao meio dia convida a alma para as delícias, e à meia noite chama as virgens para a conta; espreitai de dia a ver, se acertam com as pisadas, vigiai de noite a ver, se têm cevadas as alampadas: Media nocte clamor factus est. Si ignoras te, egredere, O abi post vestigia gregum, O pasce boedos tuos. Haveis mister os olhos do lince para verdes os átomos em vossas amigas, e os de topeira, para que não enxergueis a aresta em vossa contrária, e desta maneira fareis da contrária amiga, e da amiga religiosa. Não obstante a diferença destes olhos, vos encomendo tenhais a vista igual, não seja que a umas vejais por cristal, e a outras por encerado. Que dirão, se à mais chegada vedes com óculos de ver ao longe, e à mais afastada com óculos de ver ao perto? Isto é contra toda a razão; todas são vossas filhas, especulação igual, se não tereis com olhos direitos vista torta. Necessitais dos olhos da águia, para que estudeis nas luzes: a vossa obrigação é tão alta, que a não podeis aprender na terra: direcção para esposas do Sol não se estuda na sombra. Haveis de mister os olhos de todos para vos examinardes a vós: o amor próprio é muito cego, há de mister muita luz para se conhecer: exame de mim para
a chama, ao depois o bichinho buscará a cinza, senão podes renascer da cinza, porque fazes, ó fermosura, caso da chama? Viver com estimação de Feniz, e com perigo de beleza é passar-se a beleza à ignorância do Feniz, e não à duração, [...]
AVES ILUSTRADAS* DISCURSO I O Pavão à Prelada Chegou um dia, em que falaram os brutos como os homens, de alguns; em que houve homens, que falaram como brutos: houve uma hora, em que as aves mostraram mais liberdade nos bicos, do que nas asas; com estas cortam o ar, com estes ensinam agora aos racionais: ilustradas pela águia sua Rainha, que bebe luzes na esfera do Sol, se atreveram a dar documentos aos homens; começaram a missão pelos claustros; que aonde são mais obrigatórias as virtudes, estão mais importantes os avisos, e nestes não se deve olhar a quem os dá, mas só ao que são. Passeava uma Prelada pela sua cerca, quando nesta se encontrou com um pavão; disse-lhe amigável: Pavão, queres dar-me os teus olhos para vigiar o meu mosteiro? São poucos, respondeu o pavão; e porque o discurso pede vagar, ouvi-o com descanso: São poucos, senhora, os meus olhos para a vossa obrigação, porque uma Prelada há mister os olhos da pomba para olhar as aflitas, e as enfermas; que só quem vê com olhos de amor, vê com misericórdia; e está obrigada a examinar os males, quem é obrigada a dar-lhes o remédio, a descobrir as feridas, quem * Sóror Maria do Céu. Aves Ilustradas. Discursos I e V, editados por Maria Manuela Paulo; Discursos VI, IX, X, editados por João Palma Ferreira. Cfr. Bibliografia.
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mim é exame grosso; exame de outrém para mim é exame delicado. Perguntai às outras por vós, e eu vos seguro, que vos enxerguem a mais pequena aresta: vós podeis em vós não ver a tranca, e as outras hão-de enxergar-vos até o argueiro: sabei pelas mais o como se fala no vosso procedimento, que até o Filho de Deus perguntou a seus discípulos: Que dizem lá do Filho do homem? Vós não sois melhor, que o Filho de Deus. Que olhos vós direi, senhora, haveis de mister para vigiardes a pureza de vossas filhas? Certo que não acho outros, senão os de Deus: olhos humanos para ciúme divino têm pouca luz, ainda que tragam muito cuidado; verão o pó no cristal, a nódoa na pérola, o átomo no Sol; mas não enxergam o quanto perde o Sol, a pérola, e o cristal no pó, na nódoa, e no átomo: para zelar a pureza das esposas de Deus, só olhos de Deus servem. Já vejo, senhora, que me perguntais o como tereis esses olhos. Como? Trazendo a Deus sempre diante dos vossos, quando as vigiardes, e assim vendo por ele, vereis como ele: se as zelardes com os olhos de Deus, logo as guardareis dos olhos dos homens: as mais creaturas creou-as Deus para as creaturas, mas as Religiosas creou-as Deus para o Creador; as vegetativas, e sensitivas creou-as para benefício do homem, as racionais; falando em quanto na terra, creou-as no mundo para os do mundo; mas as suas esposas creou-as só para si; pois as mais, que as vejam os outros; mas as suas esposas, que as veja só ele. Haveis de ter as vossas Freiras, assim como o avarento tem o seu tesouro; o tesouro do avarento todos sabem está em sua casa, mas nenhum o trata, nenhum o vê, nenhum o comunica, porque é tão guardado, que só de si o fia: o vosso tesouro não são as flores dos vossos jardins, não são os pomos da vossa cerca, não é o grão do vosso celeiro, não é o adorno das vossas capelas, não é a prata da vossa sacristia; são as vossas Religiosas, as vossas súbditas; a estas, haveis de
guardar, como o avarento guarda o seu tesouro: ele guarda ouro, de que se há-de tomar conta a si; vós guardais pérolas, de que haveis de dar conta a Deus; sejam as vossas Freiras tesouro escondido em campo manifesto; quereis que as venerem como deusas, fazei com que as conheçam só por fé; são de Deus, não as vejam os homens. Quando o esposo bateu às portas da esposa, não lhe disse só: Abre; disse-lhe: Abre-me a mim: Aperi mibi; pois não bastava, que este amante para entrar, dissesse à sua amada, que lhe abrisse; Aperi”? Não, que o ciúme fia delgado, que o entendimento, e o que basta para a razão, não basta para o receio: disse-lhe: Abre-me a mim, para que entendesse, que havia de ser a ele, e não a outrem: só a mim hás-de abrir, só a mim hás-de ver, só comigo hás-de tratar, a mim, e não a outrem: Aperi mibi. Não vos fieis, senhora, em as verdes puras, em as verdes justas, em as verdes perfeitas, que a cautela é dos santos, dos perfeitos, e dos justos. Santa era a Esposa dos Cantares, e pedia que a cobrissem; estava tão perfeita, que morria de amores: Amore langueo; e na mesma enfermidade dizia que a cobrissem, que a cercassem; não pedia flores só para desafogar o seu incêndio nas penas, nos trabalhos, de que eram hieroglíficos, pedia-as como penas para desafogar nelas o seu amor, pedia-as como véu para acautelar nelas o seu perigo. Cobri-me de flores, que morro de amor, e quanto mais amante, mais acautelada: Fulcite me floribus. Contar-vos-ei um conto, pedindo-vos primeiro o não tomeis como fábula, senão como exemplo. Em certa idade tratou o Sol de casar-se; não pode ser com a Lua, porque é sua irmã; tão pouco com as estrelas, porque são suas vassalas: ajustou-se o casamento com uma esclarecida Princesa, que tinha a sua habitação lá nas primeiras terras do Oriente: se fosse neste tempo, que Grande haveria que deixasse de cuidar, merecia só sua filha o ser esposa do Sol! Ouvindo
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acrescentava as pérolas daquele Sul, lhe disse amante: Se hoje choras o teu cativeiro, amanhã o não quererás trocar pela tua liberdade, pois ficas sendo minha esposa, mulher de um Cazique; nem na tua terra podias ter melhor sorte, nem nesta melhor fortuna. Respondeu a donzela, mudando flores em suas faces o duplicado de seu susto: Eu estou desposada com o meu Deus, com que não posso ser tua consorte, e primeiro serei vítima da tua pira, que companhia do teu tálamo; porque se minha sorte me tirou a liberdade, não pode tirar-me a fé. Suspendeu-se o índio a esta resposta, e depois de um breve intervalo disse animoso: Não permita o Céu, que a que é esposa de um Deus, o fique a ser de um homem; nem eu sou tão bárbaro, que me atreva a fazer este furto à Divindade; em meu poder ficarás, não como escrava, mas como Rainha, não como cativa, mas como senhora, que este é o respeito, que se deve à dignidade de uma esposa de Deus. Assim o disse, e assim o executou, tendo-a em casa separada, servida de índias, assistida de regalos, e livre de atrevimentos. A Religiosa, que ainda que com este trato se via em Babilónia com saudades do Sião, pediu ao Cazique, fiada em tantos favores, a quisesse trasladar à sua terra; condescendeu com a petição; e por fiar da contradição dos seus este segredo, atravessou só um rio, que era divisão entre a sua habitação, e aquela colónia; e sem temer os perigos da vingança, falou aos Espanhóis, dando-lhe o dia, hora, e lugar, em que lhes havia de trazer a donzela restituída, para que estivessem prontos em esperá-la. Voltou livre, que se um gentio foi fiel, como seria bárbaro um Católico! Chegou ao porto, e sítio praticado entregou a donzela, deixando assim a ela como aos demais admirada sua resolução, ou para melhor dizer, sua virtude. Já vimos como este infiel se houve com Deus: agora vejamos como Deus lhe paga. Ficou o Índio servindo a donzela; não diz a história aonde; seria em casa de parentes, se é que o mosteiro
os homens celebrar núpcias a este Planeta, e julgando, que tal poderia ser a esposa de tal esposo, partiram de diversas nações a buscá-la na sua corte para vê-la, ou para melhor dizer para admirá-la; chegaram às portas do seu palácio, aonde encontraram um venerável sujeito, que fazia ofício de porteiro, vestido de uma tela iluminada nas luzes do Sol, que já por ali andavam os seus desperdícios; tende-me, senhora, segredo neste vestido, que se o sabem as vaidosas desta era, hão-de furtar os raios ao Sol para tecerem os seus tissus. Assim como os viu a personagem, disse: Que vem fazer aqui tanta gente? Responderam todos a uma voz: Vimos a ver a esposa do Rei dos Planetas. Aqui o venerável, abaixando os olhos, severizando o semblante, formando senho, disse: E quem se há-de atrever a pôr os olhos na esposa do Sol? Esta palavra proferida, voltam todos as costas, e aqueles passos, que tinha dado a curiosidade, desandou o respeito. Este simile, senhora, fala convosco, este exemplo para vós se fez; quando ou a política, ou a curiosidade, ou a galantaria vos pedir vistas de vossas Freiras, respondei: E quem se há-de atrever a pôr os olhos nas esposas de Deus? E eu vos seguro, que logo vos voltem as costas: o nome de esposas de Deus até os bárbaros respeitam, como o não hão-de respeitar os Católicos? Ouvi a este propósito um caso verdadeiro. Nas Índias de Castela conquistando os Espanhóis o Reino de Chile, sempre bem resistido, e mal domado, já quando em seus países haviam levantado suas colónias, o bravo Chileno, bárbaro na nação, político no valor, ao rigor de suas setas entrou a saco uma daquelas Cidades, sem que as armas Espanholas a pudessem defender da fúria Americana; repartiram-se os prisioneiros, entre os quais coube por sorte a um Cazique uma donzela na profissão Religiosa, e na formosura estremada; olhou-a o Índio, e ficou cativo de sua escrava: que o amor assim como abranda feras, sujeita bárbaros; e vendo que com as lágrimas
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ficou destruído. Aqui tocou Deus ao gentio, para que deixando a gentilidade, professasse a fé de Cristo: já está pago na troca, pois lhe deu a fé pela fineza, tomou o baptismo, e ao depois sua mulher, e filhos, a quem trasladou do país bárbaro para a colónia fiel. Estes são, senhora, os exemplos, que deveis estimar, e aquela é a vigilância, que deveis ter, para a qual vos disse serem poucos os meus olhos, porque necessitais de tantos mais; estimai os avisos de uma ave, a quem a águia comunicou a luz, que bebeu no Sol. Calou o pavão, e a Prelada ficou a ponderar discursiva quanto lhe tinha escutado atenta, quando uma ave música deu fim a este lance sonora; entendeu-se-lhe a letra, porque era dia, em que falavam as aves.
DISCURSO V O Pardal à Madre das Confissões Fez o pardal seu ninho em uma árvore vizinha à janela de certo confessionário a tempo, que nele entrava a Religiosa, que administrava aquele ofício, e dizia enfadada: Perdoe Deus a quem me obrigou a sofrer impertinências de Frades. Aqui lhe respondeu o pardal: Senhora não cuideis em que são Frades, cuidai só em que são Sacerdotes, e assim achando-vos indigna de servi-los, vos achareis capaz de tolerá-los, olhai-os com atenção em o altar, e logo vos humilhareis em o confessionário; não direis: Eu sofro a um Religioso; mas direis: Eu sirvo a um semi-Deus; estimai muito o vosso ofício, mas adverti, que haveis mister muita discrição para não errá-lo, porque estão por vossa conta; ainda que têm vezes de divinos, são humanos; tratai-os com recato como a homens, com veneração como a Sacerdotes, com respeito como a Religiosos, com benevolência como a irmãos, e com caridade, como a pobres. Se forem impertinentes, sofrei-os; se forem demasiados, adverti-os, e se forem santos, imitai-os: em o seu trato dai-lhe mais para a abundância, que para o regalo; algum dia podeis dispensar para este, lembrando-vos que são humanos, em o mais cuidai sempre em que são Religiosos. Quando os nomeardes, antes lhes dareis o nome de pai, que de filho, porque este inculca carinho, e o outro respeito, e se vos virdes afável por condição, fazei-vos séria por entendimento; tratai-os como homens, ainda que sejam Cristos, sede muito recatada em a conversação, e muito larga em a caridade, que uma cousa não implica a outra, e ouvi ao nosso propósito um conto, que esta manhã me contaram as aves, quando começaram a falar. A deusa Tétis saiu um dia com licença de Neptuno a passear as paias, ainda que deusa se achou cansada, porque era deusa de carne, e
De una açucena zeloso No quiere el Sol esta vez, Que passe el aire por ella, Si sopló por el clavel. Si el alva perlas le dá, Nó las admitte tambien, Que asta vulto de una perla Es sombra contra una fé. Porque el ruiseñor no mire A su belleza fiel, Antes se dexa morir, que se permitta nacer. Gime el viento, canta el ave, Y el Sol com la flor cruel Ni dexa que aliente mal, Ni dexa que escuche bien. Si zelas su fé, Aprende del Sol, Porque luz te dé.
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sangue, ou para melhor dizer, de sangue, e peixe; achou-se ali um velho Oriental, e reparando o desalento da deusa, que conhecia por mulher formosa, era o mesmo que conhecê-la por deusa; chegou muito cortesão a oferecer-lhe um bordão, que levava, do melhor calambuco de Ceilão, se é que lhe não veio do Paraíso pelo Ganges, como a vara de Santa Ludovina, que do dito vergel lhe trouxe o seu Anjo para levantar a cortina da cama em sua dilatada, e penosa enfermidade, cujo cheiro consolando a todos cessou ao contacto de um incontinente: tornando ao nosso conto, aceitou Tétis o bordão muito risonha, muito agradecida: era deusa, não podia ser ingrata, e com a odorífera vara continuou seus passeios, até que farta de parecer humana, tornou para os palácios cristalinos, aonde Neptuno a esperava saudoso: passados alguns dias, fez o velho caritativo jornada por mar, soube-o Tétis, lembrada do seu benefício chamou as Ninfas, e mandou-lhes que regalassem aquele navegante com os peixes, que o divertissem com músicas, e que o afagassem com a conversação: O mais sim, responderam as Ninfas, isto último não. Porquê? Perguntou Tétis. Porque somos Ninfas, tornaram elas. Este apólogo, senhora, é para vosso exemplo, vós sois uma Ninfa racional, uma Ninfa católica, que isto são as Religiosas; com todos a sua conversação há-de ser mui séria, com todo o sexo, com toda a idade, e em toda a ocasião. As Ninfas consentiram em o ragalo como agradecimento, consentiram em a música como obséquio, e fugiram da afabilidade como delito, porque ficassem Ninfas. Quando alguma Religiosa ou por desafogo, ou por escrúpulo vos pedir em alguma ocasião outro Confessor, não lho negueis, que os segredos da alma não se podem atar às prisões do sempre; já se entende que sendo o nomeado dos permitidos pelos Prelados. O Confessor de casa tende sempre pronto para ouvir a todas, mas não façais cerimónia em lhe faltar, alguma hora pode ha-
ver, em que lhe importe à consciência a verdade; neste particular nem sejais muito larga em conceder, nem muito dificultosa em permitir; medi tudo com discrição, que é uma vara muito segura; deixai escolher um dia, em que a consciência quer desafogar, e ouvi este caso, que vem aqui. Em certa cidade de Holanda havia entre muitos um hereje, ao qual pelas suas muitas prendas desejavam os Católicos converter; resistia-se ele, sendo de sua conversão a maior dificuldade isto de confissão; finalmente apertaram as infâncias, tocou-o Deus, veio a reduzir-se a tempo, que em aquela Cidade pregava um Religioso dos de maior suposição assim em letras, como em espírito. Abjurados os erros, disse ao moço, que havia sido hereje, um dos amigos Católicos, que fiasse a sua consciência do dito Padre. Aqui respondeu ele; e vós nomeais-me Confessor para os segredos da alma? Eu sou o que hei-de escolher o homem. Isto disse o Holandês convertido; e eu vos digo a vós que não aperteis com os segredos da alma; isto de confissão é matéria de muitas consequências; antes se favorece, que se apure. Perdoai, senhora, estes avisos a um pássaro, que ainda que vilão pelo pardo, também é Religioso pela cor. Voou o pardal, quando uma filomena lhe substituiu em a árvore o lugar com esta letra. El empleo, que tienes, Es tan supremo, Que te fian las llaves De un Sacramento. Endiosada te miro, Quando te veyo, Que qual Angel assistes Al pan del cielo. Procura dar mate Al gran luzero, Que en purezas de mas El Sol es menos.
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Esto manda cantar-se En dulces quiebros El pardo de las aves, Que nó el Orfeo.
Diferente se achou um dos Imperadores do Oriente em tempo que ainda as luas otomanas não dominavam a infeliz Constantinopla. Este tal príncipe se entregou tanto de sua vontade a um astuto monge e tão astuto que se introduzia por um dos primeiros ministros do Império, sem que a grossaria do hábito lhe abatesse os fumos da soberba. Tanto se lhe entregou o Imperador, que mandava tudo o que os príncipes concedem aos validos e ficam corpo sem alma, veio a descair, que estes tais em chegando àquele auge donde não podem passar, logo declinam e aqui estava a fortuna violenta pelo sujeito. Deram-lhe cargos pelos quais o Imperador lhe mandou tomar contas, pois manejava ofícios de grande suposição. Entraram os ministros do Imperador e ao pedir-lhe razão, respondeu: – Dizei ao Imperador que quando entrei a servi-lo, todo o meu cabedal era este hábito que visto, só com ele me saio da sua corte e aqui ficam estas casas com tudo o que adquiri nos meus ofícios. São as contas que dou da administração deles. E saindo do seu impróprio palácio, desapareceu da corte, deixando umas contas se não miúdas pelos algarismos, discretíssimas pela ocasião. Este caso vos trago mais por história que por exemplo, que bem creio não tereis na vossa cela as gajés do vosso ofício, antes suprireis com a agência o que faltar com a possibilidade. Com a prelada nas acções de administrar vos portareis como quem serve e não como quem manda; não tomeis de império alheio para o domínio próprio e como precisamente haveis de fazer rosto aos negócios da casa, vos advirto que nas grandes praticai só o preciso evitando o escusado; conservai nestas as gravidades de quem pugna pelo bem comum sem a nota de quem assiste pelo desafogo particular; sede mui séria com os de fora, mui afável com as de dentro, porque nas ocasiões que de vós necessitarem, comprem a dependência mais barata com a confiança; isto de dizer não só o pratiqueis nos
DISCURSO IX A pêga à escrivã Passeava uma pêga o claustro a tempo que a escrivã do mosteiro vendo-a, dizia para outra religiosa: – Esta pêga me furtou ontem um tostão de uns trocos, que ali tinha da comunidade, e lhe achei muita graça. – Pouca graça tendes vós, – respondeu a pêga, – quando a acheis a quem furta o que está por vossa conta; não deveis entender que mais vos deve ir em um tostão da comunidade, que em um ano da vossa tença; a vossa obrigação não só é de conservar, mas de adquirir; assim, adverti que um real que deixeis perder, é uma nódoa que podeis ganhar. As vossas contas têm para passar dois juízos, o de Deus e o das criaturas e se o primeiro é miúdo, entendei que o segundo não é mais grosso. Deus há-de julgar-vos como juiz, as criaturas como criaturas. Ajustai-as de sorte que em nenhum dos juízos sejais arguida. Buscando um senhor a quem entregar a administração da sua fazenda e achando-se um dia em certa conversação, se veio a falar na melhor forma de dar contas, a cujo propósito disse um dos presentes: – As contas para serem bem dadas hão-de ser claras como água, e miúdas como as pérolas. Aqui acudiu um honrado homem, que aí se achou, e respondeu: – Claras como água, sim, porém mais miúdas que os aljofares. Reparou o fidalgo e observando a sentença o levou para sua casa e lhe entregou a administração das suas rendas, parecendo-lhe que de discurso tão miúdo não poderia sair conta infiel e o sucesso correspondeu à confiança.
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impossíveis; quem se vale de outrém e sai despedida, poucas vezes deixa de sair envergonhada; não dupliqueis na face de vossas irmãs as rosas, para que não levem no coração as espinhas. E a este propósito vos trarei uma ficção, que as metáforas são traslados dos exemplos. Passeando a deusa Vénus as praias do Arquipélago, lhe saiu ao encontro uma bela ninfa, e prostrada a seus pés lhe disse reverente: – A vós, como a deusa da formosura, venho pedir uma perfeição, que falta a meu rosto. Moradora nas águas tenho a cor de pérola sem a graça do nacar e assim enfiada na cor tíbia, não luz em minhas feições o esmero com que as fez a natureza. Rogo-vos agracieis minha formosura com a cor da rosa, para que fique em minhas faces escrito vosso benefício. Olhou-a a Vénus e reparando na grande perfeição de seu rosto, não quis aumentar-lha. De formosa a formosa, ainda sendo uma deusa, tem inveja da que é melhor porque a beleza não só quer parecer melhor mas não quer que outra pareça bem. Assim sucedeu a esta no nome divina e no ciúme humana, que disse à ninfa: – Para emprego de um Tritão basta-vos o que pareceis. E virando as costas desapareceu deixando a ninfa tão corrida que as cores que lhe não deu sua graça, lhe deu sua repulsa. Apolo, que ao saír se fez senhor de todo o sucesso, para lhe perpetuar a cor a passou brandamente por um de seus raios e assim anoiteceu rosa a que amanheceu pérola, despicando-a Febo da injúria de Vénus. Sucedeu encontrar-se a ninfa segunda vez com a deusa que tinha ali templo e andava espreitando a adoração de seus Ilhéus. Conheceu-a e vendo-a rosada lhe disse: – Que é isto? E quem vos deu essa cor? – Devi à vossa injúria, – respondeu ela, – o que não devi ao vosso favor. Enfiou Vénus ou de invejosa ou de alcançada e assim uma desmaiada, outra colorida as olhou um passageiro e como a cor é a alma da formo-
sura, disse seguindo seu caminho: – A corada leva a palma. Vénus, toda iras, foi a pegar da ninfa para vingar em sua inocência seu desaire, fazendo-a outra Andrómeda. Porém ela se mergulhou nas ondas e a deusa subiu ao Olímpio aonde fez queixa a Neptuno pedindo-lhe a ninfa para sacrifício. Porém ele já informado por Apolo, lhe respondeu muito carrancudo: – Quando fordes liberal das vossas graças, serei honrador das vossas piras. E ficou a defender a sua ninfa e Vénus a arder na sua inveja. Se as ninfas católicas, que são as vossas companheiras, necessitarem alguma coisa do que podeis, torno-vos a dizer que o não seja só para os impossíveis e o sim ainda para as dificuldades, porque lhes não façais sair ao rosto com a escusa as cores que a ninfa tomou com a negação. Não as deixeis rosadas de corridas, para ao depois ficardes qual Vénus desmaiada de arguida. Havei-vos com todas, como Deus, é para todos, advertindo que o que administrais é tanto seu, como vosso. Fazei bem de justiça em o que for da comunidade e alargai-vos a fazer bem de misericórdia em o que for vosso.
DISCURSO X A Rôla à Celeireira Continuavam as aves a sua missão em os claustros, quando a Celeireira vinha do forno, e queixando-se dizia: – Em o celeiro me comem o trigo as formigas, em os moinhos me moem mal as farinhas, em o forno me queimam o pão. As freiras queixam-se. Eu não sei que faça para remediar tanto dano, mas assim passaremos porque não só em o pão vive o homem. Entrou em o celeiro a dita oficial e achou uma rôla comendo em o trigo: – Não bastam, – disse ela, – as formigas, mas também as rôlas?
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E vós, – respondeu a rôla, – não bastais nem para as rôlas, nem para as formigas. Se tiverdes cuidado com a porta, não entrarão as rôlas e se o tiverdes com o celeiro, não entrarão as formigas. Quando as abelhas vão à vossa conserva, sei eu que as enxotais. Mas quando as formigas vivem em o vosso celeiro, deixa-las estar. A formiga tem boca, a abelha tem arma, porém vós para guardardes o trigo, que é de todas, temeis a boca da formiga e para resguardardes a conserva, que é vossa, não temeis o ferrão da abelha. É porque não sabeis que cada grão da comunidade, que perdeis, é uma pérola que furtais. Para o valor é trigo, para o vosso encargo é pérola. Tendes obrigação de o guardardes como tesouro, ainda que o vejais como pão. Direis: e que podem agora diminuir as formigas levando grão a grão? Não sabeis que de grãos se compõe um alqueire, de alqueires um saco, de sacos um moio, de moios um celeiro? Tantos grãos vos podem levar que vos levem o celeiro todo. O dia, senhora, não o gastais vós minuto a minuto e por isso deixa de acabar-se o dia? Quem tirar de um dobrão ceitil a ceitil, deixa por isso de dar fim ao dobrão? Entendei, senhora, que se não esgotam as águas bebendo-se sempre delas porque são nativas. Em o juízo das vossas obras não haveis de dar conta a Deos só dos pecados graves, mas também das venialidades e das imperfeições. Em o juízo do vosso celeiro não vos hão-de pedir conta só dos moios, mas também dos grãos. Medi juízo por juízo, pois em um vos hão-de tomar conta de dois cuidados, em que não é vosso, porque é de todas. E ouvi um apólogo que vos vem a dar exemplo. Achou-se em certa praia uma ninfa contando pérolas ao mesmo tempo que em a mesma ribeira contava um moço de um pescador sardinhas. Batiam as ondas em as rochas e ele enfadado repreendeu o vento, porque o perturbava em a sua conta. Riu-se a ninfa e disse: – Eu não me enfado contando pérolas e tu indignas-te con-
tando sardinhas? – Sim, – respondeu o moço, – porque as pérolas são vossas e as sardinhas são alheias. O pescador era tão rude que olhava para as sardinhas vendo a ninfa, mas era tão fiel que contava sardinhas vendo pérolas. A sua resposta vos sirva de exemplo, e é: do peixe que não era seu, não queria errar a conta nem ainda em uma sardinha. Vigiai vós o celeiro de sorte que lhe não percais um grão, porque são alheios. Não pára aqui o meu discurso. Tornai a assentar-vos porque vos falta muito que ouvir. Queixai-vos do moleiro, porque as farinhas vinham ou mal moídas ou mal medidas. Se vêm mal moídas, repreendei-o, se vêm mal medidas, excluí-o. Emendar a mó é mais fácil que emendar a mão. Sempre lhe fica o perigo nas ocasiões se lhe ficar a massa em a mão. Furta, deitai-o fora. É ladrão, não vos sirvais dele. Estais dizendo que vos aconselho rigores, que vos aconselho imprudências, que vos aconselho tiranias. De sorte que Deos pelo furto de uma maçã deitou a Adão do Paraíso e vós pelo roubo das vossas farinhas não podeis deitar de vossa casa ao moleiro? Senhora, não tenhais piedades mulherís, que são omissões e não piedades. Dizeis que vos queima o pão o forno. Pois assisti em o forno a manhã do pão. Mas vós ficais em o côro rezando as vossas devoções e o pão no forno perdendo-se. Salve eu as minhas relíquias, dizia o outro, e abraze-se Tróia. Salve eu as minhas orações e abraze-se o pão. Senhora, o vosso côro é o vosso ofício. Quando sois Martha não tendes obrigação de ser Maria.
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Mús.
TRIUNFO DO ROSÁRIO*
Sigam-na! Cerquem-na! Prendam-na! Que a vida me traz e a alma me leva!
(Entram Chiste e criados)
“PÉROLA E ROSA”
Chiste
AUTO DO ROSÁRIO PELA PARÁBOLA DO BOM PASTOR
Prendam-na! Cerquem-na! Sigam-na! Melhor uma lebre fora Que uma mulher!
PERSONAGENS O O O O
Bom Pastor Universo Engano Chiste
Universo Cala-te, louco!
A Preciosa A Perdida Primeira Dama Segunda Dama [Criados]
Chiste
Cala-te, louco? Não é quimera, Que uma a senha nos traz E outra nos leva a senha.
Universo Cuidado não se desvie!
Música
Chiste
(Entra o Universo) Universo Caçadores! Ó do monte Escoltas! Ó da selva! Que das planícies altas, Qual desgarrada ovelha, Uma perdida serrana Em nossos países entra, E sem dúvida é das cem Que o Grão Pastor acautela, Por margens de esmeralda, Em sua honra e nossa ofensa. Os monteiros a conduzam, As músicas a suspendam, Os cavaleiros a cerquem; Sigam-na, p’ra que não volte A desandar, ponderada, O que ligeira pisou. Coroe-se Babilónia Deste triunfo, e que seja Laurel entre cortesãos Quem foi entre brenhas flor!
Já o Engano a tua presença A traz.
Universo Quem, senão ele, Trazer a alma pudera Do mundo à Babilónia? (Entram Engano e Perdida) Criados
Que fermosa é a serrana!
Engano
A teus olhos, ó Monarca, Tens esta serrana bela, Porém como voluntária E não como prisioneira.
Universo Melhor dirás, a deidade, Que vista em estas selvas, Se há feito mulher mentida De Diana verdadeira. Perdida
* Sóror Maria do Céu. Triunfo do Rosário. Trad. e apresentação de Ana Hatherley. 1740; Lisboa: Quimera, 1992.
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Não me elogies, que o Sol, Em esta breve carreira, A face já me queimou.
Universo Mentes, Porque o Sol à tua face não chega. Perdida
Saber desejo (porque É a ignorância grosseira) Diante de quem estou?
Engano
Daquel’Monarca que encerra Debaixo de seu domínio, Em dilatadas esferas, Da Europa as Majestades, Da África a braveza, Da Ásia as abundâncias, Da América as riquezas, Pois a seu Império submete Quanto o Sol gira ou rodeia, Desde a Zona que arde ’Té ao Trópico que gela. Este, pois, é o Universo, Grão Príncipe da excelsa Babilónia, cujo nome Inclui em si a grandeza De tudo o mais, por Corte De sua Majestade serena.
Perdida
A vossos pés!
Quando, com ordem bela, Passa cada jasmim por uma estrela; E a Lua também ali se humana, Sendo cada açucena uma Diana, Os cravos amantes, E os raios de luz sempre flamantes. Tais suas flores são e são suas águas Espelhos do amor em puras fráguas, Onde o amor tão puro se vê logo, Que em pureza compete co’água e fogo. As aves são, direi que se presuma, Orfeus de asas, Anfião de pluma, E quando mais subidas as suas canções Excedem as humanas suspensões. Suas árvores frondosas, sempre verdes, São daquele edifício as paredes, E tão pouco se taxam, Que ao Céu com suas pontas ameaçam, Sendo suas ramas belas, Do firmamento azul verdes estrelas. Desta planície, digo, deliciosa, É dono um Pastor, cuja amorosa Condição, trato afável, soberanas Virtudes, em suas obras mais que humanas, De Bom Pastor lhe alcançaram nome, E é pequeno epíteto p’ra tal home’. Tão grande é o seu poder que, bem considerado, Aos ceptros não cede seu cajado, Antes, e bem te explico, À púrpura excede o seu pelico, Que inda que fujo a seu valor, em um repente, Não te posso negar que é tão potente. Vê-se em sua face serena Ramalhete de Rosa e Açucena, E em seu olhar suave Terna a Majestade e o amor grave, Sendo por fim composto peregrino Um ser entre o humano e o divino, Que inda que fujo a seu aspecto prodigioso,
Universo Levanta-te, Que não me acuse a soberba A quem alçarei os olhos, Se o Céu a minhas plantas chega. De quem és, e com que fim Tua inocente planta A este País te conduz? Perdida
Escute-me tua Grandeza: Nas altas planícies de esmeralda, Que do monte supremo são a falda, Tão gloriosas que ali - não os apartem! – O verde e o celeste se debatem, Pois em mansão fermosa, Arder se vê um sol em cada rosa,
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Chorando em meu desdouro Como cadeia o que foi decoro, Indo e vindo já, sem mais assento, A tua Babilónia o pensamento, Donde me trazia O ver com el’ o que sem el’ não via. Por fim determinei-me, Não digo que a ganhar-me ou a perder-me, Que só é meu cuidado Ser hóspede algum tempo de teu estado, Ver de tua Babilónia as grandezas, De tuas obras heróicas as proezas, De teus palácios, sim, o sumptuoso, De teus jardins o delicioso, De tuas gentes o número crescido, De teus festins o brasão luzido, E voltar depois à minha primeira Planície, inda que me acusem de ligeira. Este meu intento foi e em el’ desperta, Rompi de meu país a verde porta, E meu coturno ousado, Passou do seguro ao vedado. Tuas rosas calquei, mas tão ligeira, Que me iludiu seus perigos a carreira, E o áspide, que à planta se alevanta, O ar pica, mas não a planta; E por fim a teu país, onde hei chegado, O novo, não o livre, me há chamado, Pois p’ra nele hoje entrar, minha beleza O pelico despiu, não a pureza.
Não se pode negar que é tão fermoso. Guarda um cento de ovelhas soberanas, Porque são ovelhas as serranas; Estas cem ama e vela de tal sorte Que por elas chegará à morte, E ainda que com vida está, coisa é sabida, Que já por todas elas deu a vida. E se fora só uma, O mesmo fizera sem dúvida alguma, Que inda que a seu afecto aqui sou inconstante, Não te posso negar que é tão amante. E é todo o seu desvelo, Que não passem de seu solo até seu solo, Que não toquem suas plantas sem desculpa Os roseirais que se chamam da culpa, Que para a tua corte já caminham Aonde seus receios se destinam, Pois o primeiro, que proíbe grave, É de tua Babilónia o trato amável, Tanto, que até os ventos, P’ra que levar não possam os alentos, Parece que encadeia por constância Nas últimas linhas de sua estância, Que inda que ofendê-lo ouso, Não te posso negar que é tão zeloso. E pois que das cento eu sou uma, Com tão alta fortuna, Que amor a mais querida me relata, E quiçá que por isso mais ingrata, Quando tua Corte mais se me vedava, Em desejos de vê-la me incitava, Porque, para querê-la, Bastava o impossível de tê-la, Formando em meu conceito seu zunido Estrondo afável, se brando ruído, Vendo já do Pastor as sentinelas, Mais como sujeições do que cautelas.
Universo Tanto, oh montaraz prodígio, Com tua vinda se eleva Minha pessoa, que até hoje Inda que Monarca seja, Nada fui, porque só fui O que, sem ver-te, não era. Mas o que minha dita assusta É esse nome de hóspede,
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Onde me cortas a vida, Ao passo que ma entregas. Como é possível que intentes, Como é possível que queiras Voltar a viver de simples, Podendo matar de bela? Que importa que sejas ouro, Que importa que Perla sejas, Se tosca mina te oculta E bruta concha te encerra? Tem-te em minha Corte livre, E repartiremos nela, Para tua a coroa; Para minha a cadeia. Persiste aonde te ilustres Com os adornos de régia, Que é da púrpura ultraje O ver que escolhes a xerga; E quando esta oferta burles, Ou de ingrata ou de grosseira, Direi com voz resoluta Aos monteiros, por fera, Aos soldados, por livre, Aos ares, por isenta:
Perdida
Seu trato se medirá com sua nobreza?
Chiste
É o maior embusteiro Que o céu cobre!
Perdida
Suas verdades Não hão-de faltar.
Chiste
Suas mentiras Não faltarão, pois compostas Se acham em praças e ruas, Em adegas e tabernas, Festins, jogos e danças, Aonde as mentiras leva.
Perdida
E aquele, que lhe acha?
Chiste
É capaz De meter-te na cabeça Que és o Preste João!
Perdida
Tanto intenta?
Chiste
Tanto enreda, Que numa rede traz o mundo, E é de seus embustes prova O Paladião de Tróia, Que é traça de seu engenho. Contas Me dás que parecem burlas!
(Ele e música) Sigam-na! Cerquem-na! Prendam-na! Que a vida me traz e a alma me leva! Universo Engano!
Perdida
Engano
Chiste
Vossa mercê levará as verdadeiras...
Universo Escuta (falam os dois à parte)
Perdida
Tu quem és?
Chiste
Chiste
Sou o Chiste, Jóia em as Cortes certa, Que às vezes vendo tolices Pelo preço de agudezas.
Perdida
Pois passe por chiste tudo Quanto hás dito.
Senhor!
Muito de admirar me parece Que, estando vossa mercê ensinada À simpleza modesta De um Pastor, venha buscar Os enredos sem defesa De um cortesão!
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À mais humilde choupana, Mas não toquem suas plantas Onde aguarda a serpe ignota A inocência de jasmim Em dissímulo de rosas.
Universo Camponesa Bela, vinde a minha Corte, Em cujo lustre vos espera O domínio de Senhora Sem os empréstimos de hóspede! Perdida
(Dentro) Alerta, alerta, Pastores! Serranas, para a custódia!
Não posso dar a palavra, Fique em dúvida a resposta, Porque inda que obre como minha Me lembro que sou alheia.
(Entra Preciosa vestida de serrana)
Universo Eia! Todos a cortejem! Engano
Preciosa
Que tens, Senhor? Que ouviste, Que em teu semblante se nota, Entre a beldade e o susto, Lutar o Sol com a sombra? Que te inquieta, que te aflige, Que sentes?
Pastor
Não sei, Preciosa, Que o coração palpitante, Em prelúdio da congoxa, Cobarde me dissimula O que adivinho me informa. Onde estão minhas serranas? E tu, que és entre todas A primeira, como quem É em Jericó a Rosa, Em Cadés subida Palma, No campo oliva especiosa, Plátano em verde ribeira, No Líbano cedro altivo, Entre espinhos prodigiosa Açucena, e finalmente Toda pulcra e fermosa. Deves a teu ser, por tantas Circunstâncias poderosas, Velar sempre em seu cuidado, P’ra que nunca entre gosto De menos puro rocio, De tanta perla na concha. Onde estão minhas serranas, Volto a dizer?
Todos atrás dela sigam!
Universo Como a seu Senhor a adorem! Engano
Sirvam-na como a Rainha!
Universo E se inconstante vacila, Engano
Se mudável titubeia,
Eles e Mús. Sigam-na! Cerquem-na! Prendam-na! Que a vida me traz e a Alma me leva! Pastores
Cuidado com as zagalas,
(dentro)
Não pisem suas plantas Esses roseirais da culpa, Caminhos de Babilónia.
Vozes (dentro)
Alerta, zagalejas!
Outros
Serranas, para a custódia!
(Entra o Pastor) Pastor
Que minhas serranas veja, Toda a planície corra, Do mais elevado cedro
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Preciosa
Oficiosas, Em tarefas de servir-te, Onde o afã é lisonja: Umas cortando as flores Para teu leito comporem Com lençóis de açucenas E de rosas pavilhões. Outras convidam as auras Para, na sesta molesta, Temp’rar o calor a sopros, Matar o fogo a lisonjas. Outras...
Preciosa
As rosas de Babilónia Seu infausto coturno pisa Já, Grão Pastor, a estas horas...
Pastor
Qual foi das cem? Ai a triste!
Preciosa
É a infeliz entre todas, A que foi mais desditosa, Quiçá por ser mais fermosa, Falta, Senhor, de entre as cem...
Pastor
Prossegue, não mo escondas!
Pastor
Diz, não te detenhas,
Preciosa
A que Perla se chamava, E já Perdida se chama.
Preciosa
Se compõem a si mesmas, Para que às mesas não cheguem Sem vestidura de boda. Outras poetam canções, Em que tuas obras heróicas Publicam; outras as cantam, Onde à sua voz sonora Talvez os rios se parem, Talvez as loucas se movam. Outras, das mais chegadas, Em tua adega generosa, Provam o licor suave Que em ti mesmo as transforma. Só uma...
Pastor
Ai de mim! O que há feito? As minhas vestes se rompam, Meu cajado se desterre, As fontes lágrimas corram, Cantem endechas as aves! Turbe-se a minha glória, E o Céu de minha planície Cortinas de nuvens corram!
Preciosa
Senhor, se noventa e nove Te quedam?
[...]
Pastor
Que titubeias?
Preciosa
Incauta,
Pastor
As vozes forma!
PERSONAGENS
Preciosa
A deslizes de sua planta A vedada senda toca.
Pastor
Aonde foi? O que há feito?
O Homem O Engano O Olvido O Prazer A Graça A Culpa
“TRÊS REDENÇÕES DO HOMEM” AUTO ALEGÓRICO DO ROSÁRIO
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A Delícia A Lisonja A Oliva A Terra A Rosa Músicos
RELAÇÃO DA VIDA E MORTE DA SERVA DE DEOS, A VENERÁVEL MADRE ELENNA DA CRUZ*
PRIMEIRA REDENÇÃO
(Canta dentro a Culpa e vai entrando o Homem como que escutando) Mús.
Homem
Passageiros do mundo, vinde, Que vos espera este mar Com graças de pérolas, marés de rosas, Selvas de coral!
[Cap. XIII] De como predisse os sucessos futuros. Não há segredo guardado de quem se ama, por que deixar o segredo para mim, e o amor para outrem, é dar o coração partido, e não é amante quem não dá o coração inteiro; assim o conheceu Dalida, quando instou com Samsão, e ele por não desacreditar o seu amor, arriscou a sua vida; teve valor para vencer Gigantes, para domar cidades, para destruir exércitos, mas em chegando de reservar de quem amava, o que sabia, logo não teve forças para resistir, logo não teve valor para calar; e aquele que desgarrava Leões em Palestina se entregou cordeiro às persuasões de u˜a mulher; assim Deus, que é o exemplar de toda a fineza com aquela alma com quem se chega a unir, logo se chega a declarar, e ali revela os seus segredos adonde depositou os seus amores. ˜ a destas ditosas foi a Madre Elena a quem U mostrou muitos sucessos futuros, que relatarei, principiando pelas mortes que previo. Estava u˜a senhora secular que assistia neste convento, enferma de um achaque grave, a tempo que a virtuosa Madre assistia no seu retiro; dias em que guardava rigoroso silêncio; vendo-a eu nas comunidades, a que não faltava, lhe perguntei o que lhe parecia da doente; ela que não queria quebrantar o seu silêncio, se explicou encostando a cabeça e fechando os olhos; logo entendi não livrava a enferma, e assim foi por que sem chegar a melhorar, chegou a morrer.
Divina voz, espera, Anjo do mar, sereia da Esfera, Que tão doce me tratas Que aos mares e Céus me arrebatas, Sem que certo presuma Se quedo a ser estrela ou a ser espuma, Porque quando me abraso em fogo e gelo, Vejo teu centro mar, e ao céu anelo, Mas pois a cristalina Esfera habitas, qual deusa marinha Aonde em doce calma Es perla com voz, Ninfa com alma, A esse pélago undoso A buscar-te me entrego afectuoso: Ao embarque, marinheiros, eh gente! Que se não vindes me arrojo!
(Entra a Graça) Graça
Tem-te! Tem-te, Que essa que te alheia É Caribde cruel, falsa sereia, Que a esse mor te convida P’ra que a seu rigor percas a vida.
[...]
* De Sóror Maria do Ceo. Edição de Maria Filomena Belo. Diss. Mestrado FCSH, UNL, 1990. É aqui feita uma ligeira actualização da grafia.
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Com Francisco de Eça Tenente da Torre de Belém, teve um misterioso sonho; pouco tempo antes da sua morte, o viu em um campo muito fermoso e dilatado, cujas ervas e flores tinham escritas nas folhas, Misericórdia. Era este Tenente homem de muitos exercícios espirituais, e da visam inferiu a venerável Madre o chamava Deus com misericórdia para a salvação de u˜a ditosa morte, que a este sonho se lhe seguiu. Na noite em que faleceu, ouviu, a Madre na sua capela adonde se recolhia, um sentido pranto, como de mulheres; tinha mulher e parentas que o chorassem; ao outro dia se soube falecera na mesma hora em que o ouviu prantear. D. António de Alancastro que há pouco tempo levou a morte, no melhor da vida, encomendava a Madre Elena a Deus, na doença de que acabou; entraram u˜as freiras na sua casinha, e como sabiam o cuidado que tinha naquele doente, lhe deram a nova de como chegara carta com a notícia de sua melhoria, como na verdade assim se escreveu. Como é isso, respondeu a Madre, se a tal hora entrou aqui u˜a pessoa, e me disse ao ouvido, o como ele era morto; não soube dizer quem fosse; e como neste tempo, que foi o último de sua vida, estava muito cega, não se fez reparo nisso; porém instando ela, em que assim lho disseram, inquiriram aquelas Religiosas das mais, e acharam não haver entrado ali algu˜a a dar tal notícia, até que vindo a de sua morte com a de ser no dia em que o haviam dito a Madre Elena; conheceram por revelação, o que tinham por dúvida. Sendo ainda vivo El-Rey D. Afonso, encomendando esta grande oradora a Deus a casa Real, viu três Tumbas, seguiu-se logo a morte do dito Rei; daí a pouco a da Rainha D. Maria Francisca, e alguns anos depois a de sua filha a senhora Infanta D. Isabel, por que assim como foi rosa na beleza, o fosse na duração. A um fidalgo a quem mataram outros em certa pendência, tinha visto antes de saber-se o sucesso,
ajoelhado com as mãos erguidas, como que pedia a Deus misericórdia. A D. Ângela de Bourbon filha dos condes das Galveas, viu nas vísperas da sua morte em um túmulo coberto de flores, e persuadindo-se ser u˜a parente sua, que estava muito perigosa, por que não conheceu a defunta, ao outro dia a desenganou a notícia. Anos havia que tinha visto vir de fora um enterro a buscar nos nossos claustros sepultura, quando u˜a Religiosa que saiu deles por ordem dos Médicos, a buscar remédio na mudança do sítio, a tomou a morte antes de recolher-se, e a trouxeram a enterrar ao seu claustro, ficando profecia, o que contou sonho. Estando em o seu retiro, escreveu dele a u˜a Religiosa companheira sua, e dizia-lhe: morre a Madre Maria de S. José, era a já nomeada irmã do Marquês de Marialva, saindo do Deserto, veio outra Religiosa a valer-se dela, na aflição de ter u˜a Tia sua gravemente enferma, também freira nossa; respondeu-lhe: Vossa Tia naõ morre desta; por que a cova que vi aberta no capítulo, é para a Madre Maria de S. José; convalesceu a enferma, e daí a pouco faleceu a que naquela ocasião se não temia. As mortificações com que a Madre Elena estragou o estômago, lho reduziram a tanta debilidade, que todas as manhãs lhe era preciso u˜a chícara de chocolate; em uma ocasião que u˜a Religiosa chegou a dar-lha, já a tempo que tinha a vista muito cansada, perguntou ao depois às outras, quem fora a freira que naquela manhã lhe dera o chocolate, a qual não conhecera, mais que o ver nela u˜a alvura, e fermosura extraordinária; soube-se ser a Madre Ignes da Conceição, Religiosa de tantas virtudes, que antecipou Deus este sinal de sua glória, nas antevésperas de sua morte, que se seguiu a este sucesso; assim piedosamente o podemos presumir as que somos testemunhas de seus exemplos. Encomendava a Deus com muita particularidade a jornada do Marquês das Minas para este Reino,
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quando para ele vinha de governar a Bahia, e falando-lhe a Marquesa sua mulher neste cuidado, lhe respondeu: O Marquês vem, mas vosso filho não o vejo. A morte do Conde de Prado D. Francisco, de quem falava, fez verosímil a revelação, pois falecendo no mar, desembarcou seu Pai sem ele. Muitas pessoas viu na doença da morte, e com outras se achou neste último transe, sendo levada em espírito, ou em sonhos, como ela dizia, à casa donde assistiam; como foi ao Conde de Figueiró D. José; ao de Óbidos; a D. Maria Teresa mulher de D. João de Alancastro; ao Padre Frei Manoel da Conceição Religioso Trino, que se achou na casa adonde sua mãe o pranteava, e outras muitas de que não fiz memória. Poucas foram as Religiosas, que em seu tempo acabaram, sem que de sua morte tivesse antes sobrenatural notícia. A algu˜as pessoas que encomendou a Deus, em doenças de que livraram; viu, sendo levada em seus misteriosos sonhos ao aposento adonde estavam, como foi sua Sobrinha a Marquesa de Anjeja, que sem haver sabido do seu perigo, por que lho ocultaram, ali o conheceu, e assim o disse, mas entendeu que livrava. Ao Correio mor viu também em u˜a grave doença, que padeceu, e assegurou a suas Tias e Irmãs, que livrava dela. Previu em muitas ocasiões muitos sucessos futuros, a quem se valia de suas orações. ˜ a senhora sua amiga, dando-lhe conta de U como tinha seu filho ajustado a casar, lhe pediu encomendasse a Deus o sucesso deste contrato; fê-lo assim a Madre, e tornando-se a ver com esta senhora, lhe disse, que se estava em tempo disso, não fizesse o casamento, por que como à nora lhe vinha u˜a cruz muito pesada; respondeu-lhe, naõ ter já remédio, por que o ajuste naõ estava em termos de atrasar-se. Finalmente a noiva foi para aquela casa, e o trabalho que nela deu, verificou o que a Madre Elena havia profetizado. [...]
Leonarda Gil da Gama/Sóror Madalena da Glória* BRADOS DO DESENGANO CONTRA O PROFUNDO SONO DO ESQUECIMENTO
I PARTE Ao Leitor Não valem os escudos da protecçaõ para defensa dos golpes da calúmnia e por isso naõ busquei a este breve volume respeito, que o defendesse dos golpes da murmuraçaõ. Bem sei que haverá quem ache dissonância nas vozes destes desenganos, parecendo-lhe fazem melhor harmonia ao génio, do que à emenda; mas se o discreto Leitor ponderar quantas vezes ao mais simples remédio deve milagrosamente a vida, o que parece mortal perigo do enfermo, não desprezará por inúteis ecos, que podem despertar o sono de um esquecer. Considera, cristão Leitor, quantos adormecendo nas suaves lisonjas do mundo, despertaram aos ameaços da morte, deixando os divertimentos do engano pelo temor do próprio castigo, e acharás no cristalino espelho de tantos escramentados luz, que te acautele para os precipícios, que também a formosura das flores é carta de crença à mortalidade. Não importa, que o * I. Parte. Lisboa: 1749. (Leitura a partir de Microfilme.)
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barca ao arrimo da âncora, deixando no mar as esperanças, saltou em terra a lograr o preço das piedades. Guiado das enternecidas queixas com que desafogava em pranto um coração aflito, ouviu em mal pronunciadas vozes, que buscava alívio nas lágrimas, o que com miserável estrago da fortuna maldizia a sua inconstante roda. Parou a ver se as palavras lhe davam notícia do sucesso para levar já o ânimo prevenido para o socorro e escutou este
verde destas folhas te desmaie a esperança de sazonados frutos, se profundando o discurso deres ouvidos aos que se seguem desenganos, e se nem assim te parecer frutuosa a minha idéa, eu perdoo o desprezo a quem o fizer do livro.
PRIMEIRA HISTÓRIA* Desperta, mortal, do letargo em que te adormeceo a vaidade do mundo, para que te acordaste a dor do teu despenho, já quando chorastes irremediável o teu precipício. Ouves as proveitosas vozes do desengano, que na dor alheia te avisa o risco próprio, e vê como sabe lisonjear com mentidas idéas o passatempo, só porque inutilmente o tempo se perca na brevidade, com que passa. Aprende a desprezar as falsas venturas do engano para te armares contra os enganos da ventura; e pondera nos encontrados sucessos desta história, que nas flores, que mais agradam, se encontram os áspides que inficionam. Bramavam enfurecidas as salgadas águas das invencíveis resistências de um duro penhasco, aonde quebrando lanças de puro cristal, escumava de braveza o alterado golfo e levantando montanhas de crespa neve, parecia elevar-se à região do fogo. Já quando Diana caminhava apressada a sepultar luzes, abrindo a prisão das sombras, um pobre barqueiro, que cansado, como pobre, lograva o sossego, como independente, ou para contemplar o arriscado de mentidos bens, ou para colher no solitário os frutos do desengano, se negava ao sono pela utilidade do disvelo quando, entre os roucos gemidos, com que dos repetidos golpes das ondas se queixavam em ecos as feridas rochas, ouviu tão lastimosos suspiros que fazendo impressão no mais vivo da mágoa, despertavam o desejo para a diligência do remédio, e fiando a
SONETO Que infausta fue la estrella, que me guia Al precipicio de vivir penando, Si es vida la que dura tolerando El rigor de uma fuerte tirania. Toda es rigores la desdicha mia, Y en tanto mal el corazón llorando, Anima los dolores contemplando, Y vence lo invencible su porfia. Ai, corazón, no sufras tanto el fuego, Pues no mereces más por más sufrido, Que la desdicha no la vence el ruego; Estás de ingratitudes ofendido, Y creyo que insensibile, pues tan ciego No vences el remedio en el olvido. Assim se queixava contra as violências do fado o que apostava esforços nos bronzes do coração, ainda que este sufocado nos laços da dor desmaiou o activo das vozes, soltando a corrente ao amargo das lágrimas. Alexandre (que assim se chamava o compassivo barqueiro) lastimado da mágoa alheia, como experimentando na custosa ingratidão da sorte, aplicando a vista à quebra de um penedo de quem pudera aprender durezas a maior constância, divisou aos mal distintos reflexos da trémula cintilação das estrelas um galhardo mancebo, a que a tirania dos golpes tinha embargado os alentos da vida, equivocando-o morrer
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com o desmaiado respirar; os olhos quebrados à tirania da mágoa afogavam a vista nos dilúvios do pranto, e sendo bocas por onde o coração desatava rios, corriam a crescer os mares; o rosto estava da cor do seu desmaio, e perfilado do outro dos cabelos, faziam menos horroroso o mais desalentado; os anos poucos e só nas demonstrações pareciam os pesares muitos. O traje o assegurava nobre, porém os efeitos da ofensa o persuadiam humilde, que o poder muitas vezes é escudo que rebate as iras do fado. Era o vestido de risso azul com franjas de ouro, a capa de grã com alamares de pérolas, o chapéu adornado de plumas brancas presas com um laço de finos diamantes, tudo enfim aparente gala, mas todo o peito penetrante ferida, de que exaltando o vital alento parecia despedir a vida pela porta, que abrira o ferro guiado da ingratidão, e a que só embarçava o último alento o punhal, que ainda tinha cravado no peito, e detinha o derradeiro suspiro. Enternecido Alexandre de tão infeliz sucesso, tentou o pulso, examinou o golpe, e tudo lhe pareceu mortal estrago. Irresoluto quanto lastimado, sem atinar caminho para o socorro, via por instantes crescer o perigo no difícil do remédio. Partir a buscá-lo, deixando só o que se desmentia vivo por parecer cadáver, era aventurá-lo ao último assalto; deter-se ali crescia forças ao dano, e tudo se punha contra uma vida, que não tinha mais defesa que o mesmo desacordo. Todo o discurso era aflição, toda a determinação desassossego, não sendo menos sensível de poder ser achado da justiça, aonde os indícios de menos honrado negassem as verdades de mais compassivo. O sangue corria a tingir as areas e só as determinações paravam de aumentar os sobressaltos. Nesta perigosa batalha da piedade, e do receio trouxe a fortuna só favorável aos desvalidos por acaso àquele lugar, um cavalheiro, que descontente dos sossegos costumava buscar alívio nos disvelos, e fugir dos povoados por conversar só
com os seus pensamentos; respirou Alexandre, e chegando-se a ele lhe disse estas palavras: – Se a compaixão nas desgraças é a mais fiel testemunha do ilustre do sangue, aqui, senhor, vos oferece o Ceo coroas, de que serão procuradoras as estrelas. Nas quebras daquela rocha achei em desigual batalha a morte com o agudo de um punhal, e a vida sem mais arma, que um queixume, que em breve espaço emudeceu na dor de ser vencedora a sem-razão. Eu, que me achei no despovoado dessas areias só com uma comiseração lastimada de tão próximo perigo, vos peço queirais ajudar-me a levar aquele infeliz a uma vizinha aldeia, que poucos passos se aparta deste sítio, aonde separando a vida, se acuda ao mais importante, que é a alma. D. Félix, que ocupado nas inúteis fantasias do seu pensamento não fazia caso de outros empregos, esquecido de homem respondeu como fera (que como fera responde ao rogo o coração do homem): – Gentil demanda por certo é a que me apresentais, e quando talvez sereis vós o autor do delito, me convidais a mim para os sufrágios do defunto. Acertado fora chamar quem pondo-vos a tormento vos fizesse confessar a culpa, mas se vos achar agressor, eu vos seguro que haveis de provar o castigo. – Não tireis, senhor, o valor à vossa boa obra – lhe disse o barqueiro – que diminuis o preço ao outro da caridade, adiantando mais do que deveis a vossa suspeita, mas eu vos perdoo o agravo, se fizerdes o benefício. Chegaram aonde estava o ferido sem mais sinal de vida, que o sangue, que ainda não parava, e foi à luz dos diamantes que em um anel trazia, e de que também o chapéu se adornava, quem desmentiu do barqueiro a infidelidade presumida, que lhe não deixaria o mais precioso, quem se não governasse para o impulso do mais nobre da piedade. Fizeram ambos da capa descanso, em que acomodar o necessitando e o levaram a uma casa de
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campo que D. Félix tinha não longe daquele lugar, e a aonde sem reparo na defesa se empenhou na sua cura toda a diligência. Vieram os médicos mais cientes, e os cirurgiões mais experimentados, e asseguraram, que da falta do sangue procedia tão mortais desmaios, porque a ferida não era penetrante e recomendaram o deixassem sossegar, dando esperanças de que podia viver. Voltou Alexandre a cortar as ondas nos golpes dos remos e a mover as águas com o ar dos suspiros, despedido, primeiro, dos companheiros que lhe pediam tornasse a vê-los, quando voltasse a terra, o que prometeu com mostras de grande amizade, e não menos agradecimento. Seguindo, pois, seu norte e renovando passadas tormentas na memória por haver quem ainda se enganasse com a infidelidade da ventura, levantou novos templos ao desengano, e achando só felicidade no desprezo dos bens do mundo, que sendo prisão do alvedrio, sempre guiam para o despenho, ocultando a sombra do engano a clara luz da razão, para que tarde o arrependimento. Sopra o vento a encrespar as ondas, levantando montes de água, de que prover as nuvens, embravecendo o líquido elemento por se ver cortado dos remos, sendo tão valente, que vence a actividade das chamas, e Alexandre por dar desafogo aos pesares foi ao som das águas cantando este ROMANCE
En tan breve espacio mides Lo que ay del Cieelo a la tierra, Que nubes, y aguas parecen Ser todo una cosa mesma. Baxas qual veloz corisco, Subes qual ligera flecha, Con que en un átomo breve Eres abismo, y cometa. Penetrar tus inconstancias Mi curiosidad no intenta, Pues para saber quien eres, Me sobran las experiencias. A quantos tiene engañado Tu tranquilidad serena, Siendo sepulcro a sus vidas Todo el cristal de tus venas! Pobre del que en ti se fia, Pues tiranamente queda, Si no estrago de tus olas, Trofeo de tus arenas. Peró de que te sirve Tanta fiereza, Si en tu centro seguras No estan las perlas. Seguindo sua derrota, e ponderando consigo o passado sucesso, se alegrava de ter no templo da razão pendurado as tábuas, em que escreveu a lei de uma cegueira, que quando mais repara, mais tropeça, e em que só se salva quem a adjura. Ficou o ferido assistido do incansável cuidado de D. Felix, e de tudo, que não eram as penetrantes feridas do sofrimento, foi convalescendo. Um dia, que os alentos deram mais lugar aos discursos, ainda com débeis vozes lhe disse: Não é justo, senhor D. Felix, que conhecendo-me eu obrigado, ignore a quem sou devedor; vejo na fidalguia do vosso ânimo, no magnífico do vosso trato, no brioso do vosso génio, que sois nobre, pois de um horroroso espectáculo da desgraça tirais assumpto. [...]
Fiero monstro cristalino, Gigante, cuya braveza Intenta invadir al Cielo, Eclipsando las estrellas. Barbaro, bruto, indomable, Que sin razon, ni firmeza A qualquier aire te mudas, A un breve soplo te alteras. Cuya incontrastable furia, Cuya indómita fiereza, Las peñas convierte en olas, Las olas convierte en peñas.
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Não é naquele país tão melindroso o decoro, que me não dispensasse chegar ao coche da senhora Mauricía, e vinha ela tão formosa, que a ter eu mil almas, achara que para sacrificar-lhas eram poucas vítimas. Trazia vestidas umas roupas de rosa grana azul, com miúdos perfis de prata, e daquele Ceo era ela a estrela: o pescoço cobria com umas peles de marta com borlas de pérolas, o cabelo preso de laços azuis, de que era engaste o ouro dos cabelos, chapéu de plumas cor de rosa com laços de aljôfares, uma escopeta ao ombro pendente de uns cordões de ouro. Acaso reparou na minha elevação, e com um gracioso riso zombou do meu extremo; ao passar pude dizer-lhe: Que mal dizem, senhora, nas mãos da vida as armas da morte! Deixai as balas, que para triunfar bastam as luzes, e eu lisonjearei o estrago por morrer do tiro. A surto do respeito me respondeu: Quem se atreve a dizes, que morre, morra, porque se atreveu. Ainda que desabrida dera eu a vida pela resposta, e me prometi na ventura aquela firmeza, que na minha fé segurava a minha adoração. Não a perdi de vista em toda aquela tarde, e lhe ofereci toda a caça, que prendeu a minha diligência. Cansada a Duquesa do exercício, deu ordem, para que no ameno do prado às margens de um rio, que o atravessava, se assentassem a descansar: todos os que acompanhamos, procuraram ficar mais perto da estrela, que seguiam, e a minha sempre contrária não foi naquele dia astro, senão cometa. Servia à Duquesa um galante anão, a quem sobrava no entendimento, o que diminuiu a natureza no corpo; a introdução de gracioso lhe facilitou dizer à Duquesa: O dia, senhora, é de mercês, mande V. Alteza a estes cavalheiros, que imprimam nos duros troncos a empresa dos seus cuidados, e também lhe destine no desdém das damas o prémio, ou o castigo conforme a sua sorte. Todos celebraram a súplica, e a Duquesa lhe respondeu: Falastes como oráculo, e não posso
DECIMA Si quien mira tu hermosura, No puede dexar de amarte, Como hade el culto enojarte, Que mi fineza assegura? Amor que firme se apura En la fe de un respectar, Te llega amante a votar, Quando tus luzes contemplo, Por imagen de su templo Por idolo de su altar. Passaram dous dias, sem eu saber de que cor se havia de vestir o meu coração, e já a dúvida cortava lutos à esperança, quando voltou Narcisa menos triste, do que a supunha o meu temor, zombando das minhas impaciências, me disse: Por certo, senhor, que se a minha indústria me não valera com capa de ignorância, seria muito mau o porte, que recebesse pela vossa carta; que minha ama acendeu as esferas com o fogo das suas iras, e a mim, e ao papel quis lançar nas chamas, porém, senhor Alexandre, as trovoadas de Maio se ameaçam, não queimam. Eu não sei, se o meu susto, se o meu alvoroço me emudeceram de sorte, que sem voz para a resposta, a tivera só para o agradecimento, e tirando um anel diamantes, lhe segurei no seu valor a minha dívida, e fui ver, se com melhor fortuna achava a ocasião, que só tinha por prémio. Naquela tarde foi a Duqueza a um formoso bosque abundante de caça, deixando ordem, para que à noite houvesse sarau por ser dia dos seus anos. Achei-me eu no terreiro ao embarcar nos coches, e pedi-lhe licença para acompanhá-la com uns ligeiros açores, a que não escapava ave, em que não fizessem presa; permitiu-me o que eu mais desejava, e deu ordem aos monteiros, para que todo o cavalheiro, que se achasse na Corte, pudesse segui-la, o que todos fizemos beijando-lhe a mão pela mercê, que nos permitia.
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negar foi com acerto; eu dou a licença, que pedís; vejamos se dura nos troncos, o que tão depressa acaba nos homens. Todos lhe beijámos a mão pelo favor, e fui eu o primeiro, que em um cedro, a que estava encostada a senhora Mauricia, com uma faca escrevi este MOTE
impressão fizeram em vós os infortúnios alheios, que vos despertaram como próprios? Cuidava eu, que só o meu pensamento tinha declarada guerra com o descanso. Ao que respondeu Alexandre: A vida humana é campanha, em que o homem deve sempre estar desperta sentinela da consideração, recebendo os avisos no dano do próximo, para que a cautela nos arme contra o perigo, e não triunfe a cegueira do engano daquelas armas, com que a divina misericórdia nos arma para o conflito. Eu vos confesso, disse Cloriano, que perdido o gosto aos aparentes bens do mundo, nada o meu conhecimento acha de menos valor, que os seus enganos. Nesta prática os achou D. Felix, que com condição menos ponderada lhe não faziam tantas impressões as contrariedades da sorte, e ouvindo o em que falavam, lhes disse: Por certo que grande Missionário temos em vós, senhor Alexandre, e se desta vez nos não reduzis a habitar na penha solitária, poucas esperanças me ficam da minha conversão. Ao que respondeu Cloriano: As vozes da verdade são milagres evidentes, quando a razão as pondera, que como não podem contradizer-se, devem com o entendimento ouvir-se, e vos afirmo, que, cansado o ânimo nos exercícios do sofrimento, muitas conveniências acho no retiro; que nele se poupa o coração a tanto tropel, quantas são as voltas da inconstante roda da fortuna. Com que também vós, disse D. Felix, escolheis a vida eremitica? Na verdade, que é utilíssimo Pregador o amor pelos Anacoretas, que leva às Thebaidas; e como eu me não achei nunca com espírito de Monge; fugi das setas por me não arriscar a viver nos desertos, suposto me não lisonjeia o gosto a confusão da Corte. Ao que respondeu Alexandre: Em mim, senhores, não é persuasão o que foi preceito vosso; vós obrigastes-me a renovar a memória do que só fora acerto o esquecimento, e como já vivo do desengano, não acerta outros termos quem nestes achou refúgio a tantas tri-
Se minha fé vos faltar, Senhora, mate-me amor. A que ela respondeu no mesmo tronco E padeça o seu rigor Quem nessa fé confiar. Rigorosa foi a resposta, me disse a Duquesa; mas quem nem esta esperava, menos deve senti-la. O impossível de aspirar aos favores, lhe disse eu, faz bem quistos os desprezos, mas quando a palavra não falta, a vingança não assusta. [...]
TERCEIRA HISTÓRIA* Terceiro desengano. No dia seguinte, em que os risos da Aurora pareceram madrugar mais tarde, ou porque aos infelices nunca amanhece mais cedo, ou porque as sombras da noite se põem da cor da sua ventura, Alexandre, que cansado das lidas do seu pensamento, deixando os sossegos, buscava alívio nos desvelos, esperava o dia em uma janela, que senhoreava todo o campo, e aonde a memória de tão repetidos infortúnios tirava maior utilidade das considerações: assim o achou Cloriano, que não melhor livrado tinha passado a noite entregue aos seus pesares, e vendo-se excedido de Alexandre, lhe disse: Que é isto, senhor? Tanta * p. 239 e seguintes.
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da grossaria da terra brotavam os espinhos daquela presunção, que costuma ser estrago do conhecimento, sepultado na vaidade. Sabia Angélica, (que este era o nome da Aldeã) que era formosa, porque com o cristalino espelho das fontes costumava consultar os extremos da beleza, para esquecer-se dos perigos de desvanecida. Pôs nela os olhos o filho do supremo Emperador, e afeiçoado aos seus agrados, achou, que era pouco para conquistá-la, dar por ela a própria vida; e disfarçando a grandeza do seu poder, nada prezava tanto como pertendê-la para Esposa. Começou a fazer alarde das finezas, avaliando em pouco para acreditá-las, trocar o Ceptro pelo cajado, pelo burel a Púrpura, e as rosas, com que a Imperial Coroa lisongeia, pelos espinhos, que magoam, sojeitando o seu domínio a padecer por amá-la, tudo que da Majestade desdizia. Comunicou-lhe o agigantado do seu amor, dizendo-lhe a destinava para o brilhante diadema de Rainha, se soubesse corresponder-lhe fiel, quanto ele amava desvelado; propôs-lhe o melindroso recato, com que havia temer o seu ciúme, que até dos raios do Sol não queria fiá-la, e ainda sem a segura confiança da fé, com que ela havia respeitá-lo, começou a enriquecê-la, adornando-a das jóias mais preciosas dos seus tesouros, dando-lhe para assisti-la fiéis companheiras, que a todas as horas lhe acudissem, e um dos mais confidentes dos seus vassalos. Pagava-se de vê-la Senhora, por mais que conhecia nela inclinações de humildade. Amava enternecido, assistia desvelado, dissimulando com piedade os descuidos, em que a achava esquecida por ingrata, apurando nos benefícios, com que a favorecia, os excessos de amante, e as liberalidades de Monarca. Naõ a perdia de vista, ainda que ela sabendo que o tinha à vista muitas vezes em si se perdia. Assim continuava a desigualdade do trato, sem que no Príncipe desfalecesse o carinho, nem em Angélica se afinasse mais o cuidado; que como tinha aprendido no tosco elemento da terra a
bulações; mas já que zombais de ter-me ouvido, mereça também, senhor D. Felix, escutar que emprego tem tido os vossos anos, que não é justo fiquem só os vossos sucessos em segredo, quando vos temos fiado os íntimos pensamentos. Pouco me devereis vós nisto, respondeu ele, que queixas da sorte suavizam repetidas a dor de experimentadas, ainda que eu fizesse voto do silêncio por curar o golpe, da sem-razão na sepultura da memória, em que a minha dor escreveu este epitáfio: É de uma esperança morta Esta memória defunta: A causa não se pergunta, Porque só à dor importa. [...]
REINO DE BABILÓNIA* Ganhado pelas Armas do Empírio. Discurso Moral. CAPITULO I Primeiro impulso da Alma, que se acha perdida na noute da culpa. EXPOSIÇÃO
Perdida já na noute do descuido Angélica sem luz nos descaminhos; Amor, que a destinava a melhor dia, Luzes lhe dá, que aclarem seu perigo. Em vale confuso, povoação da antiga Babilónia, se criou uma Aldeã terrena pela natureza, mas Celeste pela formosura, sem que o humilde do nascimento cortasse as altivezes do génio, antes * Sóror Madalena da Glória. Edição facsimilada, por Dídia Lourdes Cruz. Vol. II. Diss. Mestrado, FCSH/UNL, 1993.
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razões ao seu queixume, por se não precisar a puni-lo, acudindo pelo próprio respeito. Cobrada já Angélica do perdido acordo, ainda que fazia conveniência do próprio abrigo, mais que do amoroso emprego, lá no desalumbrado do seu pensamento, ouvia uns ecos, a que desconhecia as vozes a razão, presas as deliberações pela grosseira cadea do amor próprio, mas tão eficazes eram as cláusulas, que percebeu, diziam:
dar abrolhos por flores, pagava as ternezas com desvios, sem bastarem a mudar no Príncipe os afectos. No campo lhe mandava no encendido das Rosas embaixadas do abrasado do seu coração, e nos espinhos retratos da dor, que ocasionavam os seus errados pensamentos. De noite a despertava na luz das Estrelas, para que representada nelas a sua amorosa paixão, não adormecesse o agradecimento, descuidado do sobido preço da dívida. Falava-lhe sem voz na frase dos extremos, e achando-a sem atendê-los, não deixava de repeti-los; que esta é a condição do verdadeiro amor apurar-se mais quando é maior o agravo. Uma noute, em que nos sossegados palácios de Morfeu, detida nas aparentes felicidades, que em sombras lhe representavam os humanos sentidos, quando nos falsos bens se ocupam desvelados, se achava Angélica sem memória das obrigações do nome, [...]
Nada do que a vida arrisca A fineza vos esmalta; Porque essa vida que falta, Também a fineza risca. Não são só Linces os olhos, que também a conveniência costuma fazer Linces os ouvidos; e tanta harmonia fez nos de Angélica esta advertência, que achou lucrava na desatenção, deixando-se cativar do gosto, que acomodava, por mais que a desluzia: Entre a dúvida, e o desejo estava irresoluta, quando de melhor Oráculo ouviu mais acertada esta sentença,
No que a tu puerta a bater Se diga, que llega a tiempo Mi amor, que tus ilusiones Por ilusion no atienden a mi ruego.
Cuidado, que se descuida, E só de si faz cuidado, Pouco tem de desvelado. Se na fineza não cuida.
Mas pues ingrata a mis vozes No escuchas sorda los eccos, Quando quieras no hasde hallarme Que amor no sufre injustos los desprecios.
Melhor me aconselha esta voz, (disse ela) que é ofender o amor, que a tanto custo me busca, querer que nem este pouco me custe a fineza, que pago. O Príncipe nos discomodos da noute, nos desabrigos da neve, nas chamas do amor se abrasa, apesar da soberania se humilha, sendo pelo poder independente, e eu nos sossegos de amar-me a mim só faço gosto de amar-me! Isto é fazer o entendimento parcial da sem-razão: emende a diligência agora os erros da comodidade, que quem exercitou sem mim o que podia, também poderá agora defender-me a mim sem mim. Atropelando a omissão, que a detinha,
Cessou a voz, ficando a dor da ingratidão de Angélica toda por conta do sentimento do Príncipe, que medida a desigualdade de um Monarca, ainda que amante, com o humilde nascimento de uma Aldeã, ainda que formosa, fazia mais agravante a resistência, quando a combatia a majestade, e a fineza; e magoado o soberano do ser no golpe da negação, voltou as costas, porque o agravo à vista costuma incitar a justiça mais, que a piedade, e ainda sendo esta atributo da soberania, não quis aquele Real coração acrescentar
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foi deliberada buscá-lo, mas achou só a confusão da noute, porque se tinha negado ao resplendor da luz, tropeçando nas próprias sombras, tudo que topava eram ruínas. Desvelada entrou a buscar o Sol, que se lhe escondera, sem que os passos atinassem mais que com os precipícios, cobertas de funestas nuvens as Estrelas; tentava os caminhos, e neles se perdia, que quem deixa ao tempo o em que enteressa, pouco se adianta. Não se fie a inconsideração de que pode um depois emendar o erro de agora, que as horas passam, o tempo voa, e não há confiança segura, adonde o tempo e as horas são incerteza, voando os anos por instantes, e as horas por respirações, sem que para o ligeiro das suas asas haja mais prisão, que segui-las o cuidado, temê-las a vigilância, para evitar o perigo do sucesso. Já o desvio do Príncipe dava actividades ao susto, perdida a esperança do seu desagravo, ainda que esforçada a diligência por interesse do remédio; e fazendo merecimento de repetir os passos, os prosseguia alargando o espaço aos suspiros, até que deles feridos os ares, chegassem os ecos adonde os enviavam os desejos; mas como ainda os impulsos se enlaçavam nos grilhões, que não rompiam, a mesma luz, que alumiava, logo enfraquecia; e tornava a suspender-se nas sombras de um não posso as resoluções de um já quero. Cria Angélica, que amar alguma coisa bastava para se amar, e não via, que para um amor sem limite, não era recompensa um amor limitado. Dizia-lhe em erros o discurso, que haveria tempo para o desempenho, e não seria logo o retiro do Príncipe para castigá-la, tendo começado na fineza de querê-la; que a vida ainda lhe prometia larga duração, e nela podia remir o que agora dilatava em pagar; porque nem tudo haviam ser temores adonde a confiança era sacrifício. Chamava saudosa no dilatado da ausência, que agora dificultadas as vistas, já eram sensíveis as mágoas, efeito certo na humana natureza, querer o difícil, aborrecendo o fácil; mas nem o Príncipe
respondia, nem ela de todo se desenlaçava. O pensamento lhe propunha a grossaria, com que trocara as finezas pelos vagares, e quando queria buscar o remédio convencida do delito, esmorecia a vontade nas fantasmas do temor; que desta grosseira tela costuma fazer gala a terrena beleza. Flutuando no espesso das trevas, perdida a luz, que podia guiá-la no caminho, que só a custo de disvelos acertaria a seguir, se queixava dos passados descansos, em que prendera o débil laço de amar-se a si por amar melhor. Queria com lágrimas buscá-lo, e suspendia-se nas dificuldades de segui-lo. Sentia vê-lo ofendido, mas desmaiava a força para desagravá-lo, crendo, que ele a qualquer tempo da satisfação havia esquecer-se do queixume. Ninguém se fie do que lhe prometem as imaginações, que o que tanto importa, no que se demora se arrisca, e quem me deu um dia para consultar, não me segura outro para concluir; que o amor se tem constância de diamante, também tem melindres de flor. [...]
CAPITULO IV* Peleja entre os dous amantes A resistir de amor os duros golpes, Quando da ingratidão está ofendido, Lhe rende as armas o conhecimento, Ficando o rendimento sacrifício. Para curar a febre dos descaminhos, em que da ingratidão de descuidada estava Angélica gravemente enferma, foram as sangrias dos olhos o mais eficaz remédio. Tinha a vontade enfraquecido o conhecimento dos corruptos ares de Babilónia, e nos divertimentos das suas praças tão trocados os sentidos para fugir-lhe, como afeiçoado o coração para deixar atrair-se dos tropeços, em que se arriscava a recair, ainda de* p. 45 e seguintes.
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desfeitas as trevas, que não necessitassem ainda de mais vivos resplendores para entrar o discurso a fugir das estradas, que levam aos precipícios. Já aos favores, que recebia, lhe parecia irracionalidade a negada recompensa, acusando o tarde, que reparava nos excessos que não merecia. Avivava os desejos de recuperar amando os deslizes, em que perigara ofendendo. Este rendimento, que para ela era novo emprego, foi para o amor do Príncipe maior estímulo, avaliando a precisa obrigação de ser amado como penhor, que ela na sua mão depositava para lhe render favores de maior preço; e ele já esquecido dos passados sentimentos se deleitava, vendo lhe entregava ela nos sacrifícios do coração o coração, de que ele já fora acredor em mais digno sacrifício. Nada lhe pareciam já os agravos, remidos pela confissão dos afectos; que estes milagres do amor só se acham naquele amor, que do poder foi milagre. Diferentes efeitos sentia o peito de Angélica depois de conhecidos os perigos, a que a expuseram os labirintos daquele Reino, aonde os sossegos são abismos. Discorria quanto cega se arriscara, guiada pelas confusas leis de tão infeliz domínio; e voltando os olhos a uma, e outra parte, em todas via coberto o horizonte de tenebrosas tempestades, que lhe ameaçavam os últimos fins. Não encontrava Estrela, que luzisse, nem Sol, que no ocaso se sepultasse: temia, que os passados descuidos fossem a porta, por donde entrasse o repúdio, que até ali tinha sido desvelo; mas logo se animava com a memória de que em Jerusalém não fôra menos destruída aquela formosura, que sendo laço dos alvedrios, fazia ostentação de cativá-los, e desdém de admiti-los; sendo o ouro de seus cabelos rede, em que, presas as liberdades, deixavam mais livre a vanglória de ver multiplicados os rendimentos, e a um só raio de luz se serenou tanto a impetuosa tempestade, em que naufragava, que buscou âncora para salvar-se nas mesmas ondas, em que se perdia; sendo aqueles mesmos cabelos as vítimas, se deles se tinham assoprado as chamas; e logo que envoltos
pois de convalescer. Considerou, que o Príncipe lhe receitava a cura sem mais utilidade sua, que livrá-la a ela da morte, que a ameaçava, e com a subtil lanceta da ponderação abriu a vea do arrependimento, e chorou ter sido quem dera alentos ao mal, que lhe causava tantos estragos. Entrou animosa nos exercícios de buscar a perdida saúde, ficando o sucesso por conta da fé, em que se fortalecia a sua esperança. [...]
CAPITULO VI Melindres do amor nos piques do ciúme Amor, quando mal pago se retira, De ofendido os desvios prosseguindo Quando a face aqui cobre de agravado, O coração descobre então mais fino. Não há para um coração amante fineza, que mais lhe lisonjeie o gosto, que o enternecido rendimento em que, negadas as liberdades à vontade própria, se deixam ao amor todas as jurisdições de que se aproveitavam os sentidos para resistir aos poderes da razão. Amava o Príncipe a Angélica com extremos tão manifestos, que davam as evidências o maior calor à fé, para crer ainda o que não chegava a presenciar-se; mas era o seu amor tão mal correspondido, que podia bem a ingratidão ser rêmora das finezas, vendo, que nem elas tinham desempenho, nem firmeza os protestos de acertar melhor os passos; porém estes agudos espinhos se atravessavam aquele real peito, não passavam de um enternecido queixume sem chegarem a castigo executado. Amava o Príncipe como ele só; e esta singularidade do seu amor o fazia tolerar a grosseira desatenção, com que Angélica sepultava na urna do esquecimento as memórias de que só devia fazer cuidado porque ainda que as luzes da verdade começavam a vencer a escura noite, em que tropeçava o conhecimento, não estavam tão
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no mar do pranto soltaram as velas à fineza, se dera o seu amante por tão penhorado, que confessara restaurado o perdido, e em recíproca uniam correspondidos os afectos: logo se eu (dizia Angélica) nos enredos de Babilónia perdi o norte que me guiava aos acertos, também desprezando os descaminhos acharam seguro porto os meus cuidados. O Príncipe não me ama menos, e eu desejo amá-lo mais; a esperança se anime, visto ser da alma o melhor alento a esperança. Tinha ela uma dama deste nome, que a acompanhava, e parecendo-lhe era chamá-la veio a saber o que queria, e achando-a com a cor inflamada, os olhos dizendo em línguas de pérolas, que o aceso rubim do coração dava para aquele incêndio larga matéria aos pensamentos, lhe disse: Vejo-vos, Senhora, tão entregue às vossas imaginações, tão amortecidos aqueles briosos impulsos, com que a vossa beleza fazia gala de cativar altivezas, que me atrevo a inquirir a causa, que vos pode transformar; e fiai de mim, que para o vosso sossego talvez seja remédio a esperança. Nas perfeições da arte é ardil recatá-las por não comunica-las. O Príncipe me manda, que vos assista, sem que me aparteis de vós, e deveis dar exercício às suas ordens; que preceitos soberanos não os observar seria ofender, e muito mais sabendo, que
Eu sou a que ao verde prado, A quem o Inverno empobrece, Lhe prometo nas flores o fruto mimoso, Lhe asseguro nas folhas secundos os meses. Sou a Esperança, que fiz, Que a morta luz renascesse; Porque em os incêndios de amantes suspiros Encontram matéria para mais arderem. Sou enfim, para animar-vos, Uma Esperança, que é Quem destroça os errados vapores da terra, Se confia o triunfo em Divino poder. Acertado lhe pareceu a Angélica este aviso, em que achou mais mistério, que acaso, e lhe respondeu: Como oráculo, mais que humano, decifrastes agora a dúvida, em que se embaraçava o meu discurso, e devo crer, que para emendar temores hei-de acudir à Esperança, como sagrado, em que acham refúgio as tribulações. É certo, (disse Esperança) que recorrer a ela tem mistério, quando a fé se acha combatida da dúvida, e ainda que eu só não possa fazer o milagre, há virtudes, de que são milagrosos os nomes. As aflições, (continuou Angélica) em que se acha o meu coração na lembrança dos perigos desta Corte, tem tão enfraquecida a fé de poder neles conservar as finezas do Príncipe, que chega apoderar-se a dúvida do que deve permanecer confiança. Bem vejo, que os seus favores os não limitam nem os comércios das praças, nem os grilhões, que nelas encontraram os meus pensamentos, mas o que nele hoje é grandeza do ânimo, quem me diz, que amanhã não sera fastio do meu desacordo, e venha a punir a justiça, quanto hoje dissimula a clemência. Eu quero vencer os temores com o vigor das determinações, mas se a menores assaltos, que os que me apresentam os que querem destruir a minha fortaleza, se viram derrubadas mais altas Torres, eu,
Eu sou nos bosques amenos, Adonde Aurora amanhece, A que alento no Sol, que seus raios aclare, A que faço, que o dia nova luz espere. Eu sou a que ao alto globo Desta máquina luzente, Deixo alentadas nas opacas sombras A luz das Estrelas, que o dia escurece. Eu sou ao homem a coluna, Em que sua fé sustente, Que sem mim se arruinam da fé os troféus, E comigo da fé os ardores se acendem.
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a quem o Príncipe mostrou a fragilidade do barro, sobre que assenta o grande edifício da humana presunção, em que posso confiar-me, que não seja destruir-me. O pensamento é nuvem, que voa, a vontade vento, que o contrasta, as ocasiões esporas, que o picam, a resistência debilidade, que logo desmaia, e Babilónia, toda perigos, que me confundem, e o Príncipe potentado, que pode ainda, que como poderoso se não vinga. Dizei-me em tão valentes contrários, como pode não desfalecer o ânimo, que de tantos inimigos se vê ameaçar. Era Esperança de subtil discurso, e maduro conselho, (que nem sempre no verde das primaveras deixam de colher-se sazonados frutos,) e vendo, que em Angélica o acidente da desconfiança podia ser parocismo na fé, lhe disse: Por certo, que mais vigorosa cuidei, que estava a vossa resolução, mas vejo, que o mais pequeno argueiro, que se levanta do pó da terra, se estremecem aquelas forças, com que devíeis defender-vos. Eu não digo, que desprezeis os possíveis, que seria negar às jurisdições da majestade segurar-vos, quando da falta do merecimento deveis temer-vos; quero só que vos lembreis, que nos mais empolados mares, combatida da fúria dos ventos sobre a âncora da esperança, se segura a mais arriscada viagem. Bem sei, que entre Scila, e Caríbdis só com grande socorro deixa de perder-se quem se embarca, e para não seres destroço das ondas, acolhei-vos à luz, que reparte a Estrela do verdadeiro norte, e dizei-lhe:
ORBE CELESTE* ADORNADO DE BRILHANTES ESTRELAS E dous Ramilhetes DIA DE
S.TO AGOSTINHO APÓLOGO ÁGUIA REAL Só Agostinho é Águia Remontada Que a coroa merece eternizada.
Na mais fermosa manhã de Agosto, dia, em que a Águia Africana bebeu na mais sublime esfera os resplendores do melhor Sol; e batendo as asas, qual abrasado Serafim, levantou os voos ao mesmo Empírio; Marfiza que retirada da Corte vivia em uma quinta de que era senhora, reparou em que exalando nova fragrância as flores, eram caçoila mais activa do prado, respirando âmbar os Jasmins, e espalhando aromas a Rosa, toda era maravilhas a terra, todo luzes o globo Celeste, o prado estava Ceo de Estrelas, os Astros Sóis de resplendores; olhava para esse Monarca das luzes, que sendo coração do Ceo, é tão bem alma benéfica da terra, e achava que vestido de novo resplendor, parava no Zénite sem nunca chegar ao Ocaso, tudo eram maravilhas, quanto via, tudo mistérios, quando encontrava. Alar ou a passeio pelo bem matizado campo, desejosa de decifrar, o que não chegava a compreender, chegando a uma dilatada estância adonde os primores de Amaltea tinham bordado de matizes a verde alcatifa do prado, servindo-lhe de prateado perfil o desperdiçado cristal de uma fonte tão abundante água, que formava das suas correntes um caudeloso rio, ali se sentou Marfiza, entretendo o pensamento no desejo de inquirir os Mistérios daquele dia, a que não dava verdadeiro sentido a sua inteligência. Nesta dúvida deu todos
En los procelosos mares; Quien su esperança en ti fia, Con seguridad confia. [...]
* Lisboa: 1742, p. 1 e seguintes.
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em floridos sacrifícios oferece fragrantes votos; deste brilhante Astro recebem luz os Planetas, influindo tão benéfico, que as trevas de mais escura cegueira transformou em resplendores da Fé mais agigantada, vencendo os erros dos Maniqueus com as eloquentes Armas da verdadeira sabedoria, e destruindo as mentirosas fábulas de tanto Hereziarca levantou padrões à Cristandade, que gemia oprimida do peso de tanta inventada aparência. Este é aquele prodigioso homem que equivocado nas chamas do amor com o ardente fogo dos Serafins, ainda além da morte passaram os incêndios do seu peito, que irritado o coração contra as infâmias feitas, que levavam aos abismos tantas almas, dava evidentes demonstrações do seu fervoroso zelo nos visíveis impulsos, com que amedrontava a todo, o que falto de Fé entrava na sua Igreja; este o alegre dia em que, quebradas as cadeias da mortalidade, subiu Agostinho às Celestes moradas, recebendo a preciosa Coroa, que foi prémio da sua fineza; aqui o aplaudem com trinados clarins as Aves, com rendidos cultos a terra, e o retrata com brilhantes luzes o Ceo, adonde fitando os olhos no verdadeiro Sol de justiça, logrará por eternidades o prémio das suas amantes fadigas, deixando nos felicíssimos voos do seu espírito nova coluna de fogo, que pelos desertos do Mundo guie a terra de promissão os seus devotos. E tu Ave presumida, que neste dia da melhor Águia te remontavas soberba, sendo desvanecida exalação dos ventos, esquecida de que nasceste humilde vapor da terra, fica despersuadida de que possam perseverar elevados pensamentos vaidosos; subiste qual Ícaro a queimar no Sol as asas, e desceste qual corisco arrojado das nuvens, trocados nos desenganos da morte os fumos da vida; veja-se em ti a mais remontada presunção de reinar, e acabará de conhecer que não chega a grandeza do ceptro mais que a introduzir uma fantástica aparência, que começa engano levantado na imaginação para acabar horror caída na
os poderes à Fé, crendo não era sem particular fim tanta maravilha nas esferas, e esperou que algum passageiro lhe dissesse, se havia alguma novidade na Corte, de que fossem efeitos aqueles finais. Nesta suspensão ocupava os sentidos, quando viu que um caçador mais empenhado em vencer, que em se utilizar, vinha seguindo o arrebatado voo de uma Águia Real, sem que livrasse do arrebatado perigo, que a ameaçavado, fogo no disparado tiro, o do cativeiro no cauteloso laço, a majestade de Rainha das Aves, porque o ceptro sendo insígnia do poder, não pode ser escudo aos golpes da morte. Compadecida Marfiza de tão mal respeitada Coroa, quis suspender os rogos à impiedade do resoluto caçador, mas tão fora de tempo chegou a compaixão, que do primeiro brado foi no tiro a resposta de fogo, e ao golpe a execução, de que caiu a Águia despenhada no rio, sepultando reais privilégios, a que apostava altivezes com as Estrelas, e já abatida a vaidade, só lhe serviam as asas, para que escrevessem as suas penas fúnebres epitáfios nas suas exéquias. Conseguida a vitória, e vista pelo caçador a inutilidade da presa, satisfeito de vencer a deixou flutuando no rio, para que desse urna de cristal às cinzas o mesmo, que tinha sido espelho das pompas; e trocados os elementos, tragou na água a morte a mesma, que nos ares alcançava os maiores triunfos. Ainda Marfiza estava na sua dúvida embaraçada, e disse ao caçador: Já que a minha instância valeu tão pouco para livrar aquela inocente vida, dai agora com mais piedade à minha pergunta resposta, e dizei-me, que mistério tem este dia, que tantos prodígios vejo nele em Ceo, e terra; ao que o que estava mais costumado a lidar com brutos, que com damas, lhe respondeu desabrido: Para castigar a vossa omissão em ler a folhinha, por não cair em semelhante erro, vos havia agora deixar com a curiosidade, e sem a resposta; mas quero fazer este obséquio ao Santo, que tanto respeito. Hoje é dia de Santo Agostinho, a quem a terra
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que essas mais encarecidas lisonjas são manifestas ofensas, negando as obras o que afirmam as palavras: e passando da terra ao Ceo, quanto será odioso ao que só deve ser amado, dizermos tantas vezes que o amamos, ao mesmo tempo que com o mundo o ofendemos, e oferecendo-lhe as palavras, deixamos em outro grilhão os afectos. Nas festivas demonstrações do amor rebuçou Herodias a sua vingança, ofereceu o obséquio, a quem dizia que amava, e não foi senão vingar-se do Bautista, a quem aborrecia; foi o delito quem, dando cores ao rogo, alcançou a injustiça por despacho; amava aquela mulher a sua culpa, e não o seu amante, mostrou que o divertia, e não era senão que se vingava, era engano a fineza em que estava envolta a ira, porque sepultado no íntimo da alma o ódio, à verdade toda a ternura era aparência. A qualquer de vós prendia o desejo de ser única naquele amor, de que fazia gosto à vossa vaidade, por crer que nas prisões da vossa formosura tínheis encarcerada aquela constância, que agora vedes engano na experimentada ofensa, não era amar-vos o que parecia querer-vos, era só satisfazer-se de mentir-vos, quem ocultava, o que sabia agravar-vos; não há no amor humano em que confiar, porque quando mais promete então desaparece; é a oficina, em que muitas vezes a raiva tem apurado as armas para tirar as vidas com total perda das almas; que noite mais tenebrosa que a mentira, e nela se sustenta isso, a que chamais amor; nasce persuadindo para acabar matando, começa carícia para perseverar desvio; é raio que alumia a tirania, com que abrasa; o Crocodilo chora para atrair, a quem quer despedaçar; chama com suspiros para ferir com impiedades: desta condição é o amor, doira a pílula, que mais amarga; diga-o a enganada Tamar, que na fineza, a que se persuadiu, achou o desprezo, que padeceu, o amor pinta-se despido para voar mais ligeiro, tem setas para a tirania, e asas para a inconstância, os seus triunfos são erros, o seu império engano, e final-
sepultura; no breve espaço da vida pode a coroa dar privilégios à mortalidade, mas acabada a veloz carreira do tempo perde as forças aquela agigantada ideia, a que votava cultos a lisonja: não confie nas honras, quem nos tronos lhe parece que se imortaliza, que a vida é nuvem que corre, fumo que se desvanece, flor que se murcha, luz que se apaga, exalação que no ar se desmancha, e onda que quando, montanha de neve se divisa, humilde escuma se desfaz de que presumem, logo jerarquias, se tão depressa as transformam as mortalhas: que homem pode haver que seja senhor da sua duração sem o sobressaltar o temor do seu fim? [...]
EPITÁFIO Pára errado caminhante, E nessa urna verás, Toda a majestade em cinzas, Toda a vaidade em ar. [...]
DIA DE S. JOÃO BAUTISTA* APÓLOGO
Confiança na flor é erro à vista, Só é flor de verdades o Bautista [...] Acabai de crer que só é amor um amor, que é só, porque com o coração repartido, nem se vive, nem se ama; e a flor aqui dando a ambas esperanças repartidas, a nenhuma podia dar inteiro aquele coração. Fiastes dela o descanso, e deu-vos novo trabalho, que estes são os lucros, que recolhe, quem na inconstância dos mortais confia, há-de ser a uma só sujeição sacrificada a vontade, e o mundo quando dá valia ao voto, é multiplicando o ídolo; desenganem-se as belezas, * p. 55 e seguintes.
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Sóror Mariana Alcoforado*
mente as suas testemunhas essas flores, que introduzidas no Mundo para desatar dúvidas, sempre mentem nas respostas, não há maior desatino que fazer confiança de um contrário. O Bautista foi voz da eterna verdade, e busca-se o seu dia para dar culto à mentira; com engano foi perguntado ao Santo quem era, para que a sua resposta desse matéria à sua ruína; entraram respeitando, para prosseguir destruindo; mostravam querer dar-lhe vivas, e não era senão prevenir-lhe a morte; queriam ouvir-lhe a pregação para abrir-lhe o cárcere; mas para estas injustiças estão acesas as infernais chamas; e como não há vida segura, no mar, e na terra tem a morte eixecução certa; a vida é fragilidade, e não há confiar na fragilidade da vida, lisonjeando o perigo da alma, clamam os eizemplos na voz da verdade, mas fica o clamor sepultado no deserto do esquecimento negados os ouvidos à voz, que nos chama, ao Ceo que nos combate, à ruína que nos avisa, detido o discurso nas persuasões de uma vã esperança, e como se o amor fora vida, fazemos vida do amor. Pisai Senhoras esse Basilisco, desviai esse fumo, não vos fieis desse cego; vede que dispara o tiro, e estende as asas para o voo perguntai às eisperiências, e não às Alcachofras, que já vedes que delas ambas ficastes enganadas: mudai o cuidado, antes que vos dê, em que cuidar a mudança, e se quereis segurar o acerto, vamos ao Bautista, que lá acharemos a luz para seguir o melhor caminho. Despediram-se de Marfiza deitando na terra as Alcachofras com desprezo, a que ela escreveu este desengano.
CARTAS PORTUGUESAS PRIMEIRA Considera, meu amor, a que ponto chegou a tua imprevidência. Desgraçado!, foste enganado e enganaste-me com falsas esperanças. Uma paixão de que esperaste tanto prazer não é agora mais que desespero mortal, só comparável à crueldade da ausência que o causa. Há-de então este afastamento, para o qual a minha dor, por mais subtil que seja, não encontrou nome bastante lamentável, privar-me para sempre de me debruçar nuns olhos onde já vi tanto amor, que despertavam em mim emoções que me enchiam de alegria, que bastavam para meu contentamento e valiam, enfim, tudo quanto há? Ai!, os meus estão privados da única luz que os alumiava, só lágrimas lhes restam, e chorar é o único uso que faço deles, desde que soube que te havias decidido a um afastamento tão insuportável que me matará em pouco tempo. Parece-me, no entanto, que até ao sofrimento, de que és a única causa, já vou tendo afeição. Mal te vi a minha vida foi tua, e chego a ter prazer em sacrificar-ta. Mil vezes ao dia os meus suspiros vão ao teu encontro, procuram-te por toda a parte e, em troca de tanto desassossego, só me trazem sinais da minha má fortuna, que cruelmente não me consente qualquer engano e
A ti que mentido oráculo De amor la esperança animas Si te quemaren las llamas Te sepulten las cenizas. [...]
* Edição bilíngua. Prefácio e trad. de Eugénio de Andrade. Lisboa: Assírio & Alvim, 1998.
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me diz a todo o momento: Cessa, pobre Mariana, cessa de te mortificar em vão, e de procurar um amante que não voltarás a ver, que atravessou mares para te fugir, que está em França rodeado de prazeres, que não pensa um só instante nas tuas mágoas, que dispensa todo este arrebatamento e nem sequer sabe agradecer-to. Mas não, não me resolvo a pensar tão mal de ti e estou por de mais empenhada em te justificar. Nem quero imaginar que me esqueceste. Não sou já bem desgraçada sem o tormento de falsas suspeitas? E porque hei-de eu procurar esquecer todo o desvelo com que me manifestavas o teu amor? Tão deslumbrada fiquei com os teus cuidados, que bem ingrata seria se não te quisesse com desvario igual ao que me levava a minha paixão, quando me davas provas da tua. Como é possível que a lembrança de momentos tão belos se tenha tornado tão cruel? E que, contra a sua natureza, sirva agora só para me torturar o coração? Ai!, a tua última carta reduziu-o a um estado bem singular: bateu de tal forma que parecia querer fugir-me para te ir procurar. Fiquei tão prostrada de comoção que durante mais de três horas todos os meus sentidos me abandonaram: recusava uma vida que tenho de perder por ti, já que para ti a não posso guardar. Enfim, voltei, contra vontade, a ver a luz: agradava-me sentir que morria de amor, e, além do mais, era um alívio não voltar a ser posta em frente do meu coração despedaçado pela dor da tua ausência. Depois deste acidente tenho padecido muito, mas como poderei deixar de sofrer enquanto não te vir? Suporto contudo o meu mal sem me queixar, porque me vem de ti. É então isto que me dás em troca de tanto amor? Mas não importa, estou resolvida a adorar-te toda a vida e a não ver seja quem for, e asseguro-te que seria melhor para ti não amares mais ninguém. Poderias contentar-te com uma paixão menos ardente que a minha? Talvez encontrasses mais beleza
(houve um tempo, no entanto, em que me dizias que eu era muito bonita), mas não encontrarias nunca tanto amor, e tudo o mais não é nada. Não enchas as tuas cartas de coisas inúteis, nem me voltes a pedir que me lembre de ti. Eu não te posso esquecer, e não esqueço também a esperança que me deste de vires passar algum tempo comigo. Ai!, porque não queres passar a vida inteira ao pé de mim? Se me fosse possível sair deste malfadado convento, não esperaria em Portugal pelo cumprimento da tua promessa: iria eu, sem guardar nenhuma conveniência, procurar-te, e seguir-te, e amar-te em toda a parte. Não me atrevo a acreditar que isso possa acontecer; tal esperança por certo me daria algum consolo, mas não quero alimentá-la, pois só à minha dor me devo entregar. Porém, quando meu irmão me permitiu que te escrevesse, confesso que surpreendi em mim um alvoroço de alegria, que suspendeu por momentos o desespero em que vivo. Suplico-te que me digas porque teimaste em me desvairar assim, sabendo, como sabias, que terminavas por me abandonar? Porque te empenhaste tanto em me desgraçar? Porque não me deixaste em sossego no meu convento? Em que é que te ofendi? Mas perdoa-me; não te culpo de nada. Não me encontro em estado de pensar em vingança, e acuso somente o rigor do meu destino. Ao separar-nos, julgo que nos fez o mais temível dos males, embora não possa afastar o meu coração do teu; o amor, bem mais forte, uniu-os para toda a vida. E tu, se tens algum interesse por mim, escreve-me amiúde. Bem mereço o cuidado de me falares do teu coração e da tua vida; e sobretudo vem ver-me. Adeus. Não posso separar-me deste papel que irá ter às tuas mãos. Quem me dera a mesma sorte! Ai, que loucura a minha! Sei bem que isso não é possível! Adeus; não posso mais. Adeus. Ama-me sempre, e faz-me sofrer mais ainda.
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excesso da minha felicidade e me levar a pressentir tudo quanto sofro presentemente. Mas de tal modo me entregava a ti, que era impossível pensar no que pudesse vir envenenar a minha alegria e impedir de me abandonar inteiramente às provas ardentes da tua paixão. Ao teu lado era demasiado feliz para poder imaginar que um dia te encontrarias longe de mim. E, contudo, lembro-me de te haver dito algumas vezes que farias de mim uma desgraçada; mas tais temores depressa se desvaneciam, e com alegria tos sacrificava para me entregar ao encanto, e à falsidade!, dos teus juramentos. Sei bem qual é o remédio para o meu mal, e depressa me livraria dele se deixasse de te amar. Ai, mas que remédio... Não; prefiro sofrer ainda mais do que esquecer-te. E depende isso de mim? Não posso censurar-me ter desejado um só instante deixar de te querer. És tu mais digno de piedade do que eu, pois vale mais sofrer como sofro do que ter os fáceis prazeres que te hão-de dar em França as tuas amantes. Em nada invejo a tua indiferença: fazes-me pena. Desafio-te a que me esqueças completamente. Orgulho-me de te haver posto em estado de já não teres, sem mim, senão prazeres imperfeitos; e sou mais feliz que tu, porque tenho mais em que me ocupar. Nomearam-me há pouco tempo porteira deste convento. Todos os que falam comigo crêem que estou doida, não sei que lhes respondo, e é preciso que as freiras sejam tão insensatas como eu para me julgarem capaz seja do que for. Ah, como eu invejo a sorte do Manuel e do Francisco! Porque não estou eu sempre ao pé de ti, como eles? Teria ido contigo e servir-te-ia certamente com mais dedicação. Nada desejo no mundo senão ver-te. Lembra-te ao menos de mim. Bastar-me-ia que me lembrasses, mas eu nem disso tenho a certeza. Quando te via todos os dias não cingia as minhas esperanças à tua lembrança, mas tens-me ensinado a submeter-me a tudo quanto te apetece.
SEGUNDA Creio que faço ao meu coração a maior das afrontas ao procurar dar-te conta, por escrito, dos meus sentimentos. Seria tão feliz se os pudesse avaliar pela violência dos teus! Mas não posso confiar em ti, nem posso deixar de te dizer, embora sem a força com que o sinto, que não devias maltratar-me assim, com um esquecimento que me desvaira e chega a ser uma vergonha para ti. É justo que suportes, ao menos, as queixas de desgraças que previ ao ver-te decidido a deixar-me. Reconheço que me enganei, ao pensar que procederias com mais lealdade do que é costume: o excesso do meu amor parece que devia pôr-me acima de quaisquer suspeitas e merecer uma fidelidade que não é vulgar encontrar-se. Mas a tua disposição para me atraiçoar triunfou, afinal, sobre a justiça que devias a tudo quanto fiz por ti. Não deixaria de ser infeliz se soubesse que só ao meu amor ganharas amor, pois tudo quisera dever unicamente à tua inclinação por mim; mas estou tão longe de tal estado que já lá vão seis meses sem receber uma única carta tua. Só à cegueira com que me abandonei a ti posso atribuir tanta desgraça: não tinha obrigação de prever que as minhas alegrias acabariam antes do meu amor? Como poderia esperar que ficasses para sempre em Portugal, renunciasses à tua carreira e ao teu país para não pensares senão em mim? Nenhum alívio há para o meu mal, e se me lembro das minhas alegrias maior é ainda o meu desespero. Terá sido então inútil todo o meu desejo, e não voltarei a ver-te no meu quarto com o ardor e arrebatamento que me mostravas? Ai, que ilusão a minha! Demasiado sei eu que todas as emoções, que em mim se apoderavam da cabeça e do coração, eram em ti despertadas unicamente por certos prazeres e, como eles, depressa se extinguiam. Precisava, nesses deliciosos instantes, chamar a razão em meu auxílio para moderar o funesto
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TERCEIRA
Apesar disso, não estou arrependida de te haver adorado. Ainda bem que me seduziste. A crueldade da tua ausência, talvez eterna, em nada diminuiu a exaltação do meu amor. Quero que toda a gente o saiba, não faço disso nenhum segredo; estou encantada por ter feito tudo quanto fiz por ti, contra toda a espécie de conveniências. E já que comecei, a minha honra e a minha religião hão-de consistir só em amar-te perdidamente toda a vida. Não te digo estas coisas para te obrigar a escrever-me. Ah, nada faças contrafeito! De ti só quero o que te vier do coração, e recuso todas as provas de amor que tu próprio te possas dispensar. Com prazer te desculparei, se te for agradável não te dares ao trabalho de me escrever; sinto uma profunda disposição para te perdoar seja o que for. Um oficial francês, caridosamente, falou-me de ti esta manhã durante mais de três horas. Disse-me que em França fora feita a paz. Se assim é, não poderias vir ver-me e levar-me para França contigo? Mas não o mereço. Faz o que quiseres: o meu amor já não depende da maneira como tu me tratares. Desde que partiste nunca mais tive saúde, e todo o meu prazer consiste em repetir o teu nome mil vezes ao dia. Algumas freiras, que conhecem o estado deplorável a que me reduziste, falamme de ti com frequência. Saio o menos possível deste quarto onde vieste tanta vez, e passo o tempo a olhar o teu retrato, que amo mil vezes mais que à minha vida. Sinto prazer em olhá-lo, mas também me faz sofrer, sobretudo quando penso que talvez nunca mais te veja. Por que fatalidade não hei-de voltar a ver-te? Ter-me-ás deixado para sempre? Estou desesperada, a tua pobre Mariana já não pode mais: desfalece ao terminar esta carta. Adeus, adeus, tem pena de mim!
Que há-de ser de mim? Que queres tu que eu faça? Estou tão longe de tudo quanto imaginei! Esperava que me escrevesses de toda a parte por onde passasses e que as tuas cartas fossem longas; que alimentasses a minha paixão com a esperança de voltar a ver-te; que uma inteira confiança na tua fidelidade me desse algum sossego, e ficasse, apesar de tudo, num estado suportável, sem excessivo sofrimento. Tinha até formado uns vagos projectos de fazer todos os esforços que pudesse para me curar, se tivesse a certeza de me haveres esquecido por completo. A tua ausência, alguns impulsos de devoção, o receio de arruinar inteiramente o que me resta de saúde com tanta vigília e tanta aflição, as poucas possibilidades do teu regresso, a frieza dos teus sentimentos e da tua despedida, a tua partida justificada com falsos pretextos, e tantas outras razões, tão boas como inúteis, prometiam ser-me ajuda suficiente, se viesse a precisar dela. Não sendo, afinal, senão eu própria o meu inimigo, não podia suspeitar de toda a minha fraqueza, nem prever todo o sofrimento de agora. [...]
QUARTA [...] Atormentaste-me com a tua insistência, transtornaste-me com o teu ardor, encantaste-me com a tua delicadeza, confiei nas tuas juras, seduziu-me a minha inclinação violenta, e o que se seguiu a tão agradável e feliz começo não são mais que suspiros, lágrimas e uma tristíssima morte que julgo sem remédio. É certo que tive, ao amar-te, alegrias surpreendentes, mas custam-me agora os maiores tormentos: são extremas todas as emoções que me causas. Se tivesse resistido com afinco ao teu amor, se te houvesse dado motivos de desgosto ou de ciúme para mais te prender, se tivesses notado em mim
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Que felicidade a minha, se tivéssemos passado a vida juntos! Mas, se era forçoso que uma cruel ausência nos separasse, creio que devo estar satisfeita por não ter sido infiel, e por nada do mundo quereria ter cometido acção tão indigna. Como pudeste, conhecendo o meu coração e a minha ternura até ao fundo, decidir-te a deixar-me para sempre, e a expor-me ao tormento de que só venhas a lembrar-te de mim quando me sacrificas a nova paixão? Bem sei que te amo perdidamente; no entanto, não lamento a violência dos impulsos do meu coração; habituei-me à sua tirania, e já não poderia viver sem este prazer que vou descobrindo: amar-te entre tanta mágoa. O que me desgosta e atormenta é o ódio e a aversão que ganhei a tudo. A família, os amigos e este convento são-me insuportáveis. Tudo o que seja obrigada a ver, tudo o que inadiavelmente tenha de fazer, me é odioso. Tão ciosa sou da minha paixão que julgo dizerem-te respeito todas as minhas acções e todas as minhas obrigações. Sim, tenho escrúpulo de não serem para ti todos os momentos da minha vida. Ai!, que seria de mim sem tanto ódio e tanto amor a encher-me o coração? Conseguiria eu sobreviver ao que obsessivamente me preocupa, para levar uma existência tranquila e sem cuidados? Tal vazio e tal insensibilidade não me convêm. Toda a gente se apercebeu da completa mudança do meu carácter, dos meus modos, do meu ser. Minha mãe falou-me nisto, primeiro com azedume, depois com certa brandura. Nem sei que lhe respondi; parece-me que lhe confessei tudo. Até as freiras mais austeras têm dó do estado em que me encontro, que lhes merece alguma simpatia, e até cuidado. Todos se comovem com o meu amor, só tu ficas profundamente indiferente, escrevendo-me apenas frias cartas, cheias de repetições, metade do papel em branco, dando grosseiramente a entender que estavas morto por acabá-las.
qualquer intencional reserva, se, enfim, tivesse tentado opor (embora, sem dúvida, fossem inúteis tais esforços) a razão à natural inclinação que tenho por ti, e que cedo me fizeste notar, poderias então punir-me severamente e servires-te do teu domínio sobre mim; porém antes de dizeres que me querias já eu te julgava digno de amor, manifestaste-me a tua paixão, fiquei deslumbrada, e abandonei-me a ti perdidamente. Tu não estavas cego como eu, porque me deixaste então chegar ao estado a que cheguei? Que querias dum desvario que não podia senão importunar-te? Se sabias que não ficavas em Portugal, porque me escolheste a mim para tornares tão desgraçada? Terias, certamente, encontrado neste país uma mulher mais bonita com quem tivesses os mesmos prazeres, pois só os de natureza grosseira procuravas; que te amasse fielmente enquanto aqui estivesses; que se resignasse, com o tempo, à tua ausência, e a quem poderias abandonar sem perfídia e crueldade. O teu procedimento é mais de um tirano empenhado em perseguir, que de um amante preocupado apenas em agradar. Ai!, porque tratas tão mal um coração que é teu? Bem sei que é tão fácil para ti desprenderes-te de mim como para mim o foi prender-me a ti. Eu teria resistido a razões bem mais poderosas do que as que te levaram a partir, sem precisar de invocar o meu amor por ti, nem me passar pela cabeça que fazia fosse o que fosse de extraordinário: todas elas me pareceriam insignificantes e nunca nenhuma poderia arrancar-me de ao pé de ti. Mas tu quiseste aproveitar os pretextos que encontraste para regressar a França. Um navio partia – porque não o deixaste partir? Tua família havia-te escrito - não sabias quanto a minha me tem perseguido? Razões de honra levavam-te a abandonar-me - fiz eu algum caso da minha? Tinhas obrigação de servir o teu rei – mas, se é verdade o que dizem dele, não necessitava dos teus serviços e ter-te-ia dispensado.
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Dona Brites insistiu, nestes últimos dias, para que saísse do meu quarto; julgando distrair-me, levou-me a passear até ao balcão de onde se avista Mértola. Segui-a, mas fui logo ferida por tão atroz lembrança que passei o resto do dia lavada em lágrimas. Trouxe-me outra vez para o meu quarto, atirei-me para cima da cama, e ali fiquei a reflectir na pouca esperança que tenho de vir um dia a curar-me. Tudo o que fazem para me confortar agrava o meu sofrimento, e nos próprios remédios encontro novas razões de aflição. Muitas vezes dali te vi passar com um ar que me deslumbrava; estava naquele balcão no dia fatal em que senti os primeiros sinais da minha desgraçada paixão. Pareceu-me que pretendias agradar-me, embora não me conhecesses; convenci-me de que me havias distinguido entre todas aquelas que estavam comigo; quando paravas imaginava que o fazias intencionalmente para que melhor te visse, e admirasse o garbo e a destreza com que dominavas o cavalo; dava comigo assustada, quando o levavas por sítios perigosos; enfim, interessava-me secretamente por todas as tuas acções, sentia já que me não eras de modo nenhum indiferente, e reclamava para mim tudo quanto fazias. Conheces de sobra o que se seguiu a tal começo; e, embora não tenha obrigação de te poupar, não devo falar-te nisso, com receio de te tornar ainda mais culpado, se possível, do que já és, e ter de me acusar por tantos e inúteis esforços que te obrigassem a ser-me fiel. Nunca o serás! Se não consegui vencer a tua ingratidão à força de amor e renúncia, como haveria de consegui-lo com cartas e queixumes? Estou mais que convencida do meu infortúnio; a injustiça do teu procedimento não me deixa a menor dúvida, e tudo devo recear, já que me abandonaste. Serei só eu a sentir o teu encanto? Nenhuns outros olhos darão por ele? Creio que me não seria desagradável se, de algum modo, os senti-
mentos de outras justificassem os meus, e gostaria que todas as mulheres de França te achassem encantador, mas que nenhuma te amasse e nenhuma te agradasse. Este desejo é inconcebível ridículo; sei por experiência que és incapaz de fidelidade e não precisas de ajuda para me esqueceres, nem a isso seres levado por nova paixão. Desejaria eu que tivesses um motivo razoável? Seria mais desgraçada, é certo, mas não serias tão culpado. Vejo que ficarás em França sem grande prazer, e com inteira liberdade. Será a fadiga de tão longa viagem, qualquer pequena conveniência, ou o receio de não corresponderes à minha exaltação que aí te retêm? De mim, nada receies! Bastar-me-ia ver-te de vez em quando e saber apenas que estávamos no mesmo lugar. E talvez me iluda; sei lá se não serás mais sensível à crueldade e à frieza de outra mulher do que foste à minha generosidade. [...] Vai fazer um ano, faltam só alguns dias, que me entreguei inteiramente a ti. A tua paixão parecia-me tão sincera e ardente, que não poderia imaginar sequer que a minha te viesse a aborrecer, a ponto de te obrigar a fazer quinhentas léguas, e a expores-te a naufrágios, para te afastares de mim. Não esperava ser tratada assim por ninguém: devias lembrar-te do meu pudor, da minha confusão, da minha vergonha, mas tu não te lembras de nada que possa levar-te contra vontade a amar-me. O oficial que há-de levar esta carta previne-me, pela quarta vez, que quer partir. Como ele tem pressa! Abandona, com certeza, alguma desgraçada neste país. Adeus. Custa-me mais acabar esta carta do que te custou a ti deixar-me, talvez para sempre. Adeus. Não me atrevo sequer a chamar-te meu amor, nem a abandonar-me completamente a tudo o que sinto. Quero-te mil vezes mais que à minha vida e mil vezes mais do que imagino. Ah, como eu te amo, e como tu és cruel! Nunca me escreves; não con-
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Ingrato! E a minha loucura é tanta ainda, que desespero por já não poder iludir-me com a ideia de não chegarem aí, ou de não lhe terem sido entregues. Detesto a sua franqueza. Pedi-lhe eu para me dizer pura e simplesmente a verdade? Porque me não deixou com a minha paixão? Bastava não me ter escrito: eu não procurava ser esclarecida. Não me chegava a desgraça de não ter conseguido de si o cuidado de me iludir? Era preciso não lhe poder perdoar? Saiba que acabei por ver quanto é indigno dos meus sentimentos; conheço agora todas as suas detestáveis qualidades. Mas, se tudo quanto fiz por si pode merecer-lhe qualquer pequena atenção para algum favor que lhe peça, suplico-lhe que não me escreva mais e me ajude a esquecê-lo completamente. Se me mostrasse, ao de leve que fosse, ter sentido algum desgosto ao ler esta carta, talvez eu acreditasse; talvez a sua confissão e o seu arrependimento me enchessem de cólera e de despeito; e tudo isso poderia de novo incendiar-me. Não se meta pois no meu caminho; destruiria, sem dúvida, todos os meus projectos, fosse qual fosse a maneira por que se intrometesse. Não me interessa saber o resultado desta carta; não perturbe o estado para que me estou preparando. Parece-me que pode estar satisfeito com o mal que me causa, qualquer que fosse a sua intenção de me desgraçar. Não me tire desta incerteza; com o tempo espero fazer dela qualquer coisa parecida com a tranquilidade. Prometo-lhe não o ficar a odiar: por de mais desconfio de sentimentos exaltados para me permitir intentá-lo. Estou convencida de que talvez encontrasse aqui um amante melhor e mais fiel; mas, ai!, quem me poderá ter amor? Conseguirá a paixão de outro homem absorver-me? Que poder teve a minha sobre si? Não sei eu por experiência que um coração enternecido nunca mais esquece quem lhe revelou prazeres que não conhecia, e de que era susceptível?, que todos os seus im-
sigo deixar de te dizer ainda isto. Recomeço, e o oficial partirá. Se partir, que importa? Escrevo mais para mim do que para ti; não procuro senão alívio. O tamanho desta carta vai assustar-te: não a lerás. Que fiz eu para ser tão desgraçada? Porque envenenaste a minha vida? Porque não nasci noutro país. Adeus. Perdoa-me. Já não ouso pedir-te que me queiras. Vê ao que me reduziu o meu destino. Adeus.
QUINTA Escrevo-lhe pela última vez e espero fazer-lhe sentir, na diferença de termos e modos desta carta, que finalmente acabou por me convencer de que já me não ama e que devo, portanto, deixar de o amar. Mandar-lhe-ei, pelo primeiro meio, o que me resta ainda de si. Não receie que lhe volte a escrever, pois nem sequer porei o seu nome na encomenda. [...] Não conheci o desvario do meu amor senão quando me esforcei de todas as maneiras para me curar dele, e receio que nem ousasse tentá-lo se pudesse prever tanta dificuldade e tanta violência. Creio que me teria sido menos doloroso continuar a amá-lo, apesar da sua ingratidão, do que deixá-lo para sempre. Descobri que lhe queria menos que à minha paixão, e sofri penosamente em combatê-la, depois que o seu indigno procedimento me tornou odioso todo o seu ser. O orgulho tão próprio das mulheres não me ajudou a tomar qualquer decisão contra si. Ai, suportei o seu desprezo, e teria suportado o ódio e o ciúme que me provocasse a sua inclinação por outra! Ao menos, teria qualquer paixão a combater. Mas a sua indiferença é intolerável. Os impertinentes protestos de amizade e a ridícula correcção da sua última carta provaram-me ter recebido todas as que lhe escrevi e que, apesar de as ter lido, não perturbaram o seu coração.
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Sóror Clara do Santíssimo Sacramento/ Antónia Margarida de Castelo Branco*
pulsos estão ligados ao ídolo que criou?, que os seus primeiros pensamentos e primeiras feridas não podem curar-se nem apagar-se?, que todas as paixões que se oferecem como auxílio, e se esforçam por o encher e apaziguar, lhe prometem em vão um sentimento que não voltará a encontrar?, que todas as distracções que procura, sem nenhuma vontade de as encontrar, apenas servem para o convencer que nada ama tanto como a lembrança do seu sofrimento? Porque me deu a conhecer a imperfeição e o desencanto de uma afeição que não deve durar eternamente, e a amargura que acompanha um amor violento, quando não é correspondido? E por que razão, uma cega inclinação e um cruel destino, persistem quase sempre em prender-nos àqueles que só a outros são sensíveis? [...] Ao devolver-lhe as suas cartas, guardarei, cuidadosamente, as duas últimas que me escreveu; hei-de lê-las ainda mais do que li as primeiras, para não voltar a cair nas minhas fraquezas. Ah, quanto me custam, e como teria sido feliz se tivesse consentido que o amasse sempre! Reconheço que me preocupo ainda muito com as minhas queixas e a sua infidelidade, mas lembre-se que a mim própria prometi um estado mais tranquilo, que espero atingir, ou então tomarei uma resolução extrema, que virá a conhecer sem grande desgosto. De si nada mais quero. Sou uma doida, passo o tempo a dizer a mesma coisa. É preciso deixá-lo e não pensar mais em si. Creio mesmo que não voltarei a escrever-lhe. Que obrigação tenho eu de lhe dar conta de todos os meus sentimentos?
AUTOBIOGRAFIA CAPÍTULO 1.° Minha pátria, Pais, Nascimento, Criação e particulares trabalhos da infância. A minha pátria e a de meus Pais é esta cidade de Lisboa, sendo que meu Pai cuido que nasceu no Brasil. Não trato de outras ascendências mais que as das virtudes, por serem só as que têm nome diante de Deus. Por esta razão creio que me pedirá sua divina Majestade estreita conta, pois dando-me Pais e avós tão virtuosos, não pus os olhos nas suas virtudes para as imitar, vendo sempre aos que conheci exercitar muitas em supremo grau e ouvir que o mesmo fizeram os mais.
* Edição de J. Palma Ferreira. Lisboa: INCM, 1984.
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Meu Pai casou de maior idade e por se livrar de empenhos e desejar muitos filhos, se retirou a uma quinta que tinha na outra banda, na vila do Lavradio, com esperança de que mudando de vivenda, melhoraria de fortuna e não continuaria a minha Mãe os maus sucessos com que tinha algumas almas no Limbo; com muita pena sua, porque ponderavam mui bem ambos as circunstâncias desta dor, pelo muito que amavam a Deus. [...] A poucos meses de animada comecei a ser trabalhosa porque dizem dava tão desusados pulos que lhe causavam temor de que não era criatura racional senão algum monstro que desde então comecei a parecê-lo, pois fui tão grande monstro de pecados. Louvado seja Deus que tanto me sofreu e esperou. No meu nascimento houve várias circunstâncias que se podiam ter por misteriosas, as que não refiro por não fazerem ao caso. Só direi que tive grande trabalho ao nascer, como temendo o que havia passar no mundo e que saí a ele quase à força de remédios que se fizeram a minha Mãe. Foi dia de S. Domingos, 4 de Agosto na era de 1652, dizem que em quinta-feira das duas para as três horas depois da meia noite, no tempo em que começavam os P.es capuchos da Verderena a tanger ao Te Deum das Matinas. Dizem que vinha como morta pela muita dificuldade e detença que tive ao nascer e com uns borrifos e bafos de vinho tornei em mim; que já deste este tempo começou a virtude do sangue de Jesus Cristo (figurado nesta matéria) a dar-me nova vida: permita ela dar-me graça para que não esperdice o fruto do seu sangue. [...] Tendo eu já alguns meses de idade, repararam todos os de casa em me não verem nunca chorar, causando-lhe admiração por não ser natural em semelhantes idades a falta de um desafogo que é língua do que necessitam. Meu Pai, para examinar a causa desta novidade e supondo que eu seria insensível, deu ordem à minha ama e às
demais creadas fossem vigilantes em mortificar-me, assim em me negar o peito como outras coisas que eu com as acções mostrava que queria. Tanto à vista se observou esta ordem que de propósito me quebravam o sono e faziam outras experiências que pareciam tiranias e diziam que as lastimava ver a minha paciência. Meu Pai ma provava mais que ninguém sem embargo de me ter muito amor. Em me colhendo os mimos que me fazia eram dar-me beliscões e picar-me com alfinetes e quanto me via mais sofrida e que só fazia uma leve carranca, instava nas provas mais. Um dia subiu tanto de ponto que tendo eu já nove meses de idade me cravou um alfinete de sorte por um dedo, que fez grande força por o tirar e devia ser a dor bem excessiva que dei um berro como cabra do que se seguiu tal ímpeto de choro que em algumas horas nada me pôde fazer calar; e daí por diante fiquei tão sentida e chorava por qualquer coisa, o que era com tanto excesso que diziam as pessoas de casa: «Perdoe Deus a quem a ensinou.» [...]
CAPÍTULO 3.º De como me comecei a dar a vaidades e as inspirações que Deus me dava para vencê-las. [...] Logo que tive juízo de razão, em lugar de amar a Deus comecei a dar-me a vaidades gastando o mais do tempo em ler livros de comédias e novelas, o que meu Pai me tolhia como tão cristão. Mas inda assim, eu contra sua vontade lia dias e noites, escondia os livros entre os colchões da cama para ler depois de deitada com um rolo nos travesseiros, por cuja causa estive por vezes a risco de me queimar e de uma livrei quase por milagre. [...]
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admitisse seu irmão (porque, na verdade, em nenhum sentido era para enjeitado) fez por o entreter até o desenganar; o que ele sentiu muito e tinha razão, que a não ser disposição divina que me guiava a outro fim mais alto, não podia haver melhor acerto quanto às razões humanas, mas Deus mostrou que a minha dita estava no padecer. Toda a minha inclinação era a outra pessoa, a qual me durou desde menina com notável excesso, mas sem má tenção, que como fui sempre mui altiva, aborrecia leviandades e faltas de modéstia; por cuja causa me sujeitei antes a morrer de pena do que a revelar a ninguém esta loucura. A minha tenção era por via de casamento sem tenção menos decente e assim pedia a Deus o efectuasse se fosse servido, porque não queria nada contra o seu agrado. Esta inclinação me lembra que foi a causa de eu não me resolver a ser freira, porque me entretinha esta esperança, e devo a Deus neste particular uma grande mercê, pois oferecendo-me o demónio muitas ocasiões para ser louca, me ajudou meu Senhor a não o ser, nem com um levantar de olhos; e ajudava-me muito a isso a modéstia natural desta pessoa, que era tão rara que todas as vezes que nos chegámos a avistar sentia uma notável comoção de reverência que me movia a compor o exterior. Enfim, este amor ou simpatia esteve por mercê de Deus tão sujeito à razão, que em me dando marido morreu de todo, pois já então era repreensível ter afeição a outrem; e na verdade tive isto por especial favor de Deus, o que experimento e cresce cada dia, especialmente depois que fiz total renúncia de todas as criaturas e que reverencio a Jesus Cristo nelas, ensinando-me meu Senhor a amá-las com pureza maior que é amando a Ele em todas e a todos por seu respeito, pois o que há em cada uma amável d’Ele é que procede. Outros sucessos não refiro que tive nestas mesmas matérias por evitar prolixidade e só direi em geral que como sempre fui pedra de escân-
CAPÍTULO 6.º De alguns sucessos particulares desde idade de catorze anos até os dezasseis. [...] Tinha um tio viúvo com dois filhos. O mais velho e ele eram também pretendentes com notável empenho de amor, porém da minha parte com uma diferença, que ao Pai tinha antipatia natural e ao filho nem amor nem aversão. Ele vendo que meu Tio não o via vir na matéria, antes se mostraria ofendido de ele me pôr os olhos com semelhante tenção da sua, declarou-se com minha Mãe, que o amava muito, pedindo-lhe eficazmente viesse no casamento à reveria do Pai e tomando-a a ela por valia para que me persuadisse a min. Porém, ela não se deixou levar das suas eficácias, entretendo-o com razões, até que suspeitando seu Pai parte destes intentos, o chamou um dia e lhe disse que importava à sua casa casá-lo logo, que lhe dava a escolher três pessoas estranhas e que se resolvesse dentro em oito dias. O pobre moço tomou disto tal paixão que pediu licença para ir para uma quinta, donde veio antes do prazo com uma febre maligna tão forte que em sete dias o levou; de dezassete anos, e muitas partes naturais e por uma ser a de claro entendimento, morreu com notável disposição, deixando muitas esperanças de que ia para a glória. O pai, depois de passarem alguns meses em que deu lugar ao sentimento, tornou à pretensão antiga com tanta eficácia que se efectuou por parte de meus Pais, e também pela minha e posto lhe tivesse aversão era eu tal que me sujeitava só por ter liberdade para apetites. Embaraçou o efeito logo a morte de meu Pai (como direi adiante) e vendo minha Mãe em mim sinais de pouco gosto, quis inquirir a minha vontade mandando-me por obra lhe falasse singelamente naquele particular. Eu respondi com superior impulso que antes me sujeitaria à morte que a dar o sim voluntária; ela, posto que sentiu que eu não
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que sabia do meu natural. Pois não eram matérias estas em que eu falasse, inda que não fosse mais que por damice; mas quis Deus cegar a todos para me abrir a mim os olhos; e nesse fim embaraçou a muitas pessoas que quiseram avisar a minha Mãe me não deitasse a perder; mas sentiam uma oculta resistência que lhe embargava os passos sem saberem conhecer qual fosse o fim; o que tudo me serviu depois para crer que Deus o dispôs para meu bem. Vendo minha Mãe as coisas neste estado, tratou de ajustar os consertos e fazer as escrituras: nas quais prometeram à sua revelia vinte e cinco mil cruzados pelo meu dote, logo cinco em jóias e vinte em dinheiro, não sendo à Minha Mãe possível dá-lo nesta forma sem destruir a casa de meu Irmão. Soube-se deste engano por o noivo pedir antes de se receber quantidade grande de dinheiro para se aviar, e à vista desta cavilação esteve quase desfeito o casamento e com embaraços tais que pareciam impossíveis de vencer, mas Nosso Senhor dispôs que se ajustasse não obstante este engano, porque havia ser o meu flagelo. Começou o noivo a visitar-me e a dar mostras do seu natural e que Deus o destinara para abater o meu; pois em tempo que é toda a estimação devida, com desprezos me galanteava. A minha altiveza levava tão mal estes desaires, que sentida deles (e movida da oculta força que me fazia a divina inspiração) disse resoluta a meus parentes queria ir para um Convento porque a vocação de Religiosa se me havia acabar com a vida. Mas persuadidos que a mim me movia só a pena dos desaires e algumas notícias que tinha dos seus maus procederes, me sossegaram dizendo-me que o tempo tudo acabava e que considerasse o Mundo o que diria, pois continuando tanto as visitas ficava o meu crédito em opiniões, pois era certo que o noivo não havia dizer que o enjeitaram e em semelhantes casos sempre se crê o pior. A mim me falando em crédito não
dalo, rara foi a pessoa que pusesse os olhos em mim com tenção semelhante que lhe não fosse presságio de infortúnios e, desta sorte, ia escapando de todos oferecendo-se alguns desvios que não pareciam carnais: o que a mim e a outras pessoas dava em que entender, e até no último casamento que me saiu, que foi o que se efectuou, houve dificuldades que pareciam invencíveis e algumas não pareciam naturais; porém tudo venceu a porfia, movendo Deus as segundas causas para que tivesse comprido efeito o que ele tinha destinado, como direi em seu lugar por o dar agora a outros sucessos próprios deste tempo, que já era no ano de 1668 em que eu faria dezasseis anos.
CAPÍTULO 8.º Efectua-se o casamento que Deus me tinha destinado com algumas circunstâncias capazes de humilhar minha soberba. [...] Eu estava ignorante de tudo e vendo falar segredos aos de casa, perguntei o que era e respondeu uma criada: «Minha senhora, isto é quererem-na casar com um homem que não tem mais que sangue: é muito nobre, muito pobre e muito terrível.» À vista desta informação, fiquei tão assustada que posso dizer que foi a primeira coisa que me fez abalo no coração, crendo que Deus havia permitir se efectuasse aquele negócio só por meu castigo; e por esta causa ia observando todos os sucessos, tendo-os por anúncio do que havia suceder. Minha Mãe como me via triste supôs-me desgostosa e querendo informar-se de mim o que eu queria, lho impediu uma pessoa que falava no casamento, dizendo-lhe que sabia certamente que a minha tristeza era por temer se não efectuava e permitiu Deus que assim o creu, contra o
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tive mais actividade para resistir porque tinha mui vivo o pundonor. Enfim, dei-me por vencida com bem mágoa de meu coração. Veio o noivo, contaram-lhe a história, do que se deu por ofendido; e minha Mãe por galantaria abriu a gaveta de um escritório e deu-lhe um faqueiro com cabos de rubis e oiro, dizendo-lhe que era para se defender de mim e com esta oferta parou tudo em graça e galhofa, mas não em mim, que, pela dissimulada, conferia estas coisas em meu coração, achando a tudo mistério. E não menos aos vários estorvos que cada dia se fabricavam para o casamento se concluir, que por serem tantos e tão vários perguntavam algumas pessoas se tinha eu feito voto de castidade ou Religião. Enfim, tudo se venceu porque nada disto permitiu Deus que me vencesse, quiçá por me ter guardada para outros desenganos maiores; e que passasse pelo custo de referir estas coisas que para o meu natural inda é maior que padecê-las, e só me pode servir de alívio a esperança do merecimento, se a minha miséria não deitar tudo a perder.
mas vinha contar gabando-se disso, e eu sagazmente lhe mudava o propósito e algumas vezes se exasperava tanto com esta minha dissimulação, que me dizia: «Sabei que eu fiz isto e isto contra vós». E vendo que eu lhe dizia: «Seja Deus louvado», ficava mais furioso. Todo o meu estado era não o desgostar em nada, supondo era remédio, mas tudo redundava em meu dano, formando muitas vezes agravo do mesmo que eu lhe fazia por amor. Eu, por fineza, nunca queria comer sem ele, mas como de ordinário se recolhia tarde e ia ceado, tanto que vinha para casa encaminhava para a câmara, a se deitar. Outras vezes, por se não querer pôr à mesa comigo, mandava levar o comer a outras casas onde eu não costumava ir, ficando muitas vezes por esta causa em jejum vinte e quatro horas e mais; eu supunha que era fineza o não comer a outra hora, por entender não levaria gosto disso e não queria mortificá-lo. [...]
CAPÍTULO 28.° Segue-se a mesma matéria com novos sucessos diabólicos.
CAPÍTULO 10.º Aumenta-se o meu padecer na quinta por várias causas.
O demónio, com a permissão que Deus lhe deu, tentava todos os meios de me exasperar, mas Sua Divina Majestade, como fiel amigo, nunca me desamparou. Louvado seja para sempre tão amoroso pai que sempre, até nos castigos, usa connosco de amor. Aparecia o inimigo a meu companheiro em visíveis vultos que saltavam da câmara e me faziam pé-de-janela, o que ele mesmo confessou, e que indo-os seguindo com a espada nua, cuidando de uma vez que o(s) passava, se achou desvanecido sem coisa alguma e em outra lhe desapareceu ao voltar de um canto, sem haver ali parte onde se pudesse esconder, e confessou que de ambas as vezes sentira pavor.
[...] Todas estas coisas passava só, por não ter com quem desabafar, e nem que o tivera dissera nada, por não dar confiança a ninguém para murmurar de meu companheiro; e se alguém me dizia alguma coisa, logo a atalhava mostrando que não cria o mesmo que estava vendo, e mais sabia tudo, porque as minhas próprias criadas cooperavam nestas traições; porém, convinha-me dissimulá-lo, visto não lhe poder dar remédio, o que meu ofensor levava tão mal; que ou pelo génio de não poder calar nada, ou por sentir que eu ignorasse estas coisas, ele mesmo
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O demónio sempre o induzia a que me armasse laços e valia-me a minha natural cautela para me não colher em palavras. Costumava eu por modéstia nunca falar em homens, nem em outras matérias que o meu brio repugnava e ele, por vigiar a minha inclinação, me falava com indústria em várias pessoas como acaso, dizendo delas bem e mal para ver no que o ajudava eu e, como me via ficar em tudo indiferente, cria que o fazia por disfarce. Muitas vezes me pasmava a traça com que me perguntava algumas coisas como sagaz modo para colher se as tinha eu no sentido e permitia Deus que não tirasse destas experiências mais que nova confusão de me ver tão alheia das suas malícias; porém, nada me acreditava porque tudo que pudera justificar-me tinha por sagaz prevenção. Eu vivia confusa com estas coisas e não lhe podia achar outro remédio mais que calar e sofrer e obrar conforme entendia, sem embargo da sua variedade me não dar regra certa. Algumas vezes usava eu também de sagacidade, espreitando as horas em que estava mais humano comigo e amorosamente lhe arguia algumas coisas a respeito dos motivos que ele tomava para se desconfiar de mim, trabalhando muito pelo convencer com a razão e nestas diligências colhia que me fundava em verdade quando cria o não movia mera malícia senão sugestão diabólica, porque me respondia coisas galantes e com grande singeleza que juntamente me faziam rir e chorar. Umas vezes me dizia: «Mulher, tende dó de mim, não me condeneis, que se souberes o que padeço nesta parte, tivereis-me compaixão.» Outras dizia: «Tendes muita razão, mas eu fizera isso que dizeis se tivera entendimento, mas como me falta, por isso faço o que faço.» Outras vezes, que estava mais de graça, me dizia: «Calai-vos, mulher, que havemos morrer santos! Vós sereis santarrona e eu santinho porque sou mais pequeno do corpo.»
Eu, quando tive notícia disto, fiquei mui assustada por ignorar quanto se estenderia o permisso de Deus, temendo que induzisse o demónio àquela criatura a que me tirasse a vida, tão infamemente permitindo meu Senhor castigar com esta desonra pública a minha soberba secreta; mas conformava-me se Sua Divina Majestade o dispusesse assim, crendo seria o que mais me convinha, movida da muita fé que tinha na sua providência, respeito da qual cria que como o inimigo me não empecesse nalma fazendo-me cometer culpas contra Deus, toda a mais vexação que me fizesse não era nada respeito do castigo que mereciam minhas culpas, e esta consideração me dava novo alento para padecer. Mas inda assim me traziam oprimida as coisas deste fidalgo e não podia achar modo de o confiar, porque permitia Deus se me frustrassem de sorte as diligências que em cada uma mais me encravava e ele mais se temia. Se vindo de fora, o esperava alegre e com carinho, me afastava de si com vitupérios, dizendo-me que eu devia estar alegre porque me fartara de apetites a que ele me dera tempo vindo tarde. E se pelo contrário, se ao outro dia (por lhe desvanecer este juízo) dissimulava a alegria de o ver, me dizia que devia de vir cedo e impedir-me o meu logro, que se o advertira pudera vir mais tarde a fim de me colher com o furto nas mãos. Esta variedade era em toda a matéria, porque a tinha por natureza pelo que eu não sabia camo me haver para ter paz, porque se me emendava de qualquer coisa em que lhe via fazer reparo, já quando o fazia o achava de outro bordo e servia-me de aumentar o mal. Muitas vezes, querendo enganar-me a mim mesma supunha que zombava; porém a perturbação do seu rosto e mais acções e palavras mo faziam ter por veras, com bem pena minha por me parecerem algumas coisas irracionais, pois de ordinário tinham entre si contradição.
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Algumas vezes me dizia com muita graça: «Oh mulher, vós deveis encomendar-me a Deus com muita eficácia porque vos dou muito em que merecer, que os que têm amor a Deus rogam mais pelos inimigos, porque o amor para com eles não é suspeitoso.» E quando eu a estas galantarias lhe respondia com finezas, satisfazendo-o com a verdade do que sentia no meu coração, respondia: «Oh manigrepa, como vós sabeis fingir!» Enfim, com isto passava o tempo e raras vezes destas práticas deixava de sair sentida, porque posto começassem em graça, sempre acabavam em pendência, por ele se enfadar sem haver de quê, por cuja causa me fui tirando de dizer-lhe nada mais que palavras gerais e poucas, só por me não pôr a risco de contendas.
me havia nos pontos da meditação, passando ligeiramente de um a outro até sentir movida a vontade, que como não podia discorrer não tinha com que me ajudar. Compadecido meu Senhor de minha ignorância permitiu que desde a festa do Espírito Santo daquele mesmo ano não fosse necessário para mover-me a vontade a amar, mais que considerar levemente no primeiro ponto da meditação e também despertou a pessoas devotas que me dessem alguns livros espirituais que me deram luz em muitas dúvidas que eu não perguntava. Depois que me vi em Santos, com mais liberdade frequentava muito a oração, porém era com muitas cautelas por me não chamarem beata, que tal sou que não me correndo de me verem pecar me corria de me verem servir a Deus! Mas como ali se não tratava muito do Espírito e o meu estava mui fraco, buscava horas em que até me escondesse das criadas, por me fazer inda grande horror o coco do que dirão. As casas que logo me deram foram tanto na passagem que nada podia fazer sem ser vista e dava a Deus esta desculpa para ser omissa nos exercícios espirituais, mas sua Divina Majestade foi comigo tão piedoso que a mesma Comendadeira me ofereceu outras casas nas obras do Mosteiro novo, muito acomodadas para o que eu queria ou para a vida que Deus me inspirava, que era retiro e solidão e dar-me toda ao seu trato sem guardar respeito ao Mundo. Nestas casas me achei tão quieta que me não conhecia. Não aparecia no Mosteiro de baixo senão no tempo da Missa, que como era leiga não tinha obrigação de coro. Do meu canto o fazia, donde só me tirava a caridade de ver as enfermas ou outra coisa necessária, por cuja causa vivia em muita quietação e aproveitava melhor o tempo por estar mais livre das ocasiões que mo faziam perder, porque como devia grande amor àquelas Senhoras, era sempre mui buscada; porem já então era isto pelo contrário,
CAPÍTULO 38.° Dos impulsos que sentia de seguir a virtude e alguns exercícios deste tempo e diferenças que sentia no meu interior. Logo que dei os primeiros passos para sair do Mundo, senti movida minha alma a seguir a perfeição. Primeiramente tive suaves impulsos de tornar à oração, visto não ter já quem me embaraçasse este exercício, mas como não tinha dele nenhuma notícia nem a perguntava, via-me com muitos embaraços sem saber o que fazia e agora vejo que acertava sem entendê-lo, porque me ensinava meu Senhor. Eu fui sempre mui dificultosa em discorrer e conformar figuras na imaginação e inda me fazia mais inábil para este exercício (que eu tinha pelo mais útil) a grande ânsia que sentia de encher aquele vazio d’alma (já referido) e guiada de um impulso amoroso andava minha alma como um pássaro inquieto que de ramo em ramo busca lugar onde descansar e desta sorte
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de errar, pedia a Deus que se Ele queria eu tivesse director, que mo desse da sua mão e isto pedia com viva fé, custando-me, porém, o que o mesmo Senhor sabe, o cuidar que me havia de resolver a viver com tal sujeição, por achar totalmente impossível ter confiança para dizer-Lhe nada que não fosse culpa. Oh, amoroso Pai e Senhor meu, como desempenháveis já neste tempo a fé que infundistes nesta miserável alma de vossa fidelidade e providência e dáveis-me (bem meu) o prémio como se fora serviço! Quando a fé era data vossa que graciosamente me desteis sem eu a merecer! Estas atenções da vossa misericórdia não podiam ser prémio de obras boas porque não sabia fazer mais que pecar. Nem tão-pouco que prevíeis inda as faria em algum tempo pois vejo o que se tem passado e que cada dia que amanhece me acho pior, mais omissa, mais ingrata e mais pecadora! Enfim, Senhor, eu não quero penetrar os vossos juízos porque fora atrevimento; o que só quero é conhecer o que sou e o que vos devo a vós. Sois um mar de misericórdias, eu um mar de culpas; porém no meio delas espero não padecer naufrágio pois sois o meu porto para onde me guia o leme da fé que me desteis na vossa providência, a qual espero vença a minha malícia e que vos faça inda alguns serviços gratos a vossos olhos, para os quais me não deveis faltar com as ajudas de custo necessárias; pois assim me inspirais a que o creia e esta fé, como é penhor vosso, deveis de justiça desempenhá-lo.
respeito da distância do Mosteiro novo, por ser obstáculo à comunicação. A que tinha com Deus era o meu refúgio e por bondade sua logo foram saindo os efeitos porque cuido que desde Agosto por diante comecei a sentir notável dificuldade na meditação bastando-me uma simples memória de Deus para me pôr logo em acto de amor. Mas eu como tão bruta em estas matérias, afligia-me com o que pudera agradecer e fazia violência a meditar; porém quanto mais me forcejava mais me distraía e dava-me isto notável desconsolação. Tal me vi que propus esta dúvida a um Religioso Agostinho que veio aí, uma vez, confessar, por ouvir era letrado e de Espírito. Mas ele não me devia entender porque me disse fizesse força a meditar, porque era o caminho mais seguro. Eu não nego que a sua resposta seria prudente, mas havia examinar-me mais; porém, contudo eu quero crer que foi prudente e que eu é que errei em me não sossegar com o que me disse e mais fiz o que me aconselhou, porém foi sem fruto porque não rendi o entendimento. Meu Senhor, compadecido de minha batalha, permitiu pôr-me em uma ocasião no entendimento (daí a dias estando recolhida em oração), que melhor era amar que discorrer e sossegou-me tanto isto que dali por diante não tive mais dúvida neste particular, acomodando-me também a este modo de oração, que gastava nela muito tempo; e com tanto fruto que já se me não dava de ser vista nem de mostrar no meu trato que seguia vida de Espírito, por cuja causa sofria alegremente ditos bem picantes e totalmente opostos ao meu natural. Respeito dele avaliei pelo maior fruto destes tempos o desejar eu mesma (persuadida da própria razão) o sujeitar-me a Padre espiritual, o que não foi sem luz especial que Deus deu à minha alma de que sem guia não podia aproveitar nem caminhar sem tropeços. Como já então me via embaraçada com algumas dúvidas e temores
CAPÍTULO 42.° Estado do meu negócio e perseverança na vocação e os meios que Deus buscou para se conseguir. Como a demanda do divórcio estava empatada por meu companheiro apelar da sentença, diziam meus parentes que toda a vida estaria assim
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porque a parte não havia seguir a apelação e dava-lhe a alguns isto muito cuidado e eu não sabia por que causa que, posto davam a de me quererem ver quieta com o desengano do que me sentenciavam os juízes, a mim sempre me ficava ressaibo de que temiam me arrependesse. Eu ria-me disto e na verdade não me pesava que a causa estivesse detida e que perseverasse assim muito tempo porque estava ali muito a meu gosto e com mui boa consciência e não se me dava passar ali toda a vida, pois naquela podia ser santa, visto me embargarem desejar outra de mais aperto o que já então me não custava tanto, por se acomodar bem a natureza à liberdade e sossego com que ali vivia. Porém, ao mesmo tempo que no meu interior fazia estes discursos, os sentia de repente contrariados, porque aquela amorosa faísca que Deus deitou em meu coração queria levantar-se a maiores com o Senhorio dele; e pelo mesmo que aquele Mosteiro tinha muita parte de mundo, fazia-me achar nele perigoso o comércio com as criaturas, desabrida a sua comunicação, nociva a liberdade e tudo o mais (que ali se usava) impróprio para uma alma que Deus chamava à perfeição religiosa e sacrificando-se sem reserva a seu serviço. Mas como para estes voos me tinham cortado as asas, ficava-me só com as penas e é certo que mas causavam grandes uns e outros discursos pelo mesmo que se encontravam. Posto que eu resistia (como já disse) aos desejos de ser Religiosa por ordem da obediência pela mesma dava conta de ser cada dia maior a certeza de que o havia conseguir e não me custava pouco dizer isto por o achar fora de propósito e totalmente impossível respeito do estado presente e inflexibilidade de algumas criaturas que haviam concorrer nesta obra. Mas como Deus tinha disposto o contrário do que eu supunha, moveu ao Padre (pelas notícias que lhe eu dava e por algumas experiências que com sagacidade fez) a que me permitisse não fazer mais resistência neste
particular; antes se perseverassem os desejos, recorresse logo Deus pedindo-lhe que se lhe eram agradáveis me abrisse caminho de os conseguir. Esta liberdade me causou notável desafogo, pelo que me custava reprimir o impulso interior que me movia a desejar a alma esta vida, inda que a não desejasse a natureza. Daí a alguns dias, estando um em oração, me vi tão estimulada destas ânsias que disse interiormente a Deus: «Desembaraçai-me, Senhor, de tudo se me quereis por esposa, que eis aqui vos dou a mão e palavra.» E pareceu-me que Sua divina Majestade benignamente me aceitava a mão e dava firmes esperanças de o conseguir apesar de quantos impossíveis se me representavam, no que tive dali em diante tão firme fé, que nenhuma contradição a pôde apagar. Dali a poucos dias, conforme me parece, e que era em Outubro daquele mesmo ano, estando o Padre acaso revolvendo uns livros para mui diferente fim, abriu em um em que achou que o adultério público dava liberdade ao consorte inocente para professar em qualquer religião, para o que alegava aquele autor outros muitos gravíssimos em forma que se não podia duvidar ser segura esta opinião. O Padre, alegre com este achado, pegou logo na pena e mo avisou por maior, deixando as circunstâncias para quando me pudesse falar, que foi no seguinte dia. Enquanto não chegou esta hora não é crível a batalha que passei, porque Deus dava luz à alma de que era sua vontade entrasse em Religiáo e a natureza temia muito o seu rigor; porém ajudada da graça se venceu tanto a natureza que dali em diante enquanto não vesti o hábito me mortificava tudo o que desdizia de freira. [...]
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agora tanto ao contrário que eu mesma me admiro, pois se me infundiu um certo seguro e fortaleza interior tão grande e desapego de tudo o da terra que já me não atemoriza nada mais que o perder a graça de meu Senhor e, tendo-a, não necessito de nada mais. [...]
CAPÍTULO 140.º Implusos veementes de queimar este livro por me ver sem director e como o finalizo por obediência do nosso Padre Provincial. [...] Depois desta ordem me lembrou que o Padre que Deus tem me tinha dito a última vez que me falou (quase espontaneamente): «Não queime os papéis. Guarde-os para os ir continuando em saindo do torno.» Enfim, por esta e pela obediência do Prelado fiquei ligada para finalizar este livro, como faço até ver o que Deus determina por boca de quem governe minha alma, que não sei ainda quem será nem eu me sei resolver só em matéria tão importante nem tão pouco me acabei de determinar a pegar nesta pena senão passados alguns meses e a causa desta demora foi doença e repugnância por me não sentir com coração para relatar estas coisas sem grande mágoa e os dois anos que me faltavam eram os mais trabalhosos e, por isso, averiguo o possível porque neles pouco fiz memória de nada mais de que, por si mesmo, se encomendou a ela, porem ainda assim sei que não omito coisa que faça ao caso pela experiência que tenho de que, quando escrevo, tudo vem à pena sem diligência minha, no que tenho notado algum mistério que, em parte, alivia o meu temor, pois sempre peço a Deus que me tire da memória o que não quiser que se escreva. Sua divina Majestade seja servido de aceitar a mortificação com que finalizo este livro, ignorando que fim terá, pois, ao presente, não tenho tenção de que ninguém o veja senão quem for guia de minha alma e como não sei o que Deus quer, não me sei determinar mais que a fiar sempre mais e mais da sua providência amorosa da qual vejo em mim efeitos prodigiosos nesta mesma falta de arrimo em que me tem pois, sendo eu naturalmente tão tímida e irresoluta (como mostro em toda esta relação) vejo-me
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BIBLIOGRAFIA S U M Á R I A
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Edição de 1740: Triunfo do Rosário Repartido em Cinco Autos / do mesmo muito devotos, e divertidos, pelas singulares ideas, com que os com paz / a Muito Reverenda Madre / Maria do Ceo, Religiosa, e duas vezes abbadessa do Religiosíssimo Mosteiro da Esperança de Lisboa da Província de Portugal, / Dado a estampa pelo costumado zelo, / com que já mandou imprimir os ou/tros tomos o /P. Francisco da Costa,/ do habito de S. Pedro; e à sua custa. /Lisboa Occidental Na Off. de Miguel Menescal da Costa, Impressor do Santo Oficio. Anno MDCCXL.Com todas as licenças.
TEXTOS LITERÁRIOS Sóror Maria do Céu Enganos do Bosque, Dezenganos do Rio. Em que a Alma entra perdida, e sahe dezenganada. Com outras muitas obras varias, e admiráveis, todas por sua verdadeira Autora A M. R. Soror Maria do Ceo, Religiosa, e duas vezes Abbadessa do Religiosíssimo Mosteiro da esperança de Lisboa Occidental da Província de Portugal. Dadas à estampa pelo zelo, e diligencia do P. Francisco da Costa, do habito de S. Pedro. Lisboa Occidental na Officina de Manoel Fernandes da Costa, Impressor do Santo Oficio, Anno de MDCCXXX VI. 1736. (I Parte); I e II Portes: 1741. (Leitura a partir de Microfilme.)
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1
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Sobre o seu texto existe um filme, de que são argumentistas João César Monteiro, Margarida Gil, Luiza Neto Jorge, de 1989, intitulado: “Relação fiel e verdadeira”.
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