Roberto Piva
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Roberto Piva
Roberto Lopes Piva (São Paulo, SP, 1937). Poeta, formado em sociologia e política, exprofessor, foi membro do Grupo Novíssimos. É estudioso da flora e da fauna brasileiras e iniciado no xamanismo. Participou, entre outras, das antologias Antologia dos novíssimos (Massao Ohno, 1961) e 26 poetas hoje (Editorial Labor, 1976). Publicou os seguintes livros de poesia: Paranóia (Massao Ohno, 1963); Piazzas (Massao Ohno, 1964); Abra os olhos & diga AH (Massao Ohno, 1975); Coxas (Feira de Poesia, 1979); 20 poemas com brócoli. (Massao Ohno;Roswitta Kempf, 1981); Quizumba (Global, 1983); Antologia poética (L&PM, 1985) e Ciclones (Nankin, 1997). Entre 2005 e 2007, a Editora Globo publicou dois volumes das suas obras reunidas. Piva escreveu também diversos artigos e manifestos em jornais e revistas. Seus poemas foram traduzidos para o inglês, o francês, o espanhol e o catalão. O extenso material crítico sobre sua obra inclui resenhas, artigos, capítulos de livros, dissertações de mestrado e depoimentos.
A história pessoal do poeta Roberto Piva começa e gira em torno da cidade de São Paulo. Ele cresceu e formou-se entre a capital e as antigas fazendas do pai, no interior do Estado de São Paulo. Seus primeiros poemas foram publicados em 1961, quando tinha 23 anos. Nessa mesma época, integrou a famosa Antologia dos Novíssimos, de Massao Ohno, na qual se lançaram vários poetas brasileiros iniciantes, que depois desenvolveram uma obra poética de importância. Piva formou-se em sociologia. Sobreviveu em grande parte como professor de estudos sociais e história. Em suas aulas aos adolescentes do segundo grau, costumava trabalhar as matérias a partir de poemas que os fazia ler e interpretar. Foi um professor de muito sucesso, com rara vocação como pedagogo. Nos anos de 1970, tornou-se produtor de shows de rock. Piva mora em São Paulo, cidade que lhe parece apocalíptica, exemplo do que não deve ser feito contra o meio ambiente, mas que forneceu todo o pano de fundo para sua obra poética. Tem medo de avião. Por isso, raramente se distanciou demais da capital, de onde foge sempre que pode, de ônibus ou carro, sobretudo para o litoral sul do estado de São Paulo, refugiando-se em casa de amigos na Ilha Comprida ou em pensões baratas de Iguape. É lá que realiza seus rituais xamânicos e entra em contato com seu animal xamânico, o gavião. A genealogia poética de Roberto Piva apresenta raízes e inclui influências muito raras na literatura brasileira, formando uma mistura-fina que é única por sua erudição, mas também por sua transgressão. Começa com Dante Alighieri. Ainda na década de 60, por três anos Piva aprofundou-se nos estudos da Divina Comédia, orientado por Eduardo Bizzarri, adido cultural do Consulado da Itália em São Paulo. Esse contato com Dante foi como seu imprinting poéticofilosófico: marcou para sempre sua visão de mundo, sua política e sua poesia. Ao conhecer os poetas metafísicos ingleses, sobretudo William Blake, Piva começou a aprofundar sua experiência mais direta com o sagrado e a vida interior. A entrada em cena de Hölderlin e dos poetas expressionistas alemães Gottfried Benn e Georg Trakl temperaram essa experiência com uma ponta de pessimismo, que deixou de ser circunstancial quando, ainda na década de 60, Roberto Piva teve contato com a obra de um filósofo praticamente desconhecido, no Brasil do período: Friedrich Nietzsche. À experiência juvenil de Piva agregou-se a contundência desse profeta pessimista e decifrador da alma moderna. Mas nem só de espírito, nem só de intelecto fez-se o aprendizado juvenil de Roberto Piva, que cedo descobriu Rimbaud e Lautréamont, recebendo a influência desses dois poetas visionários, que extrapolam os limites da expressão racional e das escolas literárias. A partir daí iniciou-se em sua vida o cultivo do rimbaudiano “desregramento de todos os sentidos” para se chegar à poesia. Das vanguardas do começo do século 20, Roberto Piva absorveu lições do surrealismo, na vertente francesa de André Breton, Antonin Artaud e René Crevel. É um dos três únicos poetas brasileiros a constar no famoso Dicionário Geral do Surrealismo, publicado na França. A partir de Artaud, Piva incorporou a idéia de que existe um compromisso absoluto entre poesia e vida.
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O dito artaudiano “para conhecer minha obra, leia-se minha vida” teve em Piva a contrapartida: “só acredito em poeta experimental que tem vida experimental”. Também é flagrante em sua poesia a influência dos futuristas italianos (com seu culto à fragmentação moderna), acrescida de algumas expressões musicais da contemporaneidade do pós-guerra, através da onipresente marca do jazz e da bossa nova, duas fidelíssimas paixões de Roberto Piva. Mas há mais duas fortes presenças contemporâneas em sua poética. Uma é a beat generation americana, da qual Piva não só absorveu a estilística fragmentada e a temática que aproxima o contemporâneo do arcaico, mas através da qual também sedimentou a orientação basicamente transgressiva dos costumes do seu tempo. Na década de 70, a transgressão foi reforçada pela descoberta do outsider Pier Paolo Pasolini, protótipo do intelectual-profeta que caminha nas frinchas do paradoxo. Dos poetas brasileiros, essa genealogia poética agregou as figuras de Murilo Mendes - com seu surrealismo intenso, expontâneo e sensorial, ao contrário dos franceses intelectualizados - e Jorge de Lima, sobretudo aquele barroco, visionário e atormentado de “Invenção de Orfeu”. Os elementos finais da construção poética de Roberto Piva evidenciam uma substancial ligação com o aspecto mágico. Suas constantes caminhadas xamânicas pela represa de Mairiporã e serra da Cantareira, ambas nos arredores de São Paulo, além de Jarinu, no interior do estado, selaram sua ligação sagrada com a natureza. Essa sacralidade é, para Piva, a única salvação possível ao mundo moderno, que colocou a destruição da natureza como parte do seu projeto consumista. No quadro da recuperação do sagrado e do mágico, enquanto forças da natureza, Piva passou a estudar e praticar o xamanismo. Para aprender o culto ao primitivo e às forças da natureza, foi buscar elementos não apenas em teóricos como Mircea Eliade, mas sobretudo nas culturas indígenas brasileiras e na prática do candomblé. Ele não só cultua seus orixás (Xangô, Yemanjá e Oxum) mas também toca tambor para invocar seu animal xamânico, o gavião. Paralelamente a essa trajetória em direção ao sagrado, Piva agregou dois elementos ligados à civilização grega. Um: a ingestão de drogas alucinógenas e bebidas libatórias, como formas de atualizar a tradição dionisíaca e a transgressão sagrada do paganismo. Dois: o culto a uma erótica homossexual, resgatando para a modernidade o amor grego, como um componente de transgressão do desejo.
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Piazza I Uma tarde é suficiente para ficar louco ou ir ao Museu ver Bosch uma tarde de inverno sobre um grave pátio onde garòfani milk-shake & Claude obcecado com anjos ou vastos motores que giram com uma graça seráfica tocar o banjo da Lembrança sem o Amor encontrado provado sonhado & longos viveiros municipais sem procurar compreender imaginar a medula sem olhos ou pássaros virgens aconteceu que eu revi a simples torre mortal do Sonho não com dedos reais & cilíndricos Du Barry Byron Marquesa de Santos Swift Jarry com barulho de sinos nas minhas noites de bárbaro os carros de fogo os trapézios de mercúrio suas mãos escrevendo & pescando ninfas escatológicas pequenos canhões do sangue & os grandes olhos abertos para algum milagre da Sorte
Jorge de Lima, panfletário do Caos Foi no dia 31 de dezembro de 1961 que te compreendi Jorge de Lima enquanto eu caminhava pelas praças agitadas pela melancolia presente na minha memória devorada pelo azul eu soube decifrar os teus jogos noturnos indisfarçável entre as flores uníssonos em tua cabeça de prata e plantas ampliadas como teus olhos crescem na paisagem Jorge de Lima e como tua boca palpita nos bulevares oxidados pela névoa uma constelação de cinza esboroa-se na contemplação inconsútil de tua túnica e um milhão de vagalumes trazendo estranhas tatuagens no ventre se despedaçam contra os ninhos da Eternidade é neste momento de fermento e agonia que te invoco grande alucinado querido e estranho professor do Caos sabendo que teu nome deve estar com um talismã nos lábios de todos os meninos
Os anjos de Sodoma Eu vi os anjos de Sodoma escalando um monte até o céu E suas asas destruídas pelo fogo abanavam o ar da tarde Eu vi os anjos de Sodoma semeando prodígios para a criação não perder o ritmo de harpas
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Eu vi os anjos de Sodoma lambendo as feridas dos que morreram sem alarde, dos suplicantes, dos suicidas e dos jovens mortos Eu vi os anjos de Sodoma crescendo com o fogo e de suas bocas saltavam medusas cegas Eu vi os anjos de Sodoma desgrenhados e violentos aniquilando os mercadores, roubando o sono das virgens, criando palavras turbulentas Eu vi os anjos de Sodoma inventando a loucura e o arrependimento de Deus
Paranóia em Astrakan Eu vi uma linda cidade cujo nome esqueci onde anjos surdos percorrem as madrugadas tingindo seus olhos com lágrimas invulneráveis onde crianças católicas oferecem limões para pequenos paquidermes que saem escondidos das tocas onde adolescentes maravilhosos fecham seus cérebros para os telhados estéreis e incendeiam internatos onde manifestos niilistas distribuindo pensamentos furiosos puxam a descarga sobre o mundo onde um anjo de fogo ilumina os cemitérios em festa e a noite caminha no seu hálito onde o sono de verão me tomou por louco e decapitei o Outono de sua última janela onde o nosso desprezo fez nascer uma lua inesperada no horizonte branco onde um espaço de mãos vermelhas ilumina aquela fotografia de peixe escurecendo a página onde borboletas de zinco devoram as góticas hemorróidas das beatas onde os mortos se fixam na noite e uivam por um punhado de fracas penas onde a cabeça é uma bola digerindo os aquários desordenados da imaginação A Piedade Eu urrava nos poliedros da Justiça meu momento abatido na extrema paliçada os professores falavam da vontade de dominar e da luta pela vida as senhoras católicas são piedosas os comunistas são piedosos os comerciantes são piedosos só eu não sou piedoso se eu fosse piedoso meu sexo seria dócil e só se ergueria aos sábados à noite eu seria um bom filho meus colegas me chamariam cu-de-ferro e me fariam perguntas por que navio bóia? Por que prego afunda? eu deixaria proliferar uma úlcera e admiraria as estátuas de fortes dentaduras iria a bailes onde eu não poderia levar meus amigos pederastas ou barbudos eu me universalizaria no senso comum e eles dirieam que tenho todas as virtudes eu não sou piedoso eu nunca poderei ser piedoso
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meus olhos retinem e tingem-se de verde Os arranha-céus de carniça decompões nos pavimentos Os adolescentes nas escolas bufam como cadelas asfixiadas arcanjos de enxofre bombardeiam o horizonte através do meus sonhos
Quatro poemas pivianos I As mãos invisíveis dedilham a canção sinistra vibrando as fibras nervosas da medula Os dentes mastigam o sem fim de peripaques nostálgicos enquanto o mistério corre pela rua em chamas. Aonde andará o poeta de pijama que escorrega e cai, enquanto distraído sonha um mundo de estrelas? Já não há céu, nem solo firme. Silencie-me! Silencie-me! Sigo as labaredas memoráveis dos dias de luto e melancolia. Quero a forma perfeita, o beijo, o cheiro do Apolo ruivo. Sei da impossibilidade das horas, da complementaridade ilusória. Olho o monte de esterco apodrecendo na vidraça entreaberta. Janelas, penhascos, arranhásseis e corpos voadores de pedra. Se a noite persegue minha vida, deposito monstros no aquário. Os peixes caminham no asfalto e as mulheres usam gravatas. Minha alma, meu desejo, minha imobilidade. Apenas eu! Danço a quimera dos solitários e o presságio dos carecas. Um poema, um segmento refratário. Não sei de mim. As idéias são espasmos, e as palavras, coisa inútil. Seria senil e insano se acreditasse no amanhã. Vivo esse segundo que se arrasta, devorando-me.
II O estrangeiro da legião de insetos arrancou o grito de cólera e loucura da boca arreganhada, não percebida, do paranóico que mora nos ciclones A bailarina, uma mulher pálida, engole o último pedaço de vidro arrebentado com a explosão atômica de meus sonhos avulsos transtornados. O erotismo atrapalhado do anão que não mais se agüenta neste intervalo de memórias e areias, noite e chamas. Diminuindo cada vez mais, bactéria. O uivo caminhando sobre a ponte imóvel. O castelo e o muro dedilhados no quadro azul. Sinto a introdução e o posfácio deste rio que golpeia as paredes com mãos nuas. O mínimo. O minúsculo. O quase nada. Dedilhai as últimas notas vagas
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que recordam a imagem deformada do psicótico que caminha sobre o fio dental.
III O corvo de pelúcia esfaqueado pelas costas traz os olhos esbugalhados mirando a parede alada. As estantes, as páginas comidas por traças, adormecem na noite de meus surtos compulsivos. Olhos imensos de um desenho de carvão negro mãos em garras batendo teclas ideais. O cheiro de perfume velho e asfixiante. A teia de aranha presa entre os ossos mortos. Lá fora, homens dirigem seus carros vagarosamente seguindo as pernas nuas das mulheres prostitutas. Enquanto corpos se misturam na madrugada convulsiva de salões apertados, iluminados por rosas ensangüentadas. Meus passos, meus ruídos, aquele rosto assimétrico. Triunfa a idéia do parto cesariano sem anestesia. A dançarina com suas vestes invisíveis caminha no jardim de lâminas e gafanhotos. Escreverei dez mil poemas ao poeta necropolitano sem esperanças de ter meus sonhos confundidos com o delírio e o êxtase do pai xamânico. Sou urbano, sou quase cético. Morfina e sonhos.
IV Dêem-me um anestésico. A vida dói e arde. Não sei controlar meus impulsos demoníacos. Não acredito em forças de outro mundo. Sou eu, meus versos e o perigo das frações. Arranco minhas víceras poéticas do ostracismo. Trezentos dias e cinqüenta noites marianas. O caracol de meus cabelos caídos no chão de espelhos. O sangue e os olhos transformados em areia cinza. A árvore sem galhos escondem os meninos saltimbancos. Foi-se o tempo em que se acreditava nas histórias ditas. Sempre começo pelo meio e jamais olho para os lados, enquanto rio e sufoco meu próprio rosto turvo. Minha maquiagem, os primeiros tombos das gaivotas. Atiro farpas e pragas para antigos e mórbidos desejos. A torre delirante de um neocórtex em latência, ou o pedúnculo, ou o miocárdio, ou o octocentésimo. Quatro poemas nos espaços angustiados do processo. Sou eu? Sou ateu? De que me valem as respostas?! As idéias me levam ao eterno estado de castidade entrelaçado neste puro estado de sonho e malogro.
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Atentado Profundamente o Emocional (Antinoo, ragazzo di marbro) garoto pornógrafo antes que a lua chegue esta feijoada será uma batalha Átila vence a grama do mundo ADIANUS CESAR Imperator caminhando na manhã romana com seus doze amantes eu gostaria que você lesse Jacob Boehme suas coxas se retesam & você chora um pouco venha, lamba minha mão & se prepare para um milhão de comas loucas loucas antes que a lua chegue morda meu coração na esquina & não me esqueça Do livro: "Abra os olhos & diga ah", Massao Ohno Editor, 1976, SP
o século XXI me dará razão (se tudo não explodir antes) Baudelaire sangrou na ponte negra do Sena. molécula procurando a brecha do universo & suas trezentas flores assim é a lucidez, o swing das Fleurs du Mal. completa tortura roendo a realidade & l’immense gouffre. todas as paixões / convulsões no espelho. Baudelaire & ses fatigues rumo à pálida estrela. O século XXI me dará razão, por abandonar na linguagem & na ação a civilização cristã oriental & ocidental com sua tecnologia de extermínio & ferro velho, seus computadores de controle, sua moral, seus poetas babosos, seu câncer que-ninguém-descobre-a-causa, seus foguetes nucleares caralhudos, sua explosão demográfica, seus legumes envenenados, seu sindicato policial do crime, seus ministros gangsters, seus gangsters ministros, seus partidos de esquerda-fascistas, suas mulheres navi-escola, suas fardas vitoriosas, seus cassetes eletrônicos, sua gripe espanhola, sua ordem unida, sua epidemia suicida, seus literatos sedentários, seus leões-de-chácara da cultura, seus pró-Cuba, seus anti-Cuba, seus capachos do PC, seus bidês da direita, seus cérebros de água-choca, suas mumunhas sempiternas, suas xícaras de chá, seus manuais de estéticas, sua aldeia global, seu rebanho-que-saca, suas gaiolas, seu jardinzinhos com vidro fumê, seus sonhos paralíticos de televisão, suas cocotas, seus rios cheio de sardinha, suas preces, suas panquecas recheadas com desgosto, suas últimas esperanças, suas tripas, seu luar de agosto, seus chatos, suas cidades embalsamadas, sua tristeza, seus cretinos sorridentes, sua lepra, sua jaula, sua estrictina, seus mares de lama, seus mananciais de desespero.
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* [...] "Fernando, vamos ler Kierkegaard e Nietzsche no Jardim Trianon pela manhã, enquanto as crianças brincam na gangorra ao lado. Vamos percorrer as vielas do centro aos domingos quando toda a gente decente dorme, e só adolescentes bêbados e putas encontram-se na noite. Tu, todas as crianças vivazes e sonolentas, Carícia obscena que o rapazito de olheiras fez ao companheiro de classe e o professor não vê; Tu, o Ampliado, o latitude-longitude, Portugal África Brasil Angola Lisboa São Paulo e o resto do mundo, Abraçado com Sá-Carneiro pela Rua do Ouro acima, de mãos dadas com Mário de Andrade no Largo do Arouche Tu, o rumor dos planaltos, tumulto do tráfego na hora do rush, repique dos sinos de São Bento, hora tristonha do entardecer visto do Viaduto do Chá, Digo em sussurro teus poemas no ouvido do Brasil, adolescente moreno empinando papagaios na América Vamos ver a luz da Aurora chispando nas janelas dos edifícios, escorrendo pelas águas do Amazonas, batendo em chapa na caatinga nordestina, debruçando no Corcovado Ouçamos a bossa nova deitados na palma da mão do Cristo e a batucada vinda diretamente do coração do morro Tu, a selvagem inocência nos beijos dos que se amam" [...] Trecho de ''Ode a Fernando Pessoa'' (1961)
Libelo Não mais trarei justificações Aos olhos do mundo. Serei incluído ” Pormenor Esboçado ” Na grande bruma. Não serei batizado, Não serei crismado, Não estarei doutorado, Não serei domesticado Pelos rebanhos Da terra. Morrerei inocente Sem nunca ter Descoberto O que há de bem e mal De falso ou certo No que vi. (in: Antologia dos Novíssimos, 1961)
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Eu vi os anjos de Sodoma escalando um monte até o céu E suas asas destruídas pelo fogo abanavam o ar da tarde Eu vi os anjos de Sodoma semeando prodígios para a criação não perder o ritmo de harpas Eu vi os anjos de Sodoma lambendo as feridas dos que morreram sem alarde, dos suplicantes, dos suicidas e dos jovens mortos Eu vi os anjos de Sodoma crescendo com o fogo e de suas bocas saltavam medusas cegas Eu vi os anjos de Sodoma desgrenhados e violentos aniquilando os mercadores, roubando o sono das virgens, criando palavras turbulentas Eu vi os anjos de Sodoma inventando a loucura e o arrependimento de Deus (in: Paranóia, 1963) XVI abandonar tudo. conhecer praias. amores novos. poesia em cascatas floridas com aranhas azuladas nas samambaias. todo trabalhador é escravo. toda autoridade é cômica. fazer da anarquia um método & modo de visa. estradas. bocas perfumadas. cervejas tomadas nos acampamentos. Sonhar Alto. in: 20 Poemas com Brócoli, 1981
XX vocês estão cegos graças ao temor olhares mortos sugando-me o sangue não serei vossa sobremesa nesta curta temporada no inferno eu quero que seus rostos cantem eu quero que seus corações explodam em línguas de fogo meu silêncio é um galope de búfalos meu amor cometa nômade de riso indomável façam seus orifícios cantarem o hino à estrela da manhã torres & cabanas onde foi flechado o arco-íris eu abandonei o passado a esperança a memória o vazio da década de 70 sou um navio lançado ao alto-mar das futuras combinações in: 20 Poemas com Brócoli, 1981
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Alma fecal Alma fecal contra a ditadura da ciência Rua dos longos punhais Garoto fascista belo como a grande noite esquimó Clube do fogo do inferno: Alquimistas Xamãs Beatniks Je vois l’arbre à la langue rouge (Michaux) Templo Procissão do falo sagrado Deuses contemplam nas trevas o sexo do anjo do Tobogã Felizes & famélicos garotos seminus dançam como bibelôs ferozes Pedras com suas bocas de seda Partindo para uma existência invisível Tudo que chamam de história é meu plano de fuga da civilização de vocês Represa de Mariporã. 9 (in Ciclines, 1997)
* [...] Duas garotas em rancheiras azuis adolescem na calçada fugidas da neurose territorial da pequena-burguesia paulistana. o peso da solidão me espreme para fora de mim. Recomponho-me na noite não dando chance ao mar interior que urra de tristeza. [...] trecho de "SAN PAULO'S IMPROVISATION" in Antologia dos Novíssimos, Massao Ohno (1960) .
Ritual dos 4 Ventos & dos 4 Gaviões para Marco Antônio de Ossain “Eu trago comigo os guardiões dos Circuitos celestes.” - Livro dos Mortos do Antigo Egito Ali onde o gavião do Norte resplandesce sua sombra Ali onde a aventura conserva os cascos do vudú da aurora Ali onde o arco-íris da linguagem está carregado de vinho subterrâneo Ali onde os orixás dançam na velocidade
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dos puros vegetais Revoada das pedras do rio Olhos no circuito da Ursa Maior na investida louca Olhos de metabolismo floral Almofadas de floresta Focinho silencioso da sussuarana com passos de sabotagem Carne rica de Exú nas couraças da noite Gavião-preto do oeste na tempestade sagrada Incendiando seu crânio no frenesi das açucenas Bate o tambor no ritmo dos sonhos espantosos no ritmo dos naufrágios no ritmo dos adolescentes à porta dos hospícios no ritmo do rebanho de atabaques Bate o tambor no ritmo das oferendas sepulcrais no ritmo da levitação alquímica no ritmo da paranóia de Júpiter Caciques orgiásticos do tambor Com meu Skate-gavião Tambor na virada do século ganimedes Iemanjá com seus cabelos de espuma.
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