Luis Filipe Marcão Nasceu em Reguengos de Monsaraz em 1956, publicou entre outros, Poemas sem Algemas - 1984 (Co-autor), Mísseis da Paz -1986, Do Silêncio ao Biombo das Palavras - 1993,Uma Gaivota que Debica a Madrugada - 2001, Até à Lua Nova - 2012 e No Remanso das Palavras Inquietas - 2015. Alguns dos seus poemas estão gravados em CD e interpretados pelo Grupo Coral de Monsaraz.
Viva o Novo Ano Janeiro 2018 Não sei com que palavras irei encetar 2018. Pensei em tantas. Cheguei aqui, a este cabeço onde se ergue Monsaraz e ao lado dos cantadores que já fazem parte deste sítio, bebi a paisagem. Avisto a ponte qual centopeia ligando as margens, o grande lago embalando a minha tranquilidade, mais ao longe as terras de Espanha, mais à esquerda, lá em baixo a praia fluvial e atrás as muralhas do castelo, a bandeira drapejando no alto da torre de menagem. Quantos olhares seguiram o mesmo percurso? É verdade que este local tem uma magia própria, genius locci, espécie de termas para o espírito de quem precisa de um pouco de inspiração ou retemperar as forças criativas. Daqui por alguns anos outros tomarão o nosso lugar à descoberta da originalidade. Com que palavras encetaremos 2018? As mesmas de sempre? Paz, saúde, Amor, fraternidade? Com que desejos vou embrulhar o novo ano? Mais justiça, mais igualdade, mais tolerância, mais dignidade e oportunidades? Que projectos e intenções trazemos escondidos na manga? As tais corridinhas de manhã para abater tecidos adiposos, o largar de vez o cigarro? O tal mealheiro contagotas para imprevistos, o curso que ficou em meio, os idiomas que nunca falámos? Os livros que continuam na estante sem ser lidos, as palavras sem-abrigo que vivem solitárias sem o aconchego de um poema? Recordo muitos dos votos proclamados em datas anteriores e, no ano novo ainda a gatinhar, sempre descobri alguma semelhança com os cadernos que utilizava nas aulas da primária. Nas primeiras páginas tudo muito certinho, letra aprumada, folha limpa de borrões, sem erros, numa tentativa de honesta mudança. Algumas folhas à frente, passado o efeito psicológico do início, voltava a caligrafia irregular, as cópias despachadas esquecidas da pontuação, o olhar reprovador da professora inclinado sobre as evidencias da cabulice e falta de zelo. Sempre fui um habitué do dicionário, aquele livro volumoso que contém todos os vocábulos. Lembro-me de gostar em particular do H talvez porque as palavras não eram
assim tantas e eu entendia que elas deveriam ter a mesma procura e importância que as outras irmãs do alfabeto. Para este ano de 2018 ainda a saber a champanhe vou escolher humanização harmonia e humildade como pilares e desígnios de novos hábitos que resgatem o homem e o transformem num hino de alegria.
O HÁLITO DO RIO Outubro, 2017
O hálito do rio é mais suave, o cheiro menos intenso, menos húmido, a sua voz menos marulhada e grossa que a do mar. As ondas quase não se notam e chegam sem pressa, a desfazer-se aos nossos pés como que a pedir aconchego. O sol prepara-se para se esconder, lá atrás da ossatura da serra de Portel e deixa no silêncio líquido do Alqueva, uma poalha incandescente, brilhante, a formar um caminho de luz. Consulta-se o relógio. A tarde avança, faz estender as sombras dos toldos de colmo, em fatias enormes que ocupam desprevenidas e sem autorização as toalhas estendidas da vizinhança. O nadador-salvador saiu, há pouco mais de dez minutos, deitando um último olhar à beira da água, onde algumas crianças chapinham numa algazarra e fogem de baleias e jacarés, figuras que inventaram, num prodigioso jogo de alucinações. Ao largo, um rebanho pasta pachorrento. O som dos chocalhos forma uma melopeia cadenciada que se propaga no ar e chega até nós, como o acompanhamento natural de um cante de muitos séculos. Corre uma aragem aromatizada de giestas, do restolho perfumado do fim do verão. No restaurante, o empregado acendeu umas velas que colocou sobre as mesas num convite a sugerir jantares românticos. Um barco inchado de gente chega à marina. Os passos ecoam ligeiros pelo passadiço de madeira. Lá em cima o castelo ilumina-se com uma luz amarela e num desmaio propositado o sol esconde-se para lá do cerro. A um canto da esplanada, alguém ficou como eu, de olhar parado a fixar a ilha em frente, remoendo pensamentos, desfiando saudades, o livro abandonado e aberto sobre a mesa. Vim despedir-me da praia. Do azul, deste areal acastanhado e desta mancha verde colocada logo atrás. Das bolas de Berlim e dos gelados de cone. Dos pinchos e tapas que nuestros hermanos trazem para a merenda, do sotaque de francês arranhado com que alguns emigrantes nos brindam. Algumas décadas atrás, tudo isto era privado, como se o rio pertencesse a alguém. Como se aquele senhor, dono de tantas terras, fosse também senhor das águas. Nem pescar se podia! Agora não calculam como aprecio esta liberdade de risos e traquinices à solta, das gargalhadas fáceis dos miúdos e dos seus mergulhos de chapão, no ventre aprisionado do rio. Se fosse possível, compraria uma onda gigante da Nazaré e bem dividida em muitas parcelas, viria despejá-la, na próxima época, aqui na praia fluvial de Monsaraz.
Setembro, 2015 É bom ficar assim entre quatro versos como num aprisco que rodeia as ovelhas, e submerso no poema espantar as palavras, enquanto um rafeiro ladra às rimas. Confesso-me pastor de sílabas a vigiar os silêncios e os lobos da noite. Mas hoje estou virado para um texto que faça as vezes de uma crónica, ou coisa que se pareça. Do alto da minha imaginação, não tão alta como a torre de menagem, avista-se o reino e é quase certo a julgar pelos cartazes que anunciam o espectáculo, que por esta hora, o circo já terá invadido a cidade. Não há bailarico nem feira que não tenha as ilustres visitas! Os mágicos e ilusionistas à frente, logo seguidos dos malabaristas, dos trapezistas, dos futuros ministeriáveis de sorriso aberto e gesto afirmativo em jeito de concordância e na cauda do cortejo os bobos. Um número com um animal feroz faria aumentar a assistência mas desta vez… pode não ser bem assim. Há quem prefira dois papagaios, agora um, depois outro, para repetir a mesma coisa: -Dá cá o pé! – Dá cá o pé! Ou o voto? Na hora do noticiário está garantido o tal directo para largar duas ou três larachas e o povo assiste já habituado, ao cíclico renascer do Sebastianismo e à alternada festa do poder, entre discursos balofos e anunciados debates. É a festa que todos pagamos! Sem qualquer pretensão literária deixo-vos com um diálogo Improvável entre dois pêpês. O leitor que escolha. Deixo algumas possibilidades: Pôncio Pilatos, Paulo Portas, Público Privado, Pedro Passos, Paio Pires, Papa Pilas, Pronto Pagamento…
- Sabes o que me parece? Muitos milhões! Apetecia-te gastar? Fosses de feira em feira ou fizesses uma perninha com os chineses que desde a EDP não nos largam a porta. Muitos milhões. Aliás demasiado para um investimento que não se vê. - Mais milhão menos milhão… e essa do não se vê, não é bem assim. Não se vê mas avista-se. Quando vem ao de cima, claro que se avista! - Olha eu é que não lhe meti a vista em cima. Já aqueles Alemães que engavetaram, talvez não digam o mesmo. - Ah sim…engavetaram alguém? Só tenho seguido aquele episódio do Zé, mas há gente capaz de tudo. A Ângela? Quem diria… engavetou mesmo? - O que te quero dizer é que com tantos milhões bem se podia comprar uma dúzia de barcarolas para vigiar a costa. Já imaginaste? Os contribuintes a banhos, deitados ao sol que nem lagartixas, eles a espalharem os cremes nas costas e de repente a acenarem ao investimento. Elas em gritinhos histéricos: Olha ali Pedro, olha lá ao longe… está a vêlo? E num aceno gracioso dando vivas. Isso sim tinha sido uma excelente ideia e como eu diria, um investimento à vista.
- Que engraçadinho! Toda a gente a acenar e a ver passar os navios… que vigiam a costa! Ora aí tens tu muito que fazer. Deixa a costa em paz e preocupa-te mas é com o Costa. - Estou absolutamente, confiante e seguro! - Seguro? Olha o outro também estava e zás, puxaram-lhe o tapete. És muito novato. O que é preciso é ter sentido de estado, ouviste? Às vezes até me fazes lembrar aquele coelho de orelhas retorcidas da Alice no país das maravilhas. Sentido de estado e jogo de antecipação. - Mas repara nos números, esses milhões davam para muita coisa. E tu o que fizeste? Compras-me aqueles supositórios sem graça, que passam o tempo debaixo de água e gastam uma pipa de massa cada vez que são revistos. Estou mesmo a ver quem esfrega as mãos de contente! - Lá vem ao de cima a tua falta de antecipação, e pelo contrário, o meu sentido de estado, a minha visão de futuro que me diz que o que fiz está certo e para que saibas, além de irrevogável sou como o outro. Também não tenho dúvidas. Isto, mais dia, menos dia, vai tudo ao fundo. Então não te parece uma compra acertada. Parece ou não? Um submarino para mim outro submarino para ti… e a vida sorri!
Março, 2015 Cá estou eu no ponto mais alto do castelo, cronista de trapézio, equilibrista de paisagens, ágil acrobata aos saltos pela história. Fixo o olhar no horizonte que se dissolve entre o castanho da terra e o infinito azulado do céu. Respiro o silêncio, o aroma das estevas, o sabor da terra neste poema de pedra que dá pelo nome de Monsaraz. Da torre de menagem, lugar sublime, altaneiro, avisto ao longe, lá para os lados do Outeiro, um menir que se ergue erecto a (emprenhar o infinito). No nascente, antigos baldios da machoa, surge Azovel e seus guerreiros Almorávidas montados em corcéis árabes prontos a tomar o burgo. Nos jardins passeia-se Alandra formosa e sedutora. Mais à frente e eis D. Nuno, ajoelhado em oração, no sítio onde se haveria de erguer alguns séculos depois o convento da Orada com seus Agostinhos descalços. Cerro os olhos, abro os olhos e à minha frente surge o juiz de fora, autoritário, indicando o monte da forca ao condenado por heresias. Se escutar com mais atenção quase consigo ouvir as vozes de mando dos antigos alcaides. D. Tomaz Gomes Martins, D. João de Aboim, D. Martins Botelho e outros cujos passos ressoam na mesma calçada romana, disposta em cutelo, onde agora passeamos. Fecho os olhos. Outro salto mágico. O Guadiana apertado com o garrote de Alqueva inchou, inchou espreguiçou-se e descobriu novas margens. Deste parapeito vislumbrase em toda a sua plenitude a imensidão de um mar tranquilo, e onde antes era terra e suor, palco de labores e lutas antigas com jornadas de sol a sol, perspectiva-se neste momento, outro tempo, com os antigos manageiros e feitores transformados em marujos e arrais e as velhas eiras onde se debulhava o trigo, em apetecíveis marinas onde encalham os sonhos do futuro. Pois é, tudo se transforma. A água engoliu de vez a fábrica das celuloses e o autocarro azul carregado de operários fabris com sonhos ao fim do mês, já não desce a encosta. A aldeia da Luz afundou-se e só as recordações teimam em vir ao de cima entristecendo quem lá viveu. Os eternos problemas do Alentejo ainda persistem. A desertificação, o abandono, as gritantes assimetrias sociais, o desemprego a atar as mãos de quem quer e merece trabalhar e muitas vezes é convidado ou obrigado a encher o taleigo de desespero para partir de mal andar rumo às Suíças ou às Américas. Para lá destas palavra, o sol ardente continuará a nascer e a esconder-se no poente das nossas vidas, sempre com o Alentejo escrito na cal, sepultado na alma, repartido nas açordas, festejado no cante que é só nosso e da humanidade.
Junho, 2015 Escolho o caminho de S. Pedro, o maior centro oleiro, para voltar a Monsaraz e às crónicas do Alto da Vila, mas sem nada previsto quedo-me pelo sopé onde estendido como preguiçoso lagarto ao sol, encontro o Telheiro e a minha velha escola que um benemérito da terra, de nome Caeiro, percebendo a importância do ensino, mandou construir em tempos idos. Edifício simples de arquitetura semelhante a muitos outros do estado novo. Pequeno átrio de entrada a dar acesso a uma única sala que reunia as quatro classes. Cá fora três arcos a sustentar um alpendre que servia de abrigo aos desacatos do tempo e um terreno murado que durante o recreio se transformava em torneios de pião, do berlinde, jogo do eixo ou do funcho. Todas as brincadeiras tinham um calendário preciso que era aceite sem contestação. Na sala de aula o mobiliário rudimentar precisava de reforma. A secretária de pinho da professora, com duas gavetas onde se escondia uma palmatória que nunca vimos, mas que a D. Conceição, bondosa e paciente assegurava existir. O quadro negro, três filas de carteiras de dois lugares onde se anichavam separadamente as raparigas e os rapazes. Ao lado da lareira que poucas vezes servia, um armário que continha alguns livros, o boião da tinta permanente que haveria de encher os pequenos tinteiros e um saco de leite em pó que em certas ocasiões era distribuído pela turma. Creio que no Natal e na Páscoa. Ainda hoje recordo aquela bola que se formava, pegava ao céu da boca e ia derretendo lentamente, deixando um sabor que forrava as paredes do estômago com sumarenta quietude. Na parede dois mapas, o do continente e o das colónias, terras de costumes bárbaros onde o Manuel que era o sapateiro da aldeia já quase mestre, morreu com um tiro na barriga. Gastos do uso, os ditos, meio desfiados mais pareciam pergaminhos, e a ladear o quadro de ardósia as figuras imponentes do regime: O almirante de fato igual ao homem dos gelados a que não faltava o boné branco e o professor Salazar, muito sisudo, de olho na turma, não fosse haver alguma sublevação! No meio, um Cristo crucificado e tornado escuro pelo óxido do tempo. Estaciono o carro à sombra do posto da GNR e bem guardado, fico ali com o silêncio a pesar-me nos ombros, o dia a queimar-me em palavras … as recordações a empapar-me a memória enquanto o sino de Monsaraz bate as duas da tarde. A minha escola! A minha mas também a do Zé António, do Evaristo, do Chico, do Inácio, da Paula, da Catarina, da Suzete, da Benvinda e muitos outros que ali aprenderam, trocaram saberes, partilharam momentos e fizeram adormecer a manhã soletrando num som monocórdico a cantilena morna da tabuada. Ali aprendemos de cor e salteado os rios e afluentes, as serras e os mares e de dedo indicador espetado sobre o mapa, viajámos por comboios imaginários. Um dia a escola fechou, como tantas outras por esse país fora.
Era fácil esgrimir argumentos falaciosos. Fazer outras contas que não as da aritmética simples que aprendemos. Outros jogos que não os do antigo pátio murado. Vieram senhores ilustres falar de progresso, de tecnologias, de rácios que ninguém percebia e o último miúdo vestido de bibe aos quadradinhos azuis, deixou rolar duas lágrimas, (como o tal menino do quadro das feiras que toda a gente pendurava na parede da sala), antes de entrar para o autocarro que o iria levar para outra escola mais distante para satisfazer os desejos economicistas dos senhores bem falantes que usam fato escuro e sorriso para todas as ocasiões.