Terror chegou pelo mar - tragédia de 27 de Fevereiro deixou a Afurada de luto

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O GAIENSE

Noticiário

27 DE FEVEREIRO DE 2016

TRAGÉDIA DE 27 DE FEVEREIRO DEIXOU A AFURADA DE LUTO

Terror chegou pelo mar ANTÓNIO CONDE

O ano de 1891 tinha acabado há pouco e não havia deixado saudades às gentes da Afurada, aquela “colmeia humana” localizada na margem esquerda da barra do Douro e constituída por cerca de 600 almas, a maior parte vivendo do mar. Em maio e junho a varíola havia ceifado a vida a perto de trinta crianças, algumas delas com poucos dias. Dizia-se que era por causa da falta de limpeza, da promiscuidade em que se vivia, com as cortes dos porcos – que eram o governo da casa – junto às habitações. Outros deitavam a culpa à fábrica dos briquetes, da Empresa do Pejão, ali junto ao cais Logan, com as chaminés baixas a deitar fumos tóxicos que os ventos espalhavam. Os homens bebiam o seu copo na taberna do Bernardo Soares de Almeida, para esquecer a miséria em que viviam, carregados de filhos. Às vezes bebiam de mais, exaltavam-se, e lá vinha discussão com umas navalhadas à mistura; outras vezes sobrava pancada para as mulheres, em casa. As obras da capela, junto ao areal, a nascente, andavam a bom ritmo. Duas comissões rivais patrocinaram bailes para recolha de donativos para as obras. A população reclamava melhores acessos a Sampaio, a Coimbrões ou ao Candal, ou dos cheiros pestilentos das fábricas dos briquetes ou do mexoalho.

A CATÁSTROFE ... A quietude do lugar para este “mar de gente”, já resignada às contrariedades de toda a espécie, foi quebrada a 27 de fevereiro, com a tempestade que se levantou traiçoeiramente no mar, num dia que se revelaria de verdadeira catástrofe para as gentes do mar, da Póvoa e da Afurada. A TRAGÉDIA AINDA HOJE É LEMBRADA Na Afurada de hoje, lá está, em nome de rua, eternizada a marca da tragédia que bateu à porta de quase todas as famílias do lugar e que recorda as 35 vítimas mortais deste maremoto. Da família Regalado pereceram todos os homens. Tudo aconteceu quando andavam pelo Mar da Cartola, entre Aveiro e Ovar, à pesca da pescada, juntamente com outras comunidades de pescadores da Póvoa e de Matosinhos. Tinham saído a 26, um dia bonançoso. Da Afurada haviam partido as lanchas ‘S. Pedro’, ‘Senhora da Hora’, ‘Senhora do Carmo’, ‘Senhora da Ajuda’, ‘Coração de Jesus’ e ‘Sr. da Vera Cruz’, com mais de 100 homens a bordo. Da Póvoa eram mais de 40 lanchas e cerca de um milhar de “bravos do mar”. De repente levantou-se a tempestade, no mar alto, e os ventos

35 mortos abalaram a vida dos habitantes da pacata vila

A Afurada em finais do século XIX era uma “colmeia humana” com 600 pessoas

empurraram os barcos para Norte sendo alguns afundados no mar, ou despedaçados contra as rochas costeiras junto às Caxinas e ao porto da Póvoa, naufragando quatro lanchas poveiras e três da Afurada. Ao todo 105 homens pereceram no mar – 70 da Póvoa e 35 da Afurada. Os que conseguiram escapar à fúria das ondas revoltas foram fustigados até às costas da Galiza onde encontraram porto seguro. Voltaram depois de comboio à sua terra natal, acabando, uns poucos, por falecer, alguns dias depois.

Em jeito de homenagem, o Centro Interpretativo da Afurada, recebe a partir de hoje e até ao dia 14 de maio a exposição ‘Raízes da Afurada’

...MARCAS DE SOLIDARIEDADE “As primeiras notícias que nos chegaram foram aterradoras. Dizia-se que tudo estava perdido. A confusão era então enorme, uma gritaria impossível de imaginar-se. Felizmente não eram verdadeiras, pois que se dizia que todos tinham morrido” – assim dava notícia o jornal ‘O Grilo de Gaia’, a 6 de março; ao mesmo tempo referia que a Afurada “parece um ermo de vida” e que, depois dos primeiros dias, “já não se chora, porque a fonte das lágrimas acha-se esgotada.” Depressa se levantou um amplo movimento de solidariedade para acorrer às dezenas de viúvas e à centena de órfãos da Afurada. Organizaram-se bandos precatórios, a nível local e nacional que recolheram fundos para assistir as famílias enlutadas. Na Póvoa, Bento Martins, um poeta local, publicou um

poemeto intitulado ‘A Tragédia do Norte’, dedicado à Rainha, e cuja receita da venda reverteu para a ajuda solidária. Entretanto alguns corpos (dos poucos que apareceram) deram à costa, na Praia de Mira (Arcozelo), na Póvoa e em Vila do Conde. Entretanto dois dos feridos, chegados de Espanha à Afurada, acabaram por falecer. Em Gaia encetou-se um movimento que culminou numa subscrição pública, promovida pelo jornal ‘O Comércio do Porto’, que esteve na fundação da Creche da Afurada, instituída em 14 de julho de 1893, em instalações provisórias. A 1 de janeiro de 1895 foi inaugurada a Creche, no Monte das Chãs, com cerimónia pública a que compareceram as principais autoridades e, entre outros, os beneméritos Oliveira Mendes e Andresen. Na capela local, ainda em obras, houve uma sessão solene. Na creche, entre outros dísticos que apelavam à caridade cristã, um deles lançava a súplica “Lembrai-vos deste lugar de pescadores”. A gestão da creche ficou a cargo da Associação de Creches de Santa Marinha e Afurada. Para o sucesso desta iniciativa solidária, que amenizou o sofrimento das famílias dos náufragos da Afurada, foi determinante o contributo e o empenho de figuras gradas do Porto e Gaia. Na passagem do 124º aniversário desta tragédia aqui fica registado o testemunho do triste acontecimento e a homenagem às gentes do mar e da Afurada.


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