As obras dos artistas da “Escola de Gaia” no Palácio da Justiça do Porto
António Adérito Alves Conde
2013
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As obras dos artistas da “Escola de Gaia” no Palácio da Justiça do Porto 1. O Palácio da Justiça O Palácio da Justiça do Porto, situado no Campo dos Mártires da Pátria, foi inaugurado em 29 de Outubro de 1961, pelo então Presidente da República, almirante Américo Rodrigues Tomás, o qual se fazia acompanhar pelos ministros da Justiça e das Obras Públicas. Foi construído no sítio do antigo Mercado do Peixe e do Hospício de Santo António da Cordoaria que serviu de Roda dos Expostos.
Imagem1: Mercado do Peixe e Hospício de Santo António do Vale da Piedade
Trata-se de um projecto do arquitecto Raul Rodrigues Lima, tendo como colaboradores os engenheiros Pedreira de Almeida, Ciro de Oliveira Pinto e Magalhães Cruz Azevedo. O projecto usa uma linguagem anti-modernista e historicista. O edifício é uma obra típica do Estado Novo pretendendo transmitir a ideia do poder do Estado e da força da Justiça; assenta num modelo basilical da arquitectura paleocristã, convocando a ideia de um “Templo Judicial”. É um edifício de sete pisos, desenvolvido em três áreas, a saber: O Tribunal da Relação, os Tribunais Cíveis e a zona dos “passos perdidos”. A nível dos materiais ressalta o granito aplicado no revestimento das fachadas, das paredes interiores e das colunas, e mármore e marmorite nos pavimentos, corrimões e balaústres.
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De acordo com a memória descritiva do projeto do arquiteto Rodrigues Lima (citada em Abreu, 2008: 67) “a arquitetura na parte que lhe tem sido atribuída para representar esteticamente esse Poder Judicial, tem sempre procurado fazê-lo através de um ambiente solene e grandioso com a pretensão lógica de querer traduzir dessa forma a glorificação da Justiça Divina sobre a Terra. (...) Acusei nitidamente no exterior a principal sala de audiências do edifício procurando rodeála do mesmo ambiente das Basílicas Romanas. Procurei ser nacionalista pelo emprego e uso de materiais portugueses, evitando sobrepor a função à estética e o revolucionário à disciplina.” No grandioso conjunto arquitectónico e artístico ressalta, como é referido, uma ideia de sacralização da justiça.
Imagem 2: Palácio visto do Jardim das Virtudes (foto de António Conde, 2015)
A zona envolvente ao Palácio da Justiça, à volta do vulgarmente designado Jardim da Cordoaria, possui uma preciosa colecção de esculturas ao ar livre onde se incluem obras dos gaienses Teixeira Lopes e António Fernandes de Sá. Existem também majestosos edifícios como o Hospital de Santo António, a Igreja e Torre dos Clérigos, a Igreja de São José das Taipas, a Universidade do Porto, as Igrejas do Carmo e das Carmelitas, a Cadeia da Relação, etc. 2.Aspectos artísticos do Palácio da Justiça O palácio é todo ele um museu de obras de arte, a nível do exterior e do interior, possuindo 50 peças ou conjuntos artísticos, repartidos entre frescos, tapeçarias e esculturas, com temáticas que versam assuntos históricos, bíblicos e lendários. São obras da autoria de mais de duas dezenas de artistas onde se destacam Martins Barata, Euclides Vaz, Leopoldo de Almeida, Fernando Fernandes, Barata Feyo, Eduardo Tavares, Augusto Gomes, Júlio Resende, Arlindo Rocha,
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Severo Portela; Martins Costa, Dórdio Gomes, Gustavo Bastos, entre outros, salientando-se, nestes, os artistas gaienses de que nos ocuparemos neste pequeno estudo. 2.1. A arte no exterior No exterior a figura de destaque é a escultura da Justiça, de Leopoldo de Almeida. Representa a deusa grega Témis, ou Justiça, de olhos abertos e, portanto, sem a habitual venda nos olhos (habitual na concepção de inspiração grega), destacando-se a espada e a balança, em posição de repouso, junto ao corpo. Por detrás da deusa podemos ver um baixo-relevo de Euclides Vaz, representando as origens da Justiça, através de temas bíblicos das quatro virtudes: Prudência, Justiça, Fortaleza e Temperança. Na parte superior destacam-se cenas bíblicas com Moisés, José e episódios do Livro de Job e Daniel.
Imagem 3: A Justiça, em bronze, de Leopoldo de Almeida (foto de António Conde, 2013)
As
esculturas
de
Barata
Feyo,
na
entrada
principal,
representam
simbolicamente as Fontes do Direito: a Doutrina, o Direito Natural, a Lei, o Costume e a Jurisprudência. 2.2.A arte no interior – os artistas gaienses Neste vasto conjunto artístico é de destacar a plêiade de artistas gaienses que deram o seu contributo para a valorização deste importante marco da Arte
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Judiciária.
Deste
acervo
faremos,
de
seguida,
um
relato
pormenorizado
relativamente às peças e aos seus autores. 2.2.1. José Sousa Caldas (Mafamude, 1894-1965) É da sua autoria a estátua em granito, colocada no exterior, nas traseiras do edifício, do jurisconsulto João das Regras, segurando na mão um pergaminho ou texto de lei. Segundo José Guilherme Abreu “a participação de Sousa Caldas é relegada para segundo plano, sendo-lhe encomendada uma estátua que quase não tem visibilidade pública, e que, de resto, ele esculpirá de forma pouco convincente, utilizando uma iconografia nunogonçalvista já cansada, senão mesmo esgotada” (Abreu, 2008:81).
Imagem 4: João das Regras – escultura de José Sousa Caldas
2.2.2.Henrique Moreira (Avintes, 1890-1979) São da sua autoria dois baixos-relevos, em pedra, intitulados “Pelourinho do Porto” e “Juízes ordinários” colocados, respectivamente, no antigo 6º Juízo Cível e antigo 7º Juízo Cível, ao nível do 2º piso. No primeiro caso representa um delinquente preso, com correntes nos pés, ao pelourinho ou picota, um grupo de populares curiosos e um oficial régio, ligado à justiça, que empunha a vara. No segundo caso representa três juízes, envergando a beca (trajo tradicional dos juízes) preparados para a leitura de acórdão. Cada um segura nas mãos um livro ou pergaminho.
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Imagem 5: Pelourinho do Porto – baixo-relevo, em pedra
De acordo com José Guilherme Abreu “Nesta obra de Henrique Moreira descobrem-se os traços de um realismo sui generis que, por um lado, se empenha na criação de quadros alusivos a temáticas sociais, mas que por outro, se dulcifica, banindo a expressão crítica, para em sua vez fazer ressoar sentimentos de piedade cristã, que lembram o neorrealismo italiano e, antes disso, a prosa de Raul Brandão”. (Abreu, 2008: 128-129).
Imagem 6: Juízes Ordinários – baixo-relevo em pedra (antigo 7º Juízo – 2º piso)
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2.2.3.António Coelho de Figueiredo (Vilar do Paraíso, 1916-1991) Coelho de Figueiredo está representado com cinco painéis nos “Passos Perdidos” do 3º pavimento. O mural a fresco representa a alegoria dos “Quatro Novíssimos do Homem”, isto é os últimos destinos do ser humano e é composto pelos seguintes painéis: “Morte”, “Juízo”, “Inferno”, “Paraíso”” e “Entrega do Decálogo no Sinai”. Estes painéis são a repercussão da origem teológica do Direito, a partir de um tema fulcral da escatologia cristã. Nos primeiros quatro é descrito o destino da alma depois da vida; no quinto, Moisés recebe, no Monte Sinai, os Dez Mandamentos, o código divino que consigna o princípio e o fim da filosofia do Direito. Segundo José Guilherme de Abreu os painéis “Pintados com expressividade e vigor, usando uma paleta de cores bem contrastadas, (…) situam-se esteticamente para lá do naturalismo, importando realçar o valor que o desenho assume na invenção da paisagem e na representação das figuras”. (Abreu, 2008: 131).
Imagem 7: Alegoria “Quatro Novíssimos do Homem” – de António Coelho de Figueiredo
Imagem 8: “Entrega do Decálogo no Sinai”
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2.2.4.Manuel Pereira da Silva (Avintes, 1920- 2003) Está representado por um baixo-relevo, em granito, intitulado “Exortação aos Cruzados por D. Pedro Pitões” e está situado no 4º piso, na sala de audiências do 3º Juízo Cível. A obra representa o bispo do Porto, de costas, junto à Porta da Vandoma, dirigindo-se à multidão de cruzados armados e aliciando-os a auxiliar na conquista de Lisboa aos Mouros. Segundo José Guilherme de Abreu trata-se de um trabalho “Esculpido sem profundidade [em que] o relevo parece inspirar-se na escultura românica, sobrepondo figuras inseridas em planos abstratos, à margem da perspetiva monocular”. (Abreu, 2008: 144).
Imagem 9: baixo-relevo “Exortação aos cruzados, por D. Pedro Pitões”, por Manuel Pereira da Silva
De acordo com Costa Gomes, apesar da simplicidade de linhas, neste baixorelevo “Há uma abundância de linhas geométricas, quer nas vestes episcopais, quer nas armaduras dos guerreiros”. O autor considera que este artista avintense, de todos os que estão representados, é o que utiliza uma concepção mais moderna. 2.2.5. Isolino Vaz (Madalena, 1922-1992) Isolino Vaz está representado com um painel a fresco, colocado na Sala de Conferências do 5º piso, e intitulado “Fundação do Tribunal do Comércio”. A obra
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representa o magistrado José Ferreira Borges lendo o seu discurso, no acto de inauguração do tribunal comercial de 2ª instância, em 1834. Segundo José de Guilherme Abreu “Trata-se de uma pintura que pretende recriar um quadro da sociedade liberal e burguesa do Porto de Oitocentos, as partir de uma figuração algo teatralizada, que apresenta os homens de negócio do burgo trajado de capas e casacas de tons escuros e fortes, contrastando poderosamente contra um fundo informe, cenograficamente emoldurado por reposteiros
e
cortinados, à maneira de um palco”. (Abreu, 2008: 147).
Imagem 10. Fundação do Tribunal do Comércio (1961) – painel a fresco, de Isolino Vaz (530 x 256cm)
2.2.6. Guilherme Camarinha (Valadares, 1912-1994) Camarinha está representado com um painel a fresco, colocado na Sala de Audiências da 1ª vara, ao nível do 6º piso e intitula-se “Preito de Lealdade de Egas Moniz”. A obra representa Egas Moniz a oferecer a vida da sua família ao rei de Leão e Castelo, D. Afonso VII, o qual está sentado no seu trono. Segundo José de Guilherme Abreu este é um dos mais belos frescos existentes no Palácio e está pintado com inequívoca modernidade; refere ainda que “o mural de Camarinha destaca-se pela profusão de motivos ornamentais geométricos em ziguezague presentes no chão, no reposteiro, nas armas, na casula do Bispo e na espada do Rei, conferindo assim uma grande unidade e coerência a um desenho que, por um lado, não deixa de refletir também a importância de que se revestiu a técnica da tapeçaria no trabalho do autor”. (ABREU, 2008:150-151).
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Imagem 11: Preito de lealdade de Egas Moniz – painel a fresco, de Guilherme Camarinha
2.2.7.Fundição Bernardino Inácio (Gulpilhares) Coube a esta empresa de fundição gaiense, fundada nos anos 30 do séc. XX, a execução da fundição, em bronze, da estátua da Deusa Témis, intitulada “A Justiça”, da autoria do escultor Leopoldo de Almeida. Trata-se de uma estátua colossal, com cerca de sete metros de altura, só suplantada pela estátua do Infante D. Henrique, no Padrão dos Descobrimentos, a qual, talhada em pedra, perfaz nove metros de altura. De acordo com José de Guilherme Abreu a obra segue o modelo da justiça greco-latina e “tem como atributos a espada e a balança, a primeira amparada pela mão direita e colocada na vertical à frente do corpo, representando a componente activa da justiça – a punição – e a segunda desaperrada, na mão esquerda, cujo braço cai ao longo do corpo, representando a componente passiva da justiça – o julgamento”. (ABREU, 2008:71).
Imagem 12: Assinatura da Fundição Bernardino Inácio (foto de António Conde)
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*** Pretendemos aqui dar a conhecer e evocar o valioso contributo dado pelos artistas gaienses e pela chamada “Escola de Gaia” para o engrandecimento das Belas-Artes, valorizando o facto, provavelmente único, de um monumento, como é o caso deste Palácio da Justiça, que conseguiu reunir no seu acervo artístico um naipe tão diversificado de artistas do nosso concelho.
Bibliografia: . ABREU; José Guilherme (2008) – As artes da Relação, in O Tribunal da Relação do Porto. O Palácio da Justiça do Porto, Porto, Edição Tribunal da Relação do Porto.
. G0MES, Joaquim da Costa (2000) - Três Escultores de Valia: António Fernandes de Sá, Henrique Moreira e Manuel Pereira da Silva, Avintes, Confraria da Broa de Avintes. . LEÃO, Manuel (2005) – A Arte em Vila Nova de Gaia, Vila Nova de Gaia, Fundação Manuel Leão. Webgrafia: http://www.monumentos.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=15546
http://restosdecoleccao.blogspot.pt/2011/06/palacio-da-justica-do-porto.html http://www.trp.pt/index.php
*Edição revista e acrescentada do trabalho publicado no blogue “Memória Gaienses”, em 2013.
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