Antonio Fais
A Cola e outros contos para ler na escola
Antonio Fais nasceu em Jaú-SP. Mudou-se para São Carlos, onde mora até hoje, quando ingressou no curso de Ciências da Computação na Universidade Federal de São Carlos. Colaborador de vários jornais e revistas com contos e crônicas, desenvolve vários projetos literários e culturais em escolas públicas, particulares e universidades. Ministra o curso “A Arte de Escrever” para universitários que têm que escrever teses, dissertações e trabalhos de conclusão de curso; e “Literatura na Formação Básica” para professores de todas as áreas que veem a literatura com base na formação humana e acadêmica.
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A Cola e outros contos para ler na escola
Antonio Fais 3
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Antonio Fais A Cola e outros contos para ler na escola. São Carlos :AF Editores. 2012. 1. Literatura Brasileira. 2. Ciências humanas. 3. Autor. I. Título. CDD - 869
AF Editores Telefone: (16) 9782-6955 antoniofais@gmail.com São Carlos - SP 2012 4
Índice O Problema do Rei .............................................. 7 A Cola ................................................................ 11 Piruá .................................................................. 15 Pau-Brazil .......................................................... 17 O Juízo de Papai Noel ...................................... 19 Heróis ................................................................ 23 A Bola ................................................................ 27
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O Problema do Rei Era uma vez, há muito e muito tempo, um reino onde todos eram felizes. É, devia ser a muito tempo mesmo, mas deixa pra lá. Felizes? Bem, não era bem assim. Eles viviam em paz, sem disputas, sem guerras. Pra falar a verdade, era um reino muito chato, pois, sem guerras, não havia muito que fazer. Vale lembrar que, como essa é uma história antiga, não existia TV, onde se vê as querelas dos outros, videogame, computador, e nem poderia, pois não havia sequer energia elétrica. Enfim, para quebrar a monotonia o Rei criou um concurso: quem inventasse a melhor maneira dele se distrair, receberia até metade de sua fortuna! É, parece que valia a pena pôr a cabeça para pensar, pois diziam que ele era muito rico. Mas de pouco lhe valia esse dinheiro ou mesmo o prêmio, pois só apareciam palhaços, jogos bobos e um montão de coisas chatas. Um dia, porém, apareceu um jovem com um jogo com pedras pretas e brancas, com cavalos, torres, reis, bispos, rainhas e peões em um tabuleiro xadrez. Parecia interessante, mas o nome era meio esquisito e longo: Campo Hermético de Batalhas Pacíficas! Tentaram outros, como Preto x Branco, mas foi recusado, pois não parecia politicamente correto; Gladiadores ou Batalha Mortal, mas fazia apologia à violência. Bem, como 7
sempre, o nome que pegou foi o da vontade do povo: xadrez. Houve, de início, alguns protestos, em especial do clero, que em tudo sempre viu sacanagem, pois acharam meio esquisito o cavalo comer bispo, bispo comer rainha. Mas, depois de muita explicação, foi permitido, apenas o Rei conseguiu que ele não pudesse ser comido - substituíram por um xeque-mate. Bem, nem o rei, nem os súditos daquele reino eram muito inteligentes, o que garantiu um bom tempo de comida e estadia grátis para o jovem inventor. Até que enfim aprenderam a jogar. Não foi fácil, mas aprenderam. O rei, fascinado pelo jogo e contente com suas grandes vitórias conquistadas, é bem verdade que algumas facilitadas pelo mestre e os súditos, porque, saibam, rei é rei, e sempre será rei, finalmente resolveu dar a recompensa ao jovem inventor. Apesar de rei ser rei e sempre manter sua palavra, ao menos nos contos, fazia isso com dor no coração, pois não queria se apartar de sua fortuna. Dirigindo-se ao jovem em audiência pública: Achei interessante tua invenção. Creio que tu mereças uma recompensa. – Meio que desdenhando do feito do rapaz, para diminuir seu prêmio. Que bom que Vossa Majestade tenha gostado. Soube que havia prometido até metade de sua fortuna real por algo que o distraísse – disse o jovem ardiloso, ciente do pesar do monarca. 8
Não é bem assim! Não é bem assim, meu jovem. Teria de ser algo realmente inusitado.... Mas, adianto Majestade, não quero metade de vossa fortuna real – Interrompeu ao Rei o rapaz. Vejo que tens senso de justiça, meu jovem. Quanto queres então? Venho, Vossa Majestade, de um lugar pobre, onde há fome, muita fome. Quero, portanto, o meu pagamento em grãos de trigo. Grãos de trigo? Recomendo-te que recebas em ouro e aí comprarás todo o trigo de que necessitam. Com todo respeito, insisto Majestade, quero apenas trigo. Se é assim que queres, assim será, jovem tolo. Quantas toneladas de trigo tu hás de querer? Quero que Vossa Majestade ponha um grão de trigo na primeira casa do tabuleiro, dobre e ponha dois grãos na segunda casa e, assim por diante, dobrando sempre, quatro na terceira, oito na quarta, até as sessenta e quatro casas do tabuleiro. Assim será meu jovem. Eu, o Rei, ordeno que se cumpra e amanhã ser-te-á entregue tua recompensa. O Rei nessa noite dormiu aliviado por ter feito um grande negócio e não ter perdido metade de sua fortuna, mas, também com uma certa angústia da injustiça, pensou até em dar uma recompensa extra ao jovem rapaz.
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No dia seguinte, foi acordado logo cedo por seus serviçais que, desesperados, não sabiam o que fazer: a noite toda trabalhando, pouco tinham passado do meio do tabuleiro, mas não havia mais onde estocar trigo e, cada nova casa, o negócio dobrava. Chamem meus matemáticos! - Ordenou o rei. Já o fizemos, Majestade. E eles disseram que mesmo que plantássemos trigo por toda terra vista e ainda por ser descoberta, não haveria grãos suficientes para pagar o jovem rapaz! Pelo que vocês viram o Rei entrou em uma fria. Só de curiosidade, supondo que três grãos de trigo pesem um grama, com a produção mundial de trigo de 2004, ou seja, 574 milhões de toneladas, calcule quantos anos seriam necessários para pagar a dívida do Rei. Faça as contas e não se assuste. Ah! Uma tonelada de trigo, no atacado, custa cerca de R$ 500! Como será que o Rei resolveu este problema?
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A Cola (ou Como Se Tornar Um Bom Aluno) De modo desastroso, chegava ao fim aquele que tinha sido, até então, o pior ano de minha vida: a quinta série. Nos anos anteriores, eu sempre estava entre os melhores alunos da classe, os professores me elogiavam, mas agora não, nada me entrava na cabeça, havia emburrecido de vez e era o fim, eu ia repetir o ano e não tinha a menor idéia de como explicar isso à minha mãe. As provas iam começar no dia seguinte. A primeira era do seu Argemiro – Português. E eu precisava tirar dez. Dez em Português. Sabe o que é isso? Em sua última aula antes da prova, ele pergunta: Vocês têm alguma dúvida? E eu, que nunca abrira a boca em sala, de modo meio agressivo, falei: Todas! Como assim? – Insiste na pergunta, com um ar meio cínico, que me encorajava a enfrentá-lo. Eu não sei nada. Acho que não vou nem fazer mais as provas. Vou começar tudo de novo no ano que vem.
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Ele, rindo, como soubesse o que eu estava passando, disse: Eu também já tive essas dificuldades para aprender e tirar nota nas provas. E como o senhor fazia? Simples: eu colava! – Falando alto, de modo a acordar até o Washington que sempre dormia em sua aula. Nesse momento, só o que se ouvia na classe era um burburinho geral. Levou alguns minutos até que ele pudesse continuar: E é isso que vou fazer com vocês: podem colar em minha prova. Ainda entre o barulho que não parava, perguntei: Como assim? Vocês vão poder fazer colas. Mas têm umas regras: cortem um papel de 15 por 10 centímetros; a primeira coisa a pôr, é o seu nome completo; só poder ser preenchido à mão; escrevam nele o que vocês quiserem; e, finalmente, ele só poderá ser consultado duas vezes durante a prova: quem quiser usá-lo, deve me avisar antes de fazer a consulta. Combinado? Combinado! – Concordamos todos, ou ao menos a maioria, já que parecia um bom negócio para quem simplesmente ia repetir o ano.
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Eu me lembro bem, até hoje, da confecção de minha cola e da dificuldade em convencer minha mãe que o professor tinha autorizado. Primeiro escrevi meu nome, bem pequeno, para sobrar espaço e espremer lá toda a matéria. Em seguida fui pondo as regras de acentuação: “proparoxítonas todas; oxítonas em AEO, paroxítonas PS: UM XURI NÃO dá LÃ, hiatos... Diferenciais: pólo, pára, pôr, pêra, pêlo...” e assim por diante. De tão pequena a letra, sobrou espaço no papel. No dia da prova, fiquei pensando qual seria a melhor hora de pedir para colar, afinal só poderia fazê-lo duas vezes. Não foi necessário. Eu havia decorado tudo. Tirei dez! Todo mundo foi bem, menos os que não haviam feito a cola. Sugerimos ao professor de História que nos deixasse fazer assim também, mas ele, além de não permitir, contou ao Diretor sobre péssimo exemplo do professor Argemiro, que, se bem me lembro, foi advertido e não mais integrou o quadro de professores no ano seguinte (Vale aqui um parêntese: no auge do governo militar não sabíamos como protestar contra tamanha injustiça. Essa lição, infelizmente, só me veio bem mais tarde). Voltando aos fatos: Embora não pudesse, fiz uma cola, no mesmo tamanho e tudo, para a prova de História: “Atenas: oligarquia 621ac código Drácon. Fortuna 13
concentrada cidadãos metecos escravos. Sólon 594ac classes Bulé Eclésia. Pisístrato tirania. Clístenes Péricles demos ostracismo...” e um novo dez. E para as provas de Matemática... E Ciências... E Francês... Relia a cola antes de começar a prova e novamente dez. Na prova de geografia precisei fazer uma consulta à cola durante a prova e, por incrível que pareça, foi a única que não tirei dez: tinha pulado uma página do livro que faltou na cola. Desse ano em diante, só passei colando.
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Piruá Sei de gente que não gosta de comer feijão, tomate ou carne. Até batata! Como pode alguém não gostar de batata?! No entanto, nunca ouvi falar de alguém que não gostasse de pipoca. Pipoca seria uma das coisas mais perfeitas do mundo, não fosse aquela pelinha que fica nos dentes. Ninguém dá nada por aqueles grãozinhos dos sabugos de milho que não se desenvolveram adequadamente. Quem diria que aqueles grãos têm tanta energia acumulada para, com um pouco de calor, virar pipoca - branca, bonita, gostosa! Comer pipoca é uma delicia! Mas não aquela do cinema, de microondas, com sabor de pizza (quando quero sabor de pizza, como pizza!), ou com catchup por cima. Falo daquela feita na panela, quentinha; bem simples e barata. É fácil fazer uma boa pipoca: basta uma panela, com tampa; milho; óleo bem quente e uma bacia reservada. Em alguns minutos... Como é gostoso ouvir aquele estourinho... Até ele diminuir, diminuir... Sal? Sal é posto depois, a gosto. Aí a gente come tudo! Só sobram uns piruás - que são mais, ou menos, dependendo do pipoqueiro.
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Como grãos de milho, tentando virar pipoca, são os adolescentes. Cheios de energia acumulada e disposição, prontos para explodir e se tornar algo belo. Meu espanto é com a quantidade de piruá que vemos pelo mundo, atendendo nas lojas, bares e telefones; projetando e construindo casas; julgando e defendendo pessoas; em seus consultórios, escritórios e salas aula. Por que será que não viraram aquela pipoca bonita e gostosa? Alguns vão dizer que o milho não era bom. Concordo...Em parte. Mas a grande responsabilidade é mesmo dos pipoqueiros: pais; professores; editores de jornal, televisão, Internet; chefes, presidentes etc. Ou seja, eu e você que está lendo, já que creio que nenhum adolescente tenha paciência para ler o que escrevo. Na maior parte das vezes não escolhemos a panela e a tampa certas; não usamos óleo suficiente, ou colocamos demais; não temos paciência para esperar a quentura, ou queremos que a pipoca fique pronta muito depressa; não reservamos um recipiente apropriado para o que esta por vir. Tem ainda os que querem sofisticar demais a pipoca, com temperos, molhos e gostos. Pipoca, apesar de simples, é uma arte – requer talento e paixão. Portanto, capriche! Todos gostamos muito de comer pipoca. E deixe que depois a gente coloca o sal, cada qual ao seu gosto.
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Pau-Brazil Lembro-me, de ouvir falar, dos Réis. Contos de Réis! Ainda acho bonito e engraçado quando escuto que algo custa cinco conto, conto mesmo, pois ninguém usava no plural. Conto de Réis. Ao longo de minha vida passei por desastrosos planos econômicos e várias trocas de moedas. Vivi o tempo do Cruzeiro; Cruzeiro Novo; Cruzeiro, de novo; Cruzado; Cruzado Novo; Cruzeiro, de novo; Cruzeiro Real; e Real, de novo - porque Réis era apenas o plural de Real. Estou convencido de que o que têm atrapalhado todos esses planos são estes nomes sem sentido que dão à nossa moeda. Algo tão importante não pode ser assim escolhido, ao acaso; tem que ter uma razão, um nome forte, com significado histórico e, ao mesmo tempo, simples e de fácil aceitação: Pau-Brasil é o nome ideal ou Pau-Brazil, para não haver problemas no exterior. A primeira grande vantagem é que já estamos acostumados e usamos esta moeda no dia-a-dia: um lanche, por exemplo, que custa cinco reais (R$ 5,00), custaria cinco Paus-Brazil (P$ 5,00) ou, popularmente falando, cinco Pau! Nas transações do dia-a-dia, percebam que perderia o sentido aquela enorme quantidade de zeros, pois tudo 17
custaria entre 1 e 999 pau. Uma calça custa cem Pau e um carro trinta Pau, ficando os zeros implícitos, sendo tudo muito mais simples, além de desestimular a inflação. O governo poderia apelar para o orgulho nacional e o povo iria corresponder. Quando os economistas viessem a público dizendo que deveríamos fazer sacrifícios para que o Pau suba, certamente toda população iria colaborar. Quando dissessem que teríamos que manter a alta do Pau em relação ao dólar, não haveria dúvidas que o Pau deveria sempre estar forte. Talvez apenas perca a coerência a expressão “tô duro” pra quando se está sem dinheiro, “tô mole” parece mais adequado! Mesmo os humoristas teriam o seu quinhão com alguns trocadilhos infames com expressões como “com quantos paus se faz uma canoa”, “pau pra toda obra”, “baixar o pau”; além dos inimagináveis apelidos que poderiam ser dados às notas, moedas, carteiras e porta-moedas! Quando pensava como deveriam se chamar os centavos, lembrei-me de um amigo de faculdade extremamente criativo para nomes e apelidos, o Sívio Yamada, e ele me inspirou: os centavos seriam chamados de Japa. Assim um cafezinho custaria um Pau e cinqüenta Japa. Bem, agora deixo pela imaginação de cada um as figuras que apareceriam nas notas e moedas.
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O Juízo de Papai Noel Aconteceu, como um dia acontece a todo mundo, de morrer Papai Noel. Julgou-se, de início, pelos seus atos aqui na Terra, que seria prontamente acolhido por Deus, pois, de certo, Satanás não havia de querer tal indivíduo perambulando pelo Inferno dando exemplos de bondade e consideração para com os outros. Assim sendo, senso comum, ele se dirigiu prontamente ao Céu, devendo ser apenas um ato formal Deus pedir para que Lúcifer fosse avisado da chegada de mais uma alma ao Paraíso. Este, ou algum assessor menor, deveria apenas carimbar “RECUSADO” no prontuário do defunto. Se bem ainda não sabem, mas um dia saberão, funciona mais ou menos assim: cada indivíduo, ou alma, se preferirem, dirige-se para onde julga ser merecedor. A outra parte, Deus ou o Diabo, é comunicada e, caso ache justo ser de seus domínios tal alma, faz reclamá-la. Vale ressaltar que a concorrência é acirrada. Caso não haja consenso e não havendo acordo na Junta de Conciliação, o indivíduo pode: (1) ir para o Purgatório, onde entra em uma longa fila de espera até que seu caso seja julgado e, com todos os recursos que têm direito as 19
partes, leva uma eternidade; (2) voltar à vida afim de que seja reavaliada sua situação. Neste caso pode voltar em (A) mesma situação que saiu; (B) situação pior – para se recuperar; (C) situação melhor – para ver como se comporta com o que aprendeu em vidas anteriores; não se tendo claro um consenso sobre qual das situações, entre 2B e 2C, é pior; (3) ir para o Limbo, sendo que este último pode ser de duas espécies: (A) em um lugar que não se sabe ao certo onde é, não podendo assim se fazer uma melhor avaliação da pena; e (B) na própria Terra, onde a alma, em corpo físico, em forma humana, perambula entre os demais, nunca apresentando progressos no trabalho e demais situações cotidianas. Dizem, inclusive, que mais da metade dos viventes (mais da metade!), se assim os podemos chamar, é composta por almas condenadas em 3B. Fato é que o Demo reclamou para si o Bom Velhinho e, quando chamado a dar seus motivos, falando direto com Deus, pois tal alma não poderia ser julgada por assessores de menor importância, perguntou-lhe o mais alto regente: Por que Vossa Senhoria acha que esta alma deve ir para o Inferno? – Pergunta Deus, convicto de sua vitória. Para ser breve, pois, embora habitemos a eternidade, o nosso tempo é curto, explico: o Bom Velhinho, Santa Claus, Papai Noel, Pai Natal, São Nicolau, como o chamam na Terra, o tempo todo foi um mau exemplo à 20
humanidade (falava isso apontando para o velhinho, presente, ali sentado que, espantado, sentindo-se culpado, nada entendia). O Natal foi inventado, lá pelo ano 300 após o nascimento de nosso tão adorado Jesus (não se sabe se aqui havia ironia ou era sincero o seu tom), pela instituição que mais usa seu nome em vão. Usurparam dos povos nórdicos a data que comemorava o fim da mais longa noite do ano e o início da vitória do dia sobre a noite, 25 de dezembro, e Papai Noel, com uma mentira (pois todos sabem que Ele nunca poderia ter nascido nesta data) e muitos presentes, ajudou a consolidar a festa de natal. Eu poderia ainda falar muito mais, de pecados maiores e menores, da sua ligação com as forças capitalistas, maus tratos às renas, exploração de Duendes, a tentativa de iludir crianças, do estimulo à corrupção de menores que trocam o bom comportamento puro por presentes etc. etc. e tal. Mas vou só me ater a esses graves pecados iniciais, pois não haveria inferno suficiente para tantos pecados – concluiu o Demo, arfando inflamado. Pensativo, Deus, que não suporta perder almas, pediu: Sei, sei! Realmente, olhando de seu ponto de vista o caso é grave. Entenda, porém, Vossa Senhoria, que estamos julgando uma instituição e sonhos, não uma simples alma igual a todas as outras. Neste sentido, apesar de não lhe tirar a razão, queria gentilmente pedir-lhe para que considerasse mandar, 21
provisoriamente, o Bom Velhinho, de volta à Terra, de tal sorte que ele possa reparar os seus erros. E como Vossa Senhoria acha que ele deveria voltar para expiar esses graves pecados? E, principalmente, onde? Pois não há de voltar em um lugar qualquer. – concluiu o Diabo com um ar de satisfação. Deus novamente se fez pensativo e, com um certo sorriso malicioso, de quem sabia minimizar derrotas, sem muitas escolhas, sugeriu: O lugar é fácil: o Brazil. Lá ele terá bastante trabalho e oportunidades de se recuperar. Quanto ao seu papel, vamos deixá-lo crescer, sem nossa interferência, para ver o que acontece. Eu topo! – falou o Demo, sabendo que a posse da alma seria agora apenas uma questão de tempo. Apertaram-se as mãos e foram cuidar das tantas outras almas que por lá chegam todos os dias.
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Heróis Aos doze anos, o que mais quer um garoto é se tornar um herói. No meu caso, em 71, não precisava ser um grande herói nacional ou qualquer coisa do tipo, até porque nessa época (do Brasil – Ame-o ou Deixe-o / Pra frente Brasil!) quem se atrevesse contestar o governo era subversivo. Bastava, portanto, ser um pequeno herói, do time da escola, por exemplo. O futebol nacional, depois da copa de 70, estava cheio de heróis e na escola o craque era o Nandinho, um baixinho cabeludo, que marcava um monte de gols por partida. Todas as meninas gritavam o nome dele. Eu também queria jogar futebol, mas o professor de Educação Física, sei lá por que, achou que eu devia jogar basquete. Ali eu não teria muita chance de ser aclamado pelas meninas. Éramos dez jogadores, o seu David dizia que não havia reservas, todos eram titulares, mas, obviamente, havia os titulares que jogavam e os que ficavam no banco. Eu era titular do banco. Nós éramos do time do Instituto e faríamos a final dos Jogos Colegiais contra a Industrial. Tínhamos perdido deles na primeira fase de 22 a 12! E agora era a final. Aqueles meninos eram grandes, pouco provável que tivessem só doze anos, mas jogo é jogo e íamos jogar. Bem, eu, que era titular do banco, não tinha entrado em 23
nenhuma partida, ia torcer um pouco mais de perto que o resto do colégio. Também não éramos mais dez, pois o Zezinho e o Paulinho, que jogaram na primeira derrota nem apareceram para a final. O seu David fez seu habitual discurso antes do jogo para, ganhando ou perdendo, jogarmos limpo e para nos lembrarmos das jogadas ensaiadas. O problema era que os adversários também se lembravam das poucas jogadas que tínhamos. O primeiro tempo foi um massacre: 16 a 4 para eles. Restava-nos, portanto, o lema do Barão de Coubertin não gostava desse cara, queria mesmo ganhar! E como nessa idade não temos muitos limites e senso crítico, eu achava que ainda era possível! No segundo tempo, a partida melhorou muito para gente: sem muito mais a perder, jogamos bem melhor. Com dois jogadores com cinco faltas, o único que continuava no banco era eu. Faltava pouco mais de um minuto e estava 27 a 22 para eles, a partida estava decidida e o seu David resolveu me dar uma chance de jogar um pouco. Eu dei sorte, logo que entrei peguei uma bola no garrafão e arremessei e diminuí para três pontos a diferença. Já me senti aí um herói, pois havia feito meus primeiros pontos como jogador de basquete e ouvia todos gritarem meu nome. Para mim, nada mais precisava acontecer. Eles deram a saída e ficaram controlando a bola, até que perto do 30 segundos arremessaram e erraram, eu 24
recebi a bola e corri com toda a velocidade à frente, nunca tive tanto medo, era só eu e a cesta, não havia um adversário sequer para eu justificar o meu erro, fui quase chorando em direção a ela, arremessei, a bola bateu no aro e caiu fora; ainda consegui pegar o rebote e passei para o Paulão, que, bem alto, embaixo da cesta, fez mais dois pontos. Vinte segundos! 27 a 26! Ainda gritavam o meu nome, mas só um milagre poderia nos salvar. Eles tinham vinte segundos para bater bola, mas um jogador do time deles, para acabar logo o jogo e consagrar sua vitória, arremessou e errou. O seu David pediu tempo. Faltavam agora poucos segundos. O plano era o seguinte: o Paulão, um molengão, mas com mais de um e oitenta, ia pra perto do garrafão, a gente passava a bola pra ele e ele arremessava. Perfeito! Deram a saída e a bola veio à minha mão. Eu quase no meio da quadra e todos gritavam: “Passa pro Paulão. Pro Paulão”. O Paulão perto da cesta, a cesta, a bola em minha mão, a torcida, o Paulão, a bola, a cesta, ... Cinco, quatro, três, dois, um... Joguei a bola e ouvi o juiz apitar o final. Ela ia lentamente em direção à cesta, bateu no aro, subiu, bateu de novo e rodou, rodou... Parecia uma eternidade, não se ouvia um som, só a bola rodando, até que, chorando, ela entrou: 28 a 27! A gente gritava e pulava. Todos gritavam o meu nome! Todos gritavam o meu nome...
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Bem, como disse logo no começo, todos querem um dia ser herói. Não tenho plena certeza que foi assim que se deu, mas é assim que sempre vou me lembrar.
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A Bola Aos sete anos, Tonico ganhou do pai um par de chuteiras e uma bola de capotão. Afinal, já era hora do garoto gostar de futebol. Sem saber como começar, sentou-se no chão e se pôs a contar da vida de moleque do interior, de peões e bolas de gude, pipas e peladas, do timinho que “tinha até jogo de camisa” e do sonho de jogar em um time grande, falou da passagem pelo juvenil do XV de Piracicaba: ficara no banco de reservas num jogo contra o Santos de Pelé! Tonico não parecia entender a importância do jogo. Mudou de tática: foi ao gol e pediu para o menino chutar umas bolas, mas ele não tinha muita coordenação. Tentou ainda dar umas explicações de como posicionar o pé de apoio, da terminação do chute - não houve jeito. A surpresa foi quando, aos 10 anos, Tonico entrou em casa afobado procurando pela bola. O pai, feliz, saiu logo atrás e presenciou a cena do filho sendo aclamado ao entrar em campo. E, de longe, viu o fraco desempenho do filho com a bola nos pés, mas a sua determinação em não mais jogar no gol: “Se tiver que jogar no gol, vou embora... com minha bola”. Ele e a bola ficaram. A bola foi logo substituída por outra e outras em cada natal ou aniversário.
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No colégio, sem a sua bola, era diferente e Tonico ficou de fora do time da 5ª A. Mas ele queria jogar e jogou... pela 5ª E – isso depois de negociar com o professor e até o diretor da escola. Mas o que pareceria alegria, trouxe alguns problemas: a 5ª E bateu a 5ª A, sua classe, por 6 x 0, com dois gols seus. Quase apanhou na saída. A pendenga só foi resolvida quando convenceu uns amigos do colegial a “interferir”... em troca de uma bola novinha. O pai foi assistir a final. Torcia, gritava: Vai! Chuta! Volta! Isso! Não! Foi um desastre. Perderam feio. Entreolharam-se no final do jogo e nunca mais falaram de futebol. O pai, aqui ou ali, ouvia dizer que o menino jogava bem, mas nada dizia. A única vez que pensou novamente em interferir na vida do filho foi quando soube que Tonico, durante o cursinho, disputava o campeonato amador da cidade. Achava que o menino deveria estudar e não perder tempo com “aquela bobagem”. Mas, como se prometera, nada disse. Quando Tonico disse ao pai que haviam sido campeões, ouviu: E o vestibular? Quando é? A resposta veio em março: Pai, entrei em Agronomia na ESALQ de Piracicaba. USP! Parabéns. – disse, guardando a emoção. A grande surpresa veio meses depois, quando o pai recebe uma ligação de um velho amigo de futebol: 28
Tonhão, vem pra Pira hoje. O XV joga com o Santos e o Tonico vai jogar. Lembra? XV e Santos... Tinha que parar com aquilo e foi. Torcia quieto. Iria embora sem anunciar sua presença em campo. Foi um belo jogo: o XV ganhou e Tonico fez um dos gols. Não resistiu e desceu ao vestiário. Lá, olha pro Tonico sem saber o que dizer e ouve: Pai, fica com a camisa do XV. Quero estudar. Futebol, daqui pra frente, vai ser só pra diversão. E o pai, em um longo abraço, diz: Filho, o que você decidir tá bem decidido. Vou pôr junto àquelas chuteiras. Obrigado.
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