Poesia Reunida de Maria de Lourdes Hortas 50 Anos de Poesia
Organização de Juareiz Correya
Ebooks Panamerica / Panamerica Nordestal Editora Recife – 2016
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Copyright © Setembro, 2016 – Maria de Lourdes Mateus Hortas
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COLEÇÃO POESIA REUNIDA & POESIA COMPLETA LIVRO 1
Direção Editorial/Organização Juareiz Correya Arte/Editoração eletrônica/Capa João Guarani Ilustração/Pintura Maria de Lourdes Hortas Fotografias/Ilustração da capa e foto da autora Márcia Hortas Digitação Giovanna Guterres Revisão Juareiz Correya, Giovanna Guterres, José Terra Publicação em língua portuguesa e brasileira da PANAMERICA NORDESTAL EDITORA Rua Padre João Ribeiro, 33 – Boa Vista – Recife – PE. CEP: 50060-180 Telefones : (81) 98685.2194 / 98825.9941 Sites : http://www.panamerica.net.br http://www.panamericalivraria.com.br Email : contato@panamericalivraria.com.br
MARIA DE LOURDES HORTAS
(Foto de Mรกrcia Hortas)
POESIA REUNIDA DE MARIA DE LOURDES HORTAS 50 Anos (1965 – 2015)
MARIA DE LOURDES HORTAS: 50 ANOS DE POESIA LUSO-BRASILEIRA Juareiz Correya Nascida em Portugal (São Vicente da Beira / Beira Alta, no dia 4 de dezembro de 1940), em dezembro de 2015 a poetisa Maria de Lourdes Hortas comemorou, no Recife, de forma reservada, o seu 75º. aniversário.de nascimento. Vivendo no Brasil desde os 10 anos de idade, continua, na Vida e na Poesia, com a sua exemplar simplicidade e invejável humildade. Mulher, mãe, avó, amorosíssima com todos os que têm a sorte de estar ao seu lado, e humanamente solidária com aqueles que merecem o seu companheirismo e sua amizade, na arte da Vida e na vida da Arte. No ano de 1965, a poetisa lançou, com 25 anos de idade, o seu primeiro livro de poesia – Aromas da Infância -, publicado em Portugal pela Edições Panorama (S.N.I. – Palácio Foz – Lisboa). O livro havia conquistado o primeiro prêmio do Concurso de Manuscritos – Poesia 1963, do S.N.I. Em seus 50 anos de fecunda carreira literária dedicada, sobretudo, à Poesia, Maria de Lourdes Hortas produziu um conjunto uniforme, todo harmonizado pela sua voz de terras e águas portuguesas e brasileiras, construído por 8 livros originalíssimos e que, mesmo tematicamente diversos, parecem ter sido escritos em um só tempo ou mesmo de uma só vez. É a vida de uma poesia inteira, como se não existissem territórios, fronteiras, rios, mares, cidades, países e continentes tão distintos, como são as suas pátrias Portugal e Brasil. Este livro eletrônico – POESIA REUNIDA DE MARIA DE LOURDES HORTAS -,que sintetiza 50 anos (1965 – 2015) da sua poesia publicada, e que eu tive a sorte de organizar, reunindo e reeditando, na íntegra, todos os poemas e textos críticos dos seus 8 livros lançados e poemas de 5 antologias, me deu a alegria de encontrar e conhecer a criação poética de uma mulher que, em meio século de exemplar produção, tem elevado e irmanado a sua voz às grandes vozes femininas da Literatura Portuguesa e Brasileira. (Boa Vista / Recife, agosto de 2016)
NA ESCRITA DE MARIA DE LOURDES HORTAS O EXERCÍCIO DE SER Zuleide Duarte “Sou a minha linguagem / Nela venho e nela vem / Refletida esta paisagem / Que contenho e me contém.” (Maria de Lourdes Hortas)
Cultivar a poesia lírica é remontar às origens da linguagem e do sentimento naquilo que apela para nossa humanidade e resgata o sentimento pelas coisas simples, e talvez, o que nos salva do antisentir. O cantar a grandeza da vida menor, do cotidiano, do simples, do prosaico. A poesia de Maria de Lourdes Hortas, essencialmente lírica, vincula-se a uma tradição que vem de tão longe como a rosa-raiz do seu poema “Rosa Rosae”, do seu penúltimo livro Dança das Heras (1995): “Não haveria rosa / entre as rosas / não existisse a rosa mais antiga.” Como a rosa mais antiga do poema citado, Maria de Lourdes Hortas debutou na poesia com o livro Aromas da Infância, de 1963, quando recebeu o primeiro prêmio do Concurso de Manuscritos, realizado pelo Secretariado Nacional de Informações de Lisboa. Já nesse primeiro livro delineia-se a temática que permeia seu discurso poético: a aldeia na distante península ibérica e o Recife, pátria adotiva: o sonho da impossível ubiqüidade: estar aqui e na aldeia ao mesmo tempo. Sonho alimentado de duas vidas simultâneas, vividas pelo registro da realidade e do desejo. Entre as visões da aldeia e o colorido do Recife está o mar, símbolo ambivalente de corte e religação, de dor e esperança. Sendo a ruptura um traço da modernidade, seu efeito, em muitos aspectos bastante representativo, não eliminou os moldes e temas que são a herança de uma tradição que se confirma e conquista cada vez mais espaço. Com a fragmentação, a bizarrice, a ironia e a desarticulação aparentes da poesia contemporânea coexistem os temas líricoamorosos, barcarolas, odes, elegias, cantigas, acalantos. Nessa perspectiva, a poesia de Maria de Lourdes Hortas apresenta-se com a mescla da modernidade em poemas onde trabalha significantes essencialmente nominais, estruturas frásicas onde o estrato ótico completa a decodificação, entre outras técnicas ditas modernas. Paralelamente, sua lírica está marcada pela influência trovadoresca em que avultam a cantiga do amigo, lamento
feminino pela ausência amada, a vassalagem amorosa, em construções onde o paralelismo é o recurso técnico privilegiado, ao lado de anáforas e refrões. Nos poemas “Ai quem me dera uma tristura antiga” e “Ciranda”, por exemplo, o esquema de repetição de versos próprios das cantigas paralelísticas é utilizado: “Em todas as casas te procuro, / Casa onde / habitou a infância...” Textos onde chama pelo amado em tom plangente enriquecem a lira da poetisa: “Ó AMADO que partes sem ter vindo...” Ao lado de composições que definem a filiação da escritora à lírica trovadoresca encontramos composições onde a ruptura com essa tradição se efetiva: “DISPO a armadura / cobre / amarro o cavalo / prata.” Equilibrando-se entre as formas consagradas pela tradição e o gosto iconoclástico da modernidade, Maria de Lourdes Hortas vem cultivando, há três décadas, sua arte. Do primeiro livro para o segundo, catorze anos. Mas a poetisa não parou: Exerceu atividade jornalística como colaboradora do Diário de Pernambuco, seguiu o Curso de Letras (já era advogada desde 1964), e incursionou pelo magistério. Crescendo no mister que se tornou a sua vida, a literatura, ganhou mais um prêmio, concedido pela Associação de Cultura Luso-Brasileira de Juiz de Fora (MG) pelo texto poético “Fio de Lã” que saiu em livro no mesmo ano, numa edição do Gabinete Português de Leitura do Recife. Ano produtivo foi o de 1979: dois livros publicados – Fio de Lã – poesias-, e Palavra de Mulher – antologia de poesia feminina contemporânea, publicada pela Editora Fontana (RJ). O erotismo com que se tecem as imagens desse poema estará presente na obra de Maria de Lourdes Hortas, publicada a partir da década de oitenta. “A rosa desfolhada para e pelo prazer”, inspirará a velha dicotomia amor x dor. No livro Flauta e Gesto (1983), a mágoa floresce também e escorre pelas lágrimas da mulher/menina, da menina/mulher. A escrita de Maria de Lourdes Hortas representa, como ela própria já afirmou, a sua linguagem, sua forma de estar no mundo, a via de acesso ao exterior e ao outro. Sua luta incessante com a palavra, à maneira drummondiana, fê-la cúmplice e irremediavelmente dependente, da palavra escrita : caminho que a conduz à auto-expressão e à expressão do mundo. O poema “Chave” evidencia quão estreita é a ligação entre a vida vivida e a vida recriada em imagens transfiguradoras da realidade mas nem por isso menos vivas. No universo lírico da poesia de Maria de Lourdes Hortas o lugar para refletir sobre a condição da mulher, seu papel na vida
afetiva, sua representação diante dos mistérios do ser está sempre em evidência. No exercício da intertextualidade com “Os cantares de Salomão” o sensualismo desabrocha ousado e maduro: “Contigo se deitaram / setecentas rainhas / ... Sou eu a trigueira, porém formosa / filha de Jerusalém...” Com a vida dedicada à literatura, Maria de Lourdes Hortas encontrou, na palavra, a resposta às suas mais profundas inquietações e linimento para suas feridas. Recriar pela palavra é o credo desta mulher simples, que ama as flores, a chuva, a vida, e faz do seu mister um sacerdócio, cujo “Acto de Fé” encerra estas breves considerações: “Creio na alquimia da palavra / onde de um rio / raiz, seiva, resina / favo de mel silvestre / mina d’água / êxtase da infância / esperando-me na / esquina. / Ao terceiro verso / ressuscito dos mortos / enquanto lírios nascem / sereníssimos / varando a verde relva / do silêncio que respira.” (Texto publicado no caderno JC Cultural / Jornal do Commercio – Recife, PE, 6 de novembro de 2000).
ZULEIDE DUARTE é doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Ex-professora da FUNESO (Olinda, PE) da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE (Recife); atualmente é professora da Faculdade de Letras de Campina Grande (PB). Tese de doutorado: A impossível ubiquidade: uma representação melancólica da diáspora portuguesa: A ficção de Maria de Lourdes Hortas.
Dedicatória In Memoriam: A Maninha (Maria Daniel Mateus Hortas), minha única e amada irmã. Com gratidão e amizade para o poeta e editor Juareiz Correya, que projetou e concretizou a reunião de todos os meus livros de poesia.
ÍNDICE DOS LIVROS
AROMAS DA INFÂNCIA (Lisboa, Portugal /1965) FIO DE LÃ (Recife, PE, 1979) GIESTAS (Recife, PE, 1980) A COR DA ONDA POR DENTRO (Recife, PE, 1981) FLAUTA E GESTO (Recife, PE, 1983) RELÓGIO D’ÁGUA (Recife, PE, 1985) OUTRO CORPO (Recife, PE, 1989) RECADO DE EVA (Braga, Portugal, 1990) DANÇA DAS HERAS (Lisboa, Portugal, 1995) DUPLO OLHAR (Lisboa, Portugal, 1997) FONTE DE PÁSSAROS (Recife, PE, 1999) CANTOCHÃO DE TODAVIA (São Vicente da Beira, Portugal, 2005) RUMOR DE VENTO (Recife, PE, 2009)
Concurso de manuscritos – S.N.I. 1º. Prêmio de Poesia - 1963
AROMAS DA INFÂNCIA
À minha avó Guilhermina Amélia Henriques da Silva Mateus, que foi a minha infância.
CARTEIRA DE IDENTIDADE Nome? Maria. Idade? Dois tempos: de valsa e sonata. Estado Civil? Noiva à beira-mar esperando a volta do que naufragou. Profissão? Poesia. Cor? Melancolia. Olhos? Duas cruzes, nos montes, à tarde, pouso para aves e último sol. Cabelos? Sombrios. (Guardam tantos rios...!) Natural? Do Fado (aí canto de chuva!...) Do Vira (o trigo) que Vira (a uva...) Sou de romarias. Ermidas. Serões. Rosmaninho. Eiras. Do mar e do pão. De naus. De Camões.
TRANSFUSÃO Onde a vida te pôs tédio, acampo meu carrossel. Solto barcos de papel onde empoçou desalento. Em teu corredor cinzento reacendo a lamparina. Onde chora a tua sina, passo com meu realejo. Onde a vida te pôs fel, ponho ternura de beijo.
QUATRO TEMPOS SOBRE HOMEM E TEMPO
I. ESTRADA Numa pessoa caminham pessoas. A criança corre. Passa o jovem. Anda o homem. O velho passeia. Permanece o rastro do que passou por último.
II. CASA Um corpo é uma casa que muda de inquilino em cada estação. Enquanto o pássaro canta na árvore onde rebenta o verde, há desenhos a carvão nas paredes: início de cultura e fim do mistério. Enquanto o pássaro ama na árvore de verde completo, na casa de paredes pintadas de sol ninguém sabe o que virá após o voo. Desconhece a casa os futuros habitantes.
III. TRILHO Um corpo é, apenas, um trilho: nele passam vários comboios. Só de ida.
IV. QUADRO Amanhã vão bater à minha porta e perguntar por mim. Alguém com certa semelhança comigo (como um parente próximo) dirá que fui a melhor, a mais linda, de uma perfeição de quem morreu.
POEMAS PARALELOS
1º. À ESPERANÇA DE UM SÉTIMO VIOLINO Qual era a cor dos cabelos de Brahms? E seu sorriso era claro? Céptico? Brahms caçou pombos? Roubou cerejas? Você sabe? Nem eu, nem talvez as enciclopédias. À beira da alma de Brahms ouço cantar o infinito. É o importante. E o impossível é ouvir apenas a terceira sinfonia, que o rótulo vermelho do disco limita. Debaixo dela – um telhado, um céu – sinfonias se abrigam. As mãos que se prolongam nos arcos, as que tangem harpas, os dedos correndo no piano de quem são? Os lábios beijando metais, quem os beijou? Os olhos que apanham, como redes, peixes escuros em clave de sol quantos mares choraram, antes disso? A indiferença da orquestra apagou a esperança do sétimo violino.
2º. AO MEU GALO DE BARCELOS Meu alegre Galo de Barcelos, cor da noite que bebes para que o dia volte, e resto de sol no bico amarelo de onde caiu esta madrugada, quem precisou sete corações para guardar amores perdidos? Meu alegre Galo de Barcelos lágrima cor de ouro onde fechaste o mistério de teu canto louco à alvorada, quem, nos labirintos de tuas asas, encarcerou o próprio pensamento? Quem, na tua cauda, aquarelou as próprias constelações? E na tua crista – flor de Verão – quem eternizou a própria vida? Meu alegre Galo de Barcelos, quem te modelou em barro? De que cor eram os seus olhos? Seu gesto era terno? E seu perfil, mouro?
EVOCAÇÃO DE AROMAS Era tão branquinha a aldeia, e a praça era tão grande! Os degraus do pelourinho eram tão largos, Maninha, e, pra subi-los, que esforço!... A torre... tão alta a torre como as pernas das cegonhas que pousavam, no Verão, no catavento da igreja. Ah, o escuro da torre (escadinhas para os sinos...), longo, longo, aquele escuro e como cheirava estranho, hùmidamente, a morcegos... Os aromas da infância: gaveta da cristaleira tão fechada como a vida. A gaveta era tão alta!... Batia em nosso nariz. Bem acima dele víamos, na gaveta, as coisas boas: ah! o cheiro de baunilha misturado a chocolate, a frutas cristalizadas... A gaveta era tão alta! (Batia em nosso nariz!) Agora está muito baixa. E o aroma? – Disperso. A aldeia tão branquinha, como é cinzenta, Maninha. A praça – tão grande, a praça! – como é estreita, Maninha. A torre alta, tão baixa, o seu escuro em escombros, cheirando, apenas, estranho, hùmidamente, a passado.
SONETO ABSURDO E MARINHO E “ORANGE” Ilha verde, ilha só, ilha tão longe, submerso o princípio e invisível fundo de corais, tesouro presumível, fim-pastor que brancas nuvens tange. Tuas raízes pintei-as de “orange” cor bem francesa, ó meu impossível músico louco, de riso insensível, neste soneto eu te faço monge, como te fiz ilha. Eu te faço tudo o que quero, da cor que idealizo. Tu não tens nome, és um sonho mudo. Se teu início-coral é arenito não me diz isso teu silêncio-riso. Eu te faço o amor que agora fito.
CARTOLA MÁGICA Minha cartola mágica de onde tiro pombos-correios, coelhinhos brancos, lenços de várias cores para várias dores, minha cartola mágica poço fundo (transforma pedras em girassóis d’água) é muito rasa quando nela atiro meus olhos vertendo a solidão do mundo.
HAI-KAI TRANQUILO Sim, eu sou tranquila. Tenho a รกrida e vazia tranquilidade de um rio sem รกgua.
UTILIDADE PARA POEMAS RASGADOS Francisco, Julieta e Conceição deram, finalmente, utilidade à minha poesia. Sentados no chão da varanda brincam a jogar cartas: meus poemas, em retalhos, são dama, valete, rei.
GEÓRGICA Primavera. Domingo. Esta tarde, os pastorezinhos da semana transformam-se para os velhos da aldeia em canalha que é preciso enxotar dos pomares. Esta tarde, os pastorezinhos são pardais e os velhos, espantalhos. Esta tarde de domingo o pretexto de ir às cerejas faz dos filhos da aldeia crianças de verdade pescando arranhões vermelho sol pó beijos de rouxinóis e até ninhos. Quando vier a noite irão todos às avós queixar-se de dor de barriga (última consequência desta tarde. Domingo. Primavera.) E as avós irão fazê-los beber chás de cidreira que, desfazendo o encanto, hão-de ressuscitar os pastorezinhos da segunda-feira.
PESCADOR O homem conserta redes: fita-as com olhos salgados, queimados... MĂŁos cor de areia molhada, o homem conserta redes: redes com cheiro de mar, redes que se misturaram aos peixes, algas, mariscos, Ă s ondas, na madrugada... O homem conserta redes: o homem emudece as bocas que poderiam contar os seus riscos.
DOMINGO À solta, uma arcada sobre mão-cheia de nada. De ilha, arca sem mapa. Esta ânfora despejada: em seu regaço o lugar para vinho é mormaço. Abas vazantes da infância: com a copa do chapéu cerejas e malmequeres partiram pra não sei onde. Ciranda, forma – sem vozes – de redondo, circular. Moldura pra Renoir desabitada, vazia. Meu domingo, pouso breve para um arcanjo ensaiar cantochão de todavia.
CANTIGA DE AMIGO De castelo inevitável - ai que eu princesa era princesa moura sem rei – minhas tranças atirei e tu subiste por elas até meu olhar inteiro, tu que vinhas libertar-me de minha torre bem alta de onde se via, apenas, o cimo do mundo, a nata: o verde limpo dos campos, o lavado azul dos mares, - casca da vida, sem cortes. Princesa moura, sem rei, minhas tranças atirei - eis que tu as desmanchaste. Ai que fizeste das fitas? Foi com elas que amarraste os meus olhos no teu chão? Em cada cabelo meu Tu plantaste o conteúdo do mundo que eu não via de minha torre bem alta: debaixo do verde, o verme, debaixo do mar, a morte. Desmanchaste as minhas tranças, e me puseste no chão, coberta com meus cabelos de ti carregados tão!... Liberta de meu castelo olhar partido, fiquei. Sem tranças, ai, eu sem tranças, só, despenteada moura e, como antes, sem rei.
ENQUANTO NÃO SABES, PETRUS Enquanto não sabes que as baleias não são peixes, que as estrelas não são lanternas de anjos ou buracos de fechaduras do infinito, que o trovão não é Deus que está ralhando, nem S. Pedro arredando móveis no céu, que a chuva não é o mesmo santo despejando cântaros sobre a terra, que as nuvens não são mares suspensos, cabeças de avós, rebanhos, fantasmas, mas vapor – só vapor condensado. Enquanto não sabes que tudo é fenómeno como, por exemplo, o arco-íris, espectro-solar. Enquanto não sabes o que é fenómeno, Ltda., ONU, verbos e provérbios, química, teu nome, sobrenome & Cia., cores, alfabeto, psicologia. Enquanto não sabes ver televisão E olhas a Lua – Bolacha Maria – que – não sabes – é satélite da Terra, telhado de ébrios e nau de poetas. Enquanto não sabes o que é poesia, crença ou cepticismo e a diferença de Banco maiúsculo e banco de praça. Enquanto não sabes o que é comunismo, megatons, foguete, gregos e troianos. Enquanto não sabes dar corda ao relógio, só tu sabes tudo, pois chegaste há pouco de cidade-enigma. (Logo esquecerás.)
Quando já souberes falar convenções, ler definições, apertar botões, lembra-te que és Petrus e sobre esta pedra tua mãe se reconstruirá.
CANTIGA PARA O AMOR-DE-ONTEM De que noite sem lua dobraste a esquina? Em que música tu silenciaste? Amor-de-ontem, onde adormeceste? Em que lágrima te afogaste? Que momento te esculpiu em amor de ontem? Que novo riso – como cristal – te partiu? Que encanto-enigma te reconstruiu?
MANHÃ ENCARCERADA Atrás da janela gradeada a manhã está presa. Enquanto eu não sair ela me espera. Enquanto ela me espera espero alguém.
NOVO ACTO DE ESPERANÇA Deixai-me crer, deixai, que neste Ano Novo será circunvagante a Paz e não satélites. Deixai-me crer, deixai, que o Ano Novo pôs, em vez de urânio, amor nos corações dos Grandes. Deixai-me crer intacta a candura no riso de todas as crianças. Deixai-me crer que do asfalto brotarão flores e nas ermas paredes dos arranha-céus sem cor nascerão musgo e ninhos. Deixai-me crer na verdade em todos os lábios. Deixai-me crer em dilúvios de aeromel molhando as línguas dos que blasfemam de fome. Deixai-me crer que o mundo será menos terra e mais universo. Deixai-me crer, deixai, que meu poema é novo, que são novos os homens que o Ano Novo é novo.
TEMPO ÚNICO Tudo o que repousa em linhas geométricas muito aquém de nós detém-se, meu amor. Porque nada aprisiona a liberta estação que foi criada quando me vi em teus olhos quando te viste nos meus. A permanente estação de rosas que não se desfolham de pássaros que não emigram de tempo único – o feliz – sofreado e suspenso entre nós dois.
URGENTE! CLARABÓIAS! Ponde claraboias nos telhados que o céu – lembrai – não é sòmente estrada para passos de pássaros de aço. Urgente! Claraboias! Céu a prumo descerá em vossos quartos e salas - vossas grutas. E em vez de muros brancos (vossos tectos) tereis lagos de azul para lavar os pés de vossas almas - vossos olhos peregrinos cansados, horizontais. Vossos telhados serão em cada noite aquário de estrelas. Em cada chuva, cisternas de prelúdios. E em cada pôr de sol vós, testemunhas do sopro eterno dos anjos que, no céu, queimando o dia, fazem dele rosas.
MOINHO DE VENTO Foste tu, menino louco, quem moeu as minhas rosas em teu moinho de vento. Mas as tristezas avento na cor que estรก esmagada em teu sorriso-lamento.
POEMA NO PARQUE Se há canteiros no parque por que não há flores? Se há protegedoras árvores no parque por que não há ninhos? Se há uma predisposição para crer em cada alma por que não há verdade?
POEMA À MINHA ALDEIA Ao poeta José Lourenço
Dentro de mim, minha aldeia, mina d’água, entre serras, onde bebo minha infância. Ruas pautadas por muros – jardins de musgo e cocilhos – de onde caía o aroma de laranjeiras no Inverno, de onde caía o amarelo de mimosas em Abril. Velhinhas, tão quase iguais – cada ruga uma lembrança – as casas. De seus beirais escorriam orações: ou rosários de granizo, ou salmos de andorinhas. E nas tortas varandinhas, em panelas que os ciganos não poderiam soldar, cozia o sol sardinheiras e cravos e manjericos. Havia silvas na Lua que me acompanhava à fonte onde eu ia com a Céu e a Céu com o namorado. As silvas do castigado que trabalhara aos domingos... Silvas também nos atalhos - mas estas cheias de amoras – integralmente só nódoas para meu branco avental. Ponte, ribeira, moinho – os primeiros candelabros: inverno... gelo em cristais. E tantas lembranças mais. Passeios na Estrada Velha com as meninas Susana, Terezinha e Manuela... Quedas na Estrada Nova – ai! a brita aguçada rasgando em meus joelhos a dor de caminhos novos. Nas procissões, eu, de anjo, os lisos cabelos soltos - lembra-se, menina Emília? – inútil tostá-los antes, com seu ferro de frisar... Procissões de tantas festas! A do Senhor Santo Cristo... Terceiros... Ressurreição... “Porém, a Semana Santa”... lembrará Padre Tomás quando se lembrar de mim –
Porque sou, na minha aldeia, Verónica toda de negro, cantando em cima do mocho, face de Cristo na mão. “E o teatrinho da Escola?” - lembra a menina Jesus. Porque sou, na minha aldeia, princesa toda de branco colhendo flores no campo do cenário, em papelão. José Lourenço, o poeta, em sua casa, morangos, condes, leite e laranjas. Em sua casa, mistérios, nas arcadas, no brasão, no barómetro engraçado... fácil: se fosse chover a bruxa entrava em casa e, se o tempo fosse bom, saía para varrer... Em sua casa, o fascínio, o medo do Cabanão: aí os ciganos temidos que consertavam panelas, que vendiam caravelas. (Na janela da cozinha Vi a minha caravela girando com o Verão a sua cor de papoulas seu frescor de melancia sua cantiga de noras...) Nessa mesma caravela, poeta José Lourenço, navego pra minha terra: mina d’água lá na serra...
CANTO INTROSPECTIVO Voo-liberdade canto intuitivo penas coloridas um jovem é um pássaro. Sempre. Rirão os descrentes: “Ó jovem, és pássaro? Jovem perscrutado – problema – complexo, ó jovem-cansaço e tédio és pássaro?” Digo-vos, descrentes: um jovem é um pássaro. Mesmo introspectivo o voo, o canto. Um jovem é um pássaro – embora empalhado. Penas? Coloridas.
SALMOS Senhor, às margens do vosso rio, as faces de Jacó e Raquel não se reconheceram. - Como explicar que te dei flores vermelhas ó pastor de meus carneiros silenciosos? Todos os sons libertos de tua flauta por teu lábio, ó pastor de meus carneiros sedentos, qual flores na boca prendo-os e no rio danço no limiar dos portais acesos. - Senhor, que permaneçam ali, adormecidos, biblicamente, os meus carneiros nocturnos.
INTERVALO A vida está no canto do muro onde não chega o sol (cresce musgo ali) está na casa sem ninguém onde as aranhas cobrem, com seus véus, o silêncio. Na folha que treme. Na fonte que surge. Na expectativa da morte. A morte está entre os que riem, oscilando como pêndulo. Na mão do homem. Dentro de canções. Nas pedras. No intervalo de tudo está Deus.
CANTIGA DE VÉSPERA Hoje é véspera de mim. Lavei todas as cortinas, a casa toda caiei. Vou passar o meu vestido que teci colhendo as résteas de minhas antemanhãs. Tenho rosas no jardim, uma pra cada amanhã de meu cabelo onde quero embalar-te, Amor-sem-fim, amanhã, dia de mim.
O CANSAÇO DAS COISAS As estrelas despetalaram-se. E o tempo bebeu toda a poesia. O sol repete ocasos já arquivados por não ter mais cores a inventar. Os mares perderam seus enigmas e as sereias enforcaram-se nos cabos telegráficos. As rosas têm a mesma forma. As palavras, o mesmo som. O momento repete-se, sem originalidade. Inútil dizer: “a vida é bela”, pois até as crianças preferem o branco e o preto da TV e não têm mais celeiros de encanto para preencher amanhãs vazios. - Terra, minha velha, despe o tédio, mergulha um pouco em teus raros lagos de silêncio e veste Amor – o eterno prisma do novo olhar.
PALAVRAS PARA O ACALANTO DE MEU PRIMEIRO CHORO No silencioso túnel de teu ventre, em tua submersa poesia, escolheste um a um os teus frustrados sonhos até formar com eles uma nova Maria. Em meu primeiro choro Compuseste o acalanto para tua esperança. E te fizeste fonte, árvore, rio, ponte, quando te fiz mamãe. Se em ti mergulho a face, se à tua sombra volto cada nova romagem, e se quando sou ponte a ti os remos cortam pra que eu olhe a paisagem, se quando sou o rio proteges-me dos pés (que o mundo inteiro passe...) tudo assim acontece porque és minha mãe e te fizeste fonte, árvore, rio, ponte.
O HOMEM E O NATAL Enquanto o Natal vai navegando rumo a outro Natal, o homem fica, ancorado na ignorância primitiva. E contempla as estrelas imaculadas de pureza intocável. As lâmpadas coloridas (chamados suspensos, significações estéreis...) E sente-se um remoto antediluviano, junto ao fosso dogmàticamente intransponível.
CANÇÃO DO PRESENTE Para que guarda-chuvas, se hoje há sol? Agasalhos de Antárctica em clima tropical? Que importa o tempo derramado no chão e desaparecido como água sob a terra? Se hoje há paz que foi a guerra? Que importa se as rosas murcham, quando estão perfumando minhas mãos? - Se o tempo é isso, um perfume que alguém sente e respira e alguém deixa escapar? Para que guardar sapatos para os caminhos que hão-de vir se ontem já passei por vales com silvas sem amoras e amanhã não sei se vou estar? Para que esperar a velhice, se a juventude é hoje e o tempo escasso? Para que chaves de portas se não houver regresso? Que importa o tempo que vai nascer se eu não o souber colher?
MARINHA AO VELHO PESCADOR Lutam sóis de dia e noite - hora de puxar a rede – o homem luta com o mar. Com três cores de três sangues tingem-se as redes escuras: o do sol que em contato com o azul tornou-se roxo. O dos peixes que é “marrom” por causa da asfixia. O do pescador vermelho como sempre indolor. - Sua rotina é a dor. A pesca é o seu mastro. Lutam sóis de dia e noite. Corda humana está puxando a corda que puxa a rede onde vêm (e se não vêm!?...) polvos, sargaço, arraias, sardinha, ruivos, sargaço, sargaço, conchas, sargaço... Pescador velho e seu cão na praia, como fidalgos, percorrendo suas terras. O cão tem a cor da sombra. O velho já não tem cor: o negro de seus cabelos foi sugado pelo mar para nuvens de intempérie; o negro de sua barba escorreu pra sua roupa de viúvo por aquela que sempre ficava em terra (acenando, acenando...) E sob terra está.
Olhos secos porque o mar Picado foi-os picando Fazendo-os esvaziar. E o rosto tatuado Pelo sal... pelo sol... Vai curvar-se o pescador ao peso da corda-cruz. (NĂŁo chorem, sentimentais.) Porque esticando a corda, pescador estica a vida puxando-a do mar com a rede...
POEMA ELEGÍACO AO NATAL QUE FOI
E o Natal que foi lanterna alumiando os passos dos grandes à Missa do Galo - que mistério, o galo da missa onde eu não ia... E o Natal que foi, não será, jamais. Porque nevou sobre os magos dedos de minha avòzinha. Ela tricotava toda magia De um Natal só nosso; regia o estalar do azeite para as filhoses... pintava de verde o presépio, com musgo... Das mãos do Natal caiu a lanterna: o círculo de luz - a cândida auréola – esbateu-se... A neve? Só neve metáfora - tempo feito branco, apagando os traços – ficou do Natal. E todos os galos perderam os cantos. A lanterna... os passos... O Natal que foi e não será mais.
NOTA DISPERSA Tenho, dentro de mim, adormecidas, notas dispersas para a melodia. Quando deixarĂŁo de ser grito sem eco? Em que dia?
PÔR DE SOL NO MAR Este domingo, para encontrar-se com seu amado, desfolhou-se ao vento a Rosa-dos-Ventos. Pétalas, como ondas, em crepúsculos - norte-sul leste-oeste – espalhadas foram.
FLAMBOYANS EM FLOR A cidade ri vermelho. Não vermelho moscovita, apesar de equitativo: igual riso para todos. Tirai o antagonismo dos olhos. E vede o riso. É agora vossa vez. Olhai bem, pois a cidade, a dividi-lo por todos, vai desenhando a vermelho cinco peixes e dois pães. E depois de dividi-lo ainda encherá dois rios com sobras que ninguém quis.
ELEGIA À MINHA AVÓ Teu último barco e único - todo âncora – é a redenção do homem da Lua. Construiu-o ele com paus de domingo. Agora nunca mais terá feixe às costas. A música, aquela retida no pote ao canto do muro. Em tardes de julho eu, menina, troquei cantigas de sol pelo eco úmido. Um cortejo de vultos em lenta agonia segue-te a passo mudo - contornos diluídos – vai-se esfumando... José do Egipto em seu carro egípcio. O Gato de Botas que se descalçou para não andar as últimas sete léguas de uma só vez. Em cavalos brancos, príncipes. E princesas voando em cisnes como a neve, brancos, como a morte. O Lobo invisível de presença constante em minha infância... O Lobo de apetite condicionado ao meu
- só me comeria se eu não comesse a sopa...o zeloso Lobo que só tu, Avó, poderias chamar, mas nunca chamaste, segue-te, cabisbaixo, uivando agonia. À distância vejo Os Santos Leões que o profeta Daniel domesticou e tu canonizavas em tuas histórias. Vão ficar contigo, ser teus guardas-túmulo. Até que te alcancem irão devorando tudo o que está entre eles e ti. Sob o teu barco - teu navio âncora – patas em coluna, hão-de dormir, mansos, imóveis na mesma mansidão eterna só interrompida com a tua morte onde minha infância se esculpiu, deixando rastro de sorriso que só eu conheço.
EQUILÍBRIO Abri os braços para equilibrar-me na linha imaginária - Equador. E tive um braço em cada hemisfério. E minhas mãos foram cataventos, que retiveram, do mundo, o mistério: náufragos risos, inascíveis rosas, canções sem pauta, queimadas estrelas. E minhas mãos foram cataventos, que retiveram, do mundo, o mistério: entre as ruínas caminhavam pombas.
CANTIGA DA APAIXONADA Que o tempo desmanche flores. Flores novas tempo faz. Que sopre o dia estrelas. Vem a noite, acende mais. Vai maré levando ondas, volta maré, ondas traz. Tempo, noite, maré sou. Meu nome hoje é amor. sem ondas, estrelas e flores se estive, não estou.
POEMA APOCALÍPTICO SOBRE O FIM DO MUNDO A corda do mundo então, rebentada. O pêndalo inerte estancado a prumo sobre a hora estática. Atónito, verás em fuga teu corpo, ó tempo redondo: - fuga de ponteiros e sem badaladas!... A corda do mundo então, rebentada. Solta, no espaço, a hora estática. Depois, tudo, um passo no Tudo ou no Nada.
VALE Não sei se o vale foi sulcado pelo meu baque súbito ao encontrar a menina que fui prisioneira para sempre das pálpebras cerradas de minha avó imóvel. De só reencontrar a criança boiando à tona gélida de minha avó. Imóvel. Não sei se o vale é, apenas, o espaço que a menina ocupava dentro de mim antes de se escoar. Sei apenas que este é o marco de êxodo entre a criança e o adulto. Como sinto que pelas encostas deste vale fujo de mim mesma, deixo-me só, despovoo-me.
MAR-AMOR Antes de tudo é preciso quebrar relógios rasgar calendários ter como guias, sòmente, sóis e luas. Depois apenas com a vela muito branca sem leme sem bússola sem âncora ir navegando. Sòmente com a vela (nunca remendada nunca emurchecida) apenas – e sempre – branca.
PRESENTE PARA MIM (em meu aniversário) Um céu antes de tudo infinito. Só depois o cemitério de mundos mortos. Um sorriso antes de tudo verdade. Aquela que mora no longe que há em nós para onde nem sempre se encontra o caminho. Um mar antes de tudo três quartos de Terra. Só depois a inconstância das marés o sal em minha língua, o azul da água que, afinal, é incolor em minhas mãos.
SHEILA Sheila aponta a Lua com a metade de “quantos-anos-tem” ou seja: um dedinho. Mas a Lua só poderá decifrar-se para Sheila daqui a quantos anos forem precisos para prender-lhe os dedos entre outros dedos. Sheila não aponta as estrelas. (As estrelas são mais fáceis). Redondamente Sheila olha. E o anjo que mora lá paira algum tempo entre as duas noitezinhas (que são os olhos de Sheila) e, não aguentando mais, ajoelha-se a seu lado e curva a fronte coroada de flores que só nas estrelas brotam e que sòmente a Sheila é dado ver. Sheila recebe o anjo e suas flores. Conta-lhe segredos de Zèzinho – seu feio e querido boneco – e do coelho amarelo de pelúcia. Depois, sem consultar mapas (pois a geografia das estrelas sòmente Sheila, Zèzinho e o coelho amarelo conhecem de verdade) leva o anjo de volta na garupa de seu cavalinho azul, branco e vermelho. Através de planícies transparentes como pirulitos cavalgam. Riem os guizos do cavalinho. Tilinta o riso de Sheila. E vão tão depressa, tão depressa, tão depressa, que até parece não saírem do lugar. Quando estão perto, o cavalinho dá um pinote. Com pena de se despedir de Sheila, o anjo começa a bater asas enquanto ela – olhos fechados – ainda ri. E o riso de Sheila o detém. Então o anjo tira da fronte as flores que só nas estrelas brotam e as planta nas covinhas do rosto de Sheila.
ÚLTIMOS PREGOS Apenas o contraste de seu rosto - imóvel como a morte – com o seu cabelo - desgovernado como a vida – fala da realidade. Independente contraste que a faz, a um tempo, Santa em procissão e jovem à beira-mar: a inabalável face de fé inabalável... os navegantes cabelos dando-se ao vento... Seu corpo está parado como tronco de árvore seguro à terra. Mas seus cabelos estremecem suavemente como ramagem sacudida pelo pássaro em fuga... Seus cabelos são o seu poema póstumo dedicado a mim. E suas mãos jogaram ao ar toda a primavera de lá fora. E são para mim, elegìacamente, no céu as aquarelas das gravuras de minha infância, pontilhadas de andorinhas. Nesta primavera, com as andorinhas, voou-me a infância. Do balanço, no sótão, a ausência das cordas enforcou a menina. Foi bom que assim fosse. Onde choraria a menina, agora, se os cantos das portas, sem mãos que a levem para o colo morno, são, apenas, cantos?... Foi bom que assim fosse para não sentir todo o absurdo de se não chorar a perda de um colo nesse mesmo colo... Do balanço, no sótão, ficaram os pregos - duros, fixos pregos, para acabamento do adulto incompleto. Os últimos pregos pregados no adulto recém-construído.
EU SOU TUDO Eu sou tudo. Dentro de mim tenho o ritmo de um sistema planetĂĄrio, tempo, atmosfera, ĂĄgua e sal de oceano e o mineral da montanha. Tenho rios vermelhos correndo em mim e florestas de nervos por onde passo. Eu sou um resumo do universo. Tenho o canto e a tristeza, as sementes da vida e o segredo do fim. Eu tenho Deus em mim. Eu sou tudo. - TambĂŠm o mundo Porque o vejo.
EDIÇÕES PANORAMA S. N. I. – Palácio Foz – Lisboa 1965
FIO DE LÃ O poema Fio de Lã, de Maria de Lourdes Hortas, tem uma história ao mesmo tempo que conta uma história. Premiado com o “Troféu Portugal” em 16 de junho de 1978 num concurso literário instituído pela Associação Brasileira de Juiz de Fora (Minas Gerais), a divulgação jornalística desse fato foi o primeiro passo para tirar a autora do recolhimento em que vivia no Recife e trazê-la a público, a colaborar nos suplementos literários, principalmente no do DIÁRIO DE PERNAMBUCO, onde comparece com freqüência. Esta, resumidamente, é a história do poema, ou, com mais precisão, a de suas conseqüências para a autora. Quanto à história que o Fio de Lã conta, é confessadamente autobiográfica e narra uma experiência lírica e vivencial : a de alguém que se divide entre dois mundos distintos, e, na aceitação de uma cultura e de uma terra adotivas, não consegue, por um “atavismo irrecusável”, esquecer suas raízes pátrias. É assim que o poema revela a origem portuguesa de Maria de Lourdes Hortas, que, ainda menina, trazida para o Brasil, trocando o Tejo pelo Capibaribe, as amoras pelas pitombas, jambos, mangas e carambolas, toda entregue a esta suave passagem, a esta aceitação de um mundo novo que ia descobrindo, presa ao fio de lã do seu infantil “xailinho pra frio”, não se liberta dos “limos do tempo” que estão na raiz do seu canto. As raízes portuguesas da poesia de Maria de Lourdes Hortas não se revelam só em expressões como “xailinho pra frio, lírica voz” portuguesa ou num verso como “aqui tens o teu farnel para a viagem”, mas também e principalmente, em certa tradição e aprendizagem, reveladas na técnica de construção do poema e mais explicitamente nas epígrafes do Fio de Lã, já agora não só um poema isolado, mas um livro de poemas de elevada qualidade. Fernando Pessoa ou seu heterônimo Alberto Caeiro, Florbela Espanca, Sophia de Mello Breyner Andresen, são anjos tutelares da poesia de Maria de Lourdes Hortas. Certo lirismo místico está representado, na revelação das epígrafes, por um Salmo de Davi. Manuel Bandeira é um traço brasileiro na poética de Lourdes Hortas, mas o gesto de olhar, muito presente na sua poesia, o seu desejo de ver e representar o mundo, lembram também o Drummond que diz “quando eu morrer morre comigo um certo modo de ver”. A poética de Maria de Lourdes Hortas é espontânea e simples e acha-se delineada no primeiro e no último poemas do livro: “Não farei poesia sofisticadamente profunda: / profundo na vida é viver
(...) Eis a minha poesia: ressuscitar o que me foi dado / e desdobrálo para novo olhar.” Os temas de Fio de Lã têm uma amplitude universal e abrangem a angústia de solidão, a melancolia do cotidiano, certa ironia crítica, o lirismo transcendental, o social, a natureza e mesmo a hora técnica, com seu fantasma nuclear e a escalada cósmica. Mas sobre a técnica, da poesia de Maria de Lourdes Hortas a natureza ainda predomina: “a flor persiste / no ciclo da antiga noite / e orvalhos lavam a terra / como na madrugada / do gênesis.” JOSÉ RODRIGUES DE PAIVA (Recife, PE, Cidade Universitária / (29 de maio de 1979)
À memória de Manoel Joaquim Hortas, meu pai, que sempre se comoveu até às lágrimas com a minha poesia.
MARIA DE LOURDES HORTAS
FIO DE LÃ
RECIFE, 1979
“Abri, Senhor, os meus lábios, E minha boca proclamará os vossos louvores”. (Davi, Salmo 50, IV, 17)
“Da mais alta janela da minha casa Com um lenço branco digo adeus Aos meus versos que partem para a humanidade (...) Escrevi-os e devo mostrá-los a todos Porque não posso fazer o contrário Como a flor não pode esconder a cor, Nem o rio esconder que corre, Nem a árvore esconder que dá fruto”. (Fernando Pessoa/Alberto Caeiro)
“Quem nos deu asas para andar de rastros? Quem nos deu olhos para ver os astros Sem nos dar braços para os alcançar?” (Florbela Espanca)
“Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples.” (Manuel Bandeira)
“Eu caminhei na noite Entre silêncio e frio Só uma estrela secreta me guiava.” (Sophia de Mello B. Andresen)
MEU PREFÁCIO DE POETA SUPERFICIAL Não farei poesia sofisticadamente profunda: profundo na vida é viver e os conceitos são meros contornos de maquilagem. Não farei poesia: meu ato será apenas o de olhar e a poesia far-se-á narrando à superfície acerca do sol e da água e do riso e da lágrima.
PARÁBOLA Perdoai, Senhor, mas um poeta é também pastor apascentando sedentos de beleza em campos largos. Sabe o poeta onde estão a relva e os regatos: isto, Senhor, o faz também profeta?
A ARTE DE NÃO DIZER Penduro no cabide a veste de poeta e cubro de cinzas a cabeça pois lá fora está cantando o poeta em evidência evidentemente vidente sem gafanhotos e sem mel porém montado em apocalíptico equino galopando por abismos abissais. Até um dia, palavras, que arte é não dizer. É fazer o leitor ajoelhar-se no último degrau da ignorância, humílimo, batendo no peito “Senhor eu sou indigno...” Recolho os braços abertos e guardo no armário meu translúcido canto (espelho de opacos).
FIO DE LÃ Quando no Tejo embarquei tinha um xailinho pra frio que os mares de sete dias desmancharam em novelo. Aqui achei outro rio e de Bandeira roubei o primeiro “alumbramento”. Desbotaram os rosados De minha face europeia: amorenei, inteirinha. De menina, virei moça. Troquei o falar castiço por sotaque tropical arrastado e mestiço. (Se esqueci das amoras? Das quintas e das latadas, das fontes, grilos, giestas, primaveras e outonos?) Passei a colher pitombas, jambos, mangas, carambolas, e me entreguei à passagem, às praias, coqueiros, pontes. Mas a ponta inicial daquele fio de lã (azul e quente da infância) ficou por certo amarrada do outro lado. Fixa por limos do tempo ainda existe, raiz, e insiste em meu canto. Só isso não consegui ao passar o Equador: de minha alma-guitarra fazer um clarim-metal Insisto, a culpa é da lã.
Aquele fio azulado, que reteve o meu cantar longe, longe, do outro lado. Por ele caminham ondas de atavismo irrecusável (lírica voz portuguesa). E em minhas cantigas - todas – por mais que busque alegria choro fado concerteza.
(1º Prêmio no Concurso da Associação de Cultura Luso-Brasileira e Comunidade Portuguesa – II Salão de Poesia – Juiz de Fora – 10 de junho de 1978).
INTENÇÃO O que eu quero realmente é pôr à tona a alma do mundo translúcida como fonte. O que eu quero realmente é fazer brotar o coração do mundo alcançável como flor.
CAÇADA Partem os poetas de espingarda e alpiste cartaz e brasão: o pé-ante-pé, o ouvido atento, o olfato em riste. Em bando farejam na mesma avenida a mesma emoção. Ânsia coletiva a pomba esfrangalha: cada um apanha a sua migalha.
ROMARIA Aqui é a planície e eu busco a montanha. Aqui é a noite e eu aguardo o dia. Em mil e uma noites indormidas. decifrei rotas de astronomia: Que ninguém me detenha. Eu parto em romaria.
OS ASSASSINOS DO PARQUE O parque é o local do crime. Cúmplice, o verão. E os assassinos Sentados então. As armas variam: uns trouxeram um filho, uns trouxeram um cão, uns, filosofia. Alguns, o jornal. Algumas, croché, E alguns só os olhos e a disposição. – Coração do tempo, onde o teu estar, que várias pessoas te vêm matar? Pescoço do tempo, vai te acautelar que várias pessoas te vão degolar... Das árvores, no parque, as flores no chão de que enterro são?
ESFINGE Inova, homem e vê se modificas a milenar certeza de ti mesmo: dois olhos dois braços duas pernas um nariz uma boca um cérebro um sexo um coração.
VERTICAL Sou a que, ao meio dia, em praça desolada obliquamente despeja sua sombra para sentir-se acompanhada bebendo amargamente limonada pelo estreito canudinho do tédio. Sou a que está em alto mar mão sobre os olhos procurando o vento atrás, em volta, à frente, sem uma ponte para o continente.
NOTURNO Eis que a tarde serenamente comigo esperou a tua volta mas agora chegaste e a noite começa a partir. Vamos depressa reunir o essencial: nossas lembranças de romance, nossas vestes diárias de ternura, nossa comunhão de bens que se resume numa granja a haver, e fujamos com a noite descalços e depressa antes que o seu rastro se perca no infinito. Vamos segui-la abraçados e onde ela ficar sob o seu manto-ponte dormiremos.
RETÂNGULO E para caber exata no retângulo universal corto meus gestos mais largos jogo metade ao mar. De mim tanto afogarei que à tona, boiando, mansa vai ficar (se não está) uma afogada tranquila como retrato-lembrança.
ESTAÇÕES ANTÍPODAS É preciso alistar meu sentimento (disciplinadamente) no quartel das tuas horas. É preciso adiar meu sentimento para o conveniente estável (sem chuva, nem sol) neutro e vazio momento. (Nossas estações são antípodas e resolver esta equação e mais aquela da humana solitude é o absoluto impossível).
ROUPA NO VARAL A roupa semi-presa nos arames alveja e veleja. No varal dançará até ser digna de receber de volta a sua alma que a água levou/lavou: o gesto a forma o aroma de quem a veste.
RESIGNAÇÃO Não Não Não Não Não Não
contemplarei a tarde lavando-se em poesia. procurarei a estrela que pinga do infinito. quero que o vento seja em minha face um eco de ternura. escutarei a Quinta Sinfonia. vou salvar os loucos do seu sub-mundo. peço o verde-verde de Garcia.
Aceito o meu quarto coberto da poeira de mim que nele pousa. A encarcerada estrela: minha lâmpada. O rádio do vizinho. Meus impossíveis. E o livro negro da lei falimentar.
RETIRADA Se tudo o que eu digo já foi dito antes então o melhor é sair, de mansinho, pela porta dos fundos e deixá-los falando na sala da frente. Saltarei o muro, muito devagarinho, para encontrar do outro lado os meus queridos lugares comuns: estrelas, pássaros, fontes, rios e seus afluentes. E lá, acocorada e só, vou rir, rir, rir até chorar.
POEMA PARA UM RECLUSO DO TEMPO A idade que você tem, prisioneiro do tempo, é o número que se dá ao recluso. Lastimo você caminhando, monótono, na procissão de seus aniversários. Segue o tempo: é seu cão. Marcha nele, como soldado. Na hora marcada e conveniente matou a criança. E dentro do círculo de seus quinze anos foi adolescente. Agora é adulto de gestos pautados pelo figurino dos antepassados. Eu? Bóio em meu tempo ou nele mergulho. Posso cavalgá-lo também modelá-lo: fazer de um instante uma sinfonia para escutar em pausa vazia. Meu tempo eu o tenho, é luz que regulo, total ou velada, com natais em maio e páscoas em agosto. Eu visto o meu tempo segundo o meu gosto.
SONETO CRISTALIZA/DOR Em cristal para sempre tornarei aquele que me deu aeromel. Este soneto cítrico é o cinzel da escultura em que o mudarei. Mas se em cristal de sempre eu o mantenho e de seu breve gesto faço rocha não apago por certo aquela tocha que ardendo eu lhe tive e sempre tenho. Do risco de deixar o sentimento derreter-se, fujo e o suspendo do áspero, do banal, da escuridade. No eterno do meu cristal-soneto vivo será e embora não o tendo Eu o (re) tenho na cristal-idade.
MARÉ VAZANTE O mundo? está oco: rebentaram-lhe as comportas. Em revoada escapam mitos prisioneiros. O mar? Inconsciente. As estrelas? Já mortas. O sol? Queima-se, louco. E as pessoas dão voltas.
CRAVO DE FERRO
E quando sentires que parei pronta a partir o grito que grávida carrego como um cravo de ferro que me fura a alma prestes a romper quando sentires que meu grito AGUDO pode estilhaçar o cristal do céu poente em chuva de granizo com beijos molhados e quentes derreterás o gelo que me cerrou os dentes E hás de deixar que eu grite dentro de ti da minha para a tua garganta – precipício onde me vou matar.
REGRESSO Regresso hoje ao cais de anteontem. Da pedra que atiraste fiz um astro: bĂşssola para reencontrar meu rastro.
SOLidão Figuram todos sono a dentro e abandonaram a praia. Esta primeira hora da tarde eu a recolho ao exato começar e para mim goteja minutamente. Além disso em minha SOLidão um sol inteiro arde.
PRAÇA NOTURNA Nesta praça noturna onde ninguém se esconde perambulo sonâmbula escutando o lamento das fontes na sombra. Deixai-me aqui até que as minhas raízes brotem e as eras amadureçam os meus frutos.
PRIMEIRA ELEGIA A MEU PAI Para minha irmã. Pai, repousa tua mão na testa dela, ardente, e segreda-lhe o que me revelaste, no silêncio de tua voz exata: que à manhã eterna, debruçado, esperas por nós e nos contemplas. Diz-lhe (do teu silêncio desvendado) que à sombra da tarde infinita placidamente aguardas o nosso reencontro. Repete ao seu ouvido o que me transmitiste: que estás na primeira esquina da noite cósmica lanterna à mão para nos guiar pelos densos precipícios da volta. Conta-lhe que atravessaste as colinas do tempo e desvendaste a esfinge – estátua nos pátios do Senhor. Revela que te banhaste nas fontes do saber e lá deixaste o barro da vã humanidade. Segreda-lhe que a morte é, apenas, a chave que fechando os olhos do corpo abre os da alma para a imensa e total realidade.
SAGITÁRIO Pode o centauro meu em fuga do zodíaco galopar: arco retesado o meu arqueiro manda-lhe flechas – trespassantes flechas. Centauro em sangue arqueiro em expectativa a flecha não vincada (ansiedade em voo) vai caminhando alturas mais, ainda mais. Pensei que era sina. Mas é signo. Questão de horóscopo.
TESTAMENTO Com uma argila que trago em mim – poeira densa – levantada pelo galope universal modelei uma ânfora que deixo – transbordante – aos portadores de idêntico mal. Mas se for vime isto que me enlaça entrançarei, apenas, uma forte cadeira e dela, alguém lírico ou indiferente contemplará da varanda serenamente o cortejo que passa.
IMAGEM E SEMELHANÇA
Onde pôs o homem que esgravata o lixo sua imagem e semelhança de Deus? Perdeu-a no caminho de sua miséria? Foi derretida por suas lágrimas? Ou deixou-a à porta do templo por muito pesar em seu corpo faminto?
AUSÊNCIA PRESENTE A grama cresceu: meus traços digitais apagou do jardim. Um inverno passou: plantou pelos cantos decadência. Bati à porta, estranha. Respondeu-me o silêncio. (Pousando em tudo pesava a minha ausência).
À ESQUINA DO TÉDIO O meu tédio teceu sono que me esbateu e me deixa só contorno. Meus passos onde marcá-los Se aqui a rua abre os braços? Não há sinais não há placas também não tenho armadura. O meu tédio teceu sono: Quem me acordará com sinos? Quem tocará violinos?
CANTIGA HUMILDE Eis a canção fugida do in-cantado. Tem gosto de pão Cheiro a lavado calor de mão. Que do olhar caia a poesia de nós às coisas: Segunda-feira também é dia. E noite.
DISTÂNCIA Eras tão perto (a um metro um pulo um gesto) E eras tão distante (a um deserto a um universo um infinito) Meu silêncio despencou pedra no abismo e caiu S E C O em teu corpo estátua estrutura armadura Intransponível o perto espaço Impossível o pulo o gesto o abraço
FLUVIAL Aquarela no Tejo: as gaivotas sĂŁo o acento circunflexo da Lisboa antiga.
LISTA PARA COMPRAR LIRISMO Neste global supermercado seria possível comprar, mesmo enlatado, um pouco de lirismo em liquidação? (Se for, segue-se a lista). Pássaros pra telhados. Rosas pra sargetas. Fontes pra pedestres. Bandas pra coretos. Laços pras meninas. Tricô pras velhinhas. (E se não for pedir demais, comprem também) para as amadas serenatas e perfumes. (Porque se elas alargaram as suas estradas não espantaram de lá os vagalumes).
BINÓCULO Dá três passos atrás e olha o teu dia: quase sempre o que é belo só se vê à distância.
CANTO NOVO PARA SOL ANTIGO A evidência do sol é irresistível: a manhã é linda e não se pode dizer outra coisa mais original. Antiga frase para antigo sol. Eis um bom dia para fugir em busca de pombos e de mel, para abrir janelas de cartórios e deixar que voem para longe o mofo e os papéis. A manhã é linda para nascer naturalmente como quem acorda e para acordar com o espanto de quem nasce. Um dia impróprio para a morte porque o sol cravejou de pássaros todos os verdes mesmo o dos ciprestes nos cemitérios. A manhã é linda e não se pode dizer outra coisa. As opiniões sobre a paz mundial e os comentários sobre a poluição ficam para amanhã, quando chover. Hoje sou a incivilizada: adoro o fogo e apenas leio o rastro dos bichos e a posição dos astros.
A INÚTIL ROMARIA Buscando mais em seu eterno engano o Homem parte em jaula por galera singrando o cósmico deserto. Sonha deixar em litorais lunares de sua condição humana o triste fardo. Estilhaça limites atmosféricos e teoremas de cronologia. E enquanto avança por mundos-fantasmas maior que a assepsia em seu batel cresce dentro de si o desengano. Regressa à Terra e, para seus iguais, bichos de carne e sangue, é triste mensageiro: não conseguiu colher entre as galáxias aquele fruto bíblico que sua esperança procurava. Aquele doce fruto inicial que o tornaria ao menos imortal.
SOL REPOSTO No chão do parque o sol caiu: estilhaçou-se. Aves correram para o apanhar. Bicando sóis pássaros vão tecendo canções em sol que ao sol vão com(c)sertar.
INVOCAÇÃO Vem sobre as muralhas as trevas os pântanos os templos as forcas os desertos as tábuas os códigos as insídias os punhos os chicotes as serpentes os testamentos as lesmas os calvários os lobos as fronteiras. Vem sobre todas as tempestades roxas. Vem sobre mim.
PALAVRAS NAS AREIAS CÓSMICAS Se espaçonaves atracam em portos de tranquilidade e rastros de metal violentam estrelas em verdade em verdade vos digo: a flor persiste no ciclo da antiga noite e orvalhos lavam a terra como na madrugada do gênesis.
VESTAL Estar à tua espera completa meus anseios mesmo que eu não fuja – vestal – do limiar do templo. O fogo arde fora de mim: eu o acendo e zelo para que não se apague. (Quem sabe se algum dia à força de fitá-lo transfigurar-me-ei em chama ou sarça?)
POEMA DE DESPEDIDA AO QUE PARTE PARA O MUNDO Neste átrio para o mundo viste passar nove luas. Agora estás pronto e eu te digo adeus porque não poderás voltar. Aqui tens o teu farnel para a viagem. Nele eu pus tudo, sem nada esquecer: teus olhos, tuas mãos, teu cérebro. Teus nervos, teu sangue, tua vocação, teus sentimentos, tuas palavras, teu nome, tua vida inteira com atitudes a vestir em cada ocasião. Aqui tens tua bagagem. Vai devagar, sozinho, ao leme de tua nave. De ti eu me despeço: para este átrio onde nove luas passam silenciosamente não há caminho de regresso.
TRÊS PRÉ-ACALANTOS I Dorme, meu menino, o teu sono enorme. Dorme que eu te nino em meu corpo inteiro – teu berço primeiro. Dorme, meu menino, em mim Que eu te aqueço. Dorme que ainda não é tua hora. Dorme – eu te preparo para o acordar. Dorme o teu silêncio, Logo vais chorar.
II
Tempo e terra se encontram para um florescer. É fruto? É flor? É quarta lua crescente: meu filho, em meu ventre.
III Agora contemplas de tua varanda de silêncio e noite tudo o que serás. Sabes do Natal/da pedra/do fogo/da gruta/da rota/ da flauta/e do sal. E eu nada sei. Estou te dando o meu sangue e nada sei. (Perdoa-me, porque também o esquecimento do eterno ao te dar o mundo, eu te darei).
MENSAGEM PARA UM INTELECTUAL (que encontrei numa biblioteca) Por que você tem de usar óculos que lhe engarrafam o verde-olhar? Por que o seu cabelo é tão rimado repartido ao lado esquerdo? Por que você tem de correr cem-metros-de-cultura, tão sepultado em seu paletó quadriculado? Por que não foge, pulando a janela, com um assobio dentro de um sorriso liberto da gravata e de juízo? Por que não vai à procura da chuva Para fazer do peso dos ensaios barcos de papel bem navegantes? Por que não desce dos grossos volumes da alta filosofia para rever uma qualquer Maria antes da primavera agonizar no quintal e se tornar cinzento o azul-real?
COMBOIO Mesmo partida comboio infatigável que sou dou-me partida cada manhã de novo nova Atrelo minhas carruagens todas e ao peso de tantas sigo nos carris tingidos de meu sangue cuspindo-me fogo em troca furiosos por minha correria que os desgasta Pelas janelas fogem árvores irrecuperáveis adeuses ficando nas campinas Avanço cancelas atravesso túneis cegos e vou engolindo minha estrada de ferro que me engole também e cada vez mais perto fico e longe resto Todos os meus lugares foram reservados para ti e apenas esperam que irrompas por meu vazio corredor passageiro do acaso clandestino sem bilhete sem bagagem
Contudo Todavia No entanto conjunçþes adversativas Não te encontro entre tantos com tudo em toda a via
DOIS SALMOS 1. Armamos nossa tenda na linha do horizonte E repousar um no outro nos foi dado. 2. E as coisas menores se transfiguram E os dias rasos se fizeram vastos e fundos.
PALAVRAS-SANGUE Enlouqueci de vez quando acordei com o vosso cantochão de lúcidos conjugando o verbo matar em todos os modos tempos e vozes. Por isso, não adianta se degolaram as gaivotas se esmagaram rosas com botas se queimaram as estrelas se explodiram os navios. Não adianta sobre mim estar passando esse tropel de apocalipse. Degolar, esmagar, queimar, explodir matar – não adianta. Já disse que enlouqueci definitivamente e em minha insensatez consegui reter o voo das gaivotas, o perfume das rosas, o pó dourado das estrelas e as rotas dos navios. De resto, as palavras substituíram meu sangue nas veias. E no meu horto agonizo suando palavras por todos os poros. (Só poderão calar-me se me fizerem o que fizeram às gaivotas. Caso contrário, enquanto me deixarem, louca e mansa, vagueando em meio às intempéries, seguirei cantando, compulsoriamente. Cantando, aconteça o que acontecer).
ELEGIA A noite do menino teve fim quando a madrugada soprou as estrelas. Não chorem pelo que morreu hoje: o menino partiu ao colo da estrela d’álva, escutando o acalanto sem pausa. Não chorem pelo anjo alforriado. O seu dormir não está limitado pelo choro das velas nem a sua pureza pelo branco das flores.
RECIFE, SEIS HORAS DA TARDE Os que se retornam e vão na calçada desde já tomando com o pão que levam o café de casa. Os que se retomam e vão na calçada cigarros em brasa transmitindo almas (sinais de fumaça de náufragos místicos, vulcões planejados queimando os demais, cigarros-faróis de rochas desertas) – estes, que retornam, no gelo estatístico que algarismos são? O que se regressa e vai na calçada com um assobio e nada para casa deve ser o ponto da cifra oval. (Eis porque tão leve, ou transbordaria).
HISTÓRIA DE NATAL Com alvo cendal, Maria coberta. “Acorda, Maria” – José a desperta. O burrinho-monge paciente aguarda. “Acorda burrinho” – José o encilha. As heras e o musgo lhe arrancam do alforje. Põem-se a caminho, Maria e José. Maria, no burro. O esposo, a pé. Procuram um longe para descansar. (Há tantos natais procuram um longe!) Um Deus quer nascer e não há lugar. Seguem os viageiros Maria e José. Ela vai no burro. Ele vai a pé. Outra vez a gruta emerge e degela. Os pastores – cândidos – ocupam nos montes o lugar de sempre: à espera do anjo que desce da estrela... Os homens fecharam as portas do mundo. Um Deus quer nascer e não há lugar. O boi, fatalista, junto à manjedoura. Sempre anfitrião, continua à espera. Com alvo cendal, Maria coberta. “Acorda, Maria” – José a desperta. Olham a manjedoura Maria e José. Maria deitada e o seu filho ao pé.
ANGÚSTIA AZUL Ligo a tevê na tomada do mundo e fico soterrada em meu sofá ao peso dos escombros de todos os conflitos da humanidade. Gritar por socorro? Para quê? Se moro sozinha num edifício de sessenta e quatro apartamentos de gente civilizada cuja elegância é manter distância. Arrasto-me à varanda (que dá para o mar). Porém o mar se retorce obstinadamente na estrutura líquida que vai e vem, exata. Então procuro os astros: quem sabe, em seus quadrantes, onde são maestros dos destinos me ouvirão? Porém a noite, sinistra, engoliu as estrelas e ficou redonda impenetrável adormecida e farta. Volto à tevê, o exílio certo para fugas de inquietações vivenciais. De fato: descubro que não há mais conflitos. Tudo bem, graças a Deus! Posso dormir em lençóis de veludo. No écran luminoso A humanidade está em paz, fuma cigarros extra-longos, com filtro e sopra no ar toda sua angústia azul resignada.
ODE TELÚRICA Dormindo, aí estás, ó Terra. Antiga e tão mística com uma semente em teu bojo pronta a florir. Amanhã uma flor a mais estará nascendo e tu que a modelaste nas trevas mornas do teu ventre vais perdê-la para o sol que a creste ou para a mão que a decepe.
CANTO NEGRO DE ADOLESCENTES Nos fios de milhares de guitarras corre a alta-tensão de nossos gritos. À fogueira lançamos harpas órgãos pianos violinos. Pare tudo e morra o tempo: as portas do mundo estalaram de alto a baixo batendo asas o contido o falso o pré-concebido. Roubamos as navalhas dos barbeiros e com elas descascamos a vida qual uma laranja e a deixamos desnuda.
UNIDADE H Qual hidra sinistra tomando espessura em seu calabouço indócil, aguarda, que a estourem no espaço. Do pânico, em esboço, carrasco sem peias vai asfixiar em pó de segundo o grito do mundo. Os homens diversos difusos dispersos na explosão total unidos serão. E o planeta em chamas rolando nos breus se mutilar astros que importará? (Alguma coisa há de importar no silente conjunto amalgamado onde nem mesmo o soluço de um poeta há de restar?)
DEFINIÇÃO DE LIBERDADE Vim com a primeira maré de sizígia quando o oceano transbordou de sua orla. Falei quando os vulcões jorraram das entranhas da terra. Rompi cadeias quando os meteoros caíram dos espaços e a brisa se enfureceu desgrenhada. Existo em tempo de rebeldia. Meu canto é o dos elementos indomáveis e me visto das cores da aurora boreal.
TEMA LUNAR Uma nuvem matou a lua que eu via desta janela. Noutros alpendres plenamente cheia ela continua.
CONFISSÃO Não tombo em charcos de tédio. Não toco réquiens de morte. Olvidei do medo as trevas trilhos rotas vultos gestos gritos brechas e das setas o veneno. Escondi as cicatrizes das chagas que estão saradas. Sim, está chovendo. Todavia não usarei o cenário para queixar-me da vida. Tampouco me esconderei atrás das portas esgravatando com as unhas o sujo das paredes.
SER E ESTAR Abismo de silêncio e nele – exata – sou. Desencontro de vozes e nele – atônita – estou.
CONCEITO DE FELICIDADE Felicidade não é o pássaro manso que venha pousar no parapeito com asas definidas, voo único, que eu engaiole para ti. Não é música em semibreves, compasso quaternário, título ajustado, opus tal, que eu toque agora, bem ou mal. Nem lágrima chorada com determinismo em estojo de veludo. Não é abismo que repita ecos Não é riso gravado em pista um. Não é este segundo (que eu faria prisioneiro se parasse o relógio?) Nem é o minuto de mais tarde. Não é a palavra “felicidade” datilografada, urgentemente, em telegrama de “parabéns a você”. Felicidade será aquele até que enfim do pano cair. Nos bastidores estarei consciente, que meu personagem, mesmo pequeno, completou a peça para que vim.
CANÇÃO DE AMOR Todas as metafísicas pairam em teu olhar onde mergulho ó meu amor de hoje e de outro dia. Todos os infinitos param no teu olhar onde mergulho, ó meu amor, instante que o tempo feroz não esvazia.
FIOS ELÉTRICOS Caminhos de pássaros. Pouso de chuvas. Túneis de vozes. Rios de luz. Esticados paralelos: os fios elétricos são os nervos do mundo.
IMPROVISO NO ESCURO O negrume que ficou em meu quarto de janelas fechadas para a lua faz-me fantasma. A escuridĂŁo desintegrou meu corpo: sou unicamente pensamento esfarrapado pelos cĂŁes noturnos.
DIA LOUCO O dia enlouqueceu: rindo em sol ficou Ă chuva deixando-se molhar com alheamento.
LIBERT/AÇÃO Se fecho a porta é que estou liberta e eu liberta aprisiono o mundo para soltá-lo depois de amanhã. Eis a minha poesia: Ressuscitar o que me foi dado e desdobrá-lo para novo olhar.
Desenho de capa e ilustrações de MARCOS CORDEIRO
MARIA DE LOURDES HORTAS
GIESTAS
EDIÇÕES PIRATA Recife - 1980
MARIA DE LOURDES HORTAS: A DELICADEZA TECIDA Jaci Bezerra Maria de Lourdes Hortas desabotoou nas hastes do mundo em São Vicente da Beira, Portugal, uma aldeia que, segundo seu coração, foi inventada e construída com as nuvens da infância, sol, pássaros, flores. É incandescente como os fados que habitam a madeira e o arame das guitarras. Graudinha, depois de acender o diamante dos olhos na lírica portuguesa e outras líricas, transitando, curiosa e insone, por autores e livros, arejados, uns, nem sempre arejados, outros, entregou-se ao ofício de descobrir e semear encantos. Assim, debulhando a espiga da poesia, plantou dois livros. No primeiro, Aromas da Infância, tricoteou, consultando o coração e as lembranças, ponto a ponto, com inocência de menina e sortilégio de bruxa, o mundo de sua infância portuguesa: casas, paisagens, personagens, tudo. No segundo, Fio de Lã, aposentadas, possivelmente, as sandálias da adolescência, teceu um fio de prata e seda e, como nas histórias de fada, desceu do alto de invisíveis torres para deslumbrar-se com o resplendor do nosso sol maduro e tropical. Proprietária de duas pátrias, costurou, nesse livro, as paisagens de dois universos, o Português e o Brasileiro, já seduzida, porém, pela terra que amorenou o seu rubro coração. No rastro de sua vida-viageira, doce e femininamente plantou estes ramos de Giestas, em que sua voz, mais do que os olhos da atenção podem perceber nos seus livros anteriores, dói como o som dos cristais da delicadeza. Talvez porque ela tenha ceifado e atado em molhos as horas destes dias, e para plantá-los tenha afiado a adaga que escolheu: a palavra. Nos poemas tecidos neste livro, Maria de Lourdes Hortas dispensou as filigranas do acessório, fixando, apenas, as labaredas das suas emoções. Os versos desabrocham despojados neste canteiro de luz e, assim despojados, mas úmidos de magia e vida, acampam nas várzeas da nossa sensibilidade e aí permanecem, luminosos, iguais àquela tocha que “Arde/na cave/da minha precária/eternidade/uma tocha/arde”. Ou nos pedem silêncio, com dedos de vento e brisa, nos chamando para ouvir “as rosas/que me deu meu amor/e se abrem/agora”.
Pessoalmente, não tenho dúvidas de que estou diante de uma poesia tocada pela encantação. Maria de Lourdes Hortas transfigura o amor e as lembranças com a delicadeza de que só são capazes as grandes poetisas. Por isso mesmo, tenho certeza de que ela é uma daquelas estrelas que, acudindo aos mágicos chamados, “se foram pelos campos/virando pirilampos”.
A Osman Lins, que me emprestou as Cartas a um jovem poeta, de Rilke, quando eu tinha dezesseis anos.
“Como contigo eu chego a mim!” Juan Ramon Jiménez
“Eis as horas em que a mim me encontro”. Rainer Maria Rilke
SIM CEIFEI E ATEI EM MOLHOS AS HORAS DESTE DIA. MINHA ADAGA: A PALAVRA.
Arde na cave da minha precรกria eternidade uma tocha arde
Um dia a mais e sua Ăngreme escalada. Um dia: montanha escarpada.
Nem asas nem folhagens espreitam das ogivas apenas rĂŠstias se escoam pelas frestas Minha voz rouca emprestei Ă noite: sou eu a ventania uivando sobre o mundo
Choro Ă beira-mar: choro choro tanto que se nĂŁo houvesse um mar onde estĂĄ um mar far-se-ia de todo este pranto.
Deposta na profunda escuridade do mar alto sinto minha boca atĂŠ o cĂŠu plena de areia
Bruxo: em teu mirar bruxoleavam fogueiras alumiando a praia tua boca onde transbordava tua alma oceano Na praia Ă luz das fogueiras extasiada colhi tuas palavras de seivas tĂŁo doces e tĂŁo amargas como ervas molhadas por orvalhos e vagas
Encantador de pรกssaros e serpentes encantador de instantes: desvela-me o caminho para a fonte de (m)รกguas que ouvi rumorejar atrรกs do teu semblante
Duende, é teu coração que escuto quando tocas tua flauta de prata e pranto? Duende, é tua flauta de prata e pranto que ouço quando tocas meu coração?
Naquela noite de brisa pluvial eras o interior de um astro o fundo de um poço a melodia ecoando dentro de um búzio e eras de mim mesma o rastro
Quando a tua mĂŁo pousou sobre a minha mĂŁo nesse rastro de ave nesse peso de folha eternizou-se o instante
Estou ouvindo as rosas que me deu meu amor e se abrem agora
Ă“ meu amor, faz-me ouvir, apenas. SĂŞ tu a minha boca.
Não gritarei ao mundo que te amo. Nem falarei do silêncio que se fez quando terra e água se identificaram.
Deixa as estrelas quietas e o seu olhar de metal. E que as rosas continuem o seu ciclo vegetal. Atrás de ti fecha a porta, que a terra espere, lá fora. Aqui é o nosso amor aqui o tempo sem horas. Dispo o tédio: fecha a porta. Que a terra espere, lá fora. Que o mundo se vá embora.
O orvalho desta rosa encarnada que sou quando me desfolhas e enlanguesces ĂŠ a Ăşmida certeza que te dou do prazer que em mim teces.
Somente naquela noite pude compreender a grandeza da vida menor: debruçada à janela da cozinha vi nitidamente e pela primeira vez como eram lindas as janelas alheias iluminadas – seu brilho multiplicando as estrelas e aquecendo a escuridão da noite gelada. Havia também o cheiro da sopa que eu fiz. Meu coração floria. Eu estava de avental e sentia-me profundamente comovida por estar à tua espera.
Nesta vida viageira meu comboio faz uma curva-regresso: não desci nesta estação do outono que vou pisando pelas calçadas do Tejo. Aqui já não me revejo: Esta cidade é de outrem o meu país é o de ontem. Está marcada a passagem de volta àquela estação cálida onde me deixei: a terra que amorenou o meu rubro coração.
De há muito emigraram as andorinhas e cegonhas fugiram aos vendavais e o aroma dos pessegueiros nos quintais mudou-se no cítrico olor a nunca mais. De há muito o cheiro das maçãs a cor dos morangos e os arabescos do sol foram tragados pelo tempo. E agora o que há para dizer, poeta, se é tão nítida a inclemência do regresso?
Bruxas à beira do lume sentadinhas a fiar os linhos brancos do tempo: os laranjais davam flor cães rasgavam o luar a vida semi-desperta a madrugada entreaberta os pinhais eram macios cães rasgavam o luar Bruxas à beira do lume sentadinhas a fiar
CANÇÃO DE VOLTA À ALDEIA Enluaraste meu caminho de regresso às urzes e giestas. Me enluaraste a vereda onde os grilos continuam a tocar seus realejos entre a relva de seda. Ensolaraste o moinho cuja roda Moía eternas águas rendilhadas. Orvalhaste as lajes alcatifadas de musgos – passagem para a ribeira transparente de areias cintilantes seixos lavados peixes fosforescentes. Me perseguistes entre os trigais macios. Devolveste o aroma aos roseirais bravios. E as campainhas de nosso riso claro ergueram revoadas de pardais em fuga para a quinta encantada onde o pavão abria em leque sua cauda. Pousaste andorinhas Em meus beirais. Encontraste o trevo Oculto nos paúis.
Talhaste uma concha de cortiça para bebermos água daquela fonte que pranteia, incessante, sua mágoa nos ombros do monte. Assustaste as abelhas e seu zumbido, centelhas de sol crepitando em meu ouvido. Me enfeitaste com brincos de cerejas E em meu chapéu prendeste margaridas. Estilhaçaste o rutilante espelho do poente ao tocares o sino da minha aldeia: e as estrelas acudindo ao teu chamado se foram espalhando pelos campos virando pirilampos.
BILHETE PARA EXPLICAR PORQUE ORGANIZEI ESTE LIVRO
fala?
Povo miúdo: Vocês já se deram conta de que o homem é o único bicho que
Parece bobagem, mas pensem bem: a palavra é muito importante. É através dela que a gente se comunica e trás para fora tudo o que acontece dentro do nosso pensamento. Graças à palavra é possível saber hoje o que pensava o homem de há muitos séculos atrás. E, daqui a muitos e muitos anos, ainda se vai saber o que estavam pensando as pessoas deste século. Compreendem, agora, por que os livros são fundamentais? De repente, lendo, vocês descobrem que o menino de uma época muito remota, em que não havia avião, nem foguete, tinha tristezas e alegrias igualzinhas às suas – não é maravilhoso? Estou escrevendo todas estas coisas para chegar ao ponto de dizer a vocês que a poesia é uma coisa muito séria. Vai ver, até aqui, vocês estavam achando que tudo não passava de joguinhos de palavras, para rimar pão com feijão, mão com coração, sabão com balão, passarinho com ninho. Mas agora vocês já estão vendo que não é nada disso. E depois de lerem este livro hão de concluir que poesia é, acima de tudo, o sentimento da gente gravado para sempre. É um momento que se guarda. É a resposta. É a interrogação. É o olhar das pessoas que, mesmo depois de terem crescido, ainda querem saber qual é a cor da onda por dentro.
P.S. – Este livro foi organizado por encomenda de Márcia e Gustavo, meus filhos, e de Fábio, meu sobrinho. Vai, também, para Gabriel e Juliana, irmãos de Fábio. E, como não poderia deixar de ser, para todo o povo miúdo deste Brasil. Com um beijo da Lourdinha.
A COR DA ONDA POR DENTRO (para o Guga) De que cor é a cor da onda por dentro? Pergunta ao Guga. Ele sabe, pois já fez essa pesquisa uma vez. E depois de mergulhar com os olhos bem abertos o Guga teve a certeza: a cor da onda por dentro não é branca nem cinzenta nem azul nem amarela. Sabe qual é a cor dela? é verde da cor da menta e arde que nem pimenta.
A COR DA ONDA POR DENTRO
OS POETAS DA ANTOLOGIA ALBERTO CUNHA MELO (Recife, PE) ANTONIO DE CAMPOS (Olinda, PE) AKEMI WAKI (São Paulo, SP) CELINA FERREIRA (Belo Horizonte, MG) CELINA DE HOLANDA (Recife, PE) CLEONICE RAINHO (Juiz de Fora, MG) CHICO BEZERRA (Fortaleza, CE) ELIZABETH HAZIN (Recife, PE) ELZA BEATRIZ (Belo Horizonte, MG) JACI BEZERRA (Recife, PE) JOÃO PROTETI (Campinas, SP) JOSÉ RODRIGUES DE PAIVA (Portugal / Brasil) JÚLIA LEMOS (Recife, PE) KÁTIA BENTO (Rio de Janeiro, RJ) LARA DE LEMOS (Nova Friburgo, RJ) LEILA MÍCCOLIS (Rio de Janeiro, RJ) LÉLIA COELHO FROTA (Rio de Janeiro, RJ) LUIZ SÉRGIO QUARTO (Vitória, ES) MARCUS ACCIOLY (Olinda, PE) MARIA DO CARMO FERREIRA (Niterói, RJ)) MARIA DE LOURDES HORTAS (Portugal / Brasil) MARIA DA PAZ RIBEIRO DANTAS (Esperança, PB) MYRIAM BRINDEIRO (Recife, PE) PEDRO AMÉRICO DE FARIAS (Ouricuri, PE) PAULO BANDEIRA DA CRUZ (Olinda, PE) PAULO GUSTAVO (Recife, PE) ROSA MARIA DOS SANTOS (Rio de Janeiro, RJ) STELLA LEONARDOS (Rio de Janeiro, RJ) STELA MARIS (Brasília, DF) YÊDA SCHMALTZ (Goiânia, GO)
ESCREVENDO COM O CORAÇÃO Eugênia Menezes Quem acompanha a caminhada poética de Maria de Lourdes Hortas desde o lançamento de seus dois primeiros livros, Aromas da Infância (Edições Panorama, Lisboa, 1965) e Fio de Lã (Gabinete Português de Leitura, Recife, 1979), certamente se surpreende com as transformações por que passou a sua poesia. Não se trata de uma mudança radical, nem de simples amadurecimento formal. Certos aspectos, como a preocupação com a morte, o amor, a vida, a beleza, vão-se entremeando ao longo de seus livros, como se ela os rebordasse continuamente. A consciência do ser em permanente busca de harmonia com o universo do qual é fragmento, está presente em sua obra marcada pelo telúrico. Mas os livros iniciais apresentam uma particularidade, na medida em que Maria de Lourdes Hortas confere importância singular ao ato de olhar. Ela observa, vê e relata o cotidiano , em tom saudosista, ao longo da diversidade temática desenvolvida. E o faz tocada por sua delicada sensibilidade, mas as emoções parecem exteriores, à margem de sua pessoa. Seu livro Giestas (Edições Pirata, Recife, 1980), representa um marco em seu trabalho. Nele, a autora não se atribui apenas o ofício de narrar poeticamente, mas incorpora ao que escreve o pulsar de sua própria vida, como se ela tivesse de repente aprendido a enxergar com o coração. Este fato confere nova dimensão à sua poesia – como se Maria de Lourdes Hortas passasse de expectadora a protagonista – e, neste livro, Flauta e Gesto, vem reforçada a conotação forte e intimista de seu trabalho mais recente. “E por estar assim/ tão vasta e tão ardente/ mastigo a terra/ e ao toque dos meus dentes/ brotam os rios/ rebentam as sementes”. De seu discurso, agora menos prolixo, emerge um canto denso e contundente, que consegue conferir à solidão uma dignidade inusitada: “Esta noite valeu por muitas eras/ e acordo cinza que é a cor mais triste:/ arderam-me as estrelas até as cinzas/ e como aqui não eras não as viste”.
É um livro substancialmente belo, no qual a autora conseguiu incorporar seu sangue e sua alma. “Sou a minha linguagem:/ nela venho e nela vem/ refletida esta paisagem/ que contenho e me contém”. Recife, março de 1983.
maria de lourdes hortas
flauta e gesto
Recife – 1983.
A Maria Amélia Hortas, minha mãe Para Márcia e Gustavo meus filhos
...DulcĂssima harmonia, sopro e gesto ...num timbre momentâneo e sobreposto ... JORGE DE SENA
VARIAÇÕES EM MI(M) MENOR
VOZES aladas, quando se ataram as mãos que em brônzeos signos as retinham aos quatro ventos se escancararam e hoje as colho porque estou na vinha. E na videira onde passo agora vindimo o sangue que foi semeado: em minha voz se recomeça a aurora e por meu canto regressa o passado. E quando as mãos se me pousarem, quedas, sob a adaga que desatará da minha voz os signos que lês em tua vinha me ouvirás, alada, flama ateando a que em ti arderá vinho que somos, um de cada vez.
AO LEME deste barco velejo minha vida rumo ao paĂs sem
dia romaria geografia.
QUANDO as abelhas dormem roubo mel e o sorvo muito longe da colmeia depois fico tocando realejo cigarra em lua cheia.
EM TUAS vias veias abertas รณ terra me semeio. Por minhas veias vias abertas รณ terra hรฃo de passar as tuas flores.
HOJE aqui estou amanhã vou somar-me à transparência dos que ontem aqui estiveram e hoje são ausência.
COISAS antigas
fĂłsseis guardados em pupilas mortas sĂŁo as mesmas coisas re/fletidas miragens novas em pupilas vivas.
SOU a minha linguagem: nela venho e nela vem refletida esta paisagem que contenho e me contĂŠm.
TESTEMUNHO este ruído e só este apreendido entre as limitações do meu ouvido.
EM TELAS de silêncio bordo a fumo inconsútil estrelas onde arde minha tristeza inútil.
DISPO a armadura cobre amarro o cavalo prata deixo o castelo pedra vagueio folha pela floresta negra
INCOERCÍVEIS todas as horas sombras deslizando vão pelas alfombras e nas aléias passam irreversíveis à revelia de nós frementes ervas. Assim como reter o agora breve? A vida inteira neve irá se derreter e cada indício de mim se há de perder em todas as aléias e nas alfombras onde ora passo com estas horas, sombras.
PÁTIOS, catedrais e lampiões e aos portais os vultos dos cães sombras coloniais. Qual dessas imagens transitórias do humano instante inda tem memória? A dupla sombra que, entrelaçada, uma só alma andou na calçada?
OUTRO OLHAR. Outro nome. Outra mão. Outro mar. Outra areia. Outra porta. Outro vento. Outra mágoa. Outra canção. Outra luz. Outra sombra. Outra hora morta.
EM CADA MORTO que morreu, morri. Em cada voz que se calou, calei. E tantas vezes jรก me despedi de tanto ver morrer tanto morri que, a morrer, jรก me habituei.
DENTRO da casa ouço arfando as águas da noite: ainda não é hoje que me lavarão mancha pequena sobre o mosaico deste chão.
SOLOS EM GUITARRA
COLHE-ME, vento que é o teu fado papoula rubra ardo. Ser flama breve é o meu fado se não me colhes ardo. E se não vens me queimo e ardo. Como deter o fado ?
ACENDI-ME em fogueira e te invoquei, 처 deus do vento, e ao teu redor bailei. Bailei, bailei bailei, bailei. E mesmo em chamas n찾o te chamei Bailei, bailei bailei em v찾o: eras de vento, impossess찾o.
AGORA não preciso vigiar-te, hora de florir o cometa no céu: na terra que me veste nenhuma hora existe o tempo se ilimita e só me ensaio morta.
RECUSO a paz porque prefiro a vida enquanto a posso haurir. O meu corpo gravita e os pĂŠs chorando sangue rasgam as pedras. Numa hĂĄs de florir cometa.
ALGUMA praia há que domar possa marés que a vestem ou a deixam nua? Do mar que a invade, o sal que a adoça? Então como ousar posso não ser tua?
AGUDOS ventos a espalhar meus ais de tantas mรกgoas pela praia afora agudos ventos a espalhar meu pranto que por ser tanto nem o mar o afoga.
OUTRA VEZ esta navalha me trespassa. Urtigas outra vez nascem de mim. Outra vez antes do pleno amor o pleno fim.
ONTEM à noite, quando o silêncio do meu amado me disse que não pensei na morte, me vi enforcada em cordas de guitarra, ou violão. Por mim gritei, que uma andorinha sangrava, morta, em meu coração. Em suas penas morria meu sonho de vôo findo, de asas em vão. Fui enterrá-lo sob a laje, em sono onde semeio outra ilusão. E me dei conta que já era outono um prévio-inverno, um findo verão. Assim varrendo as folhas caídas de minha vida que, com tantas mortes, me pesa com o peso de cem vidas, me orvalhei do meu próprio pranto até o amanhecer, nublado estio. Voltei a mim, e em mim estava frio fiz um café e me sentei num canto. Devagarinho fui bebendo o espanto de me aquecer com a solidão o acorde manso, de ritmo constante, em mim batendo, firme, um coração.
NAS HORAS lancinantes e escuras quando os vulcões explodem em teu peito sempre me encontrarás chuva atravessando o enigma das trevas até as raízes das folhagens. No tempo umbroso em que os pássaros se ocultam no mistério dos arvoredos sempre me encontrarás
silêncio para ouvir o arfar das estrelas seu orgasmo-sereno molhando a relva. Na fera solidão da noite espessa quando os silvedos da agonia rasgam tuas veias sempre me encontrarás regaço quente para acalentar tuas mágoas até o sono. Na ventania do leste que não apaga teu incendido sonho
sempre me encontrarás
avivando as fagulhas até esmaltá-las nas galáxias. Nessas horas subterrâneas em que o peso do mundo inteiro pesa sobre o teu coração sempre me encontrarás penumbra alargando os contornos do teu corpo. Nas vezes em que, sôfrego, a vida te parece tão pequena e estreita sempre me encontrarás
rebentando as represas para que a vida seja em tuas veias como um barco por rios. Na magia lunar unificando todos os caminhos em alamedas claras sempre me encontrarĂĄs fonte entornando mĂşsica sobre a noite atĂŠ a aurora.
ESTE VENTO é teu silêncio de urtigas açoitando-me, nua na estrada. Este vento és tu em revoada espalhando na fria madrugada as cinzas da minhalma incendiada.
PRELÚDIOS
TENSO PORTAL de jasmins umbral sombrio em silêncio e sem peso o chão acaricio.
ESTA MANHĂƒ afago tudo inclusive as pedras sou a mĂŁe do dia aurora no horizonte solferina.
PORQUE sou de terra preciso de chuva e para ser verde de ti tenho sede.
FELINA por te amar esta vertigem se espreguiรงa virgem em meu corpo lunar.
E POR ESTAR densa e tĂşmida plena de amor e alegria explodi umedecendo o largo corpo do dia.
QUE importa se nada sei de ti? Gosto tanto do sol e nada sei de astronomia. Amo tanto o mar E nada sei de oceanografia.
POR NĂƒO ter sido rosa esta selva agoniza e em espinhos se cristaliza.
Ó AMADO que partes sem ter vindo eu despida de ti fico de luto ó amado e agora o meu destino que faço deste amor absoluto? Que faço deste amor absoluto ó amado e agora o meu destino? Eu despida de ti fico de luto ó amado que partes sem ter vindo.
ESTAVAS luminoso naquele dia: havias recolhido o sol dentro de ti e por isso chovia.
OS VESTÍGIOS de ti, incandescendo, são na desordem desta casa fria acordes de um órgão estremecendo todas as naves da catedral vazia.
ESTA NOITE valeu por muitas eras e acordo cinza que é a cor mais triste: arderam-me as estrelas até às cinzas e como aqui não eras não as viste.
CANÇÕES
A CANÇÃO da minha vida um dia ainda irás ler versos que entre as estrelas um a um vais acender. Então estarei bem longe escondida nos abismos então talvez me procures entre os teus mortos queridos e batas à minha porta sob as flores do jardim e eu surja, como gostas, com grinalda de jasmim em meu vestido de sombra um ramalhar de cetim as negras tranças de seda as mãos alvas de alfenim, virei tão branca e tão fluída como a outra amada vinha dos meus olhos de cisternas hão de fugir andorinhas. Fria e luminescente igual a um rio de prata hei de ser tão convincente como a outra, a amada morta. Mas no cristal apagado onde foi meu coração lê teu nome tatuado fonte da minha canção.
A QUE na paisagem do teu coração se sonhou, ardendo pleno sol-verão
Porém a paisagem do teu coração se gelou, ardendo polar-solidão.
na tua paisagem e por tua mão se acendeu, ardendo boreal-paixao
E nessa paisagem mais um sol, em vão, se cumpriu, ardendo mais uma estação.
O ESPELHO da cisterna te dirá:
esfinge, foste amado. Longe estarรก a que, por ter riscado tua face de bronze indecifrado, te fitarรก eterna das รกguas do passado.
ร PEDRAS de um rio que o tempo infiltrais
procuro um menino vede se mo dais. Procuro um menino que se viu no rio quando o coração não lhe estava frio. Ó pedras, ó rio, onde esse menino? Quem, do encantamento, lhe cortou o fio? Sua roupa orvalhada sua nau de lata alma em madrugada peixinhos de prata? Não volta o menino nas voltas do rio em mim que o procuro permanece o estio. Ó pedras lavadas que o tempo levais procuro um menino que não volta mais.
ESTA RIBEIRA que sou de colina em colina
a ti, meu rio, chegou afluentando em surdina. Correntes acorrentadas desaguaremos no mar: água una, misturada quem poderá separar?
O DESTINO da margem é ser no rio reflexo de um instante
por isso não te chamo nem abrando o teu curso ondulante. E assim como não me contentar em ser mansa paisagem de ti meu rio se buscando o mar me beijas de passagem?
QUANDO minha paixão está crescente não a posso conter porque sou fonte:
de mim transborda a vida e a alba se verte sobre a branca pรกgina do horizonte.
QUANDO te afaga o meu olhar
se torna a fonte de onde se entorna a minha alma. Quando me afaga o teu olhar me torna a ânfora onde se entorna a tua alma.
UM REI que veio do mar com seu manto de corais
e um bando de gaivotas nas ondas do seu olhar. Um rei de todos os mares com segredos e magias fazendo arder numa noite tantos sóis de meios-dias que, antes desse rei mago, desde a Alba anoiteciam. Este mago rei do irreal emergiu do rio da distância atravessando a ponte do arco-íris – arco de encanto sobre o rio-infância. E por ser mago do bolso lhe espreita o coração, canário real olhando em torno ramagem me encontra para mim voa e em mim se deita.
BARCAROLAS
DE CHUVA quero esta cantiga mansa por ti deslize como desliza a dança da chuva pelo sonho da infância. De chuva quero esta cantiga terna em ti se empoce como se guarda eterna a chuva no escuro da cisterna.
À MINHA BEIRA, menino desamarra tuas botas e ao tirá-las descalça também as antigas rotas. Desata dos pés o mundo descalço vem caminhar em mim que sou claro rio onde te podes mirar. Cantante água, num sino de flor, tu bebes, menino o meu silente e profundo coração de arroio fundo. Água para te lavar dourado arroio de mel em mim põe a navegar tua frota de papel. Ai que te posso levar onde o mundo não tem mágoa ai que te posso aquecer com os fios da minha água Ai que te posso abrigar Na gruta mais escondida ai que te posso esconder onde começou a vida.
Em mim que sou o teu leito abandona-te de bruços e às queixas deste regato vem misturar teus soluços. Imprime tua passagem nos limos da minha margem que o teu rastro acaricio com beijos mansos de rio. Cantante água, um sino, cantarei a te chamar até que voltes, menino, dentro de mim caminhar.
E POR estar assim tĂŁo vasta e tĂŁo ardente mastigo a terra e ao toque dos meus dentes brotam os rios rebentam as sementes.
PENSEI que pousarias a bagagem amarrando o cavalo na cocheira corri ao prado trouxe margaridas varri o rosmaninho da lareira. E fiz a cama com lençóis de linho tirei do armário rendas e faianças vesti-me toda em seda e esperanças verti em duas taças doce vinho. Porém quando as estrelas se apagaram já te encontrei distante da bagagem e tuas emoções não me tocaram. A noite se abrasava na lareira quando foste outra vez para a viagem desatando o cavalo da cocheira.
DENTRO do pátio no vão da porta me silhueto sombra à espera tão branda e branca. Sobre o sigilo da noite mansa um sino toca anunciando a tua volta.
DAS ROSAS que te dei entrelaçadas temestes sebes espinhos raízes. Porém das rosas só entrelacei as pétalas a fragrância os matizes.
Pois antes de te dar รณ meu amor as rosas tantas rosas que te dei um a um os espinhos lhes cortei e, assim, das rosas colhi sรณ eu a dor.
SEMPRE que o amado longe silencia a vida arrefece e se planicia. Então a amada também silencia porque sem o amado seu canto fenece.
Mas se o amado perto se anuncia a vida se aquece e se oceania. Então a amada é toda poesia porque é o amado quem lha oferece.
A MENINA que ele vê é feita dele chegar a veste de luz que usa é a luz dele a olhar. Alguém viu essa menina antes do amado a amar? Suas cantigas e aroma fonte do seu coração suas rosas suas pombas todas de seda e algodão as abelhas dos seus olhos e o sorriso lunar nascem quando ele as chama são feitos dele chegar. Alguém viu essa menina? antes do amado a amar?
Nota Explicativa da Autora Em RELÓGIO D’ÁGUA estão reunidos os livros que publiquei de 1965 a 1985. Foi uma espécie de celebração de 20 anos de poesia. No entanto, “Cartas do Deserto”, “Cancioneiro das Chuvas” e “Música dos Cravos” eram pequenos conjuntos de poemas inéditos que incluí na abertura do livro. Nesta reunião da minha poesia, estão aqui apenas os poemas destes títulos referidos que fazem parte de RELÓGIO D’ÁGUA. Maria de Lourdes Hortas (Recife, maio de 2016)
A todos os amados dos vรกrios tempos deste relรณgio, รกguas tecendo o eterno amor.
“Sua força recomeça a bater nos meus degraus roda impelida que sou por suas águas.” (CELINA DE HOLANDA)
Cartas do Deserto 1985
INVENTÁRIO Vida a fiar areias vento afiando plainas inventos, rapsódias rodopios miragens sobrepostas no granito da solidão. Inventárido : eólica erosão.
ESPERA Violenta esta paz violeta. Pulveriza este chumbo de tristeza. Estilhaça os muros antárticos do silêncio voz que espero palavra rosa granada.
LOUÇA PARTIDA Corredores siberianos da noite caixa tão grande para mim sozinha eu também caixa plena de palhas embalagem do vidro coração que afinal acabou por partir-se. Vitral partido um estilhaço de mim para cada lado estou lá fora nas ruas, casas, países, mares, instantes pontes dias e noites próximas e distantes tudo onde fui e andei. Que mão me recolheria toda?
RASTROS Arma-dura esta armad’ilha de ser: pelas dunas dos dias arrasto a graVIDAde.
OS AUTOS DO PROCESSO
Acossada esfolhada torturada invadida
em abismos sem beiras aos mil ventos errantes na espera de instantes por todas as fronteiras.
Demolida afogada esquecida desterrada
desde os campanários à margem das torrentes em câmaras flutuantes além dos calendários.
Enganada violada saqueada estilhaçada
em jogos malabares nos túneis mais silentes de pátrias e ocidentes pó de cristal nos ares.
Arrastada cravada diluída repartida
por um tropel sem freio por sabres bivalentes em passados-presentes alma cortada ao meio.
INTERVALO Tudo já aconteceu inclusive este verso. Agora só me resta deixar-me ir na corrente do acaso até que eu própria desaconteça.
PRISÃO PERPÉTUA Então o masculino Senhor disse: vai, Eva, e nutre a vida com o suor dos teus sonhos. Não te esqueças, mulher que inventaste o amor e isso é imperdoável.
MONTANHISMO
Via-sacra dos dias em que me escrevo pela chuva das horas fustigada ermas lĂŠguas em que procuro as frestas das escarpas na noite alcantilada.
CHAVE Quando o medo vem tenho de acreditar, para enganá-lo que as palavras são a gênese de tudo - únicos traços para assinar o muro. E me sussurro: afinal não foi preciso ao próprio Deus dizer-se palavras para que a luz abrisse as portas do escuro?
ENSAIO DA MORTE Ardis ocultos nas malhas de um instante cerimonial ensaio do corte que, por acaso, nĂŁo se cumpriu. Sobre o abismo o filamento de seda ainda oscila.
CACIMBAS De nenhuma casa me torno íntima de várias, mal me sento, desembarco e nas paredes, ao lhes despir os quadros ficam as chagas dos cravos que arranco. Ritual com que desabito mais um átrio de areia outra também dessas tantas cacimbas de luas cheias.
BOLETIM METEOROLÓGICO Silêncio oscilante no extenso vazio da bruma. Nenhum rio água extinta nos lagos de areia. Calaram-se todas as chuvas rumores de correntes cristalinas sonho escoado até o pleno estio.
AI QUEM ME DERA UMA TRISTURA ANTIGA D’antes, como dizia minha avó, tudo era diferente. Árvores de estrelas ficavam florindo estrelas no canto delas e nem se falava em astros metálicos corrupiando para atrapalhar o sossego desses quintais do céu. D’antes - e não faz muito tempo, ainda me lembro havia luas novinhas por estrear, luas novas em folha na noite e na folhinha que a gente dependurava na cozinha, além de outras luas, naturalmente: cheias, minguantes e crescentes. Pois nesse tempo sem campos de basalto sem brisas de ar condicionado sem pássaros travestidos de cigarras eletrônicos trinando dia e noite tão febris algazarras ainda se falava em pecado temia-se o inferno e o purgatório e o amor era assim um encanto-encantado, valsa, carícia sorrateira e trêmula de mãos, azul ou cor de rosa monograma bordado em linhos de noivado passeio aos domingos, bem-me-quer esfolhado bailes, luares, varandas, serenatas galopes flores secas em envelopes cartas, desmaios, frêmitos no coração amor-amor ao invés de relação. D’antes, como dizia minha avó, tudo era diferente: basta dizer que até havia gente. Por que me lembro agora de minha avó? Será mera saudade, ou já afinidade à porta do presente onde o passado finda? Ai quem me dera ainda que ela existisse. Queria perguntar-lhe como era mesmo a história do vice-rei da Índia um tal tataratio a serviço d’el rei quem sabe ela sabia
até o endereço desse indiano paço num tempo de compasso damas de companhia saia de renda e laço morna melancolia. Ai, se Índias havia, era pra lá que eu ia. Ai quem me dera a minha fosse tristura antiga eu e a tataratia a tocar alaúde às sacadas do paço ou olhando, bem lânguidas as paisagens ao longe os nossos bastidores pousados no regaço: minha tataratia a bordar o fastio do meu tataratio que abalara para a guerra. E eu bordando em seda A tristura tão leda das flores que bordei por esse intimorato mui andarilho amado que partiu sem cuidado para além do além mar a serviço d’el(e)rei, sem data de voltar. Ai quem me dera agora estar nesses confins das Índias da avó a ouvir os flautins cimitarras, alaúdes, sem me sentir tão só. Ai quem me dera agora Andar pelas colinas tão branda e cristalina com mãos de parafina a esfolhar boninas.
Ai, se ร ndias havia era pra lรก que eu ia.
RECADO DE EVA Antes que me esqueça, Adão, preciso perguntar-te: acaso conferiste, uma a uma, tuas costelas hoje pela manhã? Digo isto porque, de madrugada enquanto dormias o Criador veio e me fez de uma delas justamente aquela que ficava sob o teu coração. Para a teres de volta (e como ela te deve fazer falta) tens de me colocar inteirinha nesse lugar
Cancioneiro das Chuvas 1984/85
CIRANDA Em todas as casas te procuro, Casa onde habitou a infância hora luminosa e matinal em que o galo canta e o sino toca punhados de granizo tamborilando no telhado e a silente carícia da neve pousando nos peitoris. Em todas as casas te procuro, Casa: beirais de pombas escadas de granito, vento de inverno uivando pelas frestas madrugadas de susto em que os foguetes te sacudiam, branca e recatada abadessa à esquina da rua do convento fazendo abanar os caixilhos das vidraças das janelas onde mais tarde se desfraldavam as colchas de damasco para as procissões de ver passar os anjos eu, entre eles. Em todas as praças te procuro, praça das cirandas Praça do pelourinho com a barca, o pássaro, o escudo real primeiras interrogações ao mistério do capitel. Em todos os navios te navego, Ribeira a fluir prateada sob o arco do tempo para te esfolhares na roda do moinho dentro da primavera de malmequeres quando me sentava à tua beira mordendo a cor vermelha das cerejas.
Em todas as paisagens te procuro, aquarela de centeio e oliveiras, pinhais agrestes, ramos de giestas urzes, amoras, muros velhos de musgo e heras antigas. Em cada por-de-sol ardente vos espero Cegonhas de vôo lento e branco hóspedes de verão na torre da igreja. Em cada chafariz te procuro, Fonte explosão da vida líquidas estrelas de cristal recolhidas em meu cantarinho de zinco. Longe ficou o mundo em que a única ameaça eram os ciganos seu rufar de bombos acompanhando a evolução dos acrobatas no trapézio suspense anunciando os capítulos da história em que seria eu a trapezista. São Vicente, único país riscado a sangue no mapa das minhas lembranças tantas ruas atravessei no mundo porém as únicas que me atravessam são as tuas aldeia encravada nas serras do meu coração: ruas de São Vicente onde minha infância passou correndo com as tranças se desmanchando ao vento andorinhas emigrando sem retorno.
MIRAGEM Do passado, heras, folhagens me espreito da aldeia moura vagando, encantada por eiras de lua-cheia. Que as clepsidras noturnas vertendo águas e ânsias não diluíram nas pedras os passos da minha infância. Toda luz, encantação de claves, pautas, colcheias à flor das águas, cantigas em canto de solidão como se, infanta, chorasse na voz de fontes antigas por serras do coração. Por trás do muro, barragem túnel de rosas, cadeia anda a menina, visagem lenda que mora na aldeia.
PROCISSÃO Ah procissão de tantas ventanias esfolhando, uma a uma, as primaveras. Em qual delas ficaste diz-me em que dia te enraizaste com a força das heras.
CÍRCULO A infância partida depois tudo passagem assim me leva a vida sempre numa viagem ponte para que eu volte ao eixo desse corte. Os ventos da viagem me dispersam na vida pois em cada partida só estou de passagem quem ficou nesse corte esperando que eu volte? Há um mar nesse corte que me cortou a vida me dizendo que volte ao porto da partida assim tudo é passagem à véspera da viagem. Em minha sina um corte corta a linha da vida e mesmo que eu volte resta a sina partida há cruzes na passagem na trilha da viagem. A infância que volte há de ser só passagem sonho que o sonho corte rumo a outra viagem. Não se restaura a vida que se quebra, partida.
Minha sina, partida Se cumpre, na passagem nรฃo repousa na vida quem estรก de viagem. Hรก um doer de corte a me lembrar que volte.
OS BASTIDORES DE PENÉLOPE Não sei se é mar o que, além, distante turvou o mar, esboço de um navio. Nem me pergunto, se aos portais do levante noivas esperam, bordando um desafio. Nem sei se é lenda isso que, de repente escuto, grave, como ouço um cantochão nada pergunto, basta saber, somente não ser a mão que aquece a tua mão. Nada pergunto, porque é uma ermida meu corpo onde se enterra a minha alma e o coração, nau sem velas, perdida vogante erra, num mar de fel e chama. Resvala a vida sob os arcos do sono coagulada na cor da indiferença. Se hoje as estrelas se matam, de abandono nada, a mim, pedra, faz qualquer diferença. Não vou matar-me, porque não sei aonde andam, perdidos, meus sete corações me dói a vida, porém a dor se esconde onde fiquei, nessas tantas versões. Não estou morta, contudo, entorpecida sob redoma de catalepsia clarins de pássaros trinam uma elegia à fera noite, devorando outro dia. Não vejo mais, como só antes via pelas janelas se escancarar a aurora. E até a lua, minguante, se extravia pelas ruínas onde só vento mora. Olho, sem ver, as fogueiras que via Soluça, longe, exausta maré-cheia. E no lugar onde a casa existia Ronda o silêncio a espalhar areia.
DIURNA Infanta de miragens também fui Mas hoje não acendo os candelabros é diurna a certeza que sepulta as luas de que os sonhos são bordados. Desvesti-me de todas as paisagens e as atirei ao vento do desgosto desterrei flores, espantei estrelas foram-se os pássaros, um por um deposto.
CADÊNCIAS Vens à varanda, nuvens de mil pássaros se desenlaçam de sob a folhagem: és tu, amado, que regendo espaços vestes de música a nua paisagem. Vens à varanda, me acenas, longe e uma praça nasce dos teus braços: um sino oscila cantigas de bronze sol de aleluia em meus dias baços. Enquanto a bruma, cúmplice e silente guarda a miragem onde me resguardas vens à varanda abrindo o horizonte chamas de cravos ardem, esfolhadas: és tu, amado, curva além do monte onde se ateiam minhas madrugadas.
VERTIGEM Quando em vertigem tombo, enluecida, desço às cisternas, em seus cristais me cego por desespero a verdade nego apunhalada te apunhalo, vida. Brotam de mim espinhos que aos molhos são desatados pelas incertezas desenterradas desde as profundezas rompendo à flor das águas dos meus olhos. Punhais de amor varando esse gelado Aquário de ciúme onde o ciúme arde dentro do peito incendiado. Gritos em brasa, afagos de um cardo: Ao se cravarem no amor são vagalumes que em se apagando o deixam tatuado.
LEVANTE Aurora só me acontece quando ao acordar contigo seja sábado ou segunda sempre há lua e é domingo áurea hora que se tece quando ao acordar contigo o levante se entumesce e põe meu corpo fremente igual a um campo de trigo.
DENTRO DE UMA ROSA Trago no meu, teu coração guardado Como se guardam dentro de uma rosa as quatro estações que o completaram: assim, podes andar bem descuidado pois que nem aves, e nem mariposas hão de encontrá-lo aonde o semearam.
MÚSICA DOS CRAVOS 1984
HERANÇA “Trago na boca o coração dos cravos” FLORBELA ESPANCA
Eis-me guitarra pela noite escura frêmitos rubros, cada nota um passo também me entrego inteira a essa tortura de tanger pranto e de lhe dar compasso. Trago na boca o coração dos cravos que me couberam como tua herança menos da cor e muito mais dos travos ardência amarga onde não há mudança. Hoje vou eu por esta sina afora plangendo as cordas que me levam presa a repetir o que disseste e dizes. Eis-me guitarra enquanto dure o agora à tua unindo a minha mágoa acesa queixa dolente de ancestrais raízes.
ROSA-DOS-TEMPOS “O gosto que sinto em poder explodir silenciosamente” MÁRCIA AMÉLIA HORTAS MOREIRA
Palavras que hoje esfolho às esquinas do vento hão de girar, libertas pela rosa-dos-tempos. Palavras que recolho quando eu silencio grito hão de varar distâncias notícias do instante que sou no infinito. Não ditas, mas escritas sempre as palavras voltam sonatas de silêncio que a quatro mãos se tocam. Palavras em torrente a derrubar as grades os muros e as portas e a fluir das caves que hão de gritar, rubras na espiral eterna áurea subterrânea nascente das cavernas por arcos, tantos arcos túneis e corredores enquanto a terra gire vale de chuva e flores: só a palavra escrita é realmente dita.
TEOREMA Que nome tem o que em mim flameja Por vezes claro e tão luminoso outras, tão fundo, que se põe umbroso que nome tem, em mim, seja o que seja? Quem equaciona este teorema? Como cifrá-lo? Que signo lhe invento? Vem na cadência do tropel do vento o repetido som que o emblema? Ah fogo-fátuo, cometa em viagem alumiando nos breus do contexto os plenilúnios de outro personagem lume verbal, lanterna de romagem a projetar nas ruas do pretexto a sombra que me leva na bagagem.
VITRAL Nestas sonatas de inverno cachoeiras pluviais pluralizam-se os eternos dilúvios conventuais: cisternas de aves retidas em claustros de pedra e sombra inventário de outra chuva que em minha chuva se alonga. Cursos d’água que reatam um a um os vendavais mantos, rendas de arrepios nos ombros das sombras nuas sobrepostas nos vitrais.
BRISA Tangendo a harpa da fonte da monja que vaga brisa de violetas, perfume รกgua rindo se irisa em vaga de vagalumes.
CARROSSEL Nas fugitivas miragens do espelho de papel se sobrepĂľem as imagens dos enredos em tropel. Mudam sĂł os personagens Que giram no carrossel.
MINUETO Renascenรงa no chafariz do claustro: concha sobre concha รกgua sobre รกgua contradanรงa.
QUANDO A SOMBRA SE ABRE Vivendo ĂŠ que dormimos acordar ĂŠ depois quando a sombra se abre e se finda o segredo desterro que se cumpre nesta esquina do medo.
DOBRES Meus sinos dobram outras agonias: alheio campanário rosto vário porém os mesmos ais os mesmos dobres sinos sinas sinais mesmos calvários.
RENOVAÇÃO É sempre o mundo que em nós principia nas fundas grutas de fontes secretas faíscam lumes de estrelas bravias deliram rosas plenamente abertas.