SENHORA DA ORADA
A SÃO VICENTEDBEIRA
SENHORA DA ORADA
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SENHORA DA ORADA Título da Obra SÃO VICENTE DA BEIRA Título do Volume I: SENHORA DA ORADA Coordenação Editorial: Maria Inácia Palma de Brito (Licenciada em Comunicação)
Pesquisa Histórica e Textos: José Teodoro Prata (Licenciado em História)
Edição GEGA - Grupo de Estudos e Defesa do Património Cultural e Natural da Gardunha Apoio à Pesquisa Histórica e Recolha de Documentação Adelino das Dores Costa Dário Manuel Candeias Inês João Manuel dos Santos Paulino Henrique Candeias da Cruz Daniel Candeias da Cruz Projecto Gráfico, e Fotos: Tó Sabino (Jornalista)
Apoios: Junta de Freguesia de São Vicente da Beira Câmara Municipal de Castelo Branco Instituto Português da Juventude, Governo Civil de Castelo Branco Composição, Impressão e Encadernação Centrograf - Serigrafia, Publicidade e Artes Gráficas, Lda São Vicente da Beira Proibida a reprodução integral ou parcial, por qualquer meio, sem autorização expressa do Editor desta obra, exepto para referências críticas em qualquer meio de comunicação social. Depósito Legal n.º 165.712/01
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Apresentação
São Vicente da Beira é o nome de uma obra composta por vários volumes sobre a história, usos e costumes desta Vila. No primeiro, sobre a Senhora da Orada, é traçada a história e a lenda deste Santuário. Outros volumes se seguirão em que serão tratados temas como a historia da fundação de São Vicente da Beira, desde épocas antes do primeiro foral em 1195, poesia vicentina de poetas populares nascidos nesta vila ou que a ela ficaram ligados por cá terem vivido e dedicado toda a sua vida a esta terra, as memórias paroquiais, descrição histórica dos vários monumentos existentes na freguesia, o aspeto etnográfico e cultural em que serão tratados os usos e costumes das gentes vicentinas. Pretedemos de certa forma reavivar e recordar as memórias de um povo e de uma terra e contribuir para a preservação de uma identidade que só aos vicentinos pertence. Queremos agradecer aqui a todos as pessoas que nos ajudaram com a cedência de documentos e esperamos que para as publicações futuras possamos continuar a contar com a boa vontade de todos os vicentinos e de todos os que amam São Vicente da Beira. GEGA, Grupo de Estudos e Defesa do Património Cultural e Natural da Gardunha. Maio de 2001
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Introdução
O
livro que agora apresentamos aos leitores em geral e aos vicentinos em particular é sobre a Senhora da Orada, um santuário religioso e natural, por onde passa um pouco da compreensão da comunidade que fomos e por onde passarão inevitavelmente quaisquer projectos de animação turística desta vertente sul da serra da Gardunha. O nosso principal objectivo, mais do que realizar um profundo estudo interpretativo, foi compilar em livro as imagens e os textos mais significativos sobre a ermida. Por isso esta obra tem a forma de colectânea de documentos, ordenados cronologicamente, apresentando--se apenas no final uma pequena resenha histórica, em que se procurou sintetizar a história da ermida e compreender a devoção a Nossa Senhora da Orada. Publicamos imagens que mostram a religiosidade do lugar; apresentamos documentos antigos, em forma de texto, nunca antes publicados, que permitem reconstituir com rigor alguns aspectos da história do lugar; reunimos as quadras que o povo cantava em dias da romaria e os versos que um dos nossos poetas dedicou à Senhora; transcrevemos os estudos que outros muito antes de nós realizaram. Este livro e outras obras que o GEGA vai editar, mostram a cultura de um povo, mas o principal destinatário é esse mesmo povo. Por isso apresentaremos os estudos de forma simples, o que não excluirá a qualidade. Por outro lado, não esperem de nós atitudes de bairrismo doentio, nem estaremos ao serviço de causas de quaisquer grupos, pois a informação e a interpretação que tentaremos dar terá por única referência o rigor e a verdade. Deixamo-vos em mãos o livro Senhora da Orada. É o trabalho de uma equipa de vicentinos, que gravita em torno do GEGA, impulsionada pelos seus dirigentes, que nos contagiam pelo seu entusiasmo e persistência, e baseada no seu rico fundo documental. Esforçámo-nos por fazer para vós uma obra que não desmerecesse esta jóia da Gardunha e de São Vicente. São Vicente da Beira, Maio de 2001
José Teodoro Prata
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Prólogo
Entrevista gravada ao ti´ Joaquim Teodoro (1891-1993), realizada em 1990, por José Teodoro Prata.
“A Senhora da Orada é muito antiga.” Houve uma lei, e foi cá e na nação toda, qualquer pai, mãe, que tivessem uma filha que aparecesse grávida, eram obrigados a desterrá-la, a matá-la ou a abandoná-la. Um pai encontrou a filha grávida e, para não a matar, levou-a para o sítio onde está a cruz. Havia lá uma cova funda e o pai deixou-a lá. Por Deus apareceu uma corça e ela mamava a corça, mas vinha a beber água à fonte, atrás da capela. A rapariga esteve ali a viver naquela cova e chorava muitas lágrimas, num ermo daqueles e não se podia vir embora para casa, porque era proibido. Ela rezava muito e apareceu-lhe Nossa Senhora e disse-lhe que ela não andava grávida. Quando bebeu água numa fonte, de bruços, entrou-lhe uma cobrinha pequenina para dentro da barriga e governava-se pelo que ela comia. A Senhora disse-lhe para ir para casa dos seus pais e que lhes dissesse que aquecessem uma caldeira de leite quente e a cobra quando lhe desse o cheiro do leite, que se desenroscava e que lhe havia de sair pela boca e que caía para dentro da caldeira; que fizessem ali uma capelinha com o nome de Nossa Senhora da Orada, Orada pela oração que a rapariga fazia. Os pais da rapariga pediram então uma esmola pelo povo e fizeram a capelinha. Na pia da água benta, dentro da capela, estava lá a cobra. A capela já foi acrescentada por várias vezes. Em 1930, quando a minha primeira mulher morreu, andavam a acrescentar a capela-mor, porque era muito pequenina. Estiveram lá uns frades, há muitos anos. A parte da casa onde estava a pedra d´hera pertencia à capela. O António Neto tirou a pedra e levou-a para a capela. Eu estive lá muitos anos como rendeiro. O ermitão que lá estivesse era senhor da casa toda, só no dia da festa é que não. Vinham os festeiros a prepará-la, porque os padres iam lá a comer. A festa foi sempre no quarto domingo de Maio.
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SENHORA DA ORADA Houve um homem, o Ricardo Velho, avô do Manuel Valente, que aforou aquilo e morreu-lhe a mulher e depois ficou para a Casa Cunha. Depois eu estive lá de rendeiro e ainda me obrigavam a dar uma galinha com uma ninhada de pitos e muitas coisas da agricultura. Havia uma fonte que estava atrás da capela, essa é que era a fonte. O Ricardo Velho é que, para aproveitar aquele bocadinho, arrasou a fonte e foi pô-la do outro lado, mas a fonte natural era atrás da capela. E ao pé da fonte havia um moinho para moer milho e outra semente.
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DOCUMENTOS HISTÓRICOS
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Documento n.º 1 Nome: Retábulo Data: Século XIV Estilo: Gótico Material: Alabastro Representação: Degolação de S. João Baptista e Flagelação de Jesus Cristo
Documento n.º 2 Nome: Senhora da Graça (ou das Graças) Data: Séculos XIV a XVI Material: Pedra de Ançã Origem: Possível oferta de D. Nuno Álvares Pereira
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Documento n.º 3 Nome: Pia da água benta Data: Século XVI Estilo: Manuelino Particularidade: Tem esculpido o brasão dos Costas
Documento n.º 4 Nome: Cristo Crucificado Data: Anterior a 1711 Nota: Colocado primitivamente no alto do arco no interior da capela
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Documento n.º 5 Nome: Santo Anselmo Data: Anterior a 1711
Documento n.º 6 Nome: Senhora da Orada Data: Anterior a 1711 Técnica: De roca
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Documento n.º 8 Nome: Cruzeiro Local: À entrada do terreiro, no lado direito. Data: Século XVI Estilo: Manuelino Material: Granito e calcário Particularidade: Tem esculpido o brasão dos Costas e a cruz de Cristo
Documento n.º 7 Nome: Pedra d´hera Técnica: Escultura em alto-relevo Material: Calcário Local: Casa do ermitão (até meados do século XX)
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Documento n.º 9 Autor: Adélia Teodoro dos Santos Obra: S. Vicente da Beira durante o séc. XVI Fundo documental: Actas do visitador do bispado da Guarda à Igreja de S. Vicente da Beira Manoel dias Conego prebendado na sua sé da Guarda e visitador neste bispado ca comissão do exmo snõr Dom Manoel de Coadros Bispo da Guarda e aos que esta carta de visitação virem faço saber que visitando sua igeija da villa de sam vicente da beira em presença dos curas e Juizes vereadores e maior parte do povo por achar serem necessárias algumas cousas ao culto divino da dita Igreija por serviço de nosso snõr dou o seguinte: (...) Encomendo muito aos curas e mais padres desta villa que guardem os custumes antigos no fazendo procissões das ladainhas e a acompanhar o povo nas romarias que fazem na nossa snra da Orada nos dias acostumados pois fazendo o contrário que se delles não espera ele será muito estranhado e se provera como for justo. (...) O vigário ou seus curas (...) porão a poblicação visitada na dita villa sob meu sinal e sello do ditto snor bispo pra mostrar fiz aos cinquo de Maio de mil quinhentos noventa e dous anos.
Manoel dias
Documento n.º 10 Autor: P.e Antonio Carvalho da Costa Obra: Corografia Portugueza, Tomo Segundo, páginas 390 e 391. Data: 1708 Comentário: A Senhora da Orada foi propriedade da Ordem de Avis, cujos comendadores, em São Vicente, eram os Costas. Mas antes de 1711, segundo Frei Agostinho de Santa Maria, a ermida já pertencia à Câmara Municipal de São Vicente da Beira.
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SENHORA DA ORADA Da Cõmenda de S. Vicente da Beira da Ordem de Aviz he Cõmendador D. Antonio da Costa Armeiro môr, cuja varonia he a sequinte. Dom Alvaro da Costa o Queimado de alcunha, que lhe puzerão, porque sendo de cinco annos queimou o rosto com polvora, de que ficou desfigurado: foy irmaõ mais velho de D. Joaõ da Costa, Alcayde mór de Castro Marim, progenitor dos Condes de Soure, e ambos filhos de D. Iulianes da Costa, pagem da lança del Rey D. Manoel, Embaixador del Rey Dom Ioaõ o Terceiro a Carlos Quinto, Veador da Princeza D. Ioanna, mulher do Principe D. Ioaõ, Veador da Fazenda, e do Conselho de Estado del Rey D. Sebastiaõ na sua menoridade, e e D. Ioanna da Sylva sua segunda mulher. Ouve o dito D. Alvaro da Costa, entre outros filhos, a Dom Antonio da Costa, que foy Doutor em Cannones, e casou com D. Magdalena de Mendoça, filha de Luis de Goes Perdigaõ, e de D. Margarida de Eça sua segunda mulher, de que teve, entre outros filhos, que não tiverão geraçaõ, a D. Maria de Mendoça, mulher de D. Pedro de Mello, e mãy de Antonio Ioseph de Mello, e seus irmaõs, e a D. Luis da Costa, que servio com satisfação no Alentejo, e casou com sua parenta D. Maria de Noronha, filha herdeira de D. Pedro da Costa, Armeiro mór, e Cõmendador de S. Vicente da Beira na Ordem de Aviz, e de D. Violante de Noronha, da qual teve a D. Antonio da Costa, que hoje he Armeiro mór, e Cõmendador da Cõmenda de seu pay: casou com sua sobrinha D. Ioanna de Mendoça, filha de D. Antonio Ioseph de Mello, e de sua mulher D. Ioanna de Tavora e Mendoça, de que tem, entre outros filhos, a D. Joseph da Costa.
Documento n.º 11 Autor: Frei Agostinho de Santa Maria Obra: Santuário Mariano, Livro I, Título XXVII, Páginas 103 a 109. Data: 1711 Comentário: Este documento, de que apresentamos o texto integral, em linguagem da época, é um dos mais importantes estudos por nós conhecidos sobre a ermida. Quase tudo o que se escreveu sobre a Senhora da Orada, desde 1711 até à actualidade, teve por base este texto. Frei Agostinho visitou a ermida e pessoalmente recolheu as informações, que depois publicou em livro.
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Da Imagem de N. Senhora da Orada da Villa de São Vicente da Beyra A Villa de Saõ Vicente da Beyra fica ao Meyo dia da Cidade da Guarda, e cinco legoas ao Noroeste de Castello Branco na fralda da Serra da Guardunha; deu-lhe foral ElRey Dom Affonso o Segundo. Em o seu termo, em distancia de meya legoa se vé a Casa, e Santuario da Senhora da Orada, aonde se venera huma Imagem da Mãy de Deos, invocada com este titulo, que he a consolaçaõ, e o alivio daquella Villa, e de todos aquelles povos circumvizinhos; porque todos os que recorrem em seus trabalhos, e apertos a esta clementissima Senhora, achaõ na sua piedade certo o seu remedio. E assim concorrem em todo o anno com huma grande frequencia os moradores daquella Villa, e das mais da vizinhança à sua Casa, e todos com grande fé, que tem na Mãy de Deos, achaõ nella bons despachos em suas petições. Fica esta Casa da Senhora situada em hum alegre, e delicioso sitio, devoto, e muyto a proposito para a contemplaçaõ das cousas celestiaes; porque ainda que he solitario, he povoado de soutos, que saõ da Senhora; fica esta Casa entre duas ribeyras, e está cercada de arvores silvestres, (e naõ he desprovido o lugar de frutas) que no veraõ com a bondade dos ares de que goza, e das aguas com que se rega, fazem mais appetecido aquelle lugar. Junto à porta da Igreja da Senhora está huma fonte, que parece milagrosa; he de excellente agua, e com ella se regaõ tambem as arvores no verão. A origem, e principios deste Santuário, mais por tradições conservadas nos moradores daquella Villa, do que por documentos, e escrituras autenticas, se refere nesta fórma. Quanto à antiguidade, fazem a esta Casa, e a esta Santa Imagem taõ antiga, que querem que já no tempo dos Godos tivesse principio naquelle lugar; o que tem muytas duvidas, e naõ mostraõ cousa que o prove; sem embargo de se acharem em Portugal algumas Imagens da Mãy de Deos antiquissimas, que já no tempo delles foraõ veneradas. E quanto à sua origem, refere a tradiçaõ ser milagrosa; porque dizem, que havia naquela Villa de Saõ Vicente da Beyra huns pays, que tinhaõ huma filha donzella, a qual enfermára de hum achaque, que mostrava no avultado do ventre estar pejada, e que persuadido o pay de que na verdade a filha o estava, e que ela havia faltado à honra, e credito de quem era, usando mal da sua honra, e reputaçaõ, a quizera matar, e como cõ o amor de pay se naõ atrevéra, a levára àquelle sitio, aonde hoje se vé a Ermida, que eraõ humas brenhas, e matos incultos, aonde havia muytas féras, com resoluçaõ de a entregar à sua voracidade,
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SENHORA DA ORADA para que ellas fossem os ministros executores, que dessem o castigo à sua culpa, despedaçando-a, e comendo-a. Vendose a innocente donzella neste desemparo, sem que lhe valesse dizer a seu pay, que o que os olhos viaõ nam era effeyto de algum crime que cõmettesse; mas doença, e enfermidade, que ella naõ conhecia, clamou ao Ceo, para que lhe acudisse, e valeose da piedade da Mãy de Deos, rogandolhe com orações, e copiosas lagrimas acudisse pela sua innocencia, e se compadecesse do desemparo em que se via. E como esta misericordiosa Mãy dos peccadores nunca falta em acudir aos desconsolados, como aquella donzella se via, e acode sempre em as mayores necessidades, lhe appareceo, e a consolou, animando-a, para que naõ temesse os perigos em que se achava; porque em tudo lhe prometia a sua assistencia, e protecçaõ. Disselhe que a queyxa, e inchaçaõ que padecia era de huma cobra, que se lhe havia gerado no ventre, que fosse para casa, e que dissesse a seu pay, mandasse aquentar hum pouco de leyte, e que posta em alto, com a boca sobre o leyte, sahiria a cobra logo. Veyo para casa, e dando conta do favor, que a Senhora lhe fizera, se fez a diligencia, e succedeo tudo como a Senhora lhe havia dito, e assim ficou sãa, e livre da morte. Mandoulhe mais a Senhora, que dissesse a seu pay, que naquelle mesmo sitio lhe ed ficasse huma Casa, em que ella fosse venerada, e servida, e que para mais certeza acharaõ no mesmo lugar sinal, (que hoje se não sabe o que era,) nem consta que sinal fosse, e que alli a invocariaõ com o nome da Senhora da Orada. E ainda hoje affirmão algumas pessoas antigas, que ouvíraõ a seus avós, e mayores, que ainda viraõ estar na mesma Igreja a cobra, ou despojos della. E segundo isto, não póde ser a antiguidade taõ larga como a fazem. Á vista deste milagre, e manifestaçaõ da innocencia da donzella, mandou fundar o pay o Templo, e Casa da Senhora, e devia mandar logo fazer a Imagem, para a collocar nella. Outros referem a origem em outra fórma, ainda que em sustancia seja quasi o mesmo. Dizem estes, que havia naquella mesma Villa huma mulher casada com hum homem, que sobre ser de condiçaõ acre, e terrivel, era muyto cioso, e com esta payxão molestava muyto a innocente mulher, e a maltratava. E como ella era boa, e devota de N. Senhora, avivava o demonio ( pela pór em desesperaçaõ, e apartar das virtudes em que se exercitava) mais a guerra que o marido lhe fazia. E chegou isto a tanto, que lhe sugerio o demonio, que a matasse; porque lhe faltava na fidelidade, que lhe devia. Com estas falsas presumpções, em que o inimigo o metia, levou enganada a honesta, e virtuosa mulher áquelle sitio, que por ser deserto naquelle tempo, e nas fraldas de huma Serra, lhe pareceo accomodado para lhe tirar a vida, e a deyxar sepultada nelle.
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SENHORA DA ORADA Vendo a afflicta mulher o intento do marido, e o grande perigo, em que se achava, sem ter quem lhe valesse, mais que o Ceo, valeose daquella misericordiosa Mãy dos afflictos peccadores, para que ella a defendesse no aperto em que se achava, encomendando-se a ella em seu coraçaõ. Naõ se deteve a misericordiosa Senhora. Appareceolhe logo, confortando-a, e reprehendendo ao illuso marido com grande severidade; o qual livre da tentaçaõ pelo favor da Senhora, e reconhecido da sua culpa, e temeridade, em julgar mal da sua innocente esposa, pedio perdaõ à Senhora, e em acçaõ de graças, pela misericordia, que com elle, e com sua honesta esposa usára, prometteo melhorar a vida, e de lhe edificar naquelle lugar huma Casa para perpetua memoria do beneficio, que ambos recebiaõ. Dando logo principio os venturosos casados à Casa da Senhora, mandáraõ logo fazer aquella Santa Imagem, que nella collocáraõ, em a forma que lhe appareceo. Estas saõ as tradições, e de hum, ou de outro modo podia succeder a manifestaçaõ da Senhora. He esta Sagrada Imagem de vestidos, e fórmada com braços de engonços, em hum meyo corpo de madeyra, accomodado em roca; mas de tam elegante, e fermoso aspecto, e de tão soberana magestade, que parece naõ ser obrada por mãos de homens, mas pelas dos Anjos. De tal sorte attrahe os coraçoens dos que nella põe os olhos, que se naõ pódem apartar da sua vista; e assim he muyto grande a devoçaõ, que os moradores daquella Villa tem a esta Senhora; e tambem das terras, e lugares circumvizinhos concorrem com muyta devoçaõ a veneralla, e a darlhe as graças pelos favores que do Ceo recebem pela sua intercessaõ. Na sua Capella se vem pender algumas mortalhas, e outras memorias de cera, em testemunho das suas maravilhas. No tempo das guerras estava aquella Igreja quasi arruinada, por naõ haver, quem lá quizesse, ou pudesse viver, e assistir, com o temor dos inimigos, e como o sitio he solitario ainda se fazia mais difficultoso para a assistencia. Hoje está esta Casa muyto augmentada; porque haverá dezaseis annos, que assiste nella por Ermitaõ hum virtuoso Clerigo, (porque sempre teve Ermitaens Sacerdotes de boa vida,) e Prégador. E esta sua assistencia se julga por hum grande milagre da Senhora. Passou este acaso por aquelle sitio, em tempo que naõ tinha Ermitaõ, e entrando na Casa da Senhora, tam namorado ficou da sua soberana vista, que se naõ podia apartar da sua presença. Pedio à Camera a Ermitania, que he a que a apresenta, o que logo se lhe concedeo, e porque era naquella occasiaõ sómente de ordens de Epistola, alli se acabou de ordenar. E naõ havendo alli cousa de que se pudesse sustentar, nada o intimidou só com a presença de nossa Senhora se deu por satisfeito, e he tam grande a sua alegria, e gozo com que vive naquele lugar, que diz que por mais trabalhos,
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SENHORA DA ORADA perseguições, pobrezas, e molestias, que tivesse, nunca pode acabar comsigo deyxar a companhia da Senhora, e diz, que nella quer acabar a sua vida; e elle mesmo repete, que de si mesmo se admira, e que naõ póde crer senaõ que a Senhora da Orada o tem prezo, para que da sua Casa se não aparte. Sustentase das suas Ordens, e Sermoens, e tem aquella Casa com muyto aceyo, e grande perfeyçaõ, e nisto se mostra melhor o seu fervoroso espirito, com que serve naquelle Santuario a nosso Senhor, e a nossa Senhora. Em todos os tempos tem feyto esta Senhora muytos milagres, e do tempo presente, refere o mesmo Ermitaõ muytos, dos quaes apontarey alguns, e seja o primeyro. Vindo este devoto Sacerdote, e Ermitaõ para a Igreja em 25. de Abril de 1695. encontrou a hum homem natural da Villa de Bouzella, Bispado de Viseu; era este casado, e vinha todo desfigurado, e quasi vario, e derramando muytas lagrimas. Vendo-o o charitativo Sacerdote, inquirio delle a sua pena, e o seu trabalho: disselhe o homem que elle era casado de poucos tempos, e que amava muyto a sua mulher; porém que naõ podia viver com ella, porque o inimigo o naõ deyxava. Trouxe-o à Igreja, e diante da Senhora da Orada fez que se confessase, como fez, e depois de o fazer se ouvio hum terremoto tam grande sobre a Ermida da Senhora, e com tal força, estrondo, e braveza, que todas as pessoas, que estavaõ na mesma Igreja, ficáraõ atormentadas, e deraõ vozes pedindo à Senhora que lhes valesse, e lhes acudisse; e outras fugiraõ para a Villa atemorizadas. Isto foy notorio a todos, e o homem ficou por favor de nossa Senhora livre daquella guerra, e trabalho, que lhe dava o demonio, e saõ tambem daquella grande tristeza, e afflicção que o demonio lhe causava, e se foy muyto alegre para a sua terra, louvando a nossa Senhora. E passados alguns tempos, avisou de que nunca mais padecéra aquelles assombramentos, e trabalhos que havia padecido. De outro homem refere, que morava em hum lugar, quatro legoas distante da Casa da Senhora, e que andava este muyto mal encaminhado, e que sonhára em huma noyte, que lhe apparecia a Senhora da Orada, e que lhe dizia fosse à sua Casa, e que a mesma Senhora o allumiava com huma tocha de grande luz. Despertou, e aproveytandose da illustração da Senhora se foy à sua igreja, e se confessou, e sahio da presença da Senhora, muyto outro do que viera. A outras muytas pessoas, que foraõ àquella Casa da Senhora varias, ou por falta de juizo, ou por illusaõ diabolica, encomendandose à Senhora da Orada, foy ella servida de lhes alcançar perfeita saude, e de as aliviar no trabalho, que padeciaõ. A huma moça apodreceo huma maõ de huma nascida, ou carbunculo maligno, que lhe nasceo, e estando para lhe cortarem a maõ, se encomendou à Senhora da Orada, e untandose com o azeite da sua alampada, logo cobrou nella perfeyta saude.
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SENHORA DA ORADA A Ermida da Senhora he muyto grande, tem uma fermosa Capella mór, e duas collateraes, e está toda muyto bem adornada; em huma das Capellas collateraes está a Imagem da Senhora Santa Anna, e na outra huma de nossa Senhora da Graça, com outra Imagem de Santo Anselmo Arcebispo. E todas estas Imagens saõ perfeytissimas. A Capella mór he toda de cantaria, e forrada de madeyra, como he tambem toda a Igreja. Emcima do arco da Capella mór tem huma Imagem de Christo crucificado muyto devota e perfeyta, de altura de quatro palmos, e meyo, em hum nicho forrado de azulejo, cõ muyto aceyo, e com hum docel muyto bem pintado, e cortinas de seda encarnada. O pavimento da Capella, e da mayor parte da Igreja he assoalhado de madeyra. He esta Ermida da Senhora da Orada, padroado da Camera da mesma Villa de São Vicente da Beyra, e ella h a que apresenta os Ermitaens. Tem a Senhora algumas fazendas, que administra a mesma Camera, de cujos rendimentos se acode à fabrica, e ornato dos Altares da Casa da Senhora.
Documento n.º 12 Memórias paroquiais Arquivo Nacional da Torre do Tombo Autor: O Vigário José Pegado de Sequeira Data: 1758 Notas: Ortografia actual. As partes ilegíveis estão assinaladas com reticências (...). Em distância de meia légua para a parte do norte, junto à estrada que vai para a Beira, na raiz da serra da Gardunha, está uma capela da invocação de Nossa Senhora da Orada, colocada em um retábulo antigo, dourado, na capela-mor e no arco da mesma e fronte em cima dele em um nicho de azulejo, está colocada uma devota imagem de um Cristo Crucificado e nos lados do mesmo arco (...) está um altar também retábulo em que estão colocadas a imagem de Nossa Senhora da Graça com um menino nos braços de pedra e a imagem de Santo Anselmo (...), ficando no meio em um nicho uma finíssima pedra onde está esculpida com a maior primor da arte a imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo (...) sentado em uma pedra, coroado de espinhos, e mãos
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SENHORA DA ORADA atadas, e em roda esculpidos todos os martírios da paixão, tem a mesma dita pedra, a cabeça do grande Baptista em um prato (...) em correspondência deste altar está outro com um retábulo velho, em ele colocada a imagem da Nossa Senhora do Socorro. É esta ermida da apresentação e protecção da Câmara da dita vila, por cuja renda lhe apresentam ermitão e a fabricam (...) e rendosas fazendas que tem no circuito da mesma capela, em não chegando a dita propriedade as despesas se supram pelo rendimento do Concelho. Tem o privilégio de não pagar dízima dos frutos que dão as mesmas fazendas e ao vigário os direitos paroquiais. E concorre de romagem muita gente à Senhora, principalmente no Verão de várias partes, e nos sábados da Quaresma a maior parte desta vila.
Documento n.º 13 Registos notariais Arquivo Distrital de Castelo Branco Contrato de arrendamento Ano: 1857 Senhorio: Câmara Municipal Rendeiro: Manoel Jose Ricardo e Maria Duarte Propriedade: Casal da Senhora da Orada Nota: Não se publica uma parte do documento, assinalada com (...), por não se considerar importante para o estudo da Senhora da Orada. Escriptura de renovação de praso, que fazem o Illustrissimo Presidente e mais dignos Vogaes d´este Municipio, a Manoel Joze Ricardo, e a sua mulher Maria Duarte, da Senhora d´orada, da propriedade infra declarada pelo foro annual de sete mil cento e vinte reis, e tres missas, pago em dia de Sao Silvestre; Saibaõ quantos esta virem que no anno de Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil outo centos sincoenta e sete, aos sete dias do mez de Maio, em esta Villa de Sao Vicente, Salla das Sessões da Camara, onde eu tabelliaõ vim por me ser pedido; ahi perante mim, e testemunhas ao diante
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SENHORA DA ORADA nomeadas, e no fim d´esta assignadas, foraõ presentes o Illustrissimo Joaquim da Cunha Freire Pignately da Gama, Presidente, Joao dos Santos Vaz Raposo, Vice Presidente, o Excellentissimo Joze Coutinho Barriga Silveira Castro da Camara, o Francisco Joze Dias d´oliveira, vogaes da Camara Municipal d´este Concelho, estes moradores em o logar da Povoa de Rio de Moinhos o ultimo e penultimo em Tinalhas, e aquelles primeiros em esta mesma Villa de Sao Vicente da Beira, sendo igualmente presentes Manoel Joze Ricardo, e sua mulher Maria Duarte, moradores no Casal da Senhora d´orada, uns, e outros pessoas do meo conhecimento de que dou fé; E logo por elles Illustrissimo Presidente, e Vogaes d´este Municipio, foi dito perante mim, e as refferidas testemunhas que sendo a Camara Municipal d´este Concelho Administradôra do casal denominado a Senhora d´orada nesta freguesia, o qual foi dado de afforamento por renovação no dia desouto do mez de Novembro de mil outo centos e vinte seis, por tres vidas cumpridas, e acabadas, e sendo estas findas, na pessoa da Mae , e sogra dos Emphiteutas Manoel Joze Ricardo, e mulher, se tornava necessario, e d´absoluta necessidade a renovação do mesmo prazo, que por unanime acordo d´entre as partes, ficava sendo d´ora em diante em fatheosim perpetuo, e que por isso renovavaõ, e davaõ novamente de afforamento em fatheosim perpetuo a Manoel Joze Ricardo, e sua mulher Maria Duarte, todos os predios de que se compõe o Casal da Senhora d´orada, no limite d´esta Freguesia, que confina pelo Nascente, e Norte com o Illustrissimo Joaquim da Cunha Freire Pignately da Gama, pelo Poente com a Ribeira Concelhia, e pelo Sul com Joao Simão d´esta mesma Villa, cujo casal se compõe de terras de semeaduras de centeio, milho, oliveiras, castanheiros, moinhos, e uma morada de Casas, comprehendendo igualmente os maninhos incultos nas referidas demarcações, tudo pelo foro annual de sete mil reis, e uma galinha, ou cento e vinte reis, e bem assim de mandar diser tres missas pago em boa moeda corrente, e metal sonante no dia de Saõ Silvestre, dia em que deve appresentar igualmente certidão de haver mandado diser as tres missas, que faz igualmente parte do foro, o qual será satisfeito ao Thesoureiro d´este mesmo Concelho no indicado dia, (...). E por elles Manoel Joze Ricardo, e sua mulher Maria Duarte foi dito, que aceitao este praso, com todas as obrigações e penas assima especeficadas, ao que obrigaõ suas pessoas, e em especial hipothecao a propriedade afforada, e de que se compõe o praso, obrigando-se outrosim elles Emphiteutas, e seus sucessores, a não opporem, nem mesmo a perturbarem a que a Camara Municipal, mande fazer as obras, que julgar necessarias para augmento da Ermida da Senhora d´orada, que existe no predio afforado, ainda mesmo quando se inutilise qualquer terreno produtivo, e não produtivo, ou arvoredo de qualquer qualidade que seja, e se obrigaõ igualmente a conservarem, e augmentarem tudo quanto diz respeito à dita Ermida; eu tabelliaõ a estipulei, e asseitei, a bem dos absentos, e mais pessoas a que pertencer possa, e depois d´esta por mim lhes ser lida, e declarada, e ellestudo outorgarem, e asseitarem, assignaraõ os Senhorios, com o Excellentissimo Doutor Diogo de Mesquita Castro e Albuquerque, solteiro Administrador d´este Concelho, morador no logar de Tinalhas, a rogo dos Emphiteutas por lhe rogarem, e diserem, que não sabem escrever, com as testemunhas a tudo presentes, o Reverendo Joaõ Joze da Fonseca, clerigo Presbitra, Parocho na freguesia da Povoa de Rio de
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SENHORA DA ORADA Moinhos, e Joao Ribeiro Garrido, casado, proprietario, morador no Casal do Monte Surdo, tanto estes, como aquele pessoas do meo conhecimento de que outrosim dou fé, eu Joao Pereira Carvalho tabelliao do Julgado que escrevi e assignei; Joaquim da Cunha Freire Pignatelly Joaõ dos Santos Vaz Raposo Jozé Coutinho Barriga Francisco Joze Dias de Oliveira Por mandado dos Emphiteutas por me rogarem em diserem que não sabem escrever = Diogo de Mesquita Castro e Albuquerque O P.e Joaõ José da Fonseca Joaõ Ribeiro Garrido O Tabelliaõ = João Pereira de Carválho Somma mil tresentos e dez reis = que recebi Joao Pereira de Carválho
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Documento n.º 14 Registos paroquiais Arquivo Distrital de Castelo Branco Registo de baptismo Ano: 1858 N.º de ordem: 114 Nome da criança: Callisto Vigário: Domingos de Matos Comentário: No século XIX, o rendeiro do Casal da Senhora da Orada era o ermitão da capela. Callisto, Filho de Pais incognitos, Exposto, na noite do dia vinte tres de Desembro do anno de mil oito centos sincoenta, e oito, a porta de Manoel Ricardo Ermitaõ da Senhora da Orada, e foi baptizado n´esta Igreja Matris solemnemente por mim Vigario d´ella abaixo assignado sub condicione aos vinte seis dias do dito mes, e anno foi padrinho Antonio Ribeiro Robles desta Villa foraõ testemunhas Joaõ da Silva Lobo e Manoel da Silva ambos desta mesma Villa, e foi dado a criar a ama Rozaria Maria, Viuva de Antonio Francisco de Aldea Nova, e para constar fis este assento que assignei com as ditas testemunhas em o dia, mês anno ut supra. O Vigario Domingos de Mattos Joaõ da Silva Lobo Manoel da Silva
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Documento n.ยบ 15 Nome: Cruz (ou cruzeiro). Material: Granito Local: Acima da capela, na encosta, no meio do mato. Significado do local: Lugar onde o pai abandonou a filha, por pensar que estava grรกvida. Data: O actual tem a data de 1881.
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Documento n.º 16 Administração do Concelho Arquivo Distrital de Castelo Branco Registo de correspondência Remetente: Administrador do concelho Destinatário: Governador Civil Data: 1895 Comentário: Neste ofício, a data da festa é o dia 21 de Abril. Officio N.º 118 Cons.º Governador Civil 2.ª Repartição 16 – 4 – 95
Illustrissimo e Excelentissimo Senhor. Devendo realisar-se no dia 21 do corrente mez uma romaria à Senhora da Orada, a 3 Kilometros d´esta Villa, rogo a V. E.cia que, para manter a ordem publica na mesma romaria, se digne requisitar uma fôrça de 10 praças de infantaria ou na sua falta de 4 ou 5 policias civis d´essa cidade, o que julgo preferivel sendo necesssaria a sua conservação n´esta Villa por algum tempo. O Adm.or J. M. M. Brito
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Documento n.º 17 Administração do Concelho Arquivo Distrital de Castelo Branco Registo de correspondência Remetente: Administrador do concelho Destinatário: Governador civil Data: 1895 Comentário: Apresenta-se este documento como prova de que não houve engano no ofício anterior. De facto, em 23 de Abril de 1895, a festa da Senhora da Orada já se realizara. Officio N.º 137 Cons.º Governador Civil 2.ª Repartição 23 – 4 – 95 Illustrissimo e Excelentissimo Senhor. Tendo de realizar-se no dia 1.º de maio proximo futuro uma romaria a S. Thiago, no povo da Partida, d´este concelho, e receiando, em virtude dos acontecimentos que tiveram lugar n´esta Villa no dia 20 de janeiro de 1894, e, por isso, da rivalidade que possa existir entre os povos da charneca e o d´esta Villa que ali affluem, haver alteração de ordem na mesma romaria, para evitar nova requisição de força e assim tambem outra despesa com o seu transporte, parece-me conveniente conservar aqui a força que foi requisitada para a romaria da Senhora da Ourada, em meu officio N. 118 de 16 do corrente mez, até passar aquele dia; rogando a V. Ex.cia se digne providenciar n´este sentido. O Adm.or J. M. M. Brito
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Documento n.º 18 Autor: Desconhecido, entregue ao GEGA por descendentes da família Robles. Obra: Texto sem título, por se ter perdido a primeira página. Assunto: Senhora da Orada. Data: Finais do século XIX. Comentário: Este opúsculo, como lhe chama o autor, confirma a data da romaria no século XIX e algumas informações do Santuário Mariano: a lenda, apesar de apresentada numa nova versão; a existência do ermitão no século XVII; a ruína e reconstrução da capela nessa época, que este autor apresenta como edificada de raiz. (...) Aninha-se ainda nos corações piedosos d´estes povos a crença tradicional de um invocado milagre, que deu origem á edificação da capella em que se venera a imagem de Nossa Senhora d´Orada. Remontando ao penultimo seculo, o sitio em que se acha a ermida era um deserto. Por vegetação o mato, por habitantes o javali. A natureza mostrava-se alli em toda a sua fereza. No reconcavo dos valles mal se descubria a corrente de um regato que, tambem coberto pela ramagem dos agrestes arbustos, não suavisava a vista nem amenisava a paisagem. Por este tempo, um piedoso Asceta, querendo empregar todos os seus diaz na oração e na penitencia, foi escolher para a sua habitação um sitio proximo d´alli. Edificou uma cabana sustentando-se dos magros legumes que por suas mãos cultivava, vivia simplesmente para Deus. Era um justo. Uma tarde, quando o sol se ia sumindo no curto horisonte e o felis anachoreta sentado em umas pedras admirava este prodigio da natureza e a Majestade Divina, viu que se lhe aproximava uma mulher, jovem ainda, mas vestida em desalinho, com o rôsto turbado de angustia e soffrimento, que manifestava pelas suas lagrimas. Chegada ao pe do padre ajoelhou. Contou-lhe quaes as suas dores, as tentações e os desesperos a que estava sujeita. Cria-se arguida, calumniada e expulsa da casa paterna por ter uma molestia que não conhecia, mas de que a sua pureza a não accusava. O som da sua vóz e a expressão da sua pessoa tinham o quer que fôsse de superior que, sem duvida, tocávam a alma do padre. — Ide minha irmã, lhe disse elle, amanhã de manhã heide dizer missa e nella pedirei á Virgem a vossa cura. Nessa occasião darvos-hei o pão
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SENHORA DA ORADA eucharistico. Orai e tende fé. Retirou-se a triste e o Padre dirigiu os olhos para o ceu. Quando, porem, as brumas da noite vieram despertar o asceta da sua oração e convidalo ao repouso no seu humilde tugurio, ainda a desventurada vagueava por aquella solidão. Cheia de fadiga, extenuada, com uma sêde abrazadôra, tentou dirigirse a um regato que ouvia correr no valle, mas faltando-lhe de todo as forças, encostou-se ao fundo de um rochedo, elevou uma prece ao Altissimo e adormeceu. Quando na manhã seguinte o cemobito se preparava para ir á povoação cumprir a sua promessa, appareceu-lhe ella, não já como na vespera, lacrimosa e triste, mas radiante de alegria e juventude, como que aureolada de uma inspiração divinal. O seu corpo já se não descompunha em monstruosas fórmas. Melgada, aprumada e linda parecia desafiar com a sua formosura todas as belezas do universo. O padre, estatico, ouvio-lhe a seguinte narração: “Mal pensava eu, quando ainda hontem ouvia as vossas palavras de conforto e de esperança, que tão depressa a Virgem se amenceasse de mim. “Sim, meu padre, por que a Virgem salvou-me. Via no meu sonho. Alem... Alem? “Sim, alem, ao fundo d´aquelle rochedo aonde cahi desfalecida. “Depois de ter vagueado pelo matto, sentindo-me oppressa por uma dôr immensa e com uma sêde abrazadôra, tentei descer ao ribeiro para refrescar o peito; mas não pude. A dôr e o cançasso prostraram-me ao fundo do rochedo. “Julguei-me perdida para sempre. Parecia-me que ia morrer. Pedi então a Deus a sua Misericordia, entreguei-me nos braços da Virgem, suppliqueilhe perdão para meus paes e adormeci. “No meu lettargo pareceu-me que estava no Ceu. Vi a Virgem dourada como tantas vezes a tenho visto no altar – mas tinha vida e movimento – Eu quis beijar-lhe os pés e Ella sorriu-se – tentei falar-lhe mas não pude mais do que chorar – “Chorei, chorei muito, e só quando aquele astro luminosos já dourava as cumiadas d´estas montanhas é que eu despertei; ainda banhada em lagrimas. Parecia-me que já não soffria. A meus pes deslisava uma limpida corrente. Sobre o rochedo, nos arbustos e em tôrno de mim myriades de passarinhos grogeavam alegremente. A natureza, ainda hontem tão sombria, apparecia-me hoje risonha e cheia de encantos.
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SENHORA DA ORADA “Estou salva – Salva, meu padre, pelas vossas orações. Não; pela vossa fé. Foi um dia festivo na povoação. A nova espalhou-se rapidamente, como que por encanto e parecia que os montes, as correntes, os arvoredos e as florinhas simples dos campos compartilhavam da alegria de todos os corações. A espensas da familia da venturoza menina foi edificada uma capella, proximo da fonte ate então desconhecida, sob a invocação de Senhora d´Orada, aonde ainda hoje se venera, recebendo uma constante peregrinação de devotos. O padre que alli vivia no sitio denominado Casal do Clerigo – tornouse o verdadeiro ermita passando para a caza que edificou proximo á capella. Em actos subsequentes foi a capella entregue á adminiastração da camara Municipal, que, seja dito de passagem, não tem, com o seu pouco zelo, sabido corresponder a tanto fervôr piedoso e a tão grande devoção.Silenciosa testemunha, aquella ermida tem visto crescer o gigante cypreste que o primeiro ermita alli plantou, e durante talvez um seculo, nem sequer uma pedra tem sido renováda nas suas decrepitas paredes. Existe como um protesto vivo ao abandono a que a teem votado as sucessivas administrações locaes. Recentemente viu-se avigorada a antiga crença e parece que a iniciativa particular irá alli beneficiar com algumas obras aquelle hoje tão pitoresco deserto, aonde uma vegetação luxuriante substituiu os antigos e espessos matagaes. Uma romaria annual no domingo de paschoela chama ao local centenas de devotos e é então principalmente que se reconhece quanto é venerada a imagem da virgem.
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Documento n.º 19 Autores: Elsa Teodoro dos Santos e Marília Roque Antunes Obra: S. Vicente da Beira, 1910 – 1926 Fundo documental: Actas das sessões da Junta da paroquia da freguesia de S. Vicente da Beira Sessão ordinaria de 10 de julho de 1911. Presentes o presidente Joaquim dos Santos Barroso e vogais José Bernardo Hippolyto, António Lino Lopes e Francisco Duarte. Aberta a sessão o presidente leu uma circular da Administração do concelho que manda a esta comissão inventariar todos os bens moveis e imoveis directa ou indirectamente destinados ao culto, logo que não pertenceram a confraria ou irmandade, legalmente erectas em vista d´esta ordem, resolveu-se inventariar como continuação da Acta do dia 6 de novembro de 1910, os seguintes bens actualmente sob administração da comissão parochial, segundo a lei da separação do estado das igrejas. (...) Oitavo – O dominio directo d´uma propriedade com terras de culturas, casa de malta, castanheiros, oliveiras, pinheiros e outras arvores denominada o limite da Senhora d´Orada, ao limite d´esta freguesia de S. Vicente da Beira, a partir de norte e nascente com doutor António Duarte da Fonseca Galvão do sul com Manuel Ramo Paiagua e do poente com caminho ou calçada da Portela é foreiro ou emphyteito d´esta propriedade o cidadão Doutor António Duarte da Fonseca Fabião morador n´esta villa sendo o foro anual da quantia de sete mil cento e vinte reis (7,120). No centro da propriedade está a Capela da Senhora da Orada com seu adro e fonte onde anualmente se faz uma romaria. A capella tem altar-mor dois altares laterais e pulpito e sineta. Contam as imagens da Senhora da Orada, da Senhora do Socorro, do Santo Anselmo, uma lampada, uma arca, crucifixo e castiçães de madeira e um simbolo da degolação de S. João Batista em Jarpe. E não se conhecendo actualmente mais bens que a esta corporação pertencer, deu-se por concluido o inventario e encerrou-se a sessão. E eu, Joaquim Maria dos Santos Caio, secretario a escrevi. O presidente Joaquim dos Santos Barroso Os vogais João Bernardo Hippolyto António Lima Lopo Francisco Duarte
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Documento n.º 20 Quadras cantadas pelos romeiros em louvor à Senhora da Orada Autores da recolha: M.ª Isabel dos Santos Teodoro, São Vicente da Beira, trabalho manuscrito. João Caldeira dos Reis Couto, Monografia da Vila de S. Vicente da Beira, trabalho dactilografado. Anónimo, folheto intitulado Senhora da Orada.
Nossa Senhora d´Orada Vosso sino não soa Vós tendes muito dinheiro Mandai vir um de Lisboa
Nossa Senhora d´Orada Quem vos varreu o terreiro Foram as moças de São Vicente Com um ramo de loureiro
Nossa Senhora d´Orada Vosso coro está a cair Mandai arranjá-lo Senhor P´ra gente que há-de vir
Nossa Senhora da Orada, Que vive ao pé da serra É a estrela mais brilhante Que temos na nossa terra.
Nossa Senhora d´Orada Vossa capela cheira Cheira a cravo, cheira a rosa Cheira a flor de laranjeira
Nossa senhora da Orada, Vinde abaixo à ribeira A ver a mocidade De São Vicente da Beira.
Nossa Senhora d´Orada P´ra lá vou eu agora Meu coração cada dia Minha alma a toda a hora
Nossa Senhora d´Orada, Tem uma ´strela na testa Que lhe puseram os pastores No dia da sua festa.
Nossa Senhora d´Orada Quem vos varreu a capela Foram as moças de São Vicente Com um ramo de marcela
Nossa Senhora d´Orada Meu coração lá me fica Preso ao Vosso altar Com vara e meia de fita.
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Nossa Senhora d´Orada, As costas Vos vou virando Minha boca se vai rindo E os olhos cá vão chorando.
Nossa Senhora da Orada Vossa água tem virtude: Com ela tantos doentes Recuperam a saúde!
Desde o Minho até ao Algarve, Desde o Mar até à Serra Glória à Senhora da Orada Glória à Tua oração.
Nossa Senhora da Orada Tem um sino no telhado Para chamar os pastores Que andam na serra com o gado.
Nossa Senhora da Orada, Oh, que Senhora tão linda! Chega a vossa nomeada À cidade de Coimbra.
Nossa Senhora da Orada O Vosso sino não soa. Mandai vir um depressa Da cidade de Lisboa.
Nossa Senhora da Orada, Tem uma estrela no manto Que lha puseram os pastores No dia do Espírito Santo
Nossa Senhora da Orada Meu coração lá me fica Preso ao Vosso altar Com vara e meia de fita.
Nossa Senhora da Orada, O Vosso terreiro é chão. Este ano está de relva Mas para o ano dará pão.
Nossa Senhora da Orada As costas Vos vou virando Minha boca se vai rindo E os olhos cá vão chorando.
Nossa senhora da Orada, Que tendes no Vosso terreiro? Um cipreste bem alto Ao pé do verde loureiro.
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Documento n.º 21 Nome: Música em louvor da Senhora da Orada, cantada pelos romeiros e tocada pela Banda Filarmónica de São Vicente da Beira. Propriedade: Banda Filarmónica de São Vicente da Beira
Documento n.º 22 Nome: Poesia popular em honra da Senhora da Orada Autor: José Augusto Alves em 22/5/1983
(...) A Senhora da Orada é uma senhora muito bela, O nosso antigo cruzeiro Está dentro da capela.
Nossa Senhora da Orada Muita gente cá trouxeste, Vossa capela cheira A madeira de cipreste.
Nossa Senhora da orada Gente ao largo se conduz, A volta até é pequena Para se ver a vossa cruz.
Nossa senhora da Orada Vosso terreiro ficou plano, Vossa romaria não diminui Aumenta de ano para ano.
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Documento n.ยบ 23 Nome: Prospecto da Nossa Senhora da Orada Data: 1951 Propriedade: Maria dos Santos Prata Candeias
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Documento n.º 24 Nome: Oração a Nossa Senhora da Orada Recolha: Maria João Jerónimo Matias Nota: Contada por Celeste Dias
Oração a Nossa Senhora da Orada Do vosso andor, juncado de rosas e de outras variedades de flores, formosa como a aurora e brilhante como as estrelas do céu, Senhora da Orada orai por nós. Lançai o maternal olhar, guardai e protegei os devotos presentes e ausentes, e muito particularmente todas as mães da nossa querida pátria e do mundo, porque em vós confiam como mediadeira de todas as graças e de perdão de misericórdia junto de Deus.
Documento n.º 25 Publicação: Jornal Pelourinho Número: 73 Data: Dezembro de 1966
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Documento n.º 26 Publicação: Jornal Pelourinho Número: 79 Data: Junho de 1967
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Documento n.º 27 Publicação: Jornal Pelourinho Número: 89 Data: Maio – Junho de 1968
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DOCUMENTOS FOTOGRÁFICOS
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Documentos fotográficos desde o início do Século XX
Quatro imagens das vestes que ao longo dos tempos têm sido oferecidas pelos povos que anualmente veneram a sua SENHORA DA ORADA
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O Recinto no início do Século XX. A grande árvore que tapava todo o espaço à frente da capela (foto abaixo) ainda era uma pequena árvore na foto de cima.
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Três aspectos de como era o Santuário em dia de peregrinação
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Nestas duas fotos de 1970, na época da Guerra Colonial, a Senhora da Orada representava a esperança de um regresso das terras de àfrica, e o povo, aos milhares, acorria à Romaria para agradecer e pedir graças. A fé na Senhora da Orada, ultrapassa o sentir de toda uma população, que acredita na sua Santa, a Senhora da Orada.
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Breve resenha histรณrica
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O Santuário no início do Século XX
A adoração de Nossa Senhora ocupou um lugar muito importante na religiosidade dos cristãos portugueses, logo desde a formação da nossa nacionalidade. As mais antigas igrejas de Portugal, edificadas no interior dos castelos, eram dedicadas a Santa Maria e a maioria delas festejavam o seu orago a 15 de Agosto, dia da festa religiosa mais solene da nação, a da Senhora da Assunção. Santa Maria e Senhora da Assunção ou, como em São Vicente da Beira, Nossa Senhora da Orada, Nossa Senhora do Carmo, Nossa Senhora da Assunção são nomes diferentes para o mesmo culto à mãe de Jesus. João Francisco Marques apresenta a seguinte explicação para a enorme importância do culto mariano: A ligação da Virgem Maria à humanidade de Cristo, profeticamente anunciada no Velho Testamento, recebe nos evangelhos a prova histórica
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SENHORA DA ORADA precisa para se poder firmar como verdadeira Mãe do Redentor, o Messias prometido e incarnado, que no sacrifício da cruz resgatou a humanidade do pecado e da morte. Torna-se assim Nossa Senhora, depois de Jesus, o intercessor privilegiado entre Deus e os homens pela sua dupla maternidade, a carnal e a espiritual, enquanto mãe do Salvador e da Cristandade (...). O lugar eminente que Maria ocupa na piedade popular torna-se entendível pelo testemunho de uma remota tradição milenar em que o laço afectivo de uma maternidade humanizada até às mais prementes instâncias do quotidiano é, sem dúvida, o lado mais comovente e indestrutível da devoção mariana. (...) Três motivos se pressentem subjacentes ao recrudescer da devoção à Virgem Maria que acompanha o movimento de cristianização (...): a dignificação da oração oral, doseada com a mental (...); o relevo acentuado de Maria na sua função de co-redentora, advogada dos pecadores e mãe de Misericórdia; o papel de intercessor celeste privilegiado no alívio das penas e libertação das almas do cativeiro do Purgartório. (1) Em São Vicente da Beira, a prova mais clara do aumento da devoção a Nossa Senhora foi a substituição do próprio orago de São Vicente, o santo a quem a povoação tanto devia, para Nossa Senhora da Assunção, em data ainda não conhecida, mas certamente no século XVI ou XVII, isto é, depois do Concílio de Trento (1545 – 1563) que incrementou o culto mariano, como forma de reforçar a religiosidade dos cristãos e combater a Reforma Protestante, ou após a Restauração (1640), quando D. João IV proclamou Nossa Senhora como padroeira de Portugal, oferecendo-lhe a coroa real portuguesa. A origem da ermida da Senhora da Orada é, no entanto, anterior a estas datas. Frei Agostinho, em 1711, refere que se dizia que a ermida já remontava ao tempo dos godos. Também as mais antigas ermidas de Portugal, dedicadas à mesma Senhora e situadas no norte do país, são do tempo dos godos, segundo as tradições locais. O tempo dos godos, fora, para os povos do norte da Península Ibérica, em luta contra os muçulmanos do sul, uma época de ouro. Nos primeiros séculos após Jesus Cristo, sob o Império Romano, o Cristianismo espalhou-se por toda a Europa Ocidental, mas era essencialmente uma religião urbana, pois a evangelização dos campos era ainda muito ténue. As invasões dos povos germânicos, ainda não cristianizados, trouxeram tempos difíceis aos cristãos, por volta do ano 500. Mas as adversidades muitas vezes fazem despertar forças adormecidas e os cristãos não só converteram os povos recém-chegados, como promoveram a cristianização das populações rurais, com tal sucesso que algumas centenas de anos depois, a Europa Ocidental era totalmente cristã e as ancestrais práticas pagãs do culto às
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SENHORA DA ORADA forças da natureza e das superstições iam sendo abandonadas. Mas em 711 a Península Ibérica foi invadida e conquistada pelos muçulmanos do Norte de África e interrompeu-se aqui este período de glória do Cristianismo. Assim, não é de admirar que, por volta do ano mil, os cristãos do Norte da Península Ibérica, em contra-ofensiva, empurrando os mouros para sul, lembrassem com nostalgia o tempo do Reino Visigodo. Não possuímos fontes históricos que nos permitam provar a origem goda da ermida da Senhora da Orada, mas existem alguns elementos que nos permitem admitir essa hipótese como possível: a cristianização dos povos pagãos fez-se dando um cariz cristão aos santuários da natureza, adorados por esses povos; a cristianização das populações rurais realizou-se através da implantação nos campos de comunidades de religiosos, os mosteiros, e de pessoas piedosas que se isolavam do mundo, vivendo sozinhos em eremitérios; o culto a Nossa Senhora, na Península Ibérica, remonta ao tempos dos godos. No Condado Portucalense, ainda antes de nascer Portugal, abundavam os mosteiros e sobretudo os eremitérios, não sendo, portanto, de afastar a hipótese de a ermida da Senhora da Orada ter uma origem anterior à nacionalidade. As fontes históricas já nos permitem trabalhar com alguma segurança no período entre 1300 e 1500. Desta época temos a imagem da Senhora da Graça, oferecida à ermida por D. Nuno Álvares Pereira, segundo o P.e José M. Semedo Azevedo. (2) O retábulo em alabastro, representando a Degolação de São João Baptista e a Flagelação de Jesus Cristo é do século XVI, na opinião de J. Pinharanda Gomes. Ainda segundo o mesmo autor, a pia baptismal é manuelina, sendo portanto do século XVI. (3) Esta pia de água benta tem a cruz da Ordem de Cristo e o brasão dos Costas, tal como a pedra d´hera, que o ti´ Joaquim Teodoro afirmou ter existido na parede da casa do ermitão e como o cruzeiro à entrada do terreiro da capela. Tais fontes históricas geram alguma confusão, que esperamos vir a esclarecer em breve, quando possuirmos mais documentos sobre o assunto. Assim, enquanto a cruz era o símbolo da Ordem de Cristo, de que eram comendadores em São Vicente da Beira os membros da família Sequeira, os Costas detinham a comenda da Ordem de Avis, cujo símbolo existe no nosso pelourinho e na fonte situada em São Francisco, parte da fonte de São João de Brito, que até cerca de 1965 embelezava a nossa praça. A Ordem de Avis, organização religiosa e militar, teve como Mestre D. Fernando Rodrigues de Sequeira, que sucedeu no cargo a D. João I e que teve como descendente Ascenso de Sequeira, natural de São Vicente. É provável que a pertença da ermida da Senhora da Orada à Ordem de Avis remontasse a essa época, isto é, a cerca de 1400.
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SENHORA DA ORADA Talvez que a situação da Senhora da Orada fosse semelhante à da Igreja Matriz, onde, segundo as Memórias Paroquiais, os dízimos pertenciam metade à ordem de Avis e metade ao convento de São Jorge, de Coimbra. Mas este mosteiro perdeu para a Ordem de Cristo esta comenda, no reinado de D. João II (1481 – 1495). Ficaram então as duas comendas a administrar a Igreja Matriz, nomeando os curas e sustentando-os. D. Nuno Álvares Pereira, era grande devoto de Nossa Senhora, a quem orava devotamente, atribuindo-lhe a vitória sobre os castelhanos em Atoleiros, na crise de 1383-85, motivo pelo qual lhe teria mandado construir a capela de Nossa Senhora da Orada, em Sousel. Outras ermidas se edificaram no Alentejo, sob o impulso desta devoção do Santo Condestável pela Senhora da Orada. Nuno Álvares Pereira terá até mandado fazer várias imagens de Nossa Senhora, que distribuiu por capelas dedicadas à devoção mariana, tendo vindo provavelmente uma para São Vicente, a Senhora da Graça. Ainda segundo o P.e José M. Semedo Azevedo, na obra acima referida, várias das ermidas dedicadas a Nossa Senhora da Orada estiveram ligadas à Ordem de Avis. Existem assim, por volta de 1400, alguns elementos que podemos combinar: a família nobre dos Sequeiras, com ramificações em São Vicente, lutou ao lado de D. João, Mestre de Avis, futuro D. João I, e de D. Nuno Álvares Pereira, na crise de 1383-85, pois um dos seus membros sucedeu a D. João, no cargo de Mestre da Ordem de Avis; D. Nuno Álvares Pereira era grande devoto de Nossa Senhora e promoveu o culto mariano no centro e no sul do reino; o Santo Condestável terá oferecido à nossa ermida a imagem da Senhora da Graça; várias destas Oradas pertenceram à Ordem de Avis; em São Vicente, como já se referiu, não foi a família Sequeira que ficou a gerir os bens da Ordem de Avis, mas sim a família dos Costas, pois aqui aos Sequeiras pertencia uma outra ordem, a Ordem de Cristo. Em 1711, quando o autor do Santuário Mariano, Frei Agostinho de Santa Maria, visitou a ermida, esta era cuidada por um ermitão sacerdote, que a encontrara arruinada dezasseis anos antes, por volta de 1685, e que pedira à Câmara Municipal a ermitania. O autor atribui o abandono da capela aos perigos das guerras, as da Restauração, entre Portugal e Espanha, que devastaram o reino entre 1640 e o fim do século. Não sabemos se foi esse o verdadeiro motivo do abandono a que a ermida foi votada, mas podemos concluir que ela já não pertencia à Ordem de Avis, seguramente desde meados desse século. Ainda não conhecemos documentos que nos permitam explicar esta mudança na propriedade de ermida e das sua fazendas. A Câmara administrou a ermida e as suas propriedades até à sua extinção em 1895 e nos inícios do século XX, em data que ainda não pudemos determinar, ainda era propriedade pública. A família de Manoel Jose Ricardo, que fez contrato de arrendamento da Senhora da Orada, em 1857, já cultivava este casal há várias
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SENHORA DA ORADA gerações, pois em 1826 renovara o contrato, porque caducara o contrato anterior, que era de três vidas. Em 1911, António Duarte da Fonseca Fabião, membro da Casa Cunha, trazia a propriedade aforada e o ti´ Joaquim Teodoro foi ali rendeiro e pagava os foros a esta família, talvez em situação de subarrendamento. Não conseguimos ainda determinar a data em que a casa Cunha comprou as fazendas da ermida. Deu-se então, naquele virar de século, com a extinção da Câmara Municipal e a separação da Igreja do Estado, já iniciada no século XIX e concluída no período da República, a divisão entre a capela e as fazendas, sendo esta entregue à Igreja Matriz e as propriedades vendidas à família Cunha. Em 1980, os descendentes desta família venderam a propriedade a Joaquim Teodoro dos Santos e a José Francisco Matias, que a dividiram entre si e na posse de quem ainda hoje se encontra. A capela foi ampliada e reparada várias vezes, de tal forma que pouco existirá do templo primitivo. A fachada principal apresenta características arquitectónicas semelhantes às da Igreja Matriz, que é do século XIX, mas o portal tem características de um período anterior e não é feita com o mesmo tipo de pedra. Assim, os cunhais e a empena serão do século XIX, enquanto o portal e as três aberturas serão do século XVII, talvez da reconstrução referida no Santuário Mariano. As obras na fachada principal, nos finais do século XIX, serão aquelas a que se refere o autor desconhecido no final do opúsculo, que nos foi dado pelos descendentes da família Robles. Nessas obras, terão sido colocados os altares laterais, em talha dourada, trazidos do convento das freiras franciscanas, extinto nos anos 30 desse século. A capela-mor está separada do corpo da capela, pois do lado da ribeira as pedras das duas paredes não estão interligadas entre si, o que testemunha reconstruções e ampliações. Toda a capela está construída em pedra miúda, de xisto, excepto os cunhais e as aberturas, mas alicerçada, até à altura de uma pessoa, com pedras maiores de granito, algumas com vestígios de cal e outras não, o que permite concluir que foram reaproveitadas de uma outra construção ou que houve uma reconstrução total da capela. À esquerda da porta da sacristia, existe uma janela muito estreita, semelhante às que se faziam na primeira dinastia, por razões de segurança, por ser essa época de frequentes guerras. Atrás, na janela da sacristia, à esquerda, notase um alinhamento de pedras, o que permite admitir a hipótese de aí ter existido uma porta, que dava directamente para a fonte, aquela a que se referia Frei Agostinho de Santa Maria, em 1711. Haveria ali uma porta ou a porta em causa seria a da actual sacristia, ou outra lateral do lado da ribeira? As obras de 1930, na capela-mor, realizaram-se ampliando a capela ou roubando espaço interior à sacristia e a outras dependências que pudessem existir?
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SENHORA DA ORADA Em 1952, segundo relato do Padre Tomás da Conceição Ramalho ao autor de Nossa Senhora da Orada, Seu culto na História de Portugal, construiu-se o muro de suporte do terreiro da capela, altura em que se encontrou a dita fonte soterrada atrás da capela, que se voltou a soterrar. Na década de 80, esse muro foi destruído e alargado o terreiro, à custa de terras de cultivo, ocupando actualmente toda a área entre a ribeira, o caminho para as Quintas e a capela. Na década de 60, construíram-se os parques para estacionamento de veículos. Nos finais do século passado, a Câmara Municipal alcatroou a estrada de acesso à ermida e melhorou o espaço envolvente da capela. O terreiro foi reordenado, tendo sido calcetado e ajardinado na parte da frente. Atrás da capela e na margem esquerda da ribeira foram colocadas mesas de madeira, para conforto dos visitantes, no último Outono. A festa em honra da Senhora da Orada é no quarto domingo de Maio, mas nem sempre terá sido nessa data. As Memórias Paroquiais, 1758, referem-se a romagens constantes, com maior incidência no Verão e na Quaresma, mas não se indica o dia da sua festa anual, como se faz para outras ermidas. Em 1895, a festa realizou-se no dia 21 de Abril e o autor do opúsculo sobre a Senhora da Orada, também de finais do século XIX, deixou escrito que a romaria era no domingo de Pascoela, que é o primeiro domingo depois da Páscoa. Assim se compreendem as concorridas romarias nos sábados da Quaresma e as ladainhas e procissões a que se referiu o visitador do bispo da Guarda em 1592. A Senhora da Orada era, assim, o culminar de um período de grande religiosidade em São Vicente da Beira, que tinha como pontos altos a Semana Santa e a romaria à Senhora da Orada. Porque se terá mudado a data da festa? Como hipótese, numa primeira tentativa de estudar o assunto, apresentamos a seguinte quadro explicativo: a festa anual realizava-se no primeiro domingo depois da Páscoa, em data próxima das romarias da Senhora de Mércoles e da Senhora do Almortão, que são no segundo domingo. Por outro lado, em 1923, transferiu-se a ermida da Santa Bárbara do Valouro para o Casal da Fraga, por motivo da rivalidade entre São Vicente e Sobral do Campo, que partilhavam a capela, a qual se encontrava em ruínas no ano de 1911. A festa a Santa Bárbara era numa terça feira, três semanas depois da Páscoa, segundo as Memórias Paroquiais. São Vicente ficava com duas capelas próximas uma da outra a fazerem a sua festa quase no mesma altura, numa data que não era a mais adequada, pela proximidade com duas das maiores romarias da região, a Senhora de Mércoles e a Senhora do Almortão. Talvez por isso se mudou a data da festa para a actual. Senhora da Orada, de oração, como explicava o ti´ Joaquim Teodoro; das orações que a rapariga ali abandonada rezou a Nossa Senhora; das orações que já em 1711, segundo o P.e José Pegado de Sequeira, os vicentinos lhe iam fazer todos os sábados da Quaresma; das orações que por volta de 1970 as mães e as esposas
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SENHORA DA ORADA lhe rezavam pelos maridos e filhos nas guerras do Ultramar ou emigrados em França; das orações que ainda hoje lhe dedicam os que se deslocam à ermida e espreitam por uma das janelinhas ao lado da porta principal, para a verem e lhe falarem em oração. Ela é sobretudo a mãe, a mediadeira entre os romeiros e Deus. Por isso, até há poucos anos, o dia da festa era em São Vicente da Beira o Dia da Mãe. Mas os imperativos da sociedade de consumo levaram-nos essa tradição. Também nada resta actualmente da crença na Senhora da Orada como garante da castidade e da fidelidade conjugal, mas a tradição realça esse aspecto da devoção à Senhora da Orada, como muito bem fez notar o P.e José M. Semedo Azevedo. As duas lendas da fundação da ermida têm como tema, uma a castidade e a outra a fidelidade conjugal; dois dos milagres narrados por Frei Agostinho de Santa Maria abordam a questão da fidelidade conjugal. Em cada época, os peregrinos rogam-lhe por aquilo que mais os atormenta. A Senhora da Orada veste-se de flores em Maio. É Primavera e a natureza mostra todo a sua generosidade, abrindo-se em vida. Desde tempos imemoriais que os homens se comovem ante este milagre anual da natureza, tendo muitos povos dado explicações religiosas para esse fenómeno. Em Abril e Maio, os homens comovem-se com a generosidade da mãe natureza, em Abril e Maio os cristãos desta região veneram a sua Mãe, em Idanha a Senhora do Almortão, em Castelo Branco a Senhora de Mércoles, em Penamacor a Senhora da Póvoa, em São Vicente a Senhora da Orada. (1) João Francisco Marques, História Religiosa de Portugal, Volume 2, páginas 625 e 627. (2) P.e José M. Semedo Azevedo, Nossa Senhora da Orada, Seu culto na História de Portugal, páginas 66 e 67. (3) J. Pinharanda Gomes, História da Diocese da Guarda, página 411.
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Bibliografia AZEVEDO, P.e José M. Semedo, Nossa Senhora da Orada, Seu culto na História de Portugal, Colecção Monumentos de Portugal, Figueira da Foz. Arquivo fotográfico, Tó Sabino e GEGA ( Grupo de Estudos e Defesa do Património Cultural e Natural da Gardunha), São Vicente da Beira. GOMES, J. Pinharanda, História da Diocese da Guarda, Editora Pax, Braga. COSTA, P.e Antonio Carvalho, Corografia Portugueza, Tomo segundo, Lisboa, 1708. COUTO, João Caldeira dos Reis, Monografia da Vila de S. Vicente da Beira, trabalho dactilografado, 1978. Fundo documental, Banda Filarmónica de São Vicente da Beira. MARQUES, João Francisco, Oração e devoções, História Religiosa em Portugal, Volume 2, Círculo de Leitores, Lisboa. MARIA, Frei Agostinho de Santa, Santuário Mariano, Livro I, Título XXVII, 1711. Memórias Paroquiais, São Vicente da Beira, Volume 39, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa. MATIAS, Maria João Jerónimo, São Vicente da Beira, trabalho manuscrito. Pelourinho, Jornal da Paróquia de São Vicente da Beira. PRATA, José Teodoro, Entrevista gravada ao ti´ Joaquim Teodoro, Casal da Fraga, 1990. Registos de baptismo, Igreja Matriz de São Vicente da Beira, Arquivo Distrital de Castelo Branco. Registos de correspondência, Administração do Concelho de São Vicente da Beira, Arquivo Distrital de Castelo Branco. Registos notariais, Concelho de São Vicente da Beira, Arquivo Distrital de Castelo Branco. ROBLES (Autor desconhecido, mas provavelmente membro desta família), opúsculo sobre a ermida da Senhora da Orada. SANTOS, Adélia Teodoro dos, S. Vicente da Beira durante o séc. XVI, trabalho manuscrito. SANTOS, Elsa Teodoro dos, e ANTUNES, Marília Roque, S. Vicente da Beira, 1910 – 1026, trabalho manuscrito. Senhora da Orada, Folheto anónimo. TEODORO, Maria Isabel dos Santos, São Vicente da Beira, trabalho manuscrito.
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Composição, impressão e acabamentos:
Centrograf, Lda São Vicente da Beira
Pela Vida, Pela História, Pelo Recordar de Um Povo, Pela Preservação Dessa Memória... TS
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