7ano manual aluno

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Desafios Manual do aluno 7º Ano Educação Moral e Religiosa Católica SUPERVISÃO E APROVAÇÃO

COMISSÃO EPISCOPAL DA EDUCAÇÃO CRISTÃ D. Tomaz Pedro Barbosa Silva Nunes (Presidente), D. António Francisco dos Santos, D. Anacleto Cordeiro Gonçalves Oliveira e D. António Baltasar Marcelino; Mons. Augusto Manuel Arruda Cabral (Secretário) COORDENAÇÃO E REVISÃO GERAL

Jorge Augusto Paulo Pereira EQUIPA DE REDACÇÃO

Fernando Augusto Teixeira Moita (Coordenação de Ciclo) António José Melo Cordeiro José Luís Pinto Dias Maria de Fátima de Almeida Pina Bastos Rocha Maria Margarida Antunes Santos Portugal Consultoria cientÍfica

Pe Francis Damian Peter Stilwell, Pe Miguel Pônces de Carvalho, Pe José Manuel Pereira de Almeida REVISÃO GRÁFICA

Maria Helena Calado Pereira GESTÃO EXECUTIVA DO PROJECTO E DIRECÇÃO DE ARTE

ID Books Ricardo Santos TIRAGEM

2ª edição - 45000 ISBN

978-972-8690-28-1 DEPÓSITO LEGAL

281107/08 EDIÇÃO E PROPRIEDADE

Fundação Secretariado Nacional da Educação Cristã — Lisboa, 2008 Quinta do Cabeço, Porta D; 1885-076 Moscavide Tel.: 218 851 285; Fax: 218 851 355; E-mail: educacao-crista@sapo.pt Todos os direitos reservados à FSNEC IMPRESSÃO Gráfica Almondina

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APRESENTAÇÃO DESAFIOS Aos alunos e às alunas de Educação Moral e Religiosa Católica Um livro é o resultado de muito trabalho de quem o produziu: um ou mais autores. Por isso, deve ser acolhido com respeito e tratado com cuidado. Qualquer que seja o seu estilo, contém uma mensagem, interpela o leitor e desperta a sua imaginação. Um livro escolar é um instrumento para a aprendizagem dos alunos. É sempre educativo. Transmite informações ligadas aos conteúdos dos programas de ensino, contém interrogações e propostas de trabalho, e convida ao estudo. É para se usar na aula e fora dela. É um companheiro de viagem para o percurso anual de cada um na escola. Só assim, tornando-se um objecto familiar, que se utiliza com frequência, o livro escolar facilita o progresso na aquisição e desenvolvimento de competências. Os manuais de Educação Moral e Religiosa Católica, quer se revistam da forma de um volume por ano de escolaridade quer se apresentem como conjuntos de fascículos, têm todas estas características. Convido os alunos e as alunas a receberem-nos com interesse e entusiasmo, mas, sobretudo, a utilizarem-nos para proveito do seu crescimento humano e espiritual. Deste modo, e com a ajuda indispensável dos vossos professores ou professoras de Educação Moral e Religiosa Católica, podeis melhor fazer as vossas opções e elaborar um projecto de vida sólido e com sentido. Que Deus vos ilumine e ajude na caminhada de ano escolar que ides iniciar. Bom trabalho! D. Tomaz Pedro Barbosa Silva Nunes Bispo Auxiliar de Lisboa Presidente da Comissão Episcopal da Educação Cristã


APRESENTAÇÃO DO MANUAL

Unidades Lectivas Este Manual está organizado em 4 Unidades Lectivas (UL). Cada UL abre com duas páginas de apresentação: Na página da esquerda é identificada a UL e respectivo Título. Na página da direita são apresentados os principais tópicos de reflexão que constituem a UL.

PERsonagem de apresentação Cada UL é apresentada por uma personagem de renome, que te guia ao longo de toda a UL. As suas falas são ficcionadas.

esquemas

Os esquemas ajudam-te a organizar e a sintetizar os conteúdos desenvolvidos.


textos bíblicos

Os textos bíblicos são excertos da Bíblia e estão escritos sobre um fundo tipo papiro.

documentos

Os documentos são textos de aprofundamento das temáticas e estão identificados com o Doc e uma cor de fundo própria.

saber +

Os Saber + são informações adicionais que alargam os teus conhecimentos e estão identificados com uma cor própria.


ÍNDICE

Unidade Lectiva 1 · No Princípio... ORIGEM DO UNIVERSO

13

ORIGEM DA VIDA

16

ORIGEM DA HUMANIDADE

17

COSMOGONIAS

19

A EXPERIÊNCIA DO POVO DE ISRAEL

24

TEXTOS SAGRADOS SOBRE AS ORIGENS

26

CRIAÇÃO: UM ACONTECIMENTO INACABADO

43

CRIAÇÃO E ECOLOGIA

45

Unidade Lectiva 2 - As Religiões Abraâmicas A UNIVERSALIDADE DO FENÓMENO RELIGIOSO

54

ABRAÃO

59

O JUDAÍSMO

62

O ISLAMISMO

80

O CRISTIANISMO

94

QUADRO SINÓPTICO DAS RELIGIÕES ABRAÂMICAS

121

PERSPECTIVA SOBRE DEUS NAS TRÊS RELIGIÕES

122

O DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO

128

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Unidade Lectiva 3 - A Adolescência e os Afectos QUEM SOU EU?

133

A ADOLESCÊNCIA

134

A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE

144

AMOR E SEXUALIDADE

154

INTEGRAÇÃO SOCIAL

160

SER HOMEM E SER MULHER: IDENTIDADE E CULTURA

163

O AGIR MORAL

164

A QUESTÃO RELIGIOSA

166

A BÍBLIA CANTA O AMOR

168

À DESCOBERTA DE NOVOS VALORES

175

Unidade Lectiva 4 - Construir A Paz A PAZ - O GRANDE SONHO DA HUMANIDADE

183

SITUAÇÕES DE FALÊNCIA DA PAZ

190

PROMOÇÃO E DEFESA DA PAZ

201

MENSAGEM BÍBLICA SOBRE A PAZ

215

RESPONSABILIDADE DE CADA UM NA CONSTRUÇÃO DA PAZ

219

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unidade 1

UNIDADE LECTIVA

1

No princípio...


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Nesta unidade vamos reflectir sobre: • Os dados da ciência sobre a origem do universo: o Big-Bang; • Os dados da ciência sobre a origem do ser humano: a evolução das espécies; • As narrativas da criação no livro do Génesis; • A mensagem fundamental da Bíblia sobre a criação (Gn 1-2); • A importância de colaborarmos com Deus na obra da criação.

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unidade 1

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Olá! O meu nome é Albert Einstein. Nasci na Alemanha em 1879, mas acabei por viver grande parte da minha vida nos Estados Unidos da América. À temática que vão agora estudar dediquei muito do meu trabalho; a teoria da relatividade, por mim desenvolvida, permitiu formular respostas para muitas das perguntas que se vos colocam sobre a origem do universo. Comecemos por essas questões... Perante o mundo fascinante em que vives, já observaste as maravilhas da tecnologia, a harmonia da natureza, a grandeza do universo, a beleza do ser humano...? Já te deixaste encantar pelo perfume de uma rosa, pelo sorriso de uma criança, pelos gestos amorosos dos teus pais? Muito provavelmente já pensaste e já falaste com os teus colegas sobre como é que apareceu tudo o que vemos. O teu pensamento é invadido por uma estranha sensação de admiração e mistério perante o mundo. Somos “assaltados” por dúvidas e questões às quais nem sempre é fácil responder: Como surgiu o universo? Qual a sua dimensão? Porque existe vida? Como é que ela surgiu e se desenvolveu?

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Tal como tu, também as pessoas de todos os tempos se questionaram sobre como é que apareceu o universo e a vida na Terra e porque é o ser humano diferente dos outros animais. Todas as gerações tentaram encontrar respostas que satisfizessem a procura de sentido. Acredito que, com esta unidade, vais deixar-te encantar pelas maravilhas da criação e pelo mistério que é a Vida.


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Plêiades vistas através do telescópio espacial Spitzer da NASA

ORIGEM DO UNIVERSO Preocupados em encontrar respostas satisfatórias para o quando e o como do princípio do universo e da vida, os astrónomos levam-nos a percorrer uma viagem ao passado das galáxias e das estrelas... Dos estudos realizados surge, então, a descoberta do universo em expansão. No início do século XX “observou-se” que as galáxias (agrupamentos irregulares de milhares de milhões de estrelas, gases e poeiras) se afastam umas das outras. Em 1929 Edwin Hubble, enunciou a lei que ficaria conhecida pelo seu nome, e que, resumidamente, consistia no seguinte: a velocidade do afastamento das galáxias é proporcional ao próprio afastamento. E se as galáxias se afastam umas das outras então o universo está em expansão. Por sua vez, a teoria da relatividade de Einstein permitiu ligar os conceitos de matéria e energia e explicar que a energia pode ser convertida em matéria e vice-versa. Assim, foi proposta a teoria do Big-Bang, a qual afirma que o universo surgiu de uma “explosão” inicial.

SABER

+

Teoria da Relatividade E = mc2 A energia é igual à massa de um corpo multiplicada pelo quadrado da velocidade da luz.


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DOC 11

O tamanho e a idade do cosmos ultrapassam a comum compreensão humana. Perdida algures entre a imensidão e a eternidade, fica a nossa minúscula casa planetária. Numa perspectiva cósmica, a maioria dos interesses humanos parece insignificante, até mesquinha. E, todavia, a nossa espécie é jovem e corajosa e mostra-se prometedora. Nos últimos milénios, fizemos descobertas fascinantes sobre o cosmos e o lugar que nele ocupamos... Adaptado de Carl Sagan. Cosmos

Duas galáxias que se fundem

Viagem ao passado Quando olhamos para muito longe no universo, através de telescópios superpotentes, estamos a observar fenómenos que aconteceram no passado, porque a luz demora tempo a chegar até nós; e como é ela que nos traz a informação visual, quando atinge a nossa retina, já os fenómenos ocorreram há algum tempo. Imaginem o que acontece se olharmos para muitíssimo longe no espaço celeste:


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estamos também a observar o que aconteceu há muitíssimo tempo. Assim, o universo que nós vemos de noite, com todas as suas estrelas, não é agora exactamente como nós o estamos a ver. Provavelmente, muitas daquelas estrelas já morreram e outras já nasceram, só que a luz que elas emitem ainda não teve tempo para chegar até nós. Numa viagem ao passado (olhando para muito longe), “observamos” o universo mais contraído. Todas as galáxias se originaram num ponto único donde tudo partiu (estaríamos a cerca de quinze mil milhões — 15.000.000.000 — de anos atrás). Chega-se assim à conclusão de que o universo surge de um estado inicial extraordinariamente pequeno, quente e condensado a que se seguiu uma enorme explosão: o Big-Bang. Actualmente, as grandes questões que ocupam os astrónomos e que nos introduzem numa viagem ao futuro são as seguintes: Continuará o universo em eterna expansão pelo contínuo e infinito afastamento das galáxias? Será que a expansão terminará em certo momento e dar-se-á início ao processo inverso até à união de todas as galáxias (Big-Crunch) para, eventualmente, recomeçar tudo de novo?

SABER

+

Big-Bang – Teoria cosmológica segundo a qual o universo, no seu estado inicial, se encontrava sob forma extraordinariamente condensada, o que originou uma violenta explosão. Esta hipótese foi proposta pelo abade Lemaitre, em 1926, e retomada mais tarde por George Gamow. A expressão inglesa Big-Bang (grande explosão) foi inventada e primeiramente utilizada pelo astrónomo inglês Fred Hoyle. Máximo Ferreira. Enciclopédia Verbo

Simulação do Big-Bang

Fred Hoyle (1915-2001)


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ORIGEM DA VIDA A vida encontra-se em todos os recantos do nosso planeta, desde o fundo do mar, mesmo longe do alcance da luz do dia, até ao topo da montanha mais alta. Mas como surgiu a vida? Os cientistas pensam que as primeiras formas de existência vital apareceram devido a uma série de reacções químicas que ocorreram há cerca de quatro mil milhões de anos. Estas reacções químicas deram origem a organismos muito simples que depois evoluíram e se tornaram complexos e diferenciados, originando todas as espécies que hoje encontramos no nosso planeta, incluindo a espécie humana.

SABER

+

Os biólogos resumem a vida a uma série de características particulares que todos os seres vivos têm em comum. Essas características incluem a capacidade de usar energia, de incorporar matéria e de eliminar desperdícios. Frequentemente, também se inclui a resposta ao meio exterior por meio da movimentação ou mudança de forma. Mas a sua característica mais importante é a capacidade de reprodução. A reprodução é uma característica dos seres vivos como indivíduos, mas também da vida como um todo. Através da reprodução os seres vivos são capazes de efectuar mudanças lentas, ou seja, evoluir ao longo do tempo. David Burnie. Vida – Enciclopédia Visual da Ciência


unidade 1

ORIGEM DA HUMANIDADE

Prossímios Antropóides

Prossímios Primitivos

Ser Humano

Chimpanzé

Gorila

Orangotango

Gibão

Macacos do Velho mundo (Catarinos)

Macacos do Novo mundo (Platirrinos)

Társio

Lóris

Lêmure

Todas as criaturas que vivem na terra estão ligadas entre si por laços de parentesco mais ou menos estreitos, visto que partilham a descendência comum dos organismos que viveram há quatro mil milhões de anos. Mas, ao longo da evolução, esses organismos foram--se diferenciando e dando origem a espécies diversas. No processo de diferenciação, só os indivíduos que tinham características mais vantajosas é que sobreviviam, os que tinham dificuldade em se adaptar ao meio ambiente acabavam por sucumbir (selecção natural). A evolução acontece, portanto, através dos processos de diferenciação e de selecção natural. Os paleontologistas (Paleontologia é o estudo dos fósseis animais e vegetais que testemunham o desenvolvimento da vida) julgam que há cerca de cinco milhões de anos essa evolução conduziu ao surgimento da espécie humana, a qual evoluiu ao longo dos tempos, aprendendo a conhecer e a usar as suas capacidades e a natureza para construir o mundo onde vivemos.

SABER

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+

Nenhuma das espécies que vive hoje na terra teve sempre o mesmo aspecto que apresenta actualmente. Ao longo do tempo foi assumindo caracteres próprios e diferenciando-se das outras espécies. Este facto é a base da teoria da evolução formulada por Charles Darwin em 1859. Segundo esta teoria, os indivíduos diferenciam-se uns dos outros adquirindo características que os tornam mais ou menos aptos a viver no seu ambiente. Apenas os mais aptos sobrevivem e se reproduzem, transmitindo essas características aos seus descendentes. Assim, através deste mecanismo de selecção natural, as espécies foram evoluindo e diferenciando-se umas das outras. Adaptado de B. Gallavotti. Segredos da vida

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Charles Darwin termina o seu livro A Origem das Espécies com a afirmação de que a sua teoria evolucionista não é incompatível com a fé num Deus Criador: “Não há uma verdadeira grandeza nesta forma de considerar a vida, com os seus poderes diversos atribuídos primitivamente pelo Criador a um pequeno número de formas, ou mesmo a uma só? Ora, enquanto que o nosso planeta, obedecendo à lei fixa da gravitação, continua a girar na sua órbita, uma quantidade infinita de belas e admiráveis formas, saídas de um começo tão simples, não têm cessado de se desenvolver e desenvolvem-se ainda!” Charles Darwin. A origem das Espécies

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Charles Darwin (1809-1882)


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ORIGEM DO UNIVERSO E DA VIDA

Dados da Ciência

Lei de Hubble e

Quando e Como?

Teoria da Relatividade

Quando? Big Bang

UNIVERSO

Há cerca de15.000 milhões de anos. Como? Grande explosão inicial – Big-Bang.

Reacções químicas

Quando? Há cerca de 4.000 milhões de anos.

VIDA

Como? Reacções químicas deram origem a organismos simples. VIDA

Evolução das Espécies

Quando? Há cerca de 5 milhões de anos.

ESPÉCIE HUMANA

Como? Organismos simples desenvolveram-se e diferenciaram-se dando origem a todas as espécies de vida, entre elas o ser humano.


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Como viste, a ciência permite investigar e descobrir pistas sobre algumas razões físicas do surgimento do universo, da vida e do ser humano. Mas... que outras explicações para além dos dados científicos? Como viam os nossos antepassados o surgimento do universo, da vida e dos seres humanos? Em cada povo antigo, nas suas lendas e tradições, encontramos teorias sobre como surgiu o mundo e os seres humanos: as cosmogonias.

SABER

+

Cosmogonias (Kósmos, universo + goné, nascimento) são explicações da formação do mundo. São constituídas por mitos, lendas e entidades fantásticas (deuses, semideuses e heróis). Foram transmitidas originalmente por tradição oral e mais tarde foram fixadas em textos escritos e em obras de arte. Com estas narrativas, os povos procuravam atribuir um sentido à vida humana (incluindo às actividades, às relações, aos sentimentos, ao sofrimento, à morte...) projectando-o na origem do universo, da vida e do ser humano.

COSMOGONIAS Na Grécia antiga Na tradição narrada por Homero, no princípio havia o Caos, havia apenas silêncio e vazio. Depois surgiu o amor (Eros) e a terra (Gea). Destas três divindades — Caos, Eros e Gea — nasceram o Céu e a Terra que por sua vez deram origem aos gigantes e estes aos deuses. O deus Epimeteu foi incumbido de criar os homens, mas fê-los de barro, imperfeitos e sem vida. Então, o seu irmão, Prometeu, com pena deles, roubou o fogo de Vulcano e deu-o aos homens para que estes tivessem vida. Noutra tradição grega, no princípio existia a noite (Nix) que, fecundada pelo vento, pôs um ovo cósmico do qual nasceu Eros que trouxe à luz todo o universo que estava contido no ovo: elementos da natureza, deuses, titãs...

Prometeu, por George Watson


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unidade 1 Na China antiga No começo do tempo, tudo era caos, e este caos tinha a forma de um ovo de galinha. Dentro do ovo estavam Yin e Yang, as duas forças opostas que compõem o universo. Um dia as energias em conflito dentro do ovo quebraram-no. Os elementos mais pesados desceram e formaram a terra, e os mais leves flutuaram e formaram o céu. E entre o céu e a terra estava P’an-ku, o primeiro ser que, depois, deu origem ao homem.

No Egipto Segundo o mito da criação de Heliópolis, no princípio existiam as águas do caos, Nun. Um dia uma colina de lodo chamada Ben-Ben levantou-se dessas águas, tendo no topo Atum, o primeiro deus. De Atum surgiram todos os deuses — incluindo os faraós. Outras tradições, de diferentes zonas do antigo Egipto, apontam um deus pré-existente que depois cria os outros deuses e os homens. Na tradição de Elefantina (uma ilha do Nilo) o deus cria os homens do barro como se fosse um oleiro.

Fresco egípcio da Antiguidade com o deus Amon

Nos países nórdicos No início havia somente o mundo das névoas e o mundo de fogo e entre eles havia o “grande vazio” no qual nada vivia. Nesse “grande vazio”, o fogo e a névoa encontraram-se e formaram um enorme bloco de gelo. Como o fogo era muito forte e eterno, o gelo foi derretendo até surgir a forma de um gigante primordial, Ymir, cujo suor deu origem


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a todos os seres, entre eles os deuses. Um dia os filhos do deus Borr — Odin, Vili e Ve — destroçaram o corpo de Ymir e, a partir deste, criaram o mundo. Dos seus ossos e dentes surgiram as rochas e as montanhas e do seu cérebro surgiram as nuvens. Depois, Odin, Vili e Ve esculpiram e trouxeram à vida os primeiros seres humanos: Ask (esculpido em madeira de carvalho) e Embla (esculpido em madeira de olmo).

Na Índia Toda a criação teve início no som primordial Om. Deste som inicial sai a trindade hindu: Brahma, Shiva e Vishnu. De seguida Brahma cria o universo e permanece acordado durante um dia de Brahma, que correspode a 4.320.000.000 anos no calendário hindu. Quando, no fim do seu dia, Brahma vai dormir, o mundo e tudo o que nele existe é consumido pelo fogo e quando ele acorda de novo, recria toda a criação, e assim sucessivamente, até que se completem cem anos de Brahma. Quando esse dia chegar, Brahma vai deixar de existir, e todos os outros deuses e todo o universo vão ser dissolvidos, voltando aos seus elementos constituintes.

Shiva, deusa hindu

Na Suméria O universo surgiu quando Nammu, um abismo sem forma, se enrolou sobre si mesmo num acto de auto-procriação, gerando Anú e Enki. Destes nasceram todos os deuses. A certa altura os deuses superiores, os sete Annunaki, escravizaram os outros deuses e obrigaram-nos a trabalhar para eles. Os deuses inferiores revoltam-se contra essa situação e Anú deu-lhes razão. Então, Enki criou os homens a fim de trabalharem para os deuses. Assim, um deus desconhecido chamado Wé foi degolado e o seu sangue foi amassado com argila, que Enki dividiu em catorze bocados para criar os primeiros sete homens e sete mulheres.

Adaptado de Melania Parisi e de Gaetano Salvi


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Para uns, o surgimento da vida acontece apenas pela eclosão e evolução da matéria e da evolução das espécies — o Evolucionismo. Para outros a vida surge de forma fixista pela força poderosa e directa de uma divindade (deus) que está para além da história das pessoas. E para os cristãos?

Evolucionismo

Fixismo

Perspectiva cristã

Conjunto de teorias que defendem que o aparecimento de espécies mais complexas deve-se à evolução de espécies mais simples. Segundo esta teoria, o homem e a mulher não apareceram do nada tal e qual como são agora.

É a perspectiva segundo a qual as espécies não sofreram nem sofrem qualquer transformação; surgiram imediatamente tal e qual como são hoje. Esta crença, erradamente entendida por “criacionismo”, ainda é defendida por algumas religiões, apesar das evidências científicas. Quem a defende interpreta literalmente as narrativas da criação dos textos sagrados das diversas literaturas religiosas.

Para os cristãos, a vida surge do poder amoroso de Deus, mas desenvolve-se através dos mecanismos naturais queridos por Deus. A evolução das espécies é um facto, mas, envolvida pelo espírito vivificante do Criador, está direccionada para um fim: a felicidade.

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unidade 1 O ser humano, porque ser pensante, quer saber sempre mais, e perante as respostas da ciência pergunta: Será que o universo e o ser humano surgiram simplesmente por acaso? Tudo o que existe tem algum sentido ou, pelo contrário, tudo é o resultado de um processo casual ou mesmo absurdo? Toda a história da evolução está direccionada para um fim, ou tudo se perde no nada para sempre? Desde sempre, cada pessoa, cada povo e cada cultura levantam as questões fundamentais que estruturam a existência humana: Quem sou? Donde venho? Para onde vou? Por que existe o mal? O que há para além da morte? Estas questões e as respostas de sentido encontram-se em todas as culturas e nos escritos sagrados de todas as religiões. Aparecem, de uma forma poética e simbólica, na cultura e na literatura do povo de Israel.

ORIGEM DA VIDA E DA HUMANIDADE

PORQUÊ? PARA QUÊ?

COSMOGONIAS

Mitos e Lendas

Explicam o sentido da vida humana projectando-a na origem do Universo pela intervenção de divindades.

PERSPECTIVA CRISTÃ

Textos Bíblicos

Narram o sentido da vida humana e do Universo no contexto da relação íntima com Deus. Apresentam um projecto de felicidade.

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A EXPERIÊNCIA DO POVO DE ISRAEL Os israelitas — também conhecidos por hebreus ou judeus —, como os outros povos, interrogaram-se sobre o sentido da existência e qual a sua missão no conjunto das outras nações. Ao longo da sua história, que, de acordo com o relato bíblico, começa com Abraão (por volta de 1850 a.C.), o povo judeu, apesar de sofrimentos, perseguições e escravidões, sempre experimentou a presença amiga e libertadora de Deus. Este povo compreendeu que Deus actua com amor na vida de todos e de cada um, para que todos vivam livres e felizes.

Libertação do Egipto

Moisés, por Miguel Ângelo

O povo de Israel faz a experiência significativa da presença de Deus na sua história como libertador e salvador. Isso acontece no século XIII a.C. quando os israelitas eram escravizados pelos faraós do Egipto. Um povo de escravos que consegue libertar-se do poder imenso do grande faraó Ramsés II? Parece quase impossível! O povo, liderado por Moisés, consegue sair do Egipto e caminhar em direcção à liberdade na Terra Prometida, na Palestina. Esta vitória é atribuída à presença de Deus que ama, une e liberta o povo.

Detalhe do mural do túmulo de Ramsés II

Através desta proximidade com Deus, Israel vai descobrindo que tudo o que existe à sua volta é uma dádiva de Deus: as pessoas, os animais, as flores, as estrelas... ou seja, o Deus que ama, que salva e liberta é o mesmo Deus que cria e que dá a vida. O Deus Libertador é também o Criador.


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Da vida ao texto Quando o povo de Israel escreve a sua história, narra os grandes acontecimentos e os grandes feitos, mas sente também a necessidade de expressar a sua fé num Deus que tudo criou e que está na origem de toda a vida. Os hebreus, como crentes, faziam quotidianamente a experiência de encontro com Deus. Essas experiências foram registadas por escrito, através de uma linguagem muito simbólica, segundo a mentalidade da época. Rota do Êxodo Ao mesmo tempo foram sendo produzidas narrativas poéticas com intenção de exprimir a fé de Israel segundo a qual tudo o que existe provém de Deus; ele é a origem do universo e da humanidade e tudo o que existe tem uma finalidade, corresponde a um projecto pensado por Deus: um projecto de felicidade para todos. Os autores das narrativas da Criação, contudo, não sabiam como é que o ser humano tinha aparecido, nem tão pouco tinham os conhecimentos científicos e cosmológicos que hoje estão ao nosso alcance. Mas uma coisa lhes era sobejamente conhecida: as pessoas provinham da matéria comum a todas as outras coisas da natureza. Assim se chegou à tão expressiva imagem do homem formado «da terra» (do barro) no qual Deus «infundiu» o sopro da vida.

Percurso do povo de Israel do Egipto à Terra Prometida

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Iluminura bíblica

TEXTOS SAGRADOS SOBRE AS ORIGENS Uma leitura dos textos bíblicos da criação não pode ser uma leitura superficial. É preciso saber distinguir o significado literal do significado simbólico das frases e dos textos, de acordo com o género literário em que foram escritos. Por exemplo, quando alguém apaixonado chama à amada “o Sol da minha vida” não quer evidentemente identificar aquela pessoa com a estrela do mesmo nome; quer, usando uma bela metáfora, transmitir a ideia de que tal como o Sol emite luz e essa luz é essencial à vida das pessoas, assim a amada ilumina a sua vida (dá-lhe alegria, orienta o seu caminho, dá-lhe sentido) e é essencial à sua vida pessoal. As palavras dizem muito mais do que o seu sentido denotativo, assumem outros sentidos chamados conotativos. Também a história de Adão e Eva deve ser lida a partir dos significados reais das frases, dados através de metáforas, comparações e outros recursos estilísticos, porque se trata de um texto com forte carga simbólica (quase como um romance ou um conto). Só assim perceberemos o seu significado.


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Para a correcta interpretação dos textos bíblicos é necessário respeitar algumas regras: estabelecer o verdadeiro texto (crítica textual), ter em conta as particularidades linguísticas e o género literário (crítica literária) e conhecer os condicionalismos culturais e históricos da sua redacção (crítica histórica). De facto, é muito diferente interpretar um texto narrativo e um texto lírico, uma sentença sapiencial e uma profecia, uma epístola e um texto apocalíptico. E, mesmo no modo narrativo, ainda é necessário distinguir se se trata de narrativa histórica, épica, popular ou das origens. A leitura da Bíblia pode fazer-se em diversos níveis de profundidade, de que resultarão compreensões diversas: 1) O leitor desprevenido, ao ler os livros da Bíblia como quaisquer outros, pode achá-los interessantes, mas tão longe da sua realidade que acaba por pouco ou nada entender da leitura efectuada. 2) O leitor erudito, sobretudo o especialista em história e literatura antigas, fará uma leitura de grande interesse científico, conseguindo situar o que leu no seu contexto histórico e cultural, mas não entra no verdadeiro segredo dos textos sagrados. 3) O leitor crente e esclarecido, pelo contrário, lê o texto a partir da sua intenção primordial: transformar o leitor levando-o a estabelecer com Deus uma relação duradoura. Adaptado de Catolicopedia

Adão e Eva no Paraíso, por Gustave Doré

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N 1

o princípio, quando Deus criou o céu e a terra, 2a terra era um caos sem forma nem ordem (...) 3Deus disse: “Que a luz exista!” E a luz começou a existir. 4Deus achou que a luz era uma coisa boa e separou-a da escuridão. (...) era o primeiro dia. 6Depois Deus disse: “Que exista um firmamento entre as águas, para as separar umas das outras.” (...) era o segundo dia. 9Deus disse então: “Que as águas que estão debaixo do céu se juntem num único lugar e que fique à vista a terra firme.” E assim aconteceu. (...) 11Deus disse ainda: “Que a terra produza ervas e plantas que dêem semente e árvores que dêem fruto (...) E Deus achou que tudo aquilo eram coisas boas. (...) era o terceiro dia.(...) 20Deus disse depois: “Que as águas sejam povoadas de seres vivos e que entre a terra e o firmamento haja aves a voar” (...) 25Deus criou todas as espécies de animais (...) e achou que todos eram coisas boas. 26Deus disse ainda: “Façamos o ser humano à nossa imagem e semelhança. Que ele tenha poder sobre os peixes do mar e as aves do céu; sobre os animais domésticos e selvagens e sobre todos os bichos que andam sobre a terra.” 27Deus criou então o ser humano à sua imagem; criou-o como verdadeira imagem de Deus. E este ser humano criado por Deus é o homem e a mulher. 28Deus abençoou-os desta maneira: “Sejam férteis e cresçam; encham a terra e dominem-na; dominem sobre os peixes do mar e as aves do céu e sobre todos os animais que andam sobre a terra.” 29Deus continuou: “Dou-vos todas as plantas que produzem semente e que existem em qualquer parte da terra e todas as árvores de fruto, com a sua semente própria. É isso que devem comer. (...) 31E Deus achou que tudo aquilo que tinha feito era muito bom. (...) era o sexto dia.

A

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ssim ficaram completos o céu e a terra, com tudo aquilo que contêm. 2No sétimo dia, Deus tinha completado a sua obra e nesse sétimo dia Deus descansou dos trabalhos que tinha vindo a fazer. 3Deus abençoou o sétimo dia e fez dele um dia sagrado, pois foi o dia em que ele descansou de todo o trabalho da criação que tinha feito. 4É esta a história da criação do céu e da terra. 4bQuando o Senhor Deus fez a Terra e o céu, 5ainda não havia plantas na terra nem tinha brotado a erva. É que Deus não tinha feito cair a chuva sobre a terra nem existia ninguém para trabalhar nela. (...) 7O Senhor Deus modelou o homem com barro da terra. Soprou-lhe nas narinas e deu-lhe respiração e vida. E o homem tornou-se um ser vivo. 8O Senhor Deus preparou um jardim em Éden, lá para o oriente, e colocou nele o homem que tinha modelado. (...) 18O Senhor Deus disse ainda: “Não é bom que o homem fique sozinho. Vou-lhe arranjar uma companhia apropriada para ele.” 19E Deus modelou também da terra muitas espécies de animais selvagens e de aves e apresentou-os ao homem, para ver que nome ele lhes dava. O nome que ele dava a cada um desses seres vivos é o nome com que ficaram. 20O homem deu nome a todos os animais domésticos, às aves do céu e aos animais selvagens, mas nenhum deles era a companhia apropriada para ele. 21O Senhor Deus fez com que o homem adormecesse e dormisse um sono muito profundo. Durante o sono, tirou-lhe uma das costelas, e fez crescer de novo a carne naquele lugar. 22Da costela que tinha retirado do homem, o Senhor Deus fez a mulher e apresentou-a ao homem 23e este declarou: “Desta vez, aqui está alguém feito dos meus próprios ossos e da minha própria carne. Vai chamar-se mulher; porque foi formada do homem.” 24Por isso, o homem deixa a casa do pai e da mãe para viver com a sua mulher e ficam a ser uma só pessoa. Gn 1, 1-4.6.9.11.20.25-29.31; 2, 1-5.7-8.18-24


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Excerto do Livro do Génesis em Hebraico

O Livro do Génesis A palavra Génesis — nome do livro bíblico de que faz parte o texto da criação transcrito — exprime bem o conteúdo deste livro. Sugere que se trata do “momento” inicial da formação do universo. Vem da tradução grega Génesis do nome hebraico Bereshît. Etimologicamente significa na cabeça e pode traduzir-se por no princípio, evocando o fundamento, a raiz. O Génesis não é o livro mais antigo da Bíblia, mas foi colocado no início das Escrituras precisamente por narrar a origem do universo e da vida. Mas como pode alguém narrar a criação se ninguém foi espectador do nascimento dos mundos? O Génesis diz-nos muito simplesmente como os hebreus do primeiro milénio antes de Cristo representavam as origens. Não se trata, por isso, de um documento histórico, mas de um texto profundamente simbólico. Nele não encontramos dados científicos sobre o Big-Bang, nem sobre a evolução das espécies ou a deriva dos continentes; descobrimos sim, um olhar de fé. O universo depende do acto criador de Deus. Ouve-se por vezes dizer que Adão e Eva nunca existiram. A humanidade teve, algum dia, o seu princípio! Com quem? Onde? Como? É à ciência que compete responder e não à Bíblia. Adão e Eva são nomes que significam, em hebraico, respectivamente, humanidade e vida. Trata-se, pois, de nomes simbólicos que representam todas as pessoas e não apenas um casal.

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Narrativas da Criação As narrativas da Criação, embora do género literário mítico, rompem com alguns aspectos da mitologia e, quando iniciamos a sua leitura, fazemos uma descoberta surpreendente: o primeiro homem não é judeu. A Bíblia distancia-se de numerosos mitos das origens que vêem no primeiro homem o antepassado da sua tribo. Adão não é judeu nem é um homem individual, é a humanidade inteira. A sua história não é a de uma pessoa nem a de um povo particular, mas a grande história da humanidade. O livro do Génesis não é um livro de história, nem um livro de ciências é uma afirmação de fé em Deus: Deus está na origem da criação e na origem do bem. O mal aparece quando o ser humano, porque livre, toma a decisão de escolher o caminho do orgulho e do egoísmo, construindo para si a sua própria lei. Os crescentes atentados contra a natureza são a negação do dever grave de as pessoas e as sociedades preservarem o ambiente e assumirem comportamentos verdadeiramente ecológicos. Nos textos da Criação o ambiente natural brotou da vontade benevolente de Deus, e o ser humano recebe a missão de cuidar deste ambiente.


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Criação e Vida A Bíblia não tem a pretensão de responder ao quando, como e onde (campo da ciência), mas procura apenas responder às questões sobre o sentido do universo e da vida. Deus é sempre e exclusivamente o autor de tudo o que existe e do que tem vida. O tema da criação não se refere apenas ao resultado do acto criador (luz, plantas, animais, ser humano), mas também e, sobretudo, ao projecto de vida que Deus oferece e quer construir com a humanidade. Neste projecto, Deus é a resposta à razão da existência: enquanto criaturas, viemos de Deus, com ele e para ele caminhamos.

SABER

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A Capela Sistina, no Vaticano, com um tecto magnífico pintado por Miguel Ângelo, é uma das mais notáveis obras de arte de todos os tempos.

Criação do Homem, por Miguel Ângelo. Pormenor do tecto da Capela Sistina

A relação é fundamental na dinâmica da criação; o mundo deve a existência a um Outro. A criação bíblica afirma esta ligação originária das criaturas ao Criador. Entendida a criação neste sentido religioso (re-ligare), ela é a boa-notícia que diz que tudo quanto existe, existe por amor. Só o amor que chama à existência nos pode dar a certeza de que toda a vida, cada vida, tem um sentido.

A linguagem das imagens O ser humano utiliza uma linguagem carregada de metáforas e de imagens. As imagens, para além de terem um valor estético, servem para ajudar a entender realidades que não cabem num discurso descritivo ou explicativo. A Bíblia, nomeadamente no seu primeiro livro, também utiliza imagens: a argila, a árvore da vida, a serpente...

Foi mandada edificar pelo Papa Sisto IV, advindo daí o seu nome, e inaugurada em 1483. É o local onde tradicionalmente se reúne o grupo de cardeais, em conclave, para a eleição do Papa.


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unidade 1 Muitas destas imagens eram utilizadas por outros povos. Através desta forma poética de falar e de escrever, os escritores bíblicos procuram que o leitor se aproxime de Deus e descubra que ele está presente e vivo na história. Para o povo de Israel, a Criação é a intervenção de Deus na construção do universo e da história humana. É ele que traz a paz e a harmonia, a luz e a bondade. Faz surgir e faz viver e, por isso, toda a criação é boa, porque Deus é bom e faz-nos participantes da sua bondade.

Adão e Eva, por Miguel Ângelo

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Géneros literários são os diversos modos através dos quais o discurso se organiza. Isso é verdade tanto para a Bíblia como para outros textos. Para transmitir a sua mensagem, o autor organiza o discurso de uma determinada maneira, dependendo do objectivo que quer atingir, dos destinatários aos quais se dirige, etc. Assim, o conhecimento de cada género literário é fundamental para interpretar os diversos textos bíblicos. De forma simplificada, podemos dizer que, no Antigo Testamento, se distinguem os seguintes géneros: a poesia popular, a literatura narrativa, as orações, as profecias, os textos jurídicos, a literatura sapiencial e o género apocalíptico; no Novo Testamento, os evangelhos, o género epistolar e o género apocalíptico. O Mito pertence ao modo narrativo. Trata-se de uma história contada por um narrador a respeito do início de uma determinada realidade. Não sendo uma narrativa historiográfica, a sua função é simbólica. Procura interpretar a realidade de maneira religiosa, ou seja, estabelecendo a relação entre Deus (ou os deuses) e o mundo. Pretende, como género literário, exprimir o que não é facilmente entendível pela razão ou através de outros géneros literários. Não tem, nem pretende ter, a intenção do discurso científico. Adaptado de Catolicopedia.

Elementos simbólicos nas narrativas da criação Eva O nome Eva deriva do hebraico hav.váh (‫)הוח‬, que significa vivente. No grego, é traduzido por zoé, que significa vida humana, e não por bios, que significa todo o tipo de vida. O nome Eva — vida, mãe dos viventes, lugar da vida, maternidade — quer exprimir a função materna da mulher.


unidade 1 Adão Adão representa toda a humanidade criada por Deus à sua imagem. É considerado, nas tradições judaico-cristã e islâmica, como o primeiro ser humano. Em hebraico ‫( םדא‬Adão) refere-se tanto a adamá (solo vermelho) como a dam (sangue); podemos traduzir Adão por tirado do húmus (da terra, da argila), o que significa o seu enraizamento corporal no universo material; de acordo com o texto bíblico, é o sopro de vida, que Deus lhe insufla nas narinas, que o converte numa pessoa viva, capaz de se relacionar.

Adão e Eva São nomes simbólicos que significam e representam, ao mesmo tempo, o primeiro casal e todas as pessoas.

“Não é bom que o homem fique sozinho” Esta frase exprime a necessidade de alguém que seja para o homem um outro, capaz de diálogo. Manifesta a relação existente entre o homem e a mulher. “Da costela que tinha retirado do homem, o Senhor Deus fez a mulher” Homem e mulher têm a mesma natureza, a mesma dignidade. “O homem e a mulher ficam a ser uma só pessoa” Significa que o homem e a mulher, embora diferentes, são feitos um para o outro, são complementares. Deste modo a sexualidade humana está ligada à obra do Criador e ao seu projecto para a humanidade. “Façamos o ser humano à nossa imagem e semelhança” Significa que os homens e as mulheres foram criados por Deus e que há neles algo de divino. Somos parecidos com Deus: capazes de criar, amar, cuidar da natureza e dos outros.

Dar nome Significa a submissão de toda a natureza às pessoas. Deus quis submeter a natureza ao ser humano para que dominasse sobre ela; mas dominar não significa destruir! A responsabilidade sobre a natureza pertence à humanidade, cabe-lhe usar os seus recursos de forma equilibrada.

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unidade 1 Sete (7) É um número sagrado porque significa totalidade, plenitude e perfeição; na narrativa da criação, tudo foi feito em seis dias e no sétimo dia a obra tinha atingido a plenitude.

Jardim do Éden As origens remotas do povo da Bíblia situam-se na Mesopotâmia, uma região fértil entre os rios Tigre e Eufrates. Um verdadeiro Paraíso. O Jardim do Éden, Jardim das Delícias ou Paraíso Terrestre é na tradição das religiões abraâmicas (Judaísmo, Cristianismo e Islamismo) o local simbólico da primitiva habitação da humanidade. Detalhe do Paraíso, por Hieronymus Bosch

Árvore As imagens das duas árvores referem-se aos desejos mais profundos do coração humano. A árvore da vida evoca a aspiração à imortalidade; a árvore do conhecimento do bem e do mal evoca o desejo de independência absoluta e de domínio. “Conhecer o bem e o mal” significa decidir exclusivamente por si mesmo o que é bem e o que é mal. É cada um ser a referência suprema; assumir-se como deus.

Criação: duas narrativas

David, por Miguel Ângelo

Nas narrativas bíblicas da criação (Gn 1, 1-2,4a e Gn 2,4b-24) encontramos dois fios condutores que se entrelaçam e nos levam a perceber que houve dois autores que escreveram paralelamente sobre o mesmo tema (ainda que temporalmente distantes). Estes dois autores pretendem comunicar a mesma realidade, só que o fazem de modo diferente, com linguagem distinta, de acordo com o tempo em que vivem, com a sua cultura e formação. O autor mais antigo (Gn 2, 4b-24) designa-se por Javista pelo facto de chamar a Deus Javé. A história sagrada javista foi escrita em Jerusalém, provavelmente nos reinados de David e Salomão, pelo ano 950 a.C., embora utilize, por vezes, textos mais antigos. O rei ocupa um grande lugar na tradição javista porque é ele quem garante a unidade da fé. Este autor é um crente de tipo popular e pouco culto. O seu estilo é simples, pitoresco, concreto, ingénuo, mas bom narrador. Os seus relatos são muito vivos, sempre concretos e cheios de imagens.


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O outro autor (Gn 1, 1-2,4a), que se designa por Sacerdotal pelo facto de ser um sacerdote, é um teólogo culto que escreveu durante o exílio na Babilónia, nos anos 587-538 a.C. Na diáspora os sacerdotes releram as suas tradições para manter a fé e a esperança do povo. Utiliza um vocabulário preciso e profundamente religioso.

SÍNTESE DAS TRADIÇÕES TRADIÇÃO JAVISTA Gn 2,4b-25

Judá, Séc. X a. C.

Livro do Génesis

Origem do texto

Ideais da corte real, nos reinados de David e Salomão.

Contexto social

Época de prosperidade.

Estilo descritivo, concreto e simples.

Noção antropomórfica de Deus

vivem em comunhão.

Gn 1-2,4a

Babilónia, Séc. VI a. C.

Exílio na Babilónia; opressão do povo.

Vocabulário

Linguagem Perspectivaprecisa Cristã e profundamente religiosa.

Concepção de Deus

Noção de um Deus soberano

Homem e mulher são iguais em dignidade e

TRADIÇÃO SACERDOTAL

Homem e mulher são imagem Ser Humano

de Deus, que lhes confere poder sobre a criação.

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SABER

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O termo diáspora (do grego — dispersão) define tanto o deslocamento de grandes massas populacionais para fora da pátria como as comunidades que se formam devido a esses deslocamentos. É usado para fazer referência à dispersão do povo judeu pelo mundo. O exílio é a situação de expulsão da pátria imposta por alguma autoridade, como pena por crimes praticados ou por qualquer outro motivo.

Diferenças entre as duas narrativas De ordem cronológica Gn 1

Gn 2

• Deus adorna os céus com os astros.

• Deus cria o homem — somente o ser masculino. • A seguir planta as árvores.

• Depois cria os peixes do mar, as aves do céu e os animais da terra. • Finalmente, como obra-prima do seu trabalho, Deus cria o homem e a mulher.

• Depois cria os animais. • Por fim forma a mulher.

No modo de formar o homem e a mulher Gn 1

Deus a criar a mulher, da Bíblia de Nuremberga

• Deus dá especial importância à formação do primeiro par humano. Estabelece uma pausa no seu trabalho da criação para dialogar consigo mesmo. “Façamos o homem à nossa imagem, à nossa semelhança”. • Contudo nada se diz acerca do modo como os formou. Deus chama-os à vida pela Palavra. E cria os dois sexos simultaneamente.

Gn 2 • Deus forma o homem com argila e sopra-lhe nas narinas um sopro de vida. • Depois pensa em dar-lhe uma companheira. • Então forma a mulher, saída duma costela do primeiro homem.

Quanto ao conceito de Deus Gn 1

Gn 2

• A imagem de Deus é a de um Senhor grandioso e omnipotente: é o Senhor do Universo.

• Deus é muito paternal: um Deus vivo.

• Como um operário hebreu, trabalha em seis dias e abstém-se de trabalhar no sétimo.

• É representado antropomorficamente, com características muito humanas: é oleiro, jardineiro e cirurgião; trata-se de uma ideia de Deus bastante primitiva.

• À sua palavra omnipotente tudo vem à existência.


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Que valor têm estas narrativas? As narrativas bíblicas da criação não têm valor historiográfico, nem nunca pretenderam ser uma exposição dos factos tal qual se passaram. É evidente que quem fez a compilação final das Sagradas Escrituras, reparou na divergência dos dois textos. Mas como sabia que esta dupla versão das coisas tinha a mesma intenção fundamental — manifestar a fé em Deus-Criador — juntou as duas narrativas, transmitindo o que recebera da tradição. As narrativas bíblicas não querem, pois, ensinar Física nem Astronomia, nem nenhuma outra ciência. O seu objectivo é expressar a fé num Deus bom que tudo criou. Trata-se de textos com uma mensagem religiosa sobre Deus e sobre a humanidade: Deus interveio com paternal cuidado na formação do homem e da mulher, feitos um para o outro e reflexo da sua glória, pois criados à sua imagem e semelhança; Deus é a origem de todas as coisas; é ele que cria e é ele que, por puro amor, mantém na existência toda a criação; e toda a criação divina é boa: Deus viu que era bom. Não tendo valor historiográfico, estas narrativas comunicam-nos, no entanto, uma verdade profunda acerca das coisas e das pessoas, de Deus e da história. O homem e a mulher são criados por Deus para serem felizes. Seria, pois, descabido tomar as narrativas da origem do homem (da argila) e da mulher (de uma costela) como se as coisas se tivessem passado assim: como se Deus, de facto, fosse um Deus-oleiro a amassar o barro, a fazer uma estátua e a soprar-lhe nas narinas um sopro de vida; ou um Deus-jardineiro a plantar as árvores

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unidade 1 no paraíso; ou um Deus-cirurgião a formar a primeira mulher. Seria, pois, um erro tomar estas narrativas à letra e basear-se nelas para afirmar a falsidade da teoria evolucionista. Os autores de Gn 1-2 escreveram milhares e milhares de anos após a criação. Não sabiam como ela tinha acontecido, nem estavam interessados nisso. Não era o passado que os preocupava, mas sim a situação do tempo em que viviam. Estes textos, que hoje suscitam tantas perguntas, foram escritos precisamente para dar respostas às situações das pessoas suas contemporâneas. A harmonia original que descrevem é um mito, na medida em que utiliza linguagem e imagens míticas; mas é uma realidade, enquanto retrata o grande sonho da humanidade. O paraíso não existiu nos termos em que o Génesis o descreve, mas o que existiu e ainda existe é a possibilidade real de as pessoas realizarem a perfeita harmonia e paz, quando se deixam guiar pela luz e pela força de Deus, respeitando os ritmos da natureza e sendo solidários com os outros homens e mulheres, seus irmãos. A descrição do paraíso terrestre é um apelo à transformação do mundo.

Adão e Eva no Paraíso, por Jan Brueghel


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Fé ou ciência? Mas afinal, foi Deus que nos criou ou “descendemos dos macacos”?! Bíblia ou ciência?! Bíblia ou ciência é uma pergunta que não faz sentido. Em boa verdade, devemos substituir a conjunção “ou” pela conjunção “e”, e em vez do ponto de interrogação devemos colocar apenas um ponto final. Isso mesmo: Bíblia e ciência. Ciência e Bíblia apresentam discursos diferentes, mas não se contradizem; pelo contrário, complementam-se. Uma diz onde, quando e como foi (big-bang, evolução), outra diz porquê e para quê (Deus quis criar-nos porque nos ama e para sermos felizes). Os métodos da ciência são diferentes dos métodos usados pelo discurso ético e religioso. Se pretendermos conhecer qualquer coisa a fundo não podemos analisá-la só a partir de um ponto de vista; temos de a estudar sob diversas perspectivas. Assim é com as origens. Mas há que fazer as perguntas certas a cada domínio do conhecimento; não podemos esperar que a Bíblia dê lições de Físico-Química ou que a Matemática dê aulas de História... É à ciência que compete dizer onde e como começou a humanidade. Procurar essas respostas na Bíblia seria tão absurdo como, por exemplo, procurar num mapa a resposta à dúvida sobre como se conjuga um verbo! Os textos bíblicos da criação não são uma crónica de factos; não foram escritos por um jornalista que tivesse assistido ao começo da humanidade e depois o relatasse. A intenção dos autores sagrados não era descrever como tinha surgido a humanidade (nem eles sabiam) mas apenas comunicar a revelação: Deus chamou-nos no princípio e chama-nos continuamente a uma vida de amor e de harmonia com todas as coisas criadas.

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Louvação do Barro Cantarei o barro, porque nele esteve a vida e este sangue que ferve em nosso corpo. Meus olhos de barro pressentem o repouso e o clarão imortal de uma outra vida. Cantarei o barro porque foi amassada a nossa carne do barro inconsistente e na argila curtida e inanimada o sopro de Deus entrou como a semente. Marià Manent. Rosa do mundo

A Criação no Livro dos Salmos O Livro dos Salmos, composto por 150 cânticos e poemas, é o livro de orações da Bíblia. Os salmos reflectem as mais variadas situações da vida humana; são preces dirigidas a Deus, hinos de louvor e de agradecimento; também oferecem pistas sobre como se pode alcançar a felicidade. Foram escritos por diferentes autores, entre os quais Salomão e David, ao longo de cerca de setecentos anos (1000 a 300 a.C.). São citados mais de cem vezes no Novo Testamento — o próprio Jesus cantou e citou os salmos várias vezes — e foram sempre usados no culto judaico e cristão de todas as épocas. Dada a importância do tema da criação, os salmos também reflectem sobre este assunto.

Harpa: instrumento musical relacionado com o Livro dos Salmos


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SALMO 8

Ó

Senhor, nosso Deus, como é admirável o teu nome em toda a terra! Adorarei a tua majestade, mais alta do que os céus, pela boca das crianças e dos pequeninos. Quando contemplo os céus, obra das tuas mãos, a Lua e as estrelas que tu criaste, penso: que é o homem, para que te lembres dele? Que é o ser humano para que te preocupes com ele? Contudo, fizeste-o quase como um deus e encheste-o de honra e dignidade. Deste-lhe autoridade sobre as tuas obras, colocaste tudo sob o seu poder: ovelhas e bois e animais selvagens; as aves que voam no céu, os peixes e tudo o que existe no mar. Ó Senhor, nosso Deus, como é admirável o teu nome em toda a terra!

Este salmo é um canto de admiração e de louvor a Deus Criador e a afirmação da dignidade do ser humano, como obra-prima da criação. Certamente que já contemplaste variadas vezes a beleza de uma flor, de uma paisagem, a imensidão de um céu estrelado, o romantismo de um pôr-do-sol, o sorriso duma criança, a ternura dos pais, a melodia de um passarinho... A contemplação das maravilhas do mundo provoca realmente um grito de admiração e louvor. Afinal, toda esta beleza nos foi dada sem que a tivéssemos merecido: pura dádiva de amor.

Deus Pai a criar o Universo, por Stanislaw Vyspianski

SABER

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No dia 21 de Julho

de 1969, por iniciativa do papa Paulo VI, os astronautas depositaram no solo da lua um texto da Bíblia, mais precisamente, o salmo 8.


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unidade 1 Também o salmista teve esta experiência contemplativa, na qual se interroga: “que é o homem para que te ocupes dele?”. Perante todas as belezas da criação, a pessoa humana merece especial atenção. Este salmo confronta a grandeza do universo, a imensidão de Deus com a pequenez do ser humano. Este confronto produz no autor uma enorme admiração: por que razão havia Deus de se importar connosco? No entanto, Deus fez-nos quase divinos, revestidos de uma grande dignidade e com poder sobre todas as suas obras. Só por amor é que se compreende a acção de Deus.

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A Criação no Alcorão [Deus] cumula-vos com bens e filhos e concede-vos jardins e rios. Que vos impede de glorificá-lo? Não vos criou por estágios sucessivos? Não vistes como criou sete céus sobrepostos, neles, colocando a Lua como luz e o Sol como lâmpada? E não foi ele quem vos tirou da terra como as plantas? Depois, para a terra vos devolverá, e dela vos tirará de novo e Deus aplainou a terra como um tapete para vós a fim de que a percorrais sobre caminhos largos. Deus vos criou de barro, depois de esperma. E formou-vos em casais. Nenhuma fêmea concebe ou gera sem seu conhecimento. Sura 71, 12-20; 35, 10


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CRIAÇÃO: UM ACONTECIMENTO INACABADO Na verdade, a criação não é um facto acabado, Deus continua a criar. Mas nesta acção criadora, as próprias criaturas cooperam com o Criador.

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Assim, os homens e as mulheres que, ao ganhar o sustento para si e suas famílias, de tal modo exercem a própria actividade que prestam conveniente serviço à sociedade, com razão podem considerar que prolongam com o seu trabalho a obra do Criador, ajudam os seus irmãos e dão uma contribuição pessoal para a realização dos desígnios de Deus na história. (...) Vê-se, portanto, que a mensagem cristã não afasta os homens da tarefa de construir o mundo, nem os leva a desatender o bem dos seus semelhantes, mas que, antes, os obriga ainda mais a realizar essas actividades. Gaudium et Spes (GS) 34

Podemos então perguntar-nos: • Qual é o nosso contributo, hoje, para continuar a obra da criação? • Como podemos nós colaborar nesta tarefa grandiosa? Reflictamos um pouco! Quando cada um de nós nasceu, já muita coisa existia: a televisão, os computadores, os telemóveis, a internet... são contributos preciosos para o nosso dia-a-dia, de pessoas que nunca conhecemos, e actualmente não seríamos capazes de viver sequer um dia sem utilizarmos algumas dessas ferramentas. Com certeza não nos será exigido que criemos ferramentas imprescindíveis como estas. Porém, mesmo assim, cada um de nós poderá contribuir de forma decisiva, colaborando na criação. Todos nós temos uma capacidade, um dom especial... é preciso fazer crescer esse dom, de dentro de nós, e pô-lo ao serviço dos outros, da humanidade! Uns terão mais jeito para o desenho, para a pintura, para as artes; outros gostarão mais de algum tipo de desporto; uns têm facilidade em lidar com os números; para outros torna-se fácil ler e escrever...!

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No entanto, todos temos um dom especial, algo que fazemos com maior facilidade, com mais gosto... e todos eles são importantíssimos! Se formos capazes de pôr esses dons a render, já estaremos a ser verdadeiros colaboradores da criação!

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Pedra Filosofal Eles não sabem que o sonho é uma constante da vida tão concreta e definida como outra coisa qualquer, como esta pedra cinzenta em que me sento e descanso, como este ribeiro manso em serenos sobressaltos, como estes pinheiros altos que em verde e oiro se agitam, como estas aves que gritam em bebedeiras de azul. Eles não sabem que o sonho é vinho, é espuma, é fermento, bichinho álacre e sedento, de focinho pontiagudo, que fossa através de tudo num perpétuo movimento. Eles não sabem que o sonho é tela, é cor, é pincel, base, fuste, capitel, arco em ogiva, vitral, pináculo de catedral, contraponto, sinfonia, máscara grega, magia,

que é retorta de alquimista, mapa do mundo distante, rosa-dos-ventos, Infante, caravela quinhentista, que é cabo da Boa Esperança, ouro, canela, marfim, florete de espadachim, bastidor, passo de dança, Colombina e Arlequim, passarola voadora, pára-raios, locomotiva, barco de proa festiva, alto-forno, geradora, cisão do átomo, radar, ultra-som, televisão, desembarque em foguetão na superfície lunar. Eles não sabem, nem sonham, que o sonho comanda a vida, que sempre que um homem sonha o mundo pula e avança como bola colorida entre as mãos de uma criança. António Gedeão. Movimento Perpétuo


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CRIAÇÃO E ECOLOGIA Actualmente, falar de criação e ecologia é uma atitude necessária e urgente. Necessária porque as evidências de um mundo ameaçado estão aí, são vistas, ouvidas e sentidas. Urgente porque habitamos todos a mesma casa (etimologicamente a palavra ecologia deriva do grego oikos — casa) em ruínas, que ameaça cair sobre a humanidade. Pensar na relação entre criação e ecologia é como cada pessoa ser convidada a olhar para si, reflectir e analisar aquilo que tem feito, em função da beleza e equilíbrio da casa que é o mundo onde vive. Face ao progresso descontrolado, podemos dizer que vivemos num tempo em que a criação está fortemente ameaçada e essa crise manifesta-se em diferentes aspectos.

Crise do ambiente O ser humano enche o ambiente em que vive com os resíduos do que produz e consome, transformando a natureza numa espécie de depósito de lixo tóxico, que está a caminhar a passos largos para a saturação. Quais as consequências? Poluição dos elementos graças aos quais se desenvolve a vida (ar, água). Estamos, portanto, perante uma grave crise ambiental que afecta os ciclos naturais, fundados num equilíbrio profundo e complexo entre a energia solar, a atmosfera, as extensões de água, a fauna, a flora e o ser humano. O planeta Terra está doente... os sintomas registam um desequilíbrio a nível físico, vegetal, animal e, consequentemente, humano. Será que as pessoas perceberam mal a sua missão em relação ao mundo que as rodeia e que com elas convive? Terão entendido mal o significado do verbo “dominar”? O planeta Terra é laboratório (espaço de trabalho) e jardim (espaço lúdico) e, por isso, as pessoas são chamadas a ser técnicas e jardineiras, a transformar e a proteger. De acordo com a mensagem dos textos bíblicos, a pessoa, cada pessoa, tem capacidade para criar, para ser co-criadora da obra bela e boa iniciada por Deus. Dito de outra forma: a pessoa possui o dom de “criar” vida, e fazer o contrário é atentar contra a sua dignidade, é negar que se é “imagem de Deus”.

Crise energética O ser humano vive dependente das fontes de energia altamente poluidoras; o crescente uso das mesmas conduz à questão da energética

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unidade 1 que pode consumir sem pôr em causa o ambiente vital. Conscientes deste problema, têm sido apresentadas soluções e fazem-se investimentos no sentido de produzir e consumir energias alternativas.

Crise de matérias-primas Para satisfação das exigências de produção e de consumo, as pessoas recorrem às fontes de matérias-primas, que são limitadas e podem, por isso, esgotar-se. Perante estas crises, o desafio não é refugiar-se no medo ou entregar-se à indiferença. O desafio que nos deve encorajar é “dominar”, de forma inteligente e responsável, todas as realidades naturais, o que implica tomar consciência de que a pessoa humana é a criatura por excelência, mas não é a única e, como tal, deve aprender a respeitar a “casa” onde vive. As outras criaturas existem para o ser humano, mas como ambiente natural do próprio ser humano. Este não vive só das criaturas mas também com elas e delas depende a qualidade da sua própria vida. Também na relação entre as pessoas e a natureza, vale a prioridade do ser sobre o ter: as criaturas valem não só pela utilidade mas também pela variedade, pela beleza, pela riqueza e pela gratuidade. Entender o significado da criação significa compreender, não apenas o seu aspecto utilitário, mas também, e sobretudo, reconhecer que é dom de Deus e ambiente natural da humanidade.

Um olhar de esperança A fé no Deus criador, à maneira de Francisco de Assis, que tratava todas as criaturas por irmãs, é a “arma” mais poderosa para vivermos e sermos homens e mulheres dignos da criação de Deus.

saber

S. Francisco de Assis

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Francisco nasceu em Assis, no ano 1182. Depois de uma juventude boémia, converteu-se a Cristo, renunciou a todos os bens paternos e entregou-se inteiramente a Deus. Abraçou a pobreza para seguir mais perfeitamente o exemplo de Cristo e anunciar a todos o amor de Deus. Viveu com os seus companheiros de acordo com regras, que constituem o ideal franciscano. Promoveu o diálogo entre os povos e, ainda hoje, inspira os amantes da natureza e os sonhadores de um mundo de paz. Morreu em 1226.


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Cântico das Criaturas Louvado sejas, ó meu Senhor, com todas as tuas criaturas, especialmente pelo irmão Sol, através do qual nos dás o dia e a luz. E ele é belo e radiante; com grande esplendor: de ti, Altíssimo, nos dá ele a imagem. Louvado sejas, ó meu Senhor, pela irmã Lua e as estrelas: no céu as acendeste, claras, preciosas e belas. Louvado sejas, ó meu Senhor, pelo irmão vento e pelo ar e pelas nuvens; pelo céu sereno e pelos tempos, com que sustentas todas as criaturas. Louvado sejas, ó meu Senhor, pela irmã água, que é tão útil e humilde e preciosa. Louvado sejas, ó meu Senhor, pelo irmão fogo, pelo qual alumias a noite; ele é belo, agradável e forte. Louvado sejas, ó meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe terra, que nos sustenta e governa e produz variados frutos, com flores coloridas e verduras. Louvado sejas, ó meu Senhor, pelos que perdoam por teu amor. Louvado sejas, ó meu Senhor, por nossa irmã a Morte corporal, da qual homem algum pode escapar. Louvem e bendigam o meu Senhor, dêem-lhe graças e sirvam-no com toda a humildade. S. Francisco de Assis (texto adaptado)

O Cântico das Criaturas é considerado a mais antiga e a mais preciosa jóia da poesia italiana. Segundo as fontes franciscanas da época, Francisco encontrava--se gravemente doente quando escreveu o Cântico; sofria de infecções no estômago, no fígado e no pâncreas, e estava quase cego com uma conjuntivite aguda. Neste estado debilitado, é fácil pensar que nem sequer o “seu” irmão Sol brilharia para ele; aliás, um simples raio de luz causar-lhe-ia terrível incómodo.

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Desafios ecológicos Elemento da criação

Problema que o afecta

Alguns conselhos

Luz do Sol

Chegam demasiados raios ultra-violeta à Terra devido ao buraco na camada de ozono

• Evita usar substâncias que contenham CFC

O ar que respiramos

• Poluição atmosférica

• Não fumes

• Efeito estufa aquecimento global

• Usa transportes colectivos • Ocupa os teus tempos livres com passeios a pé, de bicicleta, skate, ou outro meio de divertimento que não gaste energias fósseis nem produza poluição

O solo

• Poluição contaminação dos solos • Desertificação

• Não destruas plantas desnecessariamente • Não atires lixo para o chão • Planta árvores

Os oceanos, os mares, os rios, a água

• Poluição contaminação das águas

• Recicla os óleos alimentares • Toma duche em vez de banho de imersão • Fecha a torneira quando estás a escovar os dentes

• Falta de água potável

• Não despejes lixo nos cursos de água


unidade 1 Elemento da criação

Problema que o afecta

Alguns conselhos

As florestas, as plantas

• Destruição de florestas • Extinção de espécies • Incêndios

• Faz reciclagem do papel que usas • Não desperdices papel • Evita fazer fogueiras • Não arranques plantas desnecessariamente • Preserva os jardins

Animais

Extinção de espécies

• Não adiras à caça • Trata com dignidade os teus animais domésticos • Defende os animais selvagens contra uma visão circunscrita a interesses pessoais

Homens e mulheres

• Indiferença • Pobreza • Violência • Guerra • Drogas

Reduzir

• Recusa tabaco, álcool e drogas • Tem cuidado com a tua alimentação e higiene • Respeita e valoriza a opinião dos outros • Partilha o que tens com os outros • Defende os mais fracos que não se conseguem defender sozinhos

Reutilizar

Reciclar

49


50

unidade 1

NO PRINCÍPIO... E HOJE?

Porquê? Para quê?

Quando? Como?

Co-criar

Cuidar

“Dominar” a Criação

Missão da Humanidade

DADOS DA CIÊNCIA

PERSPECTIVA RELIGIOSA

Quando a última árvore tiver caído, quando o último rio tiver secado, quando o último peixe for pescado, as pessoas vão entender que o dinheiro não se come. Greenpeace


unidade 1

10 DOC 10

A vida A vida é... A vida é uma oportunidade, aproveita-a. A vida é beleza, admira-a. A vida é sonho, torna-o realidade. A vida é um desafio, enfrenta-o. A vida é um dever, cumpre-o.

A vida é promessa, cumpre-a. A vida é tristeza, supera-a. A vida é um hino, canta-o. A vida é um combate, aceita-o. A vida é tragédia, domina-a. A vida é aventura, afronta-a.

A vida é um jogo, joga-o.

A vida é felicidade, merece-a.

A vida é preciosa, cuida-a.

A vida é a VIDA, defende-a.

A vida é riqueza, conserva-a. A vida é amor, goza-o. A vida é um mistério, desvela-o.

Madre Teresa de Calcutá

11 DOC 11

Todas as coisas são um milagre Pode ser que um dia deixemos de nos falar... Mas, enquanto houver amizade, Faremos as pazes de novo. Pode ser que um dia o tempo passe... Mas, se a amizade permanecer, Um do outro há-de lembrar-se. Pode ser que um dia nos afastemos... Mas, se formos amigos de verdade, A amizade nos reaproximará. Pode ser que um dia não mais existamos... Mas, se ainda sobrar amizade Nasceremos de novo, um para o outro.

Pode ser que um dia tudo acabe... Mas, com amizade construiremos tudo novamente Cada vez de forma diferente, Sendo único e inesquecível cada momento Que juntos viveremos e nos lembraremos para sempre. Há duas formas para viver a sua vida Uma é acreditar que não existe milagre A outra é acreditar que todas as coisas são um milagre. Albert Einstein

DOC 12 12

Nós não somos o produto casual e sem sentido da evolução; cada pessoa é o fruto de um pensamento de Deus. Bento XVI. Homilia de 24 de Abril de 2005

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UNIDADE LECTIVA

2

As Religi천es Abra창micas


Nesta unidade vamos reflectir sobre: • A universalidade do fenómeno religioso; • As religiões abraâmicas; • Judaísmo; • Islamismo; • Cristianismo; • O diálogo inter-religioso; • A tomada de decisões pessoais face à religião.


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unidade 2

A UNIVERSALIDADE DO FENÓMENO RELIGIOSO A procura do Transcendente, do Sagrado, de Deus, é uma questão humana e universal. Nas mais variadas situações existenciais, particularmente nas “situações limite”, as pessoas interrogam-se sobre a existência de uma realidade que as transcende. Onde quer que se encontrem vestígios de actividade humana, aí se encontram manifestações do religioso. Em todos os tempos e lugares, a humanidade procurou encontrar-se com o divino: construiu templos, celebrou festas e rituais, integrou as crenças no quotidiano. Independentemente do que pensamos da religião, ela é uma realidade estruturante das sociedades, e a compreensão da história da humanidade só se pode fazer tendo em conta a dimensão religiosa. A vida social está configurada em grande parte pelo religioso, desde o nascimento até à morte (as festas, os costumes, o folclore, a linguagem...). A dimensão religiosa está presente nas vivências do quotidiano, nas grandes opções de vida e nos momentos fortes da existência humana. A religião pretende responder aos anseios e às questões fundamentais do ser humano: Quem sou? Donde venho? Para onde vou? De uma forma ou de outra, as pessoas, questionando-se sobre si mesmas, levantam questões sobre a existência de um ser superior — a quem as religiões, em geral, chamam Deus. Também as várias culturas, tal como a nossa, estão impregnadas de valores religiosos que se manifestam na história, na literatura, na arte, na filosofia, na organização das povoações e do espaço urbano.


unidade 2

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13

DOC 1 Deus

Na mais remota antiguidade, quando pela primeira vez o primeiro tremor da fala me chegou aos meus lábios, subi à montanha e falei a Deus dizendo: — Senhor, sou teu escravo. Minha lei é o teu desejo oculto, obedecer-te-ei por todo o sempre. Mas Deus não disse nada, e passou de largo como violenta tempestade. Mil anos depois tornei a subir à montanha sagrada, e falei a Deus outra vez dizendo: — Meu Criador, sou tua criatura. De barro me fizeste e devo-te quanto sou. Mas Deus não respondeu; passou impetuoso como se fossem mil asas velozes. Mil anos depois escalei a montanha sagrada e falei de novo a Deus dizendo:

— Meu Pai, sou teu filho. Deste-me a vida com amor e piedade, e com amor e piedade herdarei o teu reino.

.

Mas Deus não respondeu, e passou de largo, qual nevoeiro que cobre as montanhas como um véu. Mil anos decorridos, subi outra vez à montanha sagrada, e outra vez falei dizendo: — Meu Deus, és minha ânsia suprema e minha plenitude. Sou o teu ontem e Tu o meu amanhã. Sou a tua raiz na terra e Tu és a minha flor no céu; juntos cresceremos à face do Sol. Então Deus inclinou-se para mim e murmurou doces palavras aos meus ouvidos. E como o mar envolve o regato que nele desagua, assim Deus me acolheu. E mesmo quando desci aos vales e planícies, vi que Deus também estava lá. in O Louco

Khalil Gibran (1883-1931)


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unidade 2

14

DOC 11 Quem sabe?...

Queria tanto saber porque sou Eu! Quem me enjeitou neste caminho escuro? Queria tanto saber porque seguro Nas minhas mãos o bem que não é meu! Quem me dirá se, lá no alto, o céu Também é para o mau, para o perjuro? Para onde vai a alma, que morreu? Queria encontrar Deus! Tanto o procuro! A estrada de Damasco, o meu caminho, O meu bordão de estrelas de ceguinho, Água da fonte de que estou sedenta! Quem sabe se este anseio de Eternidade, A tropeçar na sombra, é a Verdade, É já a mão de Deus que me acalenta? Florbela Espanca (1894-1930) Parque dos Poetas

in Charneca em flor

Religião e Religiosidade A religião é um fenómeno universal no tempo e no espaço, está na base das culturas, da vida familiar e da vida social. Ela contribui para a felicidade das pessoas e dos grupos, atribuindo um sentido à existência humana e apelando aos valores éticos que nos impelem a servir os outros e o meio em que estamos inseridos.


unidade 2 A humanidade sempre se questionou sobre a existência quotidiana e sobre o que está para lá do universo, bem como sobre a vida e a morte, a fertilidade dos solos e dos animais, a harmonia dos astros e a força da natureza. Não sabendo explicar muitos dos fenómenos naturais, atribuiu o milagre da vida a forças poderosas que temia e a quem prestava culto: perante a força vital do Sol, adorou-o; ao desejar a fertilidade, construiu estatuetas que representam a deusa-mãe... Muitos povos do passado adoraram vários deuses — forças da natureza, animais — (politeísmo), que representavam sob várias formas e a quem atribuíam diversos nomes. Consciente de que ele próprio dependia de uma força que lhe era superior, o ser humano reservou locais de culto, que assinalou com grandes pedras (menires), e ergueu dólmenes nos lugares onde sepultava os seus mortos. A crença na vida para além da morte e na existência de forças divinas conduziu vários povos, em todas as latitudes, a desenvolverem ritos e manifestações religiosas: mumificação dos mortos, construção de estátuas e santuários dedicados aos deuses, existência de pessoas encarregadas de lidar com as divindades, calendários, festas, ritos de iniciação e escritos sagrados.

SABER

+

Politeísmo - Sistema religioso que reconhece e venera vários deuses. Monolatria - Crença na existência de vários deuses, sendo que um deles é o único deus nacional, venerado pelo povo, e os outros deuses são identificados com divindades de povos estrangeiros. Henoteísmo - Crença na existência de uma única fonte da realidade, a qual se desdobra em várias manifestações que os crentes veneram conforme as circunstâncias. Monoteísmo - Sistema religioso que admite a existência de um só Deus. Sendo Deus o ser absoluto é necessariamente único e distinto da realidade por ele criada.

SABER

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+

Religião é um conjunto de doutrinas, de rituais e de práticas que pretendem estabelecer o contacto entre o humano e o divino. Dois elementos tornam-se obrigatórios na definição de religião: crença numa ordem superior da realidade e ordenação da vida em consonância com a crença.


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unidade 2 A religião pressupõe uma iluminação ou um encontro com o Sagrado, entendido por algumas religiões como pessoal. Esse encontro está descrito em textos sagrados de tradição oral ou escrita. Destacam-se neste processo os místicos, os videntes, os profetas — personagens que, tendo tido uma especial relação com o Sagrado, expressam essa experiência aos outros. São portadores de uma mensagem capaz de transformar a vida das pessoas, porque de origem divina.

O ser humano busca na religião resposta às suas inquietações, um sentido para a sua existência e esperança no futuro. A relação com o Sagrado, através da fé (atitude de reconhecimento e de entrega confiante), conduz o ser humano à fidelidade a determinados compromissos e responsabilidades. Todos os dias, em cada recanto do mundo, homens e mulheres (individualmente ou em grupo) dedicam um pouco do seu tempo à sua relação com o Sagrado, exprimindo-se através de palavras e gestos, orações e acções em favor dos outros. Cada religião apresenta um caminho de libertação interior e oferece um conjunto de respostas e metas que procuram dar sentido à existência e ao agir humanos. Conhecer as várias religiões é abrir-se à fascinante descoberta do mistério e da beleza, do heroísmo e da radicalidade, da verdade e da simplicidade. É entrar num mundo maravilhoso onde os homens e as mulheres se interrogam e se entregam sem limites a causas belas e justas e onde o Sagrado caminha, lado a lado, com cada um e com todos, na busca da plena felicidade. Como cada família, também cada religião tem as suas características próprias, a sua maneira de ser e os seus costumes. Nas grandes catedrais ou nas capelas da floresta, no templo ou na mesquita, junto ao muro das lamentações ou no mosteiro, elevam-se palavras e cânticos de louvor, pensamentos e compromissos de amor e serviço, de súplica e de perdão. No silêncio da sua casa, na igreja ou na sinagoga, olhando para Meca ou à beira do rio Ganges, contemplando um pôr-do-sol ou no silêncio do seu coração, cada homem e cada mulher, porque vive, procura a Vida; porque existe e é, procura o Ser; porque ama, procura o Amor... porque sabe que é Ele que dá o ser e o sentido à vida.


unidade 2 Mas cada religião traz consigo um enorme perigo: o do fanatismo, da intolerância e do fundamentalismo, quando se transforma para o crente numa fuga à complexidade do real, em vez de uma abertura ao sentido da sua grandeza e diversidade. Por isso, é necessário estarmos atentos aos movimentos religiosos para acolhermos o que dignifica o ser humano e rejeitarmos o que o diminui.

Abraão Olá! O meu nome é Abraão. Vivi no séc. XIX a.C. Isso mesmo: tenho quase 4.000 anos! Nasci em Ur, no actual Iraque, e por lá habitei até a minha vida mudar completamente. Era chefe de uma tribo e, como todos os meus conterrâneos, adorava vários deuses. Mas progressivamente fui descobrindo o Deus único e percebi que podia adorá-lo em qualquer lugar e em qualquer circunstância. Compreendi que só pode existir um único Deus, os deuses antigos eram ídolos mortos, elementos naturais ou representações construídas pelas pessoas. Eu e o meu clã começámos a acreditar no Deus vivo e presente que acompanha a história pessoal e a história do povo. Um dia, Deus disse-me: “Deixa a tua terra e a casa de teu pai e vai para a terra que eu te mostrar. Farei de ti um grande povo; hei-de abençoar-te e tornar-te famoso. O teu nome será uma bênção... e todas as famílias da Terra serão em ti abençoadas” (Gn 12, 1-3). E eu confiei, acreditei, obedeci e assim me tornei no patriarca de todos aqueles que acreditam num único Deus.

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unidade 2

Ninive

Harran Assur

Ri

o Ti

re

g

Alepo

Mari

ACAD

Ugarit

Rio

Mar Mediterrâneo

Susa

Babilónia

Eufr

at

Nipur

ELAM

es

Biblos

Ur Damasco

Siquém

SUMER

Golfo Pérsico

Hebron Bersabeia Zoão Nof (Mênfis)

On

EGIPTO Rio Nilo

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El-Amarna

Mar Vermelho

Percurso de Abraão Cidades mencionadas em Gn 12 Itinerário de Abraão desde a Mesopotâmia até à Palestina

Os descendentes de Abraão guardaram e cultivaram a fé num só Deus ao longo dos tempos e originaram as três religiões monoteístas: O Judaísmo, o Cristianismo e o Islão. Todas acreditam num Deus único, reconhecem em Abraão o primeiro crente e por isso se chamam religiões abraâmicas, fundadas na revelação de Deus àquele que é o pai dos crentes. Deus revela-se a Abraão e toda a história da humanidade se transformará por causa deste encontro com o Deus único.


unidade 2

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Deus

Séc. XIX a.C.

Abraão

Isaac

Séc. XIII a.C.

Séc. I d.C.

Ismael

Moisés JUDAÍSMO

Jesus Cristo CRISTIANISMO

Séc. VII d.C.

Maomé ISLAMISMO

DOC 315 Abraão “judeu” Olhem para Abraão, vosso pai, e para Sara, que vos deu à luz. Quando o chamei não tinha filhos, mas abençoei-o e dei-lhe numerosa descendência. (Is 51, 2) Abraão “cristão” Abraão é o pai espiritual de todos os que crêem em Deus sem serem circuncidados e a quem Deus aceita como seus amigos. É igualmente pai dos que são circuncidados, isto é daqueles que não só receberam a circuncisão, mas também seguem o exemplo de fé que o nosso pai Abraão mostrou antes de ser circuncidado. (Rm 4, 11-12) Abraão “islâmico” Dizei: “(...) Nós acreditamos na fé de Abraão, o íntegro. Ele não foi nenhum idólatra”. (Alcorão 2, 129)

Abraão e Isaac, por Ferdinand Olivier


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unidade 2

Menorah

O JUDAÍSMO Judaísmo é o nome dado à religião do povo judeu. De acordo com a fé judaica, a revelação do Deus uno e único aconteceu de forma muito concreta através da sua intervenção na história do povo hebreu.

Elementos essenciais da história do Judaísmo

Moisés, Catedral de Colónia (Alemanha)

De acordo com a narrativa bíblica, no tempo recuado dos patriarcas — Abraão, Isaac e Jacob (Israel) —, Deus ordenou a Abraão que partisse para Canaã — território actualmente também designado por Palestina, Israel ou Terra Santa —, prometendo abençoar e elevar os seus descendentes à categoria de nação poderosa; mais tarde, revelou-se a Moisés (no século XIII a.C.), manifestando-se-lhe no monte Sinai; depois, por meio dos profetas, Deus tornou a falar muitas vezes ao povo de Israel para recordar a Aliança, ou seja, o compromisso que tinha estabelecido com ele. Neste pacto recíproco, Deus comprometia-se a abençoar e proteger o seu povo, e o povo comprometia-se a cumprir a vontade de Deus expressa, simbolicamente, nos Dez Mandamentos. A Aliança no Sinai, que é o corolário dos acontecimentos do êxodo (libertação do Egipto), constitui o evento estrutural do Judaísmo e a confirmação de Israel como povo de Deus. A experiência da libertação, a Aliança e a Lei (Dez Mandamentos) são as fontes vivas da fé e da própria existência de Israel. Estes acontecimentos que fizeram o Judaísmo nascer e desenvolver-se são fonte de inspiração contínua e de impulso para o futuro, motivando o povo a realizar a aliança com Deus.


unidade 2

SABER

+

Judeu é todo aquele que segue os princípios do Judaísmo e é reconhecido como tal pela comunidade judaica. A palavra judeu deriva de Judá, o nome de uma das doze tribos de Israel. Ainda que originalmente designasse apenas os elementos desta tribo, habitantes da Judeia, posteriormente passou a designar todos os israelitas, independentemente do seu local de nascimento. A lei judaica considera judeu todo aquele que nasceu de mãe judia ou se converteu ao Judaísmo de acordo com essa mesma lei. Para se converter ao Judaísmo é necessário aderir aos princípios e às tradições judaicas e passar por diversos rituais, nomeadamente a circuncisão. Um judeu que deixe de praticar o Judaísmo e se transforme num não praticante continua a ser considerado judeu; de igual modo, um judeu que não aceite os princípios da fé e se torne agnóstico ou ateu também continua a ser considerado judeu. No entanto, se um judeu se converter a outra religião, como o Budismo ou o Cristianismo, perde o lugar como membro da comunidade judaica. Actualmente a palavra Israel designa habitualmente o Estado político de Israel. Por isso, tal como nem todos os portugueses são católicos, assim também nem todos os cidadãos de Israel são judeus (no sentido de pertença à religião judaica).

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Estrela de David

Cronologia da história hebraica

1850 1700 1300 1250 1210 1033 1012 a.C. 932 722 587 538

333 143 63

d.C. 70

Abraão fixa-se em Canaã, terra que lhe foi prometida por Deus. Os descendentes de Abraão emigram para o Egipto e prosperam. Os hebreus começam a ser oprimidos no Egipto. Êxodo: Moisés liberta o povo do Egipto e condu-lo de regresso a Canaã. Os Juízes dirigem as tribos de Israel. Institui-se a monarquia em Israel. O rei David unifica as doze tribos de Israel e faz delas um império. Israel é dividido em dois reinos: Reino do Norte (Israel) e Reino do Sul (Judá). Queda de Israel. Sargão II da Assíria conquista o Norte e deporta o rei e o povo. Queda de Judá. Nabucodonosor conquista o Sul e exila o povo na Babilónia. Ciro, rei dos persas, vence o império babilónico e permite o regresso dos exilados a Israel. Sob domínio persa, Esdras e Neemias dirigem a reconstrução do Templo e reorganizam a Lei. Os gregos vencem os persas e Israel fica sob o domínio helénico. Reinado dos Macabeus. Israel consegue a independência nacional. Os romanos conquistam a Palestina e Israel fica novamente sob domínio estrangeiro. Destruição do Templo de Jerusalém e início da grande diáspora judaica.

1948 Criação do Estado de Israel. Adaptado de Machado Lopes. Atlas Bíblico

Escultura em relevo com o saque dos Romanos a Jerusalém, carregando a Menorah no ano 70 d.C


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unidade 2

Cultura Judaica A cultura judaica actual, moldada por dois mil anos de tradição rabínica, engloba os aspectos da vida das comunidades judaicas, integradas nos diversos povos e culturas. Entre os principais aspectos da cultura judaica podemos realçar a língua, o vestuário e a alimentação.

SABER

Gioacchino Rossini

+

A história hebraica está presente na literatura, na pintura, na escultura, na música e em todas as artes. A título de exemplo, refiram-se duas óperas famosíssimas: Moisés no Egipto, de Gioacchino Rossini (1792-1868), onde se canta a libertação dos hebreus da opressão egípcia, e Nabucco, de Giuseppe Verdi (1813-1901), onde se exaltam os judeus arrastados em cativeiro para a Babilónia, sob o jugo de Nabucodonosor.

Destruição do Templo de Jerusalém, por Francesco Hayez


unidade 2

Língua hebraica

Vestuário

Alimentação

O hebraico, também chamado Lashon haKodesh (língua sagrada), é o principal idioma do Judaísmo, utilizado como língua litúrgica. Foi reactualizado como um idioma de uso corrente no século XIX e é actualmente a língua oficial do Estado de Israel. No entanto, diversas comunidades judaicas utilizam outros idiomas: O aramaico — língua que Jesus falava — é a língua materna de algumas pequenas comunidades do Próximo Oriente. O dzhidi ou judeu-persa é o conjunto de idiomas falados pelos judeus oriundos do actual Irão. O iídiche (judeu alemão) é o idioma germânico escrito com caracteres do alfabeto hebraico. O judeu-espanhol ou ladino é uma língua semelhante ao castelhano falada pelas comunidades sefarditas (comunidades judaicas da Península Ibérica). O karaim, idioma turco com influências do hebraico, é falado pelos judeus da Turquia.

O Judaísmo possui algumas tradições religiosas e culturais em relação aos trajes, dentre as quais podemos destacar: o kippá, o tefilim e o tzitzit. O Kippá (espécie de pequeno barrete) é o símbolo distintivo usado pelos judeus (só os homens) para manifestar respeito a Deus. Tefilim é o nome dado a duas caixinhas de couro dentro das quais está um pergaminho com trechos fundamentais da Torah, que se prendem à testa e ao braço esquerdo no momento da oração para indicar a presença da palavra de Deus na mente e no coração.

De acordo com a lei mosaica (lei de Moisés) do Livro de Deuteronómio, os judeus dispõem de um código que lhes permite comer apenas determinados alimentos. Ao conjunto de leis dietéticas do Judaísmo dá-se o nome de kashrut. Aos alimentos permitidos pela religião judaica chama-se kosher. Actualmente, os produtos à venda possuem geralmente uma identificação que os estabelece como alimentos kosher. Entre os alimentos treif (impróprios, proibidos) podemos nomear a carne de porco, o camarão, a lagosta e todos os frutos do mar, os peixes que não possuam escamas, a carne com sangue, e qualquer alimento que misture carne e leite.

Rolo da Torah em hebraico

O tzitzit, que se prende ao tallit (espécie de xaile), é a sua parte mais importante, serve para lembrar aos judeus o cumprimento dos Mandamentos; só pode ser usado por homens adultos durante as orações da manhã.

Kippá

Símbolo Kosher

Adaptação de Élie Barnavi. História Universal dos Judeus

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unidade 2

Símbolos do Judaísmo A Menorah é um dos mais antigos símbolos da fé judaica. É um candelabro com sete braços, que simboliza o Judaísmo e o Estado de Israel. A menorah é símbolo da nação de Israel e da sua missão, que é a de ser a luz entre as nações. A Estrela de David, estrela de seis pontas feita com dois triângulos equiláteros, é símbolo do Judaísmo desde o século XVII d.C. A estrela de seis pontas era o emblema do escudo do grande rei David. A partir de 1897, passou a ser o emblema do Sionismo e actualmente é o símbolo da bandeira de Israel. Os dois triângulos perfeitos sugerem a essência dos ideais judaicos: a fé judaica e a sua história. A Mão de Hamesh é um dos símbolos mais usados na joalharia judaica, embora não se saiba ao certo por que se tornou tão popular. É uma mão invertida com um olho no centro ou com várias letras hebraicas.

O Mezuzza é uma pequena caixa que contém um rolo de pergaminho com o shema (Dt 6, 4-9; 11:13-21), texto bíblico em que Deus ordena que se conservem as suas palavras nas mentes e nos corações. O mezuzza é fixado no umbral de todas casas. Segundo a tradição judaica, sempre que se entra numa casa com um mezuzza à porta, é necessário beijar os dedos e tocar no mezuzza, de forma a mostrar amor e respeito a Deus e aos seus Mandamentos. O Chai é geralmente visto em colares e outras peças de joalharia; representa a palavra hebraica Chai (viver). Há quem defenda que este símbolo se refere à vida de Deus.


unidade 2

Judeu apresentando a Torah

Textos sagrados A Torah (le-horot — ensino) é a Escritura mais importante do Judaísmo. É o Livro sagrado por excelência. É a Lei. O quadro abaixo dá conta dos textos sagrados do Judaísmo.

Tanakh (Bíblia hebraica) Torah (Lei)

Neviim (Profetas)

Ketuvim (Escritos)

Génesis Êxodo Levítico Números Deuteronómio

Josué Juízes Samuel Reis Isaías Jeremias Ezequiel Doze Profetas Menores (Oséias, Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias)

Salmos Job Provérbios Rute Cântico dos Cânticos Eclesiastes Lamentações Ester Daniel Esdras-Neemias Crónicas

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unidade 2 Literatura rabínica — Os grandes textos da Tradição Existe uma Torah escrita e uma Torah oral. Esta foi, em parte, passada a escrito na Mishna, posteriormente comentada no Talmude. Segundo a tradição judaica, Deus teria revelado a Moisés não somente as leis de seu povo (Torah) mas também uma série de conhecimentos complementares, a Torah oral, que deveriam ser passados de pais para filhos. Mishna (repetição ou estudo) é o nome dado à compilação da Lei oral, escrita por volta de 200 d.C. Talmude (aprendizagem) é o estudo rigoroso da Torah. Trata-se de um manual que interpreta as leis e as tradições judaicas. Contém parte da tradição oral e é o fundamento normativo das decisões judaicas. Midrash (interpretação) designa a explicação dos sábios. São comentários e esclarecimentos. Adaptado de Jean Delumeau

SABER

+

Literatura no Judaísmo Os diversos eventos da história judaica levaram à valorização do estudo e da alfabetização dos membros das comunidades hebraicas. Na Diáspora, a busca de conexão com o Judaísmo e a procura de não-assimilação dos costumes pagãos conduziram ao reforço da educação desde a infância e à criação de uma vasta literatura principalmente de uso religioso, pelo que o analfabetismo é, de há muito, praticamente inexistente nas comunidades judaicas — pelo menos entre os homens.


unidade 2

Princípios básicos da fé judaica O Judaísmo: • Proclama a existência de um só Deus. • Reconhece a presença e revelação de Deus nos acontecimentos da história. • Baseia-se na Aliança entre Deus e Israel, o povo eleito. • Espera a vinda do Messias e a vida eterna.

Monoteísmo O princípio básico do Judaísmo é a unicidade absoluta de Deus — Criador, Omnipotente, Omnisciente, Omnipresente — que influencia todo o universo e que não pode ser limitado nem representado de forma alguma, o que faz da idolatria o pecado mais grave. A afirmação da crença no monoteísmo manifesta-se na profissão de fé judaica conhecida como Shema.

DOC16 13 Shema ‫י לארשי עמש‬-‫ה‬-‫ו‬-‫י וניקלא ה‬-‫ה‬-‫ו‬-‫דחא ה‬ Shema Israel Adonai Elokêinu Adonai Echad

Escuta Israel, o Senhor e só ele é o nosso Deus.

Ama o Senhor, teu Deus, com todo o coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças. Que os mandamentos que hoje te dou estejam sempre na tua memória. Ensina-os continuamente aos teus filhos e repete-os, tanto ao deitar como ao levantar, quer estejas em casa, quer vás de viagem. Deves trazê-los no teu braço como um distintivo, na tua testa como emblema. Escreve-os nas ombreiras das portas da tua casa. Dt 6, 4-9

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unidade 2 Nomes de Deus

SABER

+

Tetragrama Em aramaico

Em hebraico moderno

No Judaísmo, o nome mais importante de Deus é o que conhecemos como tetragrama sagrado: as quatro letras que formam a palavra Yhwh (‫)הוהי‬. Yhwh — Aquele que está presente — foi o nome com que Deus se apresentou a Moisés (Ex, 3-14). Devido à proibição de pronunciar o nome de Deus, por respeito sagrado, desenvolveu-se entre os judeus um profundo sentimento de reverência para com esta palavra, pelo que a utilizavam somente em ocasiões de extrema solenidade como no dia do Yom Kippur pelo sumo-sacerdote. Assim, em vez de a pronunciarem, os judeus substituíam Yhwh por Adonai (meu Senhor) ou HaShem (O Nome). Por causa disso e ainda porque em hebraico não se escreviam as vogais, a sua dicção correcta foi esquecida. Quando se passaram a escrever as vogais, os copistas acrescentaram as vogais de Adonai às consoantes Yhwh, originando a palavra Jeová. Hoje pensa-se que a pronúncia correcta é Yahwéh, mas o que aparece escrito nos manuscritos da Bíblia é Jehováh. El (Elevado) e Elohim (Altíssimo), geralmente traduzidos por Deus, são nomes comuns usados nas escrituras hebraicas para se referirem a Deus.

Presença e revelação de Deus na História

.

O Judaísmo baseia-se na Aliança entre Deus e Israel, o povo eleito. Deus manifesta-se nos acontecimentos concretos da história judaica e desafia continuamente o povo a permanecer na Aliança, daí que a existência humana no Judaísmo esteja fundamentada no Decálogo (Dez Mandamentos), que é precisamente o código da Aliança. Os Dez Mandamentos, recebidos por Moisés, não são considerados como uma lei imposta, mas como uma dádiva de Deus para que o povo, acabado de sair da opressão do Egipto, viva feliz e não torne a cair em qualquer tipo de escravidão.

17 Decálogo

Moisés com as tábuas da Lei, por Gustave Doré

1. Não tenhas outros deuses além de mim. 2. Não prestes culto às imagens. 3. Não faças mau uso do nome de Deus. 4. Consagra o dia de Sábado. 5. Respeita os teus pais.

6. Não mates. 7. Não cometas adultério. 8. Não roubes. 9. Não faças acusações falsas. 10. Não cobices o que é dos outros. Cf. Ex 20, 1-17


unidade 2 O Judaísmo consiste, pois, numa relação especial entre Deus e o povo judeu, manifestada através de uma revelação contínua de geração em geração. A profecia no Judaísmo não tem o carácter divinatório que assume noutras religiões, mas manifesta-se na mensagem de Deus recebida através dos profetas e dirigida ao povo e a todo o mundo, podendo assumir o sentido de advertência, julgamento ou revelação da vontade de Deus. Os profetas tiveram uma importância extraordinária na história do povo de Israel. Homens de Deus que rezavam e conheciam profundamente a vida da comunidade tinham uma consciência muito intensa do que constituía a fé de Israel. E a sua missão era precisamente proclamar em voz alta e claramente a vontade de Deus; assumiam a função de consciência moral do povo, denunciando a injustiça e a mentira. Como intérpretes da história, os profetas apontavam para realidades ainda não vividas mas já esperadas, em direcção às quais orientavam o olhar de Israel, fazendo-o aspirar à felicidade da comunidade junto de Deus e à paz e justiça messiânicas.

Ressurreição e vida além da morte Exceptuando alguns pontos polémicos, a Tanakh não faz referência à vida depois da morte, nem a um céu ou inferno. Porém, após o exílio na Babilónia, os judeus assimilaram as doutrinas da imortalidade da alma, da ressurreição e do juízo final, e estas crenças constituíram importante ensino por parte dos fariseus (ao contrário dos saduceus, que as rejeitaram). Nas actuais correntes do Judaísmo, praticamente todos os judeus crêem na ressurreição e na vida depois da morte.

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Profeta Isaías, por Fra Bartolomeo


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unidade 2

SABER

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Fariseus — Grupo religioso constituído por peritos nas Escrituras e na Lei de Moisés, interpretando-as à letra e impondo o seu rigoroso cumprimento. O orgulho e a hipocrisia de alguns fariseus mereceram o olhar crítico de Jesus Cristo. Saduceus — Grupo religioso constituído por membros de famílias sacerdotais, cultos e ricos. Só aceitavam o Pentateuco (Torah) e não admitiam a ressurreição nem a existência dos anjos. Tinham poder religioso e político, pelo que eram muito influentes. Alguns eram objecto de crítica por serem duros e arrogantes, mais ciosos do dinheiro do Templo do que do bem do povo. Com a destruição do Templo de Jerusalém a sua função perdeu importância. Jesus e os Fariseus, por James Tissot

Adaptado de Machado Lopes. Atlas Bíblico

Expectativa messiânica A maior parte dos judeus espera um Messias judeu, da descendência do rei David, que reinará sobre Israel, reconstruirá a nação fazendo com que todos os judeus retornem à Terra Santa e unirá os povos numa era de paz e prosperidade sob o domínio de Deus. Hoje, os judeus reformistas crêem, no entanto, que a era messiânica não envolve necessariamente uma pessoa, tratando-se, antes, de um período de paz, prosperidade e justiça na humanidade.

Calendário, rituais e espiritualidade SABER

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O facto de o dia começar com o início da noite é uma metáfora da própria vida. A vida principia com a obscuridade do ventre materno, depois enfrenta o resplendor da luz e finaliza com a obscuridade do túmulo, que precede um novo amanhecer no mundo vindouro.

A era judaica começa com a criação do mundo — 3761 a.C., segundo os hebreus — e o calendário judaico é contado a partir dessa mesma data. Tem como base o ano lunar, com doze meses de 29 ou 30 dias, num total de 354 dias, mas periodicamente é acrescentado um mês extraordinário, para acertar o ano lunar com o ano solar; desta maneira, os judeus podem celebrar todas as festas na sua estação correspondente, tal como a Torah exige. Os judeus contam as semanas de Sábado a Sábado. O Shabbat (Sábado) é o dia mais importante da semana. O dia não começa e termina à meia-noite como ocorre no calendário ocidental; para os judeus o dia começa ao pôr-do-sol.

Espiritualidade e rituais A resposta ao apelo de Deus — a realização da Aliança pela prática da Torah — faz já da vida judaica uma vasta liturgia, pois os muitos preceitos desta Lei abarcam até o mais comum dos actos do dia a dia.


unidade 2 O estudo da Torah é o principal dos deveres de um judeu. Toda a vida judaica, seja em casa ou na sinagoga, é considerada como um serviço por meio do qual a nação eleita está dedicada a Deus. O carácter eminentemente sagrado da existência judaica é sublinhado e confirmado oficialmente por uma série de festas que dão ritmo à vida da comunidade. Esta liturgia tem por objectivo a consagração da existência humana. Religião e vida quotidiana entrelaçam-se intimamente e as festas santificam o tempo através da recordação dos grandes eventos da história de Israel. Os homens da comunidade judaica reúnem-se diariamente na sinagoga para a oração da manhã (shaharit), para a oração da tarde (min’haf) e para a oração da noite (mahariv). Quando reza, o judeu tem a cabeça coberta com o tallit e tem os tefilim presos à testa e ao braço. Ao Sábado (shabbat), dia santo e de absoluto repouso, regulamentado por mandamentos pormenorizados, os judeus dedicam-se inteiramente ao louvor a Deus, sendo proibido qualquer trabalho. O Shabbat é o principal momento do calendário judaico. Como sétimo dia da semana (cf. simbolismo do número sete) representa a plenitude da criação pela qual devem ser dadas graças a Deus, que fez o mundo em seis dias e ao sétimo descansou. O Shabbat é um dos fundamentos do Judaísmo e constitui o quarto Mandamento. Na liturgia judaica deve salientar-se a circuncisão, que consiste no corte do prepúcio (prega cutânea que recobre a glande do pénis) e simboliza a aliança com Deus marcando a pertença do menino ao Senhor. A circuncisão é o sinal visível, na carne, da pertença ao povo eleito. O menino judeu recebe o seu nome oito dias após o nascimento, quando é circuncidado por um rabino na sinagoga, perante dez homens da comunidade. A menina também é levada à sinagoga e apresentada pelo pai diante da Torah. A iniciação religiosa dos rapazes — bar-mitzvah — acontece no primeiro sábado após o seu décimo terceiro aniversário; a das meninas — bat-mitzvah — ocorre aos doze anos de idade. Nessa cerimónia ambos lêem pela primeira vez a Torah em voz alta, no altar da sinagoga, e a partir de então tornam-se filhos do mandamento (mitzvah) e passam a integrar formalmente a comunidade judaica. Adaptado de Hans Küng. Religiões do Mundo.

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unidade 2

SABER

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Halaká — Caminho a seguir — é o conjunto das normas da religião judaica. Inclui as leis da Torah e os mandamentos rabínicos posteriores, relacionados com os costumes e tradições. Serve como guia do modo de viver judaico.

Festas religiosas As principais festas judaicas são as seguintes: • Páscoa (Pessah) — recorda a libertação do Egipto e celebra e actualiza a Aliança de Deus com o povo de Israel; • Tendas ou Tabernáculos (Sukoth) — recorda a vida de Israel no deserto e celebra e realiza as bênçãos de Deus em favor do seu povo; • Pentecostes (Shavuoth) — recorda o dom dos Dez Mandamentos e celebra e realiza o restabelecimento da Lei; • Dia do perdão (Yom Kippur) — é o dia da expiação, única ocasião do ano em que o sumo-sacerdote entrava no Santo dos Santos (interior do Templo de Jerusalém); • Princípio do ano (Rosh Hashanah) — exalta Deus como criador e rei; • Dedicação ou Festa das Luzes (Hanukah) — comemora a restauração da independência no séc. II a.C. e a reedificação do Templo.

Muro das Lamentações, Jerusalém

Centralidade de Jerusalém Jerusalém, também chamada “Sião” e “Cidade de David”, é uma antiquíssima cidade do Próximo Oriente, de extrema importância para o Judaísmo, para o Cristianismo e para o Islão. As suas primeiras muralhas (um pouco mais abaixo das actuais) datam do século XVIII a.C. Jerusalém foi o espaço onde, segundo a tradição, Deus não permitiu que Abraão sacrificasse o seu filho, facto que explica a centralidade desta cidade para as religiões abraâmicas.


unidade 2

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Para o mundo judaico, Jerusalém é o centro dos centros, a base do quase mítico reino de David, o local onde se centralizou o culto no Templo e o lugar de todas as instituições políticas e religiosas. Os judeus ortodoxos aguardam ali a vinda do Messias, para darem início à reconstrução do Templo. A história da cidade diz-nos, porém, que apesar de ser considerada sagrada, foi simultaneamente cidade onde reinou o ódio, a desolação e a guerra. Esteve cercada inúmeras vezes, foi conquistada em mais de 30 ocasiões e destruída em muitas delas.

SABER

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O Sionismo (de Sião, colina de Jerusalém) é um movimento político e religioso judaico, iniciado no século XIX, que defende o restabelecimento de um Estado israelita independente na Palestina, de modo a estreitar os laços culturais do povo judeu em torno da sua religião e da sua cultura ancestral. Só em 1948 os Judeus puderam começar a construir na Palestina um novo Israel, com a oposição dos países árabes até aos dias de hoje. Adaptado de Karen Armstrong

Muro das Lamentações e Cúpula da Rocha, Jerusalém


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unidade 2

Modelo do Templo de Jerusalém

Locais de culto O Templo de Jerusalém foi mandado construir pelo rei Salomão no séc. X a.C.; destruído pelos exércitos de Nabucodonosor no séc. VI a.C.; reconstruído sob as orientações de Esdras e Neemias no mesmo séc. VI a.C.; mandado aumentar por Herodes, de 20 a.C. a 62 d.C.; e destruído pelos romanos no ano 70 d.C. No Templo, local de oração e peregrinação, ofereciam-se sacrifícios a Deus e celebravam-se as grandes festas judaicas. Para além de centro da vida religiosa de todo o Israel, o Templo de Jerusalém constituía, também, o centro comercial e financeiro e era a sede normal da suprema autoridade política e religiosa entre os judeus.

Sinagoga de Florença, Itália

A Sinagoga é um espaço de oração que se desenvolveu sobretudo no exílio na Babilónia. Longe do Templo e da pátria, o povo sentiu necessidade de se reunir para o estudo e meditação da Lei. A palavra sinagoga significava, originariamente, povo reunido; depois veio a significar o edifício em que os judeus se reúnem para celebrar a sua fé. Desde o séc. VI a.C., mais do que o Templo, que para muitos ficava longe e onde, nestes casos, só se ia pelas festas, a sinagoga foi-se tornando verdadeiramente o lugar de oração do povo judeu. As sinagogas são normalmente de construção rectangular, simples e orientadas para Jerusalém. Na parede de fundo, bem visível, há um escrínio (a Arca da Aliança) para guardar os rolos da Lei. Ao longo das paredes ficam dispostos os bancos para a assembleia. Destaca-se o rabino (líder espiritual da comunidade judaica) e o chazann (cantor litúrgico).


unidade 2

Judeus orando no Muro das Lamentações

Muro das Lamentações — Única parte do segundo Templo de Jerusalém que resistiu à destruição no ano 70 d.C. pelos romanos. Junto a ele, os judeus do mundo inteiro rezam e colocam as suas preces escritas em pequenos papéis entre as suas pedras. Túmulos dos Patriarcas — Os Patriarcas Abraão, Isaac e Jacob, bem como das suas mulheres, excepto Raquel, localizam-se na cidade de Hebron, a sudeste de Jerusalém, lugar de devoção de judeus e muçulmanos. Túmulo do Rei David — Localizado na colina do Monte Sião, o túmulo do Rei David é um dos lugares mais visitados de Jerusalém. Túmulo de Raquel — Situa-se nas margens da estrada que liga Jerusalém e Belém. É um lugar muito visitado pelos Judeus. Raquel foi mulher de Jacob, neto de Abraão.

Diversidade no Judaísmo A comunidade judaica está ramificada numa série de grupos, cada um deles com a sua visão sobre os princípios que um judeu deve seguir. • Judaísmo ortodoxo — Os judeus ortodoxos, maioritários, defendem a suprema autoridade da Torah e respeitam todas as tradições do Judaísmo, incluindo as leis rígidas da dieta alimentar e a separação das mulheres na sinagoga (são o único ramo do Judaísmo que segrega as mulheres na sinagoga). Consideram que a Torah foi ditada por Deus a Moisés e que as suas leis são imutáveis.

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unidade 2 • Judaísmo reformista — Os judeus reformadores rejeitam a interpretação exclusivista da afirmação de que os hebreus são o povo escolhido; têm uma interpretação liberal das leis da dieta alimentar e assumem uma atitude crítica em relação à Torah. Existem mulheres rabis no Judaísmo reformador (bem como no liberal). • Judaísmo conservador — Os judeus conservadores aceitam a lei tradicional mas fazem algumas concessões às tendências modernas. Têm uma atitude positiva em relação à cultura e consideram que o Judaísmo não é uma fé estática, mas uma religião que se adapta a novas condições.

Rabino

• Judaísmo liberal — O Judaísmo liberal procura adaptar a fé judaica às necessidades do mundo moderno e interpreta a Torah à luz do saber actual. Considera que a lei judaica não deve ser suprema, mas, ao mesmo tempo, entende que as práticas individuais devem ser assumidas consensualmente. Para além destes grupos existem os judeus não praticantes, que não acreditam em Deus, mas ainda assim mantêm culturalmente costumes hebraicos; O Judaísmo humanista, que valoriza mais a cultura e história judaica.

SABER

Monumento em Berlim à memória dos Judeus assassinados na Europa

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O Anti-semitismo é uma ideologia e uma atitude desumana, cruel e injusta. Enquanto ideologia, defende que os judeus são a causa de todos os males na sociedade, considerando-os seres inferiores; enquanto atitude, manifesta-se em comportamentos persecutórios. O anti-semitismo estendeu-se ao longo de séculos, mas na 2ª Guerra Mundial (1939-45) atingiu dimensões completamente impensáveis. Adolfo Hitler decidiu exterminar os judeus da Europa e foram mortos cerca de seis milhões de hebreus nos campos de concentração nazis. A esta atrocidade chamou-se holocausto (sacrifício), embora os judeus prefiram chamar-lhe a shoah (catástrofe). O anti-semitismo entrou também na língua comum. São exemplos disso palavras como rabino (criança inquieta, que perturba) ou judiaria (travessura, malfeitoria) sempre com sentido negativo.


unidade 2

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DOC 18 15 Presença dos judeus em Portugal Os judeus da Península Ibérica (ou sefarditas), cujas origens remontam ao séc. II d.C., gozaram de uma significativa liberdade religiosa e de acção. Esta realidade esteve sempre associada a um espaço de felicidade e identificação onde, durante séculos, eles prosperaram. Constituíram comunidades organizadas — judiarias — e, nomeadamente através do comércio e da medicina, contribuíram para o desenvolvimento económico e social do país. D. Manuel I decretou a conversão obrigatória dos judeus ou a sua saída do país. D. João III concretizou essa expulsão (séc. XVI). A Comunidade Israelita de Lisboa, com cerca de 200 anos de existência, foi refundada por judeus sefarditas, originários de Marrocos e Gibraltar. Ao longo do século XX, e, em especial, devido às perseguições anti-semitas, esta comunidade cresceu com judeus da Polónia, da Rússia e, mais tarde, da Alemanha e de outros países da Europa ocupada por Hitler, muitos dos quais seguiram depois para outros destinos. Actualmente, em Portugal, há apenas cerca de 1800 judeus, contrariamente às centenas de milhares do século XV. Adaptado de http://lisboareligiosa.cm-lisboa.pt

Apesar das vicissitudes históricas, de alguns exageros do Sionismo e dos conflitos, muitas vezes mais políticos do que religiosos, o Judaísmo é uma religião de paz e de bênção. A paz, shalom, não é apenas uma normal saudação, como expressão de cortesia; a paz, shalom, é a promessa de um futuro melhor, proveniente de Deus, e os votos de bênção entre as pessoas.

19 DOC 16 Bênção O Senhor disse a Moisés: «Comunica a Aarão e aos seus filhos que devem pronunciar a seguinte fórmula, para dar a bênção aos israelitas: “Que o Senhor te abençoe e te proteja; que o Senhor te mostre o seu rosto acolhedor e te trate com bondade; que o Senhor olhe para ti e te conceda a paz”. Assim os sacerdotes hão-de servir-se do meu nome para abençoar os israelitas e eu mesmo hei-de dar-lhes a minha bênção». Nm 6, 22-27

Ilustração do casamento de judeus portugueses

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unidade 2

Mesquita do Profeta Maomé em Medina, onde se encontra o seu túmulo

O ISLAmISMO

SABER

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Islão é o aportuguesamento da palavra árabe Islam, que significa “submissão voluntária e incondicional à vontade de Deus”. Esta palavra tem uma relação etimológica com outras palavras árabes como Salaam ou Shalam, que significam paz.

O Islão ou Islamismo (do árabe:‫ مالسإلا‬- al-islām) é uma religião monoteísta que surgiu na Península Arábica no século VII d.C., baseada nos ensinamentos religiosos do profeta Maomé, registados no livro sagrado, o Alcorão.

Situação histórico-geográfica O Islão nasceu na Arábia, numa região marcada pelo deserto. Os árabes viviam em sociedades tribais, compostas por vários clãs que agrupavam famílias alargadas. Algumas tribos eram sedentárias, outras nómadas. As guerras entre as tribos eram constantes. Do ponto de vista religioso, os árabes eram politeístas e adoravam sobretudo divindades na forma de árvores ou pedras. Os seus rituais religiosos passavam pelo sacrifício de animais, por jejuns e por peregrinações. Nos inícios do século VII d.C., a Arábia encontrava-se rodeada por dois impérios que se defrontavam: a Oeste, o império bizantino cristão, e a Leste, o império persa cuja religião oficial era o Zoroastrismo, embora também aí vivessem cristãos e judeus.


unidade 2

Monte Hira e a Grande Mesquita, Meca

A cidade de Meca, a cerca de 80 km do mar, era o centro de uma peregrinação anual feita pelos árabes a um santuário, a Kaaba, onde se encontra a Pedra Negra, provavelmente um meteorito, que era alvo de veneração. Os peregrinos davam sete voltas em torno dela no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio. Meca era uma cidade importante porque controlava o tráfego das caravanas que atravessavam a Arábia. Porém, a sua principal receita provinha do comércio de objectos religiosos, com base no politeísmo. Adaptado de Gaetano Salvi

ISRAEL

IRAQUE

JORDÂNIA Al Jawf

IRÃO

EGIPTO

Tabuk

KUAIT Abu Hadrian

Ha’ll

Buraydah Al Qatif BAHREIN Medina

Jiddah

RIADE

QATAR

ARÁBIA SAUDITA

E.A.U OMÃ

MECA Sulay

SUDÃO

Abha

ERITREIA ETIÓPIA 0

YEMEN

300 km

Mapa actual da Península Arábica

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unidade 2

Ilustração do Profeta Maomé

Maomé e os primórdios do Islão A 12 de Rabi-al-awwal (terceiro mês do calendário árabe), em 570 ou 571, nasceu em Meca um homem que viria a alterar a história da Arábia e do mundo: Muhammad (Maomé). O pai faleceu pouco antes do seu nascimento e a mãe, quando ele tinha seis anos, pelo que foi criado por um tio. Tornou-se mercador e viajou com as caravanas do deserto para vender os seus produtos. Nestas viagens conheceu judeus e cristãos através dos quais entrou em contacto com o monoteísmo. Aos vinte e cinco anos casou com uma viúva rica de nome Khadija. Maomé tinha o hábito de jejuar e meditar nas montanhas próximas de Meca. Por volta de 610, aos quarenta anos e enquanto fazia um desses retiros espirituais na montanha, experimentou aquilo que ele considerou ser uma revelação divina. Um ser misterioso (Jibril, o anjo Gabriel) ordenou-lhe que recitasse uma frase a qual viria a ser a primeira revelação do Livro, mais tarde compilado com o nome de Alcorão. Maomé, convencido de que era o sucessor dos grandes profetas hebreus, começou a pregar aos habitantes de Meca que deviam acreditar num Deus único e anunciou-lhes o dia do Juízo Final, no qual os actos de cada pessoa seriam avaliados e a riqueza pessoal seria inútil. Alguns acreditaram nele, mas outros tornaram-se seus inimigos e fizeram com que tivesse de fugir de Meca para Yathrib, mais tarde chamada Medina, ou seja, a Cidade (do Profeta). Este evento teve lugar no ano 622 e ficou conhecida como Hégira (fuga), marcando o início do calendário islâmico.


unidade 2 A fuga de Maomé e dos seus seguidores constituiu um desafio ao poder de Meca e as duas cidades entraram em guerra. Em Medina, Maomé fez alianças com as tribos judaicas e pagãs e fundou, com os seus discípulos, a comunidade do Islão (a Umma). Através da conversão dos árabes de Yathrib à sua doutrina, Maomé conseguiu reunir uma força militar com a qual se defendeu, por duas vezes, das forças de Meca. Por fim, os habitantes desta cidade aceitaram que o Profeta entrasse nela como peregrino, no ano de 630. Em Meca destruiu os ídolos da Kaaba e fixou uma nova peregrinação e novas normas religiosas. Por altura da sua morte, em 632, quase toda a Península Arábica estava unificada sob a bandeira do Islão.

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Muçulmanos a orar

Adaptado de Jean-Marie Guevellou

Símbolos do Islão O símbolo por excelência do Islão é o hilal, também chamado crescente. Segundo a fé islâmica, a Lua representa o calendário muçulmano e a estrela representa Alá (Deus, na língua Árabe). O crescente era o símbolo da cidade de Bizâncio, que com o imperador romano Constantino (Séc. IV) passou a chamar-se Constantinopla (actual Istambul). Os Otomanos (turcos) conquistaram a cidade em 1453 (queda do império romano do Oriente) e adoptaram o antigo símbolo da cidade difundindo-o por todos os países sob o seu domínio. É por isso que ainda hoje quase todos os Estados islâmicos têm o crescente na bandeira. Curiosamente, este símbolo corresponde não a um crescente mas a um quarto minguante. Em muitas correntes do Islão, é proibido fazer representações ou desenhos de seres humanos, portanto a arte desenvolveu-se em formas geométricas, flores, folhagens, palavras. É o chamado estilo arabesco, caracterizado pela harmonia da repetição. Constituem um padrão infinito que se estende além do mundo material visível. Para muitos simboliza o infinito sem centro e, consequentemente, a natureza da criação de Alá. Adaptado de Gaetano Salvi

Arabesco: estilo de arte islâmica


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unidade 2

Alcorão

Textos sagrados Os ensinamentos de Alá estão contidos no Alcorão (em árabe ‫نآْرُق‬ — Qur’an, recitação). Os muçulmanos acreditam que Maomé recebeu estes ensinamentos de Alá por intermédio do anjo Gabriel através de revelações. Maomé recitou estas revelações aos seus companheiros, muitos dos quais se diz terem-nas memorizado e escrito no material que tinham à disposição (omoplatas de camelo, folhas de palmeira, pedras...). As revelações a Maomé foram mais tarde reunidas em forma de livro. Considera-se que a estruturação do Alcorão, como livro, ocorreu por volta do ano 650. O Alcorão é constituído por 114 capítulos chamados suras, organizadas segundo a extensão (da mais longa para a mais curta). Cada sura está por sua vez subdividida em versículos chamados ayat. As suras são identificadas por um nome, que é, em geral, a primeira palavra do capítulo (Família, Mulheres, Arrependimento, Luz, Ressurreição, Abundância...) e, na linha seguinte, pelo lugar onde foram proferidas.


unidade 2 Os muçulmanos acreditam que Maomé foi o último de uma longa linhagem de profetas, entre os quais se encontram os profetas do Antigo Testamento referidos na Bíblia e Jesus. Mas, para eles, é no Livro que subsiste a Palavra de Deus, pelo que desencorajam as traduções do Alcorão que deve ser aprendido em árabe. A mensagem principal do Alcorão é a da existência de um único Deus, que deve ser adorado. Contém também exortações éticas e morais, histórias relacionadas com os profetas anteriores a Maomé, avisos sobre a chegada do Dia do Juízo Final e regras relacionadas com aspectos da vida diária como o casamento e o divórcio. No mundo islâmico os ensinamentos contidos no Alcorão têm força de lei.

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2017 DOC Maria e Jesus no Alcorão Disse-lhe Maria: “Como poderei eu ter um filho, se nenhum homem me tocou e jamais deixei de ser casta?”. Respondeu-lhe o anjo: “Assim será, porque teu Senhor disse: «Isso é fácil para mim e faremos disso um sinal para os homens, e será uma prova de nossa misericórdia. E é uma ordem inabalável».” E quando concebeu, retirou-se, com o rebento para um lugar afastado. Regressou ao seu povo levando o filho nos braços. E disseram-lhes: “Oh, Maria, eis que fizeste algo extraordinário! Como poderemos nós falar a uma criança de berço?”. Ele (Jesus) disse-lhes: “Sou o servo de Deus, o qual me concedeu o Livro e me designou como profeta. Onde quer que eu esteja, recebo a sua bênção; e ele recomendou-me, enquanto eu for vivo, a oração e a esmola. E fez-me piedoso com a minha mãe, não permitindo que eu seja arrogante nem rebelde. A paz está comigo, desde o dia em que nasci; estará comigo no dia em que eu morrer, bem como no dia em que eu ressuscitar. Assim foi Jesus, filho de Maria; é a pura verdade, da qual eles duvidaram. É inadmissível que Deus tenha tido um filho. Glorificado seja! Quando decide uma coisa, basta-lhe dizer: Seja!, e é. Alcorão 19, 20-23. 28-36

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unidade 2

Abertura do Alcorão

Princípios básicos da fé islâmica O Islão assenta em seis crenças principais:

Alá escrito em árabe

• Ter fé em Alá, único Deus existente; • Acreditar nos Anjos, seres criados por Alá; • Acreditar no Alcorão como o derradeiro e completo livro sagrado; • Acreditar nos vários profetas enviados por Alá à humanidade, dos quais Maomé é o último e o maior (Maomé acreditava que, como Moisés deu a Lei aos judeus e Jesus deu o Evangelho aos cristãos, também ele fora escolhido para dar o Alcorão aos árabes); • Acreditar no dia do Juízo Final, no qual as acções de cada pessoa serão avaliadas; • Acreditar na predestinação: Alá tudo sabe e possui o poder de decidir sobre o que acontece a cada pessoa, cuja vida está pré-definida e cujo destino já está de antemão traçado.

21 DOC 18 A fé em Deus revelado pelos profetas Dizei: “Cremos em Deus e no que nos tem sido revelado; no que foi revelado a Abraão, a Ismael, a Isaac, a Jacob e às tribos; no que foi concedido a Moisés e a Jesus e no que foi dado aos profetas por seu Senhor. Não fazemos distinção alguma entre eles, e submetemo-nos a Ele”. Alcorão 2, 136


unidade 2 Os cinco pilares do Islão Os cinco pilares do Islão consistem em cinco deveres básicos de cada muçulmano: 1. Recitação e aceitação do credo (Shahadah); 2. Oração cinco vezes por dia (Salah); 3. Esmola (Zakah); 4. Observância do jejum no Ramadão (Saum); 5. Peregrinação a Meca (Hadj). 1.º Pilar — A profissão de fé consiste na repetição do credo islâmico, que deve ser dito com a máxima sinceridade: “Não há outro Deus além de Alá, e Maomé é o seu profeta.” 2.º Pilar — A oração faz-se cinco vezes por dia em horas bem determinadas: a primeira é antes do sol nascer; a segunda, ao meio-dia; a terceira, entre o meio-dia e o pôr-do-sol; a quarta ao pôr-do-sol e a última, entre o pôr-do-sol e a meia-noite. Do minarete da mesquita, o mue-zin convida os crentes com a expressão: “Deus é o altíssimo. Vinde à oração, vinde à salvação”. A oração pode ser feita individual ou colectivamente em qualquer local, desde que se esteja limpo, pelo que antes da oração se fazem abluções, que consistem na lavagem das mãos, dos pés e da cabeça. Depois de purificado, o muçulmano orienta-se na direcção de Meca e, descalço, sobre o seu tapete pessoal, começa a recitar o takbir (exaltação): Allahu akbar (Deus é o maior) elevando os braços para o céu; de seguida, recita o início do Alcorão, a Fatiha (Abertura) e a oração prossegue com a recitação de frases e mudanças de posição corporal. 3.º Pilar — A esmola ou taxa de purificação consiste na partilha. O Islão estabelece que cada muçulmano deve pagar anualmente uma certa quantia, calculada a partir dos seus rendimentos, que será distribuída pelos pobres ou por outros beneficiários definidos pelo Alcorão (prisioneiros, viajantes, endividados...).

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unidade 2 4.º Pilar — O jejum. Durante o Ramadão (o nono mês do calendário islâmico) cada muçulmano adulto e saudável deve abster-se de comer, de beber, de fumar e de ter relações sexuais desde o nascer até ao pôr-do-sol. Os doentes, os idosos, os viajantes, as crianças até à puberdade, as grávidas ou as mulheres que amamentam estão dispensados do jejum. Em compensação, estas pessoas devem alimentar um pobre por cada dia que faltarem ao jejum ou então realizá-lo noutra altura do ano. O jejum é considerado uma forma de purificação, de aprendizagem do auto-controlo e de desenvolvimento de empatia em relação àqueles que passam fome ou outras necessidades. No fim do Ramadão os muçulmanos agradecem a Deus a força que lhes foi concedida para levar a cabo o jejum. As casas são decoradas e é hábito visitar os familiares. Estas festividades servem, também, para o perdão e a reconciliação entre pessoas desavindas. 5.º Pilar — A peregrinação consiste na viagem a Meca, obrigatória pelo menos uma vez na vida para todos os que gozem de saúde e disponham de meios financeiros. Ocorre durante o décimo segundo mês do calendário islâmico. Perto de Meca os muçulmanos vestem-se com um traje especial todo branco para que todos estejam iguais e não haja distinção de classes. Na mesquita de Meca dão sete voltas em torno da Kaaba e completam outros rituais, durante vários dias.

Peregrinação Anual a Meca


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Calendário, rituais e espiritualidade O calendário islâmico ou calendário hegírico é um calendário lunar composto por doze meses de 29 ou 30 dias com um total de cerca de 354 dias. O mês começa quando o crescente lunar aparece pela primeira vez após o pôr-do-sol. Este calendário não corrige o facto do ano lunar ser onze dias mais curto do que o calendário solar, o que faz com que as festividades muçulmanos circulem por todas as estações. A contagem da era islâmica começou com a Hégira — a fuga de Maomé de Meca para Medina, em 16 de Julho de 622.

Espiritualidade

SABER

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Os muçulmanos celebram o mês do Ramadão do seu ano 1431 entre Agosto e Setembro de 2010 do nosso calendário gregoriano.

As comunidades islâmicas reúnem-se na mesquita, lugar onde o crente se prostra perante Deus, especialmente à sexta-feira, o seu dia sagrado, para prestar culto a Alá. Na mesquita não há imagens nem cadeiras, há apenas tapetes para as pessoas se prostrarem. A sexta-feira — jummâ — é o dia sagrado do Islão porque foi nesse dia que Deus criou o primeiro homem (Adão), e porque o dia do Juízo Final há-de ocorrer também numa sexta-feira. A ética muçulmana resume-se a nove atitudes: a sinceridade, a moderação, a justiça, o perdão, a reconciliação, a dádiva, a meditação, o discurso edificador e o olhar atento. O Islão é aberto a todos, independentemente da etnia, idade, género, ou crenças prévias e não existe uma autoridade que determine se uma pessoa pertence ou não à comunidade dos crentes. Existe um grupo de pessoas reconhecidas pelo seu conhecimento da religião e da lei islâmica — os imãs e sheiques — que coordenam a oração e explicitam os ensinamentos do Profeta. O contacto directo com Alá, sem intermediários, faz do Islão uma religião extremamente acessível, já que, pelo menos na tradição sunita, não existe hierarquia e a fé pode ser praticada em qualquer lugar.

Imã faz a pregação às Sextas-feiras


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unidade 2

SABER

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Como é que alguém se torna muçulmano? Uma pessoa torna-se muçulmana quando proferir, em árabe e diante de uma testemunha, que “não há divindade além de Deus, e Maomé é o seu Mensageiro”. O processo de conversão, extremamente simples, é apontado como um dos motivos para a rápida expansão do Islão pelo mundo. O percurso para a prática completa da fé, porém, é muito mais complexo e implica a aprendizagem dos princípios básicos da religião, pelo que deve ser feito com a ajuda de outros muçulmanos.

Festas religiosas As duas festas mais importantes do Islão são: • Eid ul-Fitr — celebra o fim do jejum do Ramadão; • Eid ul-Adha — marca o fim da peregrinação a Meca. Outras festas populares: • Mawlid — celebra o aniversário de Maomé; • Laylat al-Micraj — celebra a experiência mística vivida por Maomé em que visitou o Céu; • Laylat al-Qadr — celebra o aniversário da primeira revelação do Alcorão. Adaptado de Gaetano Salvi

Mesquita Azul em Istambul, Turquia


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Kaaba, lugar central da peregrinação a Meca, Arábia Saudita

Centralidade de Meca e lugares sagrados Os muçulmanos consideram sagradas três cidades: Meca (na Arábia Saudita) — Cidade onde está edificada a mesquita mais sagrada do Islão, a Mesquita de Al Masjid Al-Haram. É nesta mesquita que se encontra a Kaaba, uma construção cúbica de 15, 24 m de altura que é cercada por muros de 10, 67 m e 12, 19 m de altura. Está permanentemente coberta por uma manta escura com bordados dourados. No seu interior encontra-se a Hajar el Aswad (também chamada Pedra Negra), uma pedra escura de cerca de 50 cm de diâmetro que é uma das relíquias mais sagradas do Islão. Segundo a lenda, essa pedra sagrada teria aí sido colocada por Abraão para assinalar a aliança com Deus. Junto da Kaaba encontram-se as sepulturas de Agar e Ismael, bem como a fonte que Deus fez brotar, quando Agar morria de sede. Medina (na Arábia Saudita) — Cidade que marca o início da era muçulmana e onde se encontram os túmulos do profeta Maomé e dos primeiros califas. Jerusalém (em Israel) — Local de onde, de acordo com a fé islâmica, Maomé, transportado de Meca numa experiência espiritual, subiu até ao céu de onde regressou. A cidade foi conquistada em 638 pelo califa Omar e aí foi construída em 691 a mesquita Cúpula da Rocha, ou de Omar.

Cúpula da Rocha em Jerusalém onde Maomé terá subido ao céu


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unidade 2

Diversidade no Islão: Xiitas e Sunitas

Muçulmano a rezar

Todos os muçulmanos veneram o Alcorão e aceitam as cinco obrigações (pilares), porém estão separados desde o tempo do quarto califa, Ali. O Profeta morreu sem nomear o seu sucessor. A comunidade muçulmana decidiu convocar uma assembleia para eleger um novo líder, que recebeu o título de califa. Nos anos que se seguiram à morte de Maomé foram escolhidos quatro califas, aos quais todos os muçulmanos se referem como os Califas Bem Guiados: Abu Bakr (632-634), Omar (634-644), Otman (644-656) e Ali (656). A eleição de Ali foi contestada, originando disputas e a cisão do Islamismo em dois grupos: os Sunitas e os Xiitas. Os Sunitas (seguidores da suna — tradição) representam cerca de 85% dos muçulmanos. Os Xiitas (partidários de Ali) ainda se subdividem em: xiitas duodecimanos, ismailis (cujo imã é o Aga Khan) e zaiditas...

22 DOC 19 Presença islâmica na Península Ibérica

Mesquita de Lisboa

Apesar destas divisões internas e de várias guerras civis, os muçulmanos conquistaram e construíram grandes impérios, espalhando a sua fé por toda a Península da Arábia, África, partes da Ásia e Península Ibérica, onde entraram, em 711, quando Tarik Ziyade transpôs o estreito de Gibraltar e ocupou a Andaluzia. A civilização e cultura islâmicas estiveram presentes na Península Ibérica, de forma organizada, até 1492. É de salientar o enorme contributo que os árabes deixaram na Península Ibérica. Traduziram obras oriundas do Oriente, da Pérsia, da Mesopotâmia, da Grécia, da Índia e da China. Trouxeram inovações no campo da medicina, da geometria, da astronomia, das ciências naturais, da álgebra, da agricultura, da filosofia e da linguística (no léxico português encontram-se muitas palavras de origem árabe, especialmente as começadas por al). Muitos desses conhecimentos foram de uma importância fundamental na gesta dos descobrimentos portugueses e espanhóis, nomeadamente, nos domínios da cartografia e nos instrumentos de navegação, como a bússola e o astrolábio. Existem actualmente em Portugal várias comunidades islâmicas, na sua maioria naturais das antigas colónias portuguesas de Moçambique e Guiné-Bissau, que se fixaram em Portugal após a independência desses territórios. O Islão Xiita Ismaili também está presente em Portugal, tendo a sua sede no Centro Ismaili de Lisboa. Estima-se que o número de muçulmanos em Portugal ronde os 30 mil.


unidade 2

SABER

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A palavra algarismo tem origem no nome do famoso matemático islâmico Al-Khwarizmi. Os números árabes que hoje usamos, e que vieram substituir a numeração romana, foram trazidos do Oriente pelos muçulmanos.

SABER

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Chador / Burka — A longa túnica e o véu negros que cobrem todo o corpo de uma mulher. Hijab — Véu usado por muitas mulheres muçulmanas. Fundamentalismo islâmico — Esta expressão indica o desejo de regressar a um Islão ideal. Muitos fundamentalistas acreditam que o Islão dos tempos modernos e os Estados islâmicos foram corrompidos. O seu desejo é o de regressar ao verdadeiro Islão, sem compromissos com o secularismo, razão pela qual se opõem ao estilo de vida ocidental, usando, muitas vezes, métodos violentos. Hezbollah — Este nome tem origem em duas suras do Alcorão; significa “Partido de Deus”. Imã — Responsável pela mesquita. Na sua ausência, qualquer homem muçulmano pode dirigir a oração. Na tradição xiita é descendente de Ali. In Sha’ a Allah — Expressão que significa “Se Deus quiser” e que deu origem à palavra portuguesa oxalá. Jihad — É geralmente traduzida por guerra santa mas o seu significado original é luta, usado sobretudo em sentido espiritual (Jihad maior), mas também como combate armado (Jihad menor). Madrassa — Escola ou lugar de ensino, frequentemente associada a uma mesquita. Talibã — Significa estudante. Palavra pouco usada pelos muçulmanos.

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Cristo Pantocrator da Basílica de Sta. Sofia, Bizâncio (Istambul)

O CRISTIANISMO O Cristianismo é a religião daqueles que acreditam que Jesus de Nazaré é o Filho de Deus. Jesus Cristo é, para os cristãos, a grande mensagem de Deus à Humanidade. Veio anunciar a todas as pessoas a boa notícia da salvação, ou seja, o projecto de felicidade para todos: viver o amor, a justiça e a verdade, trabalhando incansavelmente pela paz. Mas é sobretudo na sua pessoa que o crente faz a experiência da relação com Deus.

Jesus de Nazaré Falar da história do Cristianismo é, antes de mais, recordar e recontar a história do seu acontecimento originário: a pessoa histórica de Jesus, o Cristo, que é o seu fundador, o seu mentor espiritual e o ponto de orientação último.


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SABER

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O nome Jesus (variante de Josué) vem do hebraico Yeshua, que deriva de uma raiz hebraica formada por quatro letras — ‫( עושי‬Yod, Shin, Vav e Ain) e significa “Y(ahweh) salva”. Yeshua foi traduzido para grego (Iesous) e deste para latim (Iesus), dando origem ao português Jesus. O significado etimológico do nome está relacionado com a missão de Jesus como Messias Salvador. No Alcorão, Jesus diz-se ‘Îsâ.

Quem é Jesus? Para responder a esta questão é necessário olhá-lo segundo duas perspectivas: uma simplesmente histórica, percorrendo a sua vida terrena, a partir das fontes históricas; e outra, mais simbólica / religiosa, que se relaciona com a fé dos cristãos, com o significado da sua vida, dos seus gestos e da sua mensagem. A presença de Jesus, as suas palavras e gestos foram interpretados de maneiras muito diferenciadas, o que levou o próprio Jesus a interrogar os seus discípulos: E vocês? Quem acham que eu sou? (Mt 16, 15).

Cristo e os Apóstolos. Mosaico do Palácio de Latrão, Roma


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unidade 2

Ícone representando o nascimento de Jesus Cristo

SABER

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Jesus terá nascido entre os anos 6 e 4 antes da nossa era (chamada Era Cristã ou Era Comum) porque S. Mateus afirma que ocorreu durante o reinado de Herodes, o Grande. Este morreu no ano 4 a.C., donde se conclui que o nascimento de Jesus se situa antes do ano 4 a.C.

Mapa da Palestina no tempo de Jesus Cristo (Império Romano)

O Jesus histórico Jesus, a quem a Bíblia chama Emanuel (Deus connosco), faz parte da história humana. Viveu num tempo e lugar e conviveu com um ambiente religioso e sócio-político específicos. De acordo com o Evangelho de Lucas, Jesus nasceu na Palestina, mais concretamente num estábulo nos arredores da cidade de Belém. O seu nascimento em Belém é discutível historicamente. Como Belém é a cidade do rei David e os cristãos queriam identificar Jesus com o Messias, filho de David, talvez o nascimento de Jesus em Belém tivesse apenas este objectivo: identificar Jesus com a linhagem messiânica do rei David. Certo é que o seu nascimento marcou a história da humanidade, iniciando-se, assim, a Era Cristã. Neste tempo, a Palestina era uma província do império romano em expansão, cujo imperador era Octaviano César Augusto, que, por razões políticas, nomeou Herodes, o Grande, “rei” e representante dele neste território.


unidade 2 Jesus nasceu no seio de uma família judia — Maria e José —, sendo descendente da tribo de Judá. Viveu a maior parte da sua vida na modesta aldeia de Nazaré, na região da Galileia, donde lhe vêm as designações de Nazareno e Galileu. Durante a infância aprendeu a ler e a escrever, como acontecia com todos os judeus. Os Evangelhos não nos dão a conhecer pormenores deste período da vida do jovem Jesus. Como criança judia que era, certamente, por volta dos treze anos de idade, foi admitido a participar nas celebrações da sinagoga como era costume entre os judeus. É possível que o episódio de Jesus perdido no Templo (Lc. 2, 41-52) se refira ao seu bar-mitzvah. A instrução religiosa não foi, por isso, esquecida. Jesus aprendeu a rezar segundo os costumes da religião judaica e a conhecer e respeitar a Lei herdada de Moisés. Segundo a educação dos judeus, aos pais cabia a tarefa de ensinar aos filhos tudo o que os identificava como povo, incluindo o ofício ou profissão do pai. Jesus terá aprendido o ofício de carpinteiro.

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Sagrada Família, por Giotto

Se a sua vida histórica se tivesse resumido a estes aspectos, nunca teria sido conhecido, nem as suas palavras teriam chegado até nós. Seria apenas mais um, entre milhões de pessoas, cuja história nos é desconhecida. Mas, na realidade, por volta dos trinta anos, Jesus teve uma experiência fundamental de encontro com Deus que alterou profundamente o curso da sua pacata vida em Nazaré da Galileia. Dessa experiência, ficou-nos o relato do seu baptismo por João Baptista. A partir daí, passou a percorrer a Palestina de Norte a Sul, anunciando uma mensagem de amor e de paz e manifestando, através do seu comportamento, a presença de um Deus que é Pai e que ama apaixonadamente cada ser humano, seja ele socialmente privilegiado ou não, porque para Deus, todos somos iguais. Neste aspecto, a mensagem de Jesus ainda vai mais longe: Deus tem uma especial predilecção pelos pobres, pelos desprotegidos, pelos que não têm rumo. Esta nova maneira de entender Deus e de compreender a sua relação com as pessoas veio criar a Jesus inimizades com aqueles que ocupavam o poder e que viam nele um potencial revolucionário do Baptismo de Jesus por João Baptista, por Fra Angelico Judaísmo.


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unidade 2 Embora a sua mensagem fosse revolucionária, a revolução que Jesus preconizava era essencialmente a revolução do coração humano: a libertação dos preconceitos e dos egoísmos e a assunção de comportamentos solidários. Para Jesus, a revolução pela força das armas estava fora de questão: era fundamentalmente um pacifista, que via no amor a única arma com força para derrotar o mal. Apesar disso, as pessoas que detinham o poder sentiam-se ameaçadas com as suas palavras e acções, sobretudo porque Jesus afirmava ter uma relação íntima com Deus, que punha em causa todas as instâncias mediadoras (sacerdotes, Templo, Escritura...) e abria essa proximidade a todos sem discriminação. Por isso, Jesus foi vítima do medo que os poderosos do seu tempo tinham, morrendo em Jerusalém com cerca de trinta anos de idade, pregado numa cruz, depois de ter sido submetido a dois tribunais e publicamente humilhado. Esta história de vida e o que se lhe seguiu veio alterar o curso da história da humanidade. Quais as fontes através das quais nós podemos conhecer elementos da história de Jesus? Os Evangelhos, não sendo biografias de Jesus, constituem as principais fontes escritas onde estão registados dados históricos sobre a pessoa e vida de Jesus.

SABER

+

Literalmente, Evangelho significa boa mensagem, boa notícia ou boa-nova, derivando da palavra grega ευαγγέλιον, evangelion (ev = bom, angelion = mensagem). Os Evangelhos são quatro, sendo a sua autoria atribuída a S. Mateus, S. Marcos, S. Lucas e S. João. São eles que iniciam o Novo Testamento e a boa notícia que transmitem é a de que Deus mostrou o quanto ama toda a humanidade enviando ao mundo o seu Filho Jesus, o Messias e Salvador.

A existência histórica de Jesus é, por outro lado, comprovada também por autores não cristãos, nomeadamente: o historiador judeu Flávio Josefo; o historiador romano Tácito; o jurista, político e administrador imperial Plínio — o Jovem; e o escritor romano Suetónio. Nenhum deles se detém em aspectos concretos da vida histórica de Jesus, mas o seu testemunho é suficiente para provar que Jesus não foi nenhuma invenção humana, ele existiu realmente e por causa do que disse e do que fez, morreu pregado numa cruz.


unidade 2

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DOC23 20 Jesus, homem sábio Neste tempo viveu Jesus, homem sábio, que realizou obras maravilhosas, ensinou a receber a verdade com alegria e conquistou muitos judeus e muitos gregos. Pensavam que ele era o Cristo. Mas não era, segundo o parecer dos responsáveis entre nós. Por isso mesmo, sob a denúncia dos chefes da nossa nação, Pilatos condenou-o à cruz. Os discípulos guardaram a sua afeição e proclamavam continuamente que ele lhes tinha aparecido ao terceiro dia após a morte, de novo vivo, como os profetas divinos tinham anunciado; e espalharam muitas maravilhas a seu respeito. O grupo dos cristãos, assim chamados por causa dele, subsiste até aos dias de hoje. Flávio Josefo. Antiguidades Judaicas, ano 93

Vitral de Jesus Cristo

DOC24 21 Os cristãos Após vários interrogatórios, acompanhados de ameaças, mandei executar aqueles que persistiam em declarar-se cristãos. Alguns negaram que seriam cristãos e maldisseram mesmo Cristo. O meu inquérito provou que se reúnem em dias fixos, antes do nascer do dia, para cantar um hino a Cristo como a um deus. Plínio, Legado Imperial. Carta ao Imperador Trajano, ano 112

DOC 25 22 Cristo morreu sob Pôncio Pilatos Este nome (o de cristãos) provém-lhes de Cristo, levado à morte pelo procurador Pôncio Pilatos, no tempo do reinado de Tibério. Esta superstição abominável, imediatamente reprimida, despontou novamente, não apenas na Judeia, origem daquele mal, mas também em Roma, onde tudo quanto existe de horrível e de vergonhoso no mundo ali vai ter e encontra numerosa clientela. Tácito, historiador romano. Annales, ano 117

Concluímos, pois, que Jesus não é uma figura fictícia, irreal, inventada pelos primeiros cristãos. Embora estas hipóteses tenham sido colocadas por algumas pessoas em determinados períodos da história do Cristianismo, hoje, a existência histórica de Jesus é incontestada.

Jesus perante Pilatos, por autor anónimo do Séc. XIX


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A Última Ceia, por Jacopo Bassano

Jesus, o Cristo e Filho de Deus Mas este homem que passou pela Terra fazendo o bem, não é apenas admirado como homem. Para os cristãos, ele é o Cristo (Messias), o Filho de Deus. Este é o específico da fé cristã: aderir a Jesus, confiar nele e acolhê-lo como aquele que nos trouxe o caminho da salvação e no qual nós podemos encontrar-nos com Deus. Sabemos que Jesus fez da vontade de Deus o critério do seu comportamento. Homem como nós, conheceu as nossas incapacidades, limitações, preocupações e receios, excepto o que torna o ser humano menos pessoa — o mal, o pecado; mas, como Profeta e Mestre, ensinou a opormo-nos à injustiça, à maldade, ao ódio e a tudo o que impede cada pessoa de ser verdadeiramente ela própria, em comunhão com os outros e com Deus; indicou o caminho para o encontro com o Pai, fonte de amor e de paz. Jesus propõe uma relação com Deus de grande proximidade a ponto de o podermos chamar Papá, paizinho (Abbá, em aramaico). A partir desta proximidade Jesus propõe: Amai-vos uns aos outros como eu vos amei (Jo 15, 12). Este foi o pedido feito por Jesus aos seus discípulos e a todos quantos o ouviram. O mandamento do amor radical, originalidade do Cristianismo, é, ainda hoje, o bilhete de identidade dos cristãos.


unidade 2 A missão de Jesus A missão de Jesus relatada nos Evangelhos resume-se ao anúncio, por gestos e palavras, do Reino de Deus, que não é de confronto e disputa de poderes, de fama, de subida ao top, em moda, beleza, dinheiro... mas um reino de justiça, de paz e de amor. O reino de Deus acontece quando o poder amoroso de Deus reinar no coração de cada ser humano e toda a sociedade humana viver os valores da justiça, da verdade, da dignidade humana. Significa isto que a grandeza e importância de cada pessoa está na sua capacidade de amar, de ser cada vez menos egoísta para ser cada vez mais fraterna, interessando-se pelo bem dos outros e, com eles, estabelecer e construir relações de verdadeira e duradoura amizade. Dito de outra maneira: o Reino de Deus, proposto por Jesus, resulta da construção de relação de amizade e intimidade com Deus e com as pessoas.

Daqui nasce o principal mandamento dos cristãos: amar a Deus e as outras pessoas como a nós próprios, sendo que o amor se estende até ao próprio inimigo. Esta visão da vida decorre da maneira como Jesus entendia Deus. Não um ser longínquo das pessoas, que impõe uma Lei (Torah) e toma o partido somente dos que a cumprirem, mas um Deus dos excluídos, dos fracos, dos pobres, dos que não conhecem a Lei. Um Deus que não está distante, como estavam distantes os deuses das culturas grega e romana, mas que quer fazer história com a humanidade, caminhando ao lado de cada pessoa.

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unidade 2 Deus é puro amor, pura misericórdia, companhia certa para cada ser humano não se deixando aprisionar por qualquer pessoa, grupo de pessoas ou instituições. Ora, porque Jesus experimentou Deus assim, também queria que cada pessoa assumisse o amor ao próximo até às últimas consequências, que cada um fosse puro dom para os outros. Que prova concreta deu Jesus deste amor? Foi respondendo, também, a esta questão que os evangelistas dedicaram especial empenho nos seus escritos, relatando os últimos dias da vida de Jesus na terra. Trata-se da sua morte e ressurreição, ponto fulcral da fé cristã. A prova está precisamente numa entrega contínua e total de Jesus que lhe custou a própria vida. Sim, porque o Reino por ele anunciado incomodou os poderosos do seu tempo. Falar e comer com marginalizados? Amar os inimigos? Dar mais importância à pessoa do que à Lei? Chamar hipócritas aos fariseus? Jesus conheceu vários opositores, que o quiseram controlar e por quem foi criticamente observado, sobretudo pelos grupos e autoridades religiosas contemporâneas. A sensibilidade e capacidade comunicativa de Jesus, por outro lado, atraíam e cativavam multidões. O seu convite ao perdão e ao arrependimento, a sua relação com os marginalizados e desfavorecidos, as curas e milagres realizados se, por um lado, eram motivo de inveja, eram, por outro, uma força e esperança admiráveis.

Jesus e a mulher adúltera, por Lorenzo Lotto


unidade 2

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O destino de Jesus Para os cristãos, tudo o que Jesus realizou e ensinou foram sinais da sua relação com Deus, da sua identidade como Messias esperado e Filho de Deus. Nos relatos que os evangelistas fazem do processo de condenação de Jesus, consta que a sua principal e definitiva causa, e consequente morte, foi a resposta por ele dada à questão que a suprema autoridade religiosa lhe colocou: “És tu o Messias, o Filho de Deus Bendito?”. E Jesus responde: “Eu sou...” (Mc 14, 61-62). A crucifixão foi o suplício ao qual Jesus foi sujeito; mas algo de totalmente novo e inesperado estava para acontecer. Os relatos dos Evangelhos testemunham que, no terceiro dia após a morte (o número três é um número simbólico), Jesus ressuscitou e, deste modo, a morte foi vencida para brotar a vida nova. A cruz torna-se, então, símbolo da vida e não da morte porque, através dela, Cristo entregou a sua vida por amor e transmitiu-nos a certeza de que vale a pena amar mesmo até ao limite. Se, no Natal, os cristãos celebram o nascimento do Menino Jesus, é na Páscoa que celebram o acontecimento central da sua fé: o Jesus do presépio anunciou o Reino do amor e foi condenado à morte numa cruz, segundo o costume romano (punição destinada apenas aos criminosos); mas ressuscitou “ao terceiro dia”. Foi esta fé que os discípulos transmitiram e de que os Evangelhos são uma memória escrita. Foi a partir destes acontecimentos da vida de Jesus que nasceu o Cristianismo como religião nova em relação ao Judaísmo. Para os cristãos, falar do Cristianismo significa contar uma história de amor e salvação centrada em Jesus, o Cristo. Esta é que é a boa notícia (Evangelho) e, por isso, desde logo houve empenho de a anunciar a todas as pessoas e em toda a parte, levando o Cristianismo para lá das fronteiras da Palestina.

A Ressurreição de Cristo, por Piero della Francesca


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unidade 2 Fazendo a experiência de encontro com Jesus vivo, após a sua morte, os seus discípulos, cheios da sua força e da sua coragem, passam a referir-se a ele como o Cristo, o Ungido, o Eleito de Deus, o Senhor. Na comunidade cristã do início, eles permaneciam juntos e “perseveravam unânimes na oração com algumas mulheres, com Maria, mãe de Jesus” (Act 1, 14) e no dia de Pentecostes (cinquenta dias após a Páscoa) esta comunidade experimenta a presença encorajadora de Deus, a força do seu Espírito.

Detalhe do Pentecostes, por El Greco

Este acontecimento impele muitas pessoas, de vários povos, a juntarem-se aos apóstolos, liderados por Pedro, formando, assim, um novo povo, uma nova comunidade. Os membros deste pequeno grupo começam a ser chamados cristãos e, sem medo, levam a mensagem de Jesus Cristo por todo o império romano do primeiro século.

O Cristianismo no Império Romano A convicção de que aquele que fora crucificado está vivo leva os cristãos a acolher e a cultivar a fé, ou seja, a reconhecer em Jesus uma mensagem salvadora, libertadora. Se Cristo é a luz do mundo, há que ir por todo o mundo, anunciando a todos os povos as maravilhas de Deus.


unidade 2 A rede de estradas e de comunidades judaicas, as numerosas cidades, e o facto da língua grega (nas regiões orientais do império), e do latim (nas regiões ocidentais) serem compreendidas pela população, juntamente com a grande força interior e a coragem dos cristãos, possibilitou que o Cristianismo se difundisse com facilidade pelos territórios do império. O impulso missionário dos discípulos de Jesus Cristo, mas particularmente o dinamismo de S. Paulo, faz irradiar a mensagem do Evangelho pelas cidades gregas, romanas e até do norte de África. Os apóstolos, com o seu exemplo e anúncio da mensagem de Jesus, fundavam pequenas comunidades de crentes que acompanhavam, à distância, através de cartas. A estas Cartas (de Pedro, Paulo, João e Tiago) irão juntar-se os relatos da vida e mensagem de Jesus (os quatro Evangelhos) bem como a vida das primeiras comunidades (os Actos dos Apóstolos). Estes escritos, juntamente com o Apocalipse, formam aquilo que hoje chamamos o Novo Testamento. Os romanos eram politeístas, prestavam culto ao imperador e viviam numa sociedade fortemente estratificada e baseada na exploração do trabalho escravo. Os cristãos apresentam um Salvador, Jesus Cristo, e afirmam um Deus amigo e libertador. Propõem uma nova sociedade, onde não existe a distinção entre pessoas (“Pai nosso”) e se afirma a fraternidade universal (“Amai-vos uns aos outros”). Com o imperador Nero (que reinou de 54 a 68 d.C.) começa um período de mais de dois séculos de perseguições aos cristãos; vários milhares são mortos, tornando-se mártires e exemplo para outros que admiram a coragem, a firmeza e a felicidade encontrada no testemunho, apesar do sofrimento e da morte. Em Roma, os cristãos refugiam-se em subterrâneos (catacumbas) e vivem o seu culto às escondidas desenvolvendo um código de comunicação mais ou menos desconhecido para quem não estava familiarizado com a fé cristã.

Catacumbas

SABER

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+

Os textos do Novo Testamento foram redigidos entre o ano 50 e o ano 100 (aproximadamente): — 21 cartas de vários apóstolos às comunidades — 4 Evangelhos • S. Mateus • S. Marcos • S. Lucas • S. João — Actos dos Apóstolos — Apocalipse


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unidade 2 Os primeiros cristãos reconheciam-se pelo sinal do peixe. A palavra peixe, em grego, é ἰχθύς — “ichthys”. Cada letra desta palavra é inicial de outra palavra tornando-se a sigla de Jesus Cristo Filho de Deus Salvador.

SABER ἰ

+ I

Jesus

χ

CH

Iesous Christós

θ

TH

Theou

(de) Deus

ύ

Y

‘Yios

Filho

ς

S

Soter

Salvador

Cristo

Coliseu de Roma, Itália, um dos locais onde os cristãos eram mortos

Em 64 d.C. um grande incêndio acontece em Roma. Nero com medo das suspeitas que se levantam sobre si, lança as culpas sobre os seguidores de Cristo e vários cristãos romanos foram queimados ou lançados às feras no coliseu. Os apóstolos Pedro e Paulo, que estavam em Roma a animar a comunidade dos crentes, foram mortos (Pedro crucificado e Paulo decapitado). Muitos dos actuais lugares de culto cristão recordam o lugar onde mártires deram a vida pela sua fé, ou onde foram sepultados; por exemplo, a Basílica de S. Pedro e a Basílica de S. Paulo em Roma.


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Basílica de S. Paulo fora de Muros em Roma

DOC26 23 As perseguições aos cristãos Plínio o Jovem, governador da Bitínia, na Ásia Menor escreve ao imperador Trajano: “Eis o procedimento que tenho seguido quanto aos que me são denunciados como cristãos: pergunto-lhes a eles próprios se se reconhecem como cristãos. Àqueles que respondem afirmativamente, pergunto uma segunda e uma terceira vez, ameaçando-os com o suplício; aos que persistem na sua crença, mando-os executar.” Plínio, o Jovem. Cartas, X.

DOC27 24 Em defesa dos cristãos Nós somos os únicos a quem se recusa o direito de ter a religião que entendermos e os únicos a sermos perseguidos pelas nossas crenças. [...] No entanto, as vossas crueldades de nada servem. Só contribuem para nos mantermos mais persistentes. Tornamo-nos mais numerosos à medida que nos perseguem. O sangue dos cristãos é uma semente. A teimosia de que nos acusam é, no fundo, um exemplo. Na verdade, quem não perguntará que religião é esta, que nos leva a mantermo-nos tão firmes? Tertuliano. Apologia. Tertuliano (século II d.C.) era um intelectual romano muito culto, que se converteu ao Cristianismo.

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unidade 2 Apesar das múltiplas dificuldades, muitos cristãos foram fiéis aos ensinamentos de Jesus Cristo, celebravam a sua fé, viviam a caridade, organizavam-se em comunidades lideradas por presbíteros e bispos unidos entre si.

S. Pedro na Praça de S. Pedro no Vaticano

O Cristianismo no Ocidente — Idade Média

Santo Agostinho, por Sandro Botticelli

Com o Édito de Milão, assinado em 313 pelo imperador Constantino, o Cristianismo deixou de ser proibido e tornou-se numa das religiões oficiais do império. Em 390, sob o imperador Teodósio I, que interditou os outros cultos, o Cristianismo tornou-se a única religião oficial do império romano. Com a liberdade de culto, os cristãos vivem um período de grande crescimento na liturgia, na música, na arte, na arquitectura e no pensamento (filosofia e teologia). São deste período: Santo Ambrósio (339-398), bispo de Milão, grande conhecedor da Bíblia e da sua mensagem; S. Jerónimo (345-420) grande intelectual a quem se deve a organização sistemática dos livros da Bíblia e a sua tradução para o latim; Santo Agostinho (354-430), convertido ao Cristianismo em adulto, grande conhecedor do pensamento filosófico grego e do pensamento bíblico-cristão. Foi bispo em Hipona, no norte de África e é um dos maiores pensadores cristãos.


unidade 2 Em 476, chega ao fim o império romano do Ocidente, após a invasão de diversos povos bárbaros. Era o fim da Antiguidade e o início de uma nova época, de um novo mundo unido pelo factor religioso. Com a queda do império romano no Ocidente, a Igreja torna-se a única organização capaz de lidar com os novos povos e as novas ideias. Assume o papel de liderança espiritual e política, aproveitando o quadro organizativo e administrativo do antigo império. A arte, a economia, a política, a educação têm, durante a Idade Média, uma perspectiva religiosa: Deus é o centro da vida. É o tempo dos conventos e das catedrais. Até lá, os concílios dos séculos IV e V organizam e fixam a fé cristã em fórmulas, para resolverem desentendimentos entre os cristãos a respeito da melhor forma de expressar a fé. A Igreja será durante este novo período da história um factor de unidade num mundo politicamente dividido. Estará ligada à formação dos primeiros reinos independentes e, através dos inúmeros mosteiros, abadias e catedrais, será o grande impulso das artes, da literatura, da arquitectura, da cultura e da agricultura. Com S. Bento (480-547) e a ordem por ele fundada (Ordem dos Beneditinos) surge na Europa um movimento de cristianização e de civilização onde se conjuga de forma equilibrada a oração (espiritualidade), o estudo e o trabalho (ora et labora), proporcionando um desenvolvimento económico e cultural nas cidades e no campo. Com grande dinamismo missionário as populações europeias da Idade Média tornam-se cristãs e profundamente religiosas. O clero (padres, monges, abades, bispos) gozava de grande prestígio e estima porque estava próximo das pessoas, mas também porque, progressivamente, foi adquirindo riquezas, para além de ser detentor do saber e da cultura. A grande riqueza material da Igreja foi um dos factores da crise pela qual passou nos séculos IX a XI, porque à frente de abadias e bispados eram colocados grandes senhores da nobreza que não tinham nem formação nem vocação religiosa. Surge um movimento de renovação espiritual através das ordens religiosas de Cluny e de Cister (França) que vai ajudar a Igreja e os cristãos a retomar o verdadeiro sentido do Cristianismo: oração e simplicidade.

SABER

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Guido D’Arezzo (992 – 1050), monge beneditino nascido em Arezzo (Itália), sistematizou os conhecimentos de notação musical e deu nome às sete notas musicais que conhecemos hoje: dó, ré, mi, fá, sol, lá e si.

Torre do Sino da Abadia de Cluny, França


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28 DOC 25 Ó vaidade das vaidades, mas ainda mais loucura que vaidade! As igrejas cintilam por todos os lados, mas os pobres têm fome! As paredes das igrejas estão cobertas de ouro, mas os filhos da Igreja permanecem nus [...]. Dizei-me, pobres monges — se acaso vós sois pobres —, que vem fazer o ouro aos lugares santos? Os fiéis [...] olham mais a beleza das estátuas do que honram a virtude dos santos [...]. O que reza, ao olhá-las, esquece mesmo a força da sua oração. [...] Deixam-se os pobres morrer de fome e gasta-se o que lhes seria necessário, em sumptuosidades inúteis. S. Bernardo. Obras místicas.

Os mosteiros clunicenses e cistercienses vão ser o centro espiritual e cultural do período da reconquista Cristã na península ibérica. Lugares de oração e estudo era ali que se copiavam os textos dos grandes mestres e da Bíblia e se formavam os líderes religiosos e políticos.

Mosteiro de Alcobaça


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Outras ordens religiosas como a dos Franciscanos (1210) e a dos Dominicanos (1216) vão contribuir para a renovação da vida religiosa. O ensino, o pensamento e a literatura vão, por toda a Europa, originar a arte românica e gótica, o interesse pela natureza e o surgimento das primeiras universidades. Foi em Bolonha, em 1088, que surgiu a primeira universidade, sendo a de Lisboa (fixada depois em Coimbra) de 1288. Nelas se encontrava a cultura e a sabedoria clássica, a razão e a fé.

SABER

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S. Bernardo (1094 – 1153) Monge cisterciense francês. Apresentou o trabalho, o estudo e o rigor da pobreza como o ideal do homem medieval. O mosteiro de Alcobaça é presença da harmonia monacal entre o trabalho manual (agricultura), o trabalho intelectual (escola e biblioteca) e o crescimento espiritual e caritativo. S. Domingos de Gusmão (1170 - 1221) Sacerdote espanhol. No ano de 1216 fundou a Ordem dos Pregadores (Dominicanos) com o objectivo de, através do estudo e da pregação, contribuir para o enriquecimento intelectual e espiritual das pessoas.

S. Bernardo, por Bernardino Zenale

São Domingos, por Fra Angelico


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Textos Sagrados O Livro sagrado dos cristãos é a Bíblia. A Bíblia narra a história do amor entre Deus e a humanidade. Para os cristãos, é a palavra de Deus dirigida aos seus filhos; exige, portanto, escuta e atenção e pede uma resposta. Também é chamada “Sagrada Escritura”: as Escrituras que contêm a mensagem de Deus para os homens e para as mulheres de todos os tempos. Mais do que um livro, a Bíblia é uma biblioteca; é uma colecção de 73 livros agrupados em duas grandes partes: o Antigo Testamento, constituído por 46 livros, escritos antes do nascimento de Jesus, que contêm a história da relação do povo de Israel com o Deus único; e o Novo Testamento, constituído por 27 livros, escritos depois da morte e ressurreição de Jesus, que tem como acontecimentos centrais a pessoa de Jesus e a formação das comunidades cristãs primitivas. A palavra testamento significa, aqui, aliança, ou seja, um compromisso de amizade. De facto, o que o Antigo e o Novo Testamentos retratam é a antiga Aliança feita por Deus com o seu povo através de Moisés e a nova Aliança realizada em Jesus Cristo. A Bíblia é o Livro Sagrado para milhões de pessoas de todas as línguas e etnias que, ao reconhecê-la como palavra de Deus, nela encontram força, luz e sentido para as suas vidas. É uma história de fé; não contém uma reportagem histórica mas dá um testemunho


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real. Podemos estudá-la quer sejamos crentes ou não, podemos até compreender o sentido que os autores lhe quiseram dar. Porém, só podemos corresponder à sua intenção mais profunda quando acolhermos a fé dos que a escreveram. No entanto, o Cristianismo não é uma “religião do Livro” porque não é no livro que se encontra a revelação de Deus. Esta encontra-se na história de Jesus, o Filho de Deus. A Bíblia é o testemunho escrito desta revelação. Neste sentido, distingue-se do Islão.

SABER

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A Bíblia foi o primeiro livro a ser impresso por Gutenberg, o inventor da imprensa, que terminou este trabalho em 1455. É, desde sempre, o livro mais difundido, traduzido, lido e estudado. A importância da Bíblia como inspiração da cultura humana é um facto incontestável. Pintura de Johannes Gutenberg a imprimir a 1ª folha da Bíblia

Princípios Básicos da Fé Cristã O Cristianismo recebe a herança do Judaísmo, por isso, acredita em Deus não só como Criador mas essencialmente como Pai misericordioso; um só Deus que sendo o horizonte de sentido para cada pessoa é o amor inclusivo, sempre pronto a acolher cada um. A fé cristã fundamenta-se na ressurreição de Jesus Cristo e apela à adesão pessoal e comunitária a Jesus Cristo e ao seu mandamento do amor. Desde muito cedo, os apóstolos serviram-se de pequenas fórmulas, para explicarem quem era Jesus e em que consistia ser cristão. Essas fórmulas foram-se desenvolvendo e enriquecendo, até que, no Concílio de Niceia (325), foram sistematizados os princípios básicos da fé cristã a que chamaram Símbolo dos Apóstolos ou Credo.


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29 DOC 26 Símbolo dos Apóstolos ou Credo Creio em Deus, Pai todo-poderoso, Criador do Céu e da Terra E em Jesus Cristo, seu único Filho, nosso Senhor, que foi concebido pelo poder do Espírito Santo, nasceu da Virgem Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado, desceu à mansão dos mortos, ressuscitou ao terceiro dia, subiu aos Céus, está sentado à direita de Deus Pai todo-poderoso, de onde há-de vir a julgar os vivos e os mortos. Creio no Espírito Santo, na santa Igreja Católica, na comunhão dos Santos, na remissão dos pecados, na ressurreição da carne e na vida eterna.

Calendário, rituais e espiritualidade As celebrações cristãs têm dois ritmos, um semanal e outro anual. Todas as semanas, ao Domingo (Dies Domini = Dia do Senhor), festeja-se a ressurreição de Jesus, pela celebração da eucaristia (missa); é o dia sagrado e de descanso semanal. O Ano Litúrgico é o calendário religioso dos cristãos. Contém a data das festas e celebrações litúrgicas, durante o ano, que se reportam aos acontecimentos mais importantes da vida de Jesus. Divide-se em dois ciclos: o ciclo da Páscoa e o ciclo de Natal. Estes dois ciclos festivos são as colunas mestras da liturgia cristã. O ciclo do Natal começa com o Advento (tempo de preparação para a vinda de Jesus), inclui o Natal propriamente dito, e termina na Epifania, ou seja, na festa da manifestação de Jesus a todos os povos (habitualmente chamada “dia de Reis”); aqui aparecem simbolicamente os magos, que representam a universalidade dos povos, para mostrar que esta manifestação é a todas as nações da Terra. O Natal lembra e festeja o nascimento de Jesus em Belém. Relembra que Deus está próximo de nós em Jesus e celebra a salvação que entra definitivamente na nossa história.


unidade 2

SABER

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Porquê o 25 de Dezembro? É desconhecida a data do nascimento de Jesus. O dia 25 de Dezembro foi estabelecido por volta do século IV. Segundo a opinião mais corrente, a escolha desta data obedeceu ao desejo de dar um sentido cristão a uma festa pagã. No ano 274, o imperador Aureliano oficializou o culto do Sol, mandando construir um templo em sua honra e fixou a festa do Sol a 25 de Dezembro que, segundo a astronomia daquela época, era considerada a data do solstício do Inverno (dia menor do ano). Os cristãos passaram a festejar nesse dia o nascimento de Jesus de modo a desvalorizar o sentido pagão da festa e a recordar que a verdadeira luz do mundo, o verdadeiro Sol é Jesus.

O ciclo da Páscoa inclui, na Igreja Católica, a Quaresma, que é um apelo à penitência e à conversão, e a Páscoa propriamente dita, em que se celebra a alegria de Cristo Ressuscitado. A Quaresma começa na Quarta-Feira de Cinzas (dia a seguir ao Carnaval) e estende-se até à Quinta-Feira Santa, à tarde, antes da celebração da Ceia do Senhor. Sendo tempo de renovação e mudança de vida, os cristãos manifestam esta atitude especialmente através do jejum, da esmola e da oração. É a preparação para a Páscoa do Senhor. Os “quarenta” dias da Quaresma lembram a caminhada de quarenta anos do povo de Deus no deserto, quando saíram do Egipto em direcção à Terra Prometida.

SABER

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Na Quarta-Feira de Cinzas os cristãos católicos marcam o início da Quaresma com uma eucaristia que inclui o rito da imposição de cinzas na cabeça de cada um. Com este ritual reconhecem a fragilidade humana, tomam consciência da necessidade da misericórdia de Deus e assumem pessoal e comunitariamente o desafio da conversão — caminhar das cinzas (morte) para a glória (vida).

Detalhe da Última Ceia, por Leonardo da Vinci


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Pietà, por Miguel Ângelo

O Tríduo pascal da Paixão e Ressurreição de Jesus inicia-se com a Missa da Ceia do Senhor (Quinta-feira Santa), que recorda a última ceia de Jesus com os seus amigos. Na Sexta-Feira Santa celebra-se a paixão e a morte de Jesus. O Domingo da Ressurreição, que começa com a noite de Sábado, na Vigília Pascal, celebra o grande acontecimento da ressurreição de Jesus: a morte e o medo foram vencidos, a Vida e a Alegria são as características da nova condição dos cristãos. O Tempo Pascal é o conjunto de cinquenta dias que se prolongam desde o Domingo da Ressurreição até ao Domingo do Pentecostes, em que se celebra a presença do Espírito de Deus na comunidade cristã.

SABER

A Transiguração de Cristo no Monte Tabor, por Giovanni Bellini

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A palavra Páscoa significa etimologicamente passagem. Desde os tempos antigos, os povos, nesta altura, festejavam a passagem do Inverno para a Primavera. O povo judeu, no séc. XIII a. C., liderado por Moisés, fez a passagem da escravatura no Egipto para a liberdade na Terra Prometida: a Palestina. Jesus, através da Ressurreição fez a passagem da morte para a vida. A Páscoa é uma festa móvel. O dia da Páscoa é o primeiro Domingo depois da Lua Cheia que ocorrer após o equinócio da Primavera (21 de Março). A data da Páscoa varia, pois, de ano para ano, sendo no mínimo a 22 de Março e no máximo a 24 de Abril.


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Celebração da vida e da fé Para os cristãos há um Deus único, revelado ao longo dos tempos, mas de modo mais pleno em Jesus Cristo, o próprio Filho de Deus. É um Deus comunhão de Amor que se manifesta como Pai e Criador, Filho e Palavra de Deus para cada ser humano, Espírito Santo e presença de Deus e de Jesus que se faz sentir na vida pessoal e comunitária. Para um cristão, o mais importante é viver em constante relação com Jesus e, para isso, recorre à Bíblia e escuta/medita a sua palavra; também pode fazê-lo por meio da oração. Mas em comunidade vive-se a presença próxima de Jesus de outra forma: através das celebrações. Os sinais e os símbolos das celebrações tornam Jesus presente no meio da comunidade. As celebrações interrompem o ritmo normal da vida. Nelas realiza-se um conjunto de acções que se repetem: são os rituais. Através destes, recordam-se acontecimentos do passado. As pessoas que neles participam voltam a reviver espiritualmente esses acontecimentos. Nas celebrações, os crentes sentem-se mais unidos, mais próximos de Deus e uns dos outros.

Ícone da Santíssima Trindade do Antigo Testamento, por Andrea Rublyov

A Liturgia é o conjunto das celebrações que constituem o centro da vida da Igreja, das quais se destacam, como mais importantes, as celebrações dos sacramentos. Destes, os que todos os cristãos celebram são o Baptismo e a Eucaristia (embora nem todos interpretem da mesma maneira este sacramento). Os sacramentos, para os cristãos, são sinais de que Deus está perto de cada pessoa. Acompanham os momentos marcantes da vida de cada cristão, desde que nasce até que morre. Cada sacramento é como uma boa notícia, uma grande ajuda que Deus nos dá nos momentos mais importantes da nossa vida.

Baptismo na Igreja de Notre Dame, Paris


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SABER

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Um símbolo é uma realidade visível que representa algo invisível. A cor vermelha dos semáforos (realidade visível) é um símbolo que representa a ordem de parar (realidade invisível). Um símbolo pode fazer-nos reviver momentos felizes da vida. Um presente de alguém que amamos representa o amor que a pessoa nos dedicou. Esse presente é, para nós, um sacramento. Cada vez que o observamos, relembramos e revivemos esse amor. A prenda representa a presença amorosa dessa pessoa. Também os sacramentos são símbolos que representam a presença amorosa de Deus junto de nós.

Basílica da Natividade, em Belém

Principais locais de culto A Basílica da Natividade, em Belém, é a igreja mais antiga da Terra Santa. Foi mandada construir em 326 por ordem de Santa Helena, mãe do imperador romano Constantino. Desde a sua construção a Basílica nunca foi destruída. Parece até um milagre o facto de todos os exércitos que por ali passaram sempre a terem respeitado! Em 1717 os franciscanos colocaram uma estrela de prata e uma inscrição latina que diz “Aqui, da Virgem Maria, nasceu Jesus”.


unidade 2 A Basílica do Santo Sepulcro está construída num local, em Jerusalém, onde a tradição cristã crê que Jesus Cristo foi sepultado e de onde ressuscitou no Domingo de Páscoa. A Basílica de São Pedro, no Vaticano, em Roma, ocupa o local onde, segundo a tradição, está o sepulcro de S. Pedro; é a igreja mais venerada no mundo católico porque representa a unidade e a comunhão universal na figura do Papa como sucessor do apóstolo Pedro.

Basílica do Santo Sepulcro, Jerusalém

Basílica de S. Pedro, Cidade do Vaticano

Diversidade no Cristianismo O Cristianismo, enquanto religião centrada na fé em Jesus Cristo, é professado e vivido por milhões de crentes espalhados por todo o mundo. Este facto corresponde à sua essência original, ou seja, Jesus Cristo apresenta-se como o Caminho, a Verdade e a Vida para toda a humanidade. O Cristianismo é a religião de todos os que acreditam na “Boa Notícia” de salvação e vida oferecidas por Jesus Cristo. A universalidade do Cristianismo não significa, porém, que todos os cristãos vivam de igual forma esta religião. Na verdade, fruto de divergências culturais, políticas, históricas e cultuais, o Cristianismo está dividido em três ramos principais: Cristãos Católicos (Romanos), Cristãos Ortodoxos e Cristãos Protestantes.

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Bispo Ortodoxo

Martinho Lutero (1483-1546)

A primeira grande divisão da Igreja ocorreu no séc. XI, em 1054. Este momento histórico foi o culminar e o desfecho de todo um conjunto de desentendimentos entre cristãos do Ocidente e do Oriente que vinham já desde o séc. IV, nomeadamente após a mudança de residência do imperador Constantino da velha Roma (império do Ocidente) para a nova Roma — Constantinopla (império do Oriente), em 330. O ano de 1054 ficou conhecido na história por marcar uma divisão da Cristandade em cristãos católicos latinos e cristãos ortodoxos gregos, cujas causas estão mais relacionadas com a estreita relação entre Estado e Igreja do que com questões propriamente de fé. A segunda grande divisão ocorreu no séc. XVI, quando em 1517 o monge Martinho Lutero afixou na porta da catedral de Wittenberg, na Alemanha, as suas 95 teses. Embora o tema central destas teses fosse a questão das indulgências (remissão das penas espirituais), Lutero levantou questões mais sérias e profundas relacionadas com a doutrina da Igreja Católica e a autoridade do Papa. Neste período, a Igreja vivia uma situação complexa e problemática pelo que, sendo generalizada a vontade em proceder a uma reestruturação ou revisão da vida cristã, a reforma proposta por Lutero veio dividir os cristãos. Emergiu, assim, o movimento Protestante, também designado por movimento reformador. Estas divisões entre Cristãos perduram até hoje. Conscientes, no entanto, de que o caminho de unidade é o que foi proposto por Jesus Cristo, tem-se dado muita importância ao encontro e diálogo entre todos os cristãos, valorizando a vivência do que os une ou seja a fé em Jesus Cristo, Filho de Deus. Este é objectivo central do movimento a que se deu o nome de Ecumenismo.


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QUADRO SINÓPTICO DAS RELIGIÕES ABRAÂMICAS JUDAÍSMO PRINCÍPIOS DE FÉ

Deus é único e eterno. O seu povo é o povo de Israel. No fim dos tempos, virá o Messias e libertará o povo da opressão. Existe vida para além da morte, com recompensa para os justos e castigo para os pecadores.

PRINCÍPIOS ÉTICOS

“FUNDADOR”

CRISTIANISMO Deus é amor incondicional. Jesus Cristo é o Messias, o Filho de Deus, o Salvador do mundo. Existe vida para além da morte onde bons e maus terão destinos diferentes.

ISLÃO Só há um Deus (Alá) e Maomé é o seu último profeta. Tudo o que acontece, seja bem ou mal, é predestinado por Alá através dos seus decretos imutáveis. Haverá o dia da ressurreição e o juízo final.

Dez mandamentos

Mandamento do amor

Cinco pilares

Moisés

Jesus Cristo

Maomé

TEXTO SAGRADO

Torah

CIDADE SAGRADA

Jerusalém, cidade onde o rei Salomão construiu o Templo.

TEMPLO

Sinagoga

IMAGENS

O Judaísmo não presta culto a imagens porque Deus é puramente espiritual.

Imagens sobre a vida de Jesus, de Maria e dos santos. As imagens são factor de divisão entre os vários ramos dos cristãos.

O Islão não venera imagens, embora admita representações da vida do Profeta, do qual não se deve figurar o rosto.

SÍMBOLO

Estrela de David e Menorah

Cruz

Hilal ou Crescente

DIA SAGRADO

Sábado

Bíblia

Jerusalém, cidade onde Jesus Cristo foi crucificado, morreu e ressuscitou.

Igreja

Domingo

Alcorão

Meca, Medina e Jerusalém, cidades onde Maomé nasceu, morreu e subiu aos céus.

Mesquita

Sexta-feira

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PERSPECTIVA SOBRE DEUS NAS TRÊS RELIGIÕES Deus no Judaísmo O Judaísmo entende Deus como o Criador e Senhor de todo o universo; este aspecto foi herdado tanto pelo Cristianismo como pelo Islão. Mas, para o Judaísmo, o Deus de Israel é essencialmente o Deus dos pais, um Deus pessoal que se relaciona com as pessoas de forma benévola (cf. Sl 27); o Deus da Aliança e da Lei, que tem um nome: Yahwéh; o Deus libertador (êxodo); o Deus Justo e Salvador, mas também o Juiz do mundo. Ele toma o cuidado dos mais fracos e dos sofredores. No entanto, é visto fundamentalmente como um Deus nacional, tomando o partido de Israel por oposição aos outros povos.

SALMO 27

O 1

Senhor é a minha luz e salvação. De quem poderei ter medo? O Senhor defende a minha vida. Quem me poderá assustar? 3Ainda que um exército me cerque, não terei medo nenhum; mesmo que se declare guerra contra mim, manter-me-ei confiante. 5Quando chegarem os dias maus, ele abrigar-me-á; ele manter-me-á em segurança no seu santuário; pôr-me-á a salvo sobre uma rocha. 8“Anda,

disse-me o coração, procura o Senhor.”

Eu ando à tua procura, Senhor! 9Não

desvies de mim o teu olhar! Não te zangues comigo!

Tu és o meu único auxílio! Não me abandones. Não me desampares, ó Deus, meu salvador. 10Ainda

que o meu pai e a minha mãe me abandonem,

o Senhor tomará conta de mim. Sl 27(26), 1.3.5.8-10

A relação com Deus manifesta-se através da oração. O Salmo 23 é um belo exemplo de oração dirigida ao Deus de Abraão.


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Salmo do bom Pastor

O

Senhor é meu pastor: nada me falta. 2Em verdes prados me faz descansar

1

e conduz-me a lugares de águas tranquilas.

3Conforta

a minha alma

e guia-me por caminhos rectos, honrando o seu bom nome. 4Ainda

que eu atravesse o mais escuro vale,

não terei receio de nada porque tu, Senhor, estás comigo. 6De

facto, a tua bondade e o teu amor

acompanham-me ao longo da minha vida. E na tua casa, Senhor, morarei para sempre. Salmo 23 (22), 1-4.6

Deus no Cristianismo Jesus assume que o Deus único de Israel é o seu Deus mas compreende-o de maneira diferente. Chama-lhe Pai (Abba, papá), o que denota proximidade, assistência, consolo, segurança. É o Pai universal, não só dos bons, mas também dos maus, dos injustos e dos perdidos; que se interessa pela sua salvação e não desiste deles. É, por isso, entendido como o Deus da salvação, da misericórdia, inequivocamente bom; Deus do perdão e não da condenação. Abate as diferenças que separam as pessoas; está do lado dos fracos, dos desvalidos, dos mais pobres, dos oprimidos; apela à conversão pela via do amor e não da condenação ou da violência; ama o ser humano de forma incondicional e independentemente do seu comportamento respeitando a liberdade de cada um. Essencialmente, para Jesus, Deus é amor.

O Bom Pastor. Mosaico da Basílica de Aquileia


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os teus pecados estão perdoados

U

m dia, um fariseu convidou Jesus para comer em sua casa. Jesus foi e sentou-se à mesa. 37Então uma mulher de má vida, que havia naquela terra, ao saber que Jesus estava à mesa em casa do fariseu, foi lá com um frasco de alabastro cheio de perfume puro. 38Pôs-se atrás de Jesus e, chorando muito, molhava-lhe os pés com as lágrimas e enxugava-os com os cabelos, beijava-os e deitava-lhes perfume. 39Quando o fariseu viu aquilo, disse para consigo: “Se este homem fosse um profeta devia saber que espécie de mulher é esta que lhe está a tocar nos pés, pois é uma pecadora.” 36

40Então

Jesus disse ao fariseu: 44“Vês esta mulher? Entrei em tua casa e não me deste água para os pés, mas ela lavou-mos com lágrimas e enxugou-os com os cabelos. 45Não me recebeste com um beijo, mas ela, desde que entrou, não deixou de me beijar os pés. 46Não me deste óleo perfumado para a cabeça, mas ela deitou-me perfume nos pés. 47Digo-te que os seus muitos pecados lhe foram perdoados, por isso mostrou muito amor. A quem pouco se perdoa, pouco amor mostra.” 50Jesus disse à mulher: “A tua fé te salvou. Vai em paz.” Lc 7, 36-40a.44b-47.50

“Os teus pecados estão perdoados”, por Marcantonio Raimondi

Se Deus é, para Jesus, o pai em quem se pode depositar toda a confiança, a oração do cristão revela essa imagem de Deus.

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unidade 2

Pai-Nosso

P

ai nosso, que estás nos céus: santificado seja o teu nome; 10venha o teu Reino; seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu. 11Dá-nos hoje o pão de que precisamos. 12Perdoa-nos as nossas ofensas, como nós perdoámos aos que nos ofenderam. 13E não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do mal.

9

Mt 6, 9-13

Cristo Redentor, Rio de Janeiro

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Deus no Islão No Islão, Deus é também o Criador de todas as coisas, e nada existe que não seja por sua vontade. É o Senhor e soberano do universo, que tudo determina (predestinação). O Alcorão cita noventa e nove atributos de Deus, tais como, o Clemente, o Misericordioso, o Criador, o Senhor do Universo, o Primeiro, o Último... Um belo provérbio conhecido entre os muçulmanos diz que “Deus está mais perto de nós do que a nossa veia jugular”. Essa presença de Deus manifesta-se também através da oração.

3013 DOC AL-FATIHA Em nome de Alá, o Clemente, o Misericordioso. Todo o louvor cabe a Alá, Senhor de todos os mundos, o Clemente, o Misericordioso. Patrono do Dia do Juízo. Só a Ti adoramos e só a Ti imploramos auxílio. Guia-nos pelo bom caminho, o caminho daqueles a quem concedeste as Tuas bênçãos. Alcorão 1, 1

Adorai Alá e mostrai bondade para com todos. Alcorão 4, 36


unidade 2 DESAFIO À INTERVENÇÃO NO MUNDO A religião não se reduz a uma relação intimista com Deus. Ela leva o crente a transformar o mundo: não só o seu mundo interior, mas também o mundo exterior, através da sua intervenção na vida social. Os textos que se apresentam de seguida dão conta dessa intenção de transformar o mundo, presente nas três tradições religiosas que estamos a abordar.

A paz universal

O

s povos hão-de converter as suas espadas em arado e as suas lanças, em foice. Nenhum povo levantará a espada contra outro, nem voltarão a ser treinados para a guerra. Is 2, 4

Adorar a Deus é ser justo

Q

ue ofertas levarei ao Senhor, Deus do céu, quando for adorá-lo? 8 Ó homem! O Senhor já te revelou o que estava bem; o que exige de ti é que pratiques a justiça, que sejas fiel e leal e que obedeças humildemente a Deus.

6

Mq 6, 6.8

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DOC 14 A PESSOA JUSTA Para serdes justos não vos basta que volteis o rosto para o Oriente ou para o Ocidente, pois verdadeiramente justo é aquele que crê em Alá e no Último Dia e nos anjos e nos profetas, e emprega o seu dinheiro por amor, nos parentes e nos órfãos e nos necessitados e nos que pedem que lhes seja feita caridade; Alcorão 4, 36

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unidade 2

O Papa João Paulo II com o Rabi David Rosen, em Assis

O DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO Quaisquer que sejam as nossas divergências, de acordo com as três religiões abraâmicas, temos todos origem em Deus e todos temos o mesmo fim (Deus). Face a esta unidade fundamental entre as pessoas, a única atitude aceitável é a da fraternidade entre todos os seres humanos. Porque filhos do mesmo e único Pai, somos irmãos. E como irmãos, mesmo que tenhamos ideias ou religiões diferentes, só podemos estimar-nos, respeitar-nos e compreender-nos mutuamente. O diálogo e a colaboração mútua na defesa da justiça, da paz, da liberdade e da dignidade humana no mundo são atitudes que decorrem da nossa consciência de sermos filhos do mesmo Pai. Esta é a vontade de Deus expressa nas religiões abraâmicas, que nos impele a redescobrir, num esforço conjunto, o projecto do amor de Deus para toda a humanidade numa atitude de: • Diálogo que reconhece, estima e respeita a diversidade; • Trabalho conjunto na construção de um mundo melhor e na luta contra todo o tipo de injustiça; • Criação de laços de afecto fraterno e acolhimento entre todos; • Valorização de todo o bem que cada pessoa e cada religião transportam consigo.


unidade 2 O texto do Concílio Vaticano II (1962-1965) manifesta essa vontade da Igreja Católica de construir com as outras religiões relações amistosas.

DOC32 15 Relação da Igreja Católica com o Judaísmo e o Islão Se é verdade que, no decurso dos séculos, surgiram entre cristãos, judeus e muçulmanos não poucas discórdias e ódios, a Igreja encoraja todos a que, esquecendo o passado, sinceramente se exercitem na compreensão mútua e juntos defendam e promovam a justiça social, os bens morais, a paz e liberdade para todos os homens. Sendo tão grande o património espiritual comum aos cristãos, aos judeus, e aos muçulmanos, a Igreja quer fomentar e recomendar entre eles o mútuo conhecimento e estima, os quais se alcançarão sobretudo por meio dos estudos bíblicos e teológicos e com os diálogos fraternos. A Igreja, que reprova quaisquer perseguições contra quaisquer homens, lembrada do seu comum património com os judeus e muçulmanos e levada não por razões políticas mas pela religiosa caridade evangélica, deplora todos os ódios, perseguições e manifestações contra os judeus e muçulmanos. Cf. Nostra Aetate, 3-4 (Documento do Concílio Vaticano II sobre as religiões não cristãs)

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UNIDADE LECTIVA

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A adolescência e os afectos


Nesta unidade vamos reflectir sobre: • A adolescência e o processo de crescimento; • Mudanças físicas; • Novas formas de pensar; • Mudanças de referência social: a família e os amigos; • A sexualidade e o amor; • O medo, a angústia e a integração social; • O crescimento moral e religioso; • A mensagem da Bíblia sobre o amor; • O despertar para novas responsabilidades e a assunção de valores éticos.


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unidade 3

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Olá. Nesta unidade vais olhar para ti e confrontares-te com a questão quem sou eu? O meu nome é Anne. Nasci no dia 12 de Junho de 1929, em Frankfurt (Alemanha). Tenho uma irmã, a Margot, que é mais velha três anos. Somos uma família judia e por isso, em 1933, tivemos que fugir para a Holanda por causa das perseguições do regime de Hitler. Na Holanda encontrámos paz e segurança até ao dia em que os alemães invadiram este país, como tantos outros, num clima de medo, ódio e terror. Antes e durante a 2ª guerra mundial (1939-1945) o líder alemão Hitler, com vontade de governar o mundo, apoderou-se de vários países e perseguiu todos os que eram diferentes da “raça ariana” (alemães puros) nomeadamente nós, os judeus. Para não sermos levados para um campo de concentração, os meus pais e alguns amigos organizaram a fuga das nossas famílias. Escondemo-nos num anexo de uma casa de onde, durante dois anos (1942-1944), não pudemos sair. Convivíamos com a ameaça constante de sermos descobertos pela polícia nazi. Estive desaparecida da vida social dos 12 aos 14 anos… Tu sabes como é este período da nossa vida! Para aliviar o coração, escrevia um diário e inventei uma amiga imaginária, a Kitty. Quando escrevia, “sentia um alívio, a minha dor desaparecia, a coragem voltava …” Durante o período em que vivi como um pássaro numa gaiola, passei, tal como tu, por um desenvolvimento físico e por dificuldades de relacionamento com os adultos, principalmente com a minha mãe. Mas neste pequeno mundo de sofrimento em que vivi, aconteceu o eterno milagre da vida: o amor entre mim e o Peter. Peter era um jovem, um pouco mais velho do que eu, filho de um casal amigo da família que vivia connosco no anexo. “Quando o Peter e eu estamos sentados… eu com um braço em volta dos seus ombros e ele a brincar com uma madeixa do meu cabelo, oh! então os meus desejos são infinitos”. Cf. Anne Frank. Diário


unidade 3

SABER

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No dia 4 de Agosto de 1944, a polícia assaltou o anexo e prendeu os oito “desaparecidos”. Foram levados para campos de concentração, tendo sobrevivido apenas o pai de Anne. Anne morreu em Março de 1945 no campo de concentração de Bergen-Belsen. Uns amigos voltaram ao anexo e encontraram, entre papéis e revistas, o Diário de Anne. Traduzido em quase todas as línguas foi adaptado ao teatro e ao cinema e é considerado uma obra literária de grande beleza e um grito a favor da dignidade humana. O esconderijo é actualmente um museu que tem como objectivo sensibilizar contra todo o tipo de discriminações.

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Anexo secreto (quarto de dormir) de Anne Frank, Amesterdão

QUEM SOU EU? Conhecer-se e descobrir-se a si próprio(a) significa compreender todos os aspectos que envolvem a personalidade, ou seja, as qualidades e os defeitos, as dificuldades e as possibilidades. Significa também valorizar os aspectos mais positivos da maneira de ser, e mudar aqueles de que não gostamos. Provavelmente foram muitas as vezes em que, frente ao espelho, demos connosco a reflectir sobre a nossa aparência física. Se, por um lado, vemos um rosto que conhecemos bem, percebemos, por outro, que estamos diferentes, que estamos a mudar. Às vezes não é nada fácil olhar para o espelho e, de um dia para o outro, ver uma cara cheia de borbulhas, uma fisionomia diferente, um corpo a transformar-se… De repente o vestuário parece encolher, nada serve… E perguntamo-nos: afinal, quem sou eu? Na realidade continuamos a ser aquela pessoa especial e única, com uma identidade irrepetível, mas numa idade que inicia uma nova etapa de desenvolvimento pessoal. Até há bem pouco tempo diziam-nos que ainda éramos pequenos; agora começamos a ouvir expressões como já não és nenhuma criança, não sejas infantil, comporta-te como uma mulherzinha – homenzinho. Também nos dizem que não temos idade para sair para onde nos apetece, que não podemos chegar tarde a casa…


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unidade 3 Embora ainda sintamos falta das brincadeiras infantis e ainda nos sintamos atraídos por coisas de que gostávamos quando éramos crianças, é normal que também desperte em nós o interesse por realidades que, há pouco tempo, nem sequer poderíamos imaginar que viríamos a gostar ou desejar. Muitas pessoas consideram esta fase da vida um período crítico, difícil e conflituoso, já que está em jogo o desenvolvimento da identidade pessoal. Independentemente dos pensamentos e sentimentos que nos invadam, devemos estar certos de que a imagem de cada um de nós reflectida no espelho é muito bela, porque única, original e inédita. Como cada um de nós não houve, não há nem haverá outra pessoa igual!

A ADOLESCÊNCIA A adolescência é uma etapa extraordinária na vida de todas as pessoas, pois é nela que cada indivíduo descobre a sua identidade e define a sua personalidade. É uma época da vida marcada por profundas transformações fisiológicas, psicológicas, pulsionais, afectivas, intelectuais e sociais vivenciadas num determinado contexto cultural. É uma fase com características próprias, uma dinâmica de passagem entre a infância e a idade adulta. Nesse processo, acontecem mudanças que conduzem à reformulação dos valores adquiridos na infância. O mundo social alarga-se e nasce uma grande preocupação com o que os outros pensam de nós. Assumimos uma variedade de papéis em função do contexto social em que agimos.


unidade 3 No cruzamento de tendências infantis e adultas, o adolescente vivencia-se como que num mundo entre dois mundos. Já não quer ser criança, mas também não quer ser o adulto que os pais exigem que seja; quer ser ele mesmo, diferente dos outros, ter a sua própria identidade.

Puberdade e adolescência Ainda que muitas vezes se empreguem como sinónimos, adolescência e puberdade não são o mesmo. Vejamos as diferenças: Puberdade (do latim pubescere, “cobrir-se de pêlos”) é o processo de maturação biológica, sexual e reprodutora que se inicia geralmente entre os dez e os doze anos nas raparigas e entre os doze e os catorze anos nos rapazes. Nela tem lugar o aparecimento dos caracteres sexuais secundários (pêlos, barba, bigode, menstruação, etc.). A adolescência (do latim adolescere, “amadurecer”, “crescer”, “desenvolver-se”), em contrapartida, não se explica pela biologia, mas define-se de forma diferente em cada cultura e varia segundo a história do indivíduo e o meio social em que vive. O começo da adolescência situa-se no início da puberdade, mas não é claro o momento em que termina. Poderíamos dizer que se conclui quando o indivíduo alcança e aceita a sua própria identidade.

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Etapas da adolescência Adolescência inicial (10-13 anos) Nesta fase, o adolescente: — Vive um acentuado crescimento físico e psíquico. — Desperta para o próprio eu e para a intimidade. — Ainda não tem grande consciência daquilo que se está a passar consigo próprio. — Conhece, pela primeira vez, as suas limitações e fraquezas, e sente-se indefeso perante elas. — Experimenta um desequilíbrio nas emoções, que se reflecte na sensibilidade exagerada e na irritabilidade. — Sente que não sintoniza com o mundo dos adultos. — Corre o perigo de se refugiar no isolamento. — Descobre a consciência de pertença a um grupo (companheiros de estudo ou amigos). Adolescência média (13-16 anos) Nesta fase, o adolescente: — Passa do despertar do eu à descoberta consciente da própria intimidade. A introversão tem agora lugar, pois o adolescente precisa de viver dentro de si mesmo. — Sente a necessidade de amar. Costuma ter muitas amizades. Surge o primeiro amor. — É caracterizado pela timidez. Sente medo da opinião alheia, motivado pela desconfiança em si mesmo e nos outros. — Vive um conflito interior, um conflito de personalidade. — Tem atitudes de inconformismo e corre o risco de ter comportamentos negativos e agressivos para com os outros. Adolescência superior (16… anos) Nesta fase, o adolescente: — Começa a compreender-se e a encontrar-se consigo mesmo, e sente-se melhor integrado no mundo em que vive. — Apresenta um significativo progresso na superação da timidez. — É mais sereno na sua conduta e mostra-se menos vulnerável às dificuldades. — Tem maior autodomínio. — Tem capacidade para tomar decisões fortes relativamente ao futuro, aos estudos, à profissão, ao seu projecto de vida. — Estabelece relações mais pessoais e profundas.


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Rapaz

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Mudanças na adolescência Rapariga

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• A hipófise produz substâncias químicas que vão iniciar o processo de crescimento e activar o funcionamento das glândulas sexuais. Estas começam a produzir hormonas que circulam no sangue por todo o corpo. • Desenvolvimento dos testículos.

•C rescimento gradual dos ovários. •D esenvolvimento das glândulas mamárias.

• Maior actividade das glândulas sudoríparas. • Aumento da oleosidade da pele e do cabelo. • Crescimento corporal acelerado com consequente acréscimo de peso e altura. • Aparecimento de pêlos na zona púbica e nas axilas. • Alargamento dos ombros e forte desenvolvimento muscular. • Desenvolvimento da laringe: mudança de voz, que se torna mais grave. • Maior visibilidade da “Maçã-de-Adão”. • Aumento gradual do comprimento do pénis. • Início da produção de espermatozóides. • Primeira ejaculação.

• Alargamento da bacia. • Desenvolvimento dos seios. • Surgimento dos primeiros corrimentos vaginais. • Menstruação. • A maturação sexual está completa quando acontece a primeira menstruação: a menina passa a ser mulher, com possibilidade de engravidar.

• A maturação sexual está completa quando o rapaz produz espermatozóides: torna-se um rapaz com capacidade reprodutiva.

• Surgem súbitas mudanças de humor: a grandes entusiasmos, seguem-se períodos de abatimento. • É a época da amizade pura, das aventuras em grupo. • Irrompem paixões ou pelo herói ou heroína de um romance, ou por uma vedeta da canção, ou por um(a) colega da escola. • É também a época em que todos os adolescentes sonham e reconstroem o mundo à sua maneira, imersos em músicas e mensagens de telemóvel.

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Alguns conselhos Rapaz

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Rapariga

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• Um banho diário é prática saudável. Dar-te-á uma sensação de bem-estar. • A acne pode aparecer, por acção das hormonas, na cara e no pescoço. A higiene da pele e uma alimentação correcta pode evitar o seu agravamento. • O que comes é importante para manteres a saúde. Recusa a fast-food. Come vegetais, saladas, queijo, leite, fruta, peixe, ovos, carne. Bebe muita água. Evita os doces. Diz não às bebidas alcoólicas e às gorduras: são prejudiciais à saúde. • O tabaco é nocivo. Prefere a liberdade da saúde à prisão do tabaco. Não te vicies em nenhuma substância tóxica. • Dorme muito e não deixes de andar ao ar livre. • O teu desenvolvimento pode fazer-te pensar que és capaz de grandes esforços, mas lembra-te que, sobretudo enquanto os músculos não estiverem completamente desenvolvidos, deves tratá-los com cuidado. É normal sentires-te, por vezes, muito cansado; isso é sinal de que o corpo necessita de descanso suplementar.

• A menstruação não é nenhuma doença. O exercício faz-te bem, desde que não seja cansativo. Algumas raparigas têm ligeiras dores de barriga quando estão menstruadas. Se as dores forem muito fortes deves consultar o médico.

• Conversa acerca dos teus problemas e dúvidas e aprende a sentir-te bem contigo próprio. • Se não aceitarmos o corpo e não aprendermos a tirar partido dele, nunca conseguiremos ser verdadeiramente felizes. • Os grandes sábios, os heróis, os benfeitores da humanidade foram um dia adolescentes ardentes, entusiastas, generosos... e, como tu, impacientes; como tu, revoltados pela injustiça. E ansiosos pelo futuro!

SABER

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Representação do masculino e do feminino Na mitologia greco-romana, o círculo com a cruz representa o espelho da deusa Afrodite/Vénus. O círculo com a flecha dirigida para o alto representa o escudo e a lança do deus Ares/Marte. É essa a razão pela qual esses símbolos representam, respectivamente, o sexo feminino e o sexo masculino.


unidade 3 O desporto, uma questão de equilíbrio A actividade desportiva liberta-te das tensões e contribui para uma harmonia física e psíquica. Oferece-te ainda: • Uma melhor imagem de ti — O fortalecimento e a elasticidade dos músculos contribuem para te reconciliares com a tua imagem corporal, que tanto te preocupa. • Pertença a um grupo — Desenvolves o espírito de camaradagem e cresces na responsabilidade individual (cumprimento de regras) tendo em vista o sucesso colectivo. • Aquisição de novos modelos adultos — Conheces novos adultos para além dos pais e dos professores e adquires novos vínculos afectivos. • Controlo da agressividade — Descobres que o adversário é um companheiro e amigo teu e não um inimigo. • Melhora o teu estado de saúde — Na interacção com os outros e no contacto com a natureza, todo o teu corpo é estimulado, sentes um bem-estar físico que se reflecte na actividade intelectual e emocional (mens sana in corpore sano — mente sã em corpo são).

Dúvidas e angústias na adolescência A maturação sexual provoca alterações físicas e psicológicas em ambos os sexos. Essas alterações, normais e naturais, podem, no entanto, criar algumas dificuldades.

A nível físico Pode haver uma desarmonia corporal, ou seja, o corpo pode não estar ainda bem «assumido» — olha-se ao espelho e quase que se interroga «quem é aquela pessoa?». Quantas vezes os adolescentes parecem desajeitados, sendo muito comuns os encontrões aos móveis e às portas. Há uma desarmonia entre o que se é e o que se pensa ser. Isso pode provocar, como é natural, alguma ansiedade quando se vêem os colegas a fugir em tamanho, em maturação, em interesses, na capacidade de atrair ou de ser atraído. Não são raros os casos de atraso de maturação física, que leva alguns jovens a crescer bastante mais tarde do que a média. Às vezes ficamos desiludidos com o nosso corpo, dado que somos constantemente influenciados pelos meios de comunicação social com imagens e silhuetas de caras lindas e corpos perfeitos que nos levam a questionar: Por que é que eu não sou assim? Mas é essencial não confundirmos as imagens que nos oferecem com a realidade. As pessoas não são perfeitas!

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A nível afectivo Pode haver desencontros afectivos que se relacionam com a capacidade de atrair e de ser atraído, de amar e ser amado. Um desgosto de amor, por um(a) colega que não se sente atraído(a) por nós tende a diminuir a nossa auto-estima (seremos dignos do amor dos outros?); por vezes, os amigos ou a família fazem observações a esse respeito que ainda pioram a situação, podendo provocar problemas emocionais e relacionais.

Podem surgir dúvidas relativas à capacidade de desempenho das funções físicas, orgânicas, psicológicas e sociais da sexualidade. Ter relações sexuais, amar e ser amado, ser pai ou mãe, ter filhos, etc., são desafios muito importantes que podem ser sentidos como obstáculos quase impossíveis de ultrapassar. É característico da adolescência passar da alegria à tristeza, ou vice-versa, em muito pouco tempo e sem motivo aparente. Uma pequena contrariedade pode afundar o adolescente no mais profundo desespero e levá-lo a fechar-se em si mesmo. Neste caso, emparedado no seu quarto, lerá, ouvirá música ou passará horas seguidas sem mostrar interesse por nada nem por ninguém. Este comportamento é consequência do conflito interno permanente que o adolescente mantém na procura de si próprio, na diferenciação em relação aos outros e na procura de um lugar num mundo hostil e alheio aos seus problemas.


unidade 3 Esta falta de estabilidade corresponde à ansiedade e eventualmente depressão que acompanham o adolescente no seu mundo interior, no qual estão em jogo, por um lado, a dor pela infância perdida e, por outro, a dificuldade em satisfazer os seus desejos. Estar triste é um direito. Um direito tão natural como estar alegre. Umas vezes, vemos o mundo, os outros ou nós próprios de um modo mais optimista; outras, mais pessimista. Muitos sentimentos não têm uma explicação satisfatória, mas é importante reflectir sobre as suas eventuais causas. Sobretudo, se a tristeza se mantiver durante muito tempo, é preciso pedir ajuda.

A nível social Há o perigo de o adolescente adquirir o hábito de se refugiar em si mesmo, tornando-se ainda mais tímido, não ousando enfrentar o mundo que o rodeia. Isolar-se do seu círculo de amigos e familiares, fugindo da realidade, pode conduzi-lo a reacções de medo ou de agressão. Um adolescente fechado sobre si próprio terá seguramente dificuldades em olhar para o mundo que o rodeia e viver de uma forma confiante, segura e tranquila. Mas nem tudo está perdido. É sempre possível reforçarmos a nossa auto-estima relacionando-nos com pessoas que nos aceitam como somos e, por exemplo, dedicando-nos a actividades onde conseguimos ter sucesso. Face aos obstáculos, às dúvidas e às angústias é fundamental reagir com atitudes positivas; só com diálogo, reflexão, confiança, esperança, coragem, persistência… poderemos ultrapassar os obstáculos e crescer harmoniosamente. Adaptado de R. Carneiro. Enciclopédia dos Pais

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Adolescência Grandes transformações Dúvidas e angústias Desafios

Físicas e fisiológicas

Psico-afectivas

Sociais

Maturação do aparelho reprodutivo Crescimento acelerado

Formação da personalidade Descoberta de novos sentimentos

Amizade Primeiros namoros

Desarmonia no crescimento corporal

Insegurança Tristeza / Timidez Ansiedade Isolamento

Desencontros afectivos Relação difícil com os pais

Aceitação do seu corpo Alimentação cuidada Prática desportiva

Maturidade Opção por valores

Responsabilidade Autonomia Segurança

Reflexão pessoal – Diálogo Aceitação de ajuda


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33 Não há estrelas no céu Não há estrelas no céu a dourar o meu caminho, Por mais amigos que tenha sinto-me sempre sozinho. De que vale ter a chave de casa para entrar, Ter uma nota no bolso pr’a cigarros e bilhar? A primavera da vida é bonita de viver, Tão depressa o sol brilha como a seguir está a chover. Para mim hoje é Janeiro, está um frio de rachar, Parece que o mundo inteiro se uniu pr’a me tramar! Passo horas no café, sem saber para onde ir, Tudo à volta é tão feio, só me apetece fugir. Vejo-me à noite ao espelho, o corpo sempre a mudar, De manhã ouço o conselho que o velho tem pr’a me dar. Vou por aí às escondidas, a espreitar às janelas, Perdido nas avenidas e achado nas vielas. Mãe, o meu primeiro amor foi um trapézio sem rede, Sai da frente por favor, estou entre a espada e a parede. Não vês como isto é duro, ser jovem não é um posto, Ter de encarar o futuro com borbulhas no rosto. Porque é que tudo é incerto, não pode ser sempre assim, Se não fosse o Rock and Roll, o que seria de mim? Rui Veloso. 1990.

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A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE Rituais de passagem As alterações próprias da adolescência são universais, pois são vividas por todos os rapazes e raparigas em qualquer parte do mundo. Em muitas culturas a fase da adolescência é encarada como etapa de preparação para o futuro e para o seu papel no mundo dos adultos. Essa passagem é facilitada pela organização de uma série de rituais em que os adolescentes se confrontam com situações inesperadas, no sentido de porem à prova a sua coragem, a sua astúcia, os seus limites. Os rituais de iniciação são cerimónias (actos, provas) que, solenemente e aos olhos de todos, introduzem o adolescente na vida comunitária, social e simbólica do grupo, da comunidade. Ele passará a ser adulto, mas antes terá de mostrar a sua coragem, perseverança e sentido de responsabilidade.

SABER

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Antigos ritos de passagem Em tempos, os ritos de passagem consistiam, para o rapaz, na aprendizagem do uso das armas e no conhecimento dos segredos do grupo. As raparigas eram ensinadas a realizar trabalhos domésticos, relacionados também com o nascimento e a educação dos filhos. No fim destes processos e rituais, o rapaz e a rapariga passavam, em geral, a exibir um sinal exterior da sua nova condição social, do estatuto de adulto: o uso da toga, na antiga Roma; a perfuração das cartilagens do nariz e das orelhas para a ostentação de adornos, em vários povos de África e da Ásia. Em algumas culturas, a primeira menstruação (menarca) é celebrada com uma festa que marca o acesso da jovem ao mundo dos adultos. No mundo islâmico, marca o momento em que a rapariga passa a usar o véu.


unidade 3 Na sociedade ocidental dos nossos dias, os ritos de iniciação ou não existem ou não são tão evidentes como noutras sociedades. Mas todo o adolescente quer, à sua maneira, fazer este processo de afirmação do seu ser adulto. Fá-lo normalmente através de infracções às regras estabelecidas ou pelo menos através da assunção de outros papéis: começar a fumar, querer conduzir uma moto ou um carro, sair à noite com os amigos, seduzir e deixar-se seduzir... são, na sua opinião, uma prova de que se tornou adulto. Contudo, alguns destes rituais podem ser perigosos; há que avaliar se vale mesmo a pena experimentar tudo! Estimulado pela necessidade de agradar, o adolescente parte à conquista de um estilo original voltando toda a sua atenção para as roupas, para o cabelo e para objectos que possam realçar a sua personalidade (telemóvel, tatuagem, piercing...). Os adolescentes, usam, por vezes, uma linguagem secreta, sendo uma das formas que encontram de excluírem o adulto e de se sentirem seres à parte, superiores; isso dá-lhes um ar de conspiradores, satisfaz as suas fantasias assim como o gosto pelo mistério.

A procura da autonomia Nesta etapa, o adolescente prepara-se para viver com maior plenitude e autonomia. Até há pouco tempo, o rapaz e a rapariga dependiam em tudo ou quase tudo dos pais e ei-los que, agora, começam a pensar e a agir de forma pessoal e afirmativa. O adolescente sabe que ninguém pode tomar o seu lugar na procura de um caminho pessoal. Por isso esforça-se, engana-se, volta a tentar, na certeza de que é único e inimitável e, como tal, destinado a viver este período de forma original. Nenhum livro pode ensinar esse caminho que cada um deve percorrer (embora possa ajudar), realizando o milagre de se sentir com os outros e igual aos outros e, ao mesmo tempo, imaginando e projectando um caminho unicamente seu.

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Numa espécie de furacão, que parece desordenar-lhe todo o ser, vai descobrindo o seu eu, isto é, irrompe a vontade de se afirmar a respeito de tudo e de todos. Para tornar mais evidente a sua aspiração a uma maior independência do pensar e do agir, o adolescente é levado a uma posição crítica e contestatária nas relações com os pais e professores, opondo-se também, de modo mais ou menos implacável, a tudo quanto lhe é imposto autoritariamente.

Ninguém me compreende! Não percebo o que se passa à minha volta. Há pouco tempo tudo parecia tão arrumadinho. Agora, o mundo está quase irreconhecível. Só me apetece contestar as ordens, os comportamentos e as afirmações dos adultos. Mas de cada vez que reivindico o direito a ter opinião e a dirigir a minha vida, cai sobre mim uma chuva de protestos. Ninguém me leva a sério. Nalgumas circunstâncias, dizem que ainda sou uma criança e que portanto... Noutras alturas, já não sou nenhuma criança, motivo pelo qual esperam que me comporte de uma determinada maneira. Ontem fui convidada por um grupo de amigos para sair. Quando me aprontava para o fazer, a minha mãe perguntou-me onde ia. Não tive coragem de lhe mentir. A resposta foi um não redondo. Os motivos são os do costume: “Tens muito que estudar, ainda não fizeste os trabalhos de casa, é preciso ajudar nas tarefas da casa, não tens idade para andar por aí, já ao cair da noite...” Respondi que já tinha idade para saber o que fazia e que os pais de todos os meus amigos os deixam sair à noite; além disso, que mal poderia acontecer-me, uma vez que estou integrada num grupo? Mas a minha mãe não foi sensível aos meus argumentos: “O que acontece com os filhos dos outros é lá com eles; nessa idade (demasiado criança ainda!) não consegues defender-te, nem tens autonomia suficiente para fazeres face aos problemas que possam surgir e para tomar decisões acertadas e seguras”. Já não posso mais ouvir falar em segurança! Isto agora é uma espécie de paranóia. Todos querem estar seguros. Vêem-se perigos em todo o lado. É certo que acontecem coisas estranhas: pessoas são assaltadas, crianças e jovens são raptados, etc. Mas


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se olharmos só para esse lado das coisas, o que é que nos resta fazer? Ficamos simplesmente de mãos e pés atados, sem podermos viver a vida. Por vezes, para conseguir levar a água ao meu moinho, procuro ver de que lado está o vento favorável. Primeiro sondo o meu pai, mas, se a resposta não for do meu agrado, pergunto à minha mãe... No momento em que se apercebem do meu jogo, tenho de os ouvir! Até me põem de castigo, como se eu fosse uma criança. Eu sei muito bem o que é bom para mim; não preciso que eles mo digam! É verdade que às vezes estou insegura e que preciso de ser ajudada a tomar as decisões mais certas, mas será que não posso ser eu a escolher o momento em que quero ser ajudada? Ontem, zangaram-se comigo só porque eu emiti a minha opinião sobre um assunto escaldante: “Nem queremos acreditar no que estamos a ouvir! Será possível?” Claro que é possível eu pensar pela minha cabeça. Mas eles acharam que eu estava a passar das marcas e acusaram-me de ter dito o que pensava num tom agressivo, sem educação. A verdade é que nem sempre consigo controlar os meus nervos. Quando é que este pesadelo passa? Queria tanto que me compreendessem! Diário de uma adolescente

Neste gosto pela desobediência e pela rebelião, nesta radical recusa de ouvir razões e conselhos, que tanto irrita os adultos, há a expressão e o desejo de autonomia e afirmação de personalidade. Mas, ao mesmo tempo que se distancia dos adultos, o adolescente sente que precisa deles para se orientar na multiplicidade, por vezes caótica, de pensamentos e sentimentos que a adolescência lhe traz. Ele precisa dos adultos, pelo menos para se lhes opor. Sem pontos de referência, o adolescente terá muita dificuldade em construir a sua própria autonomia.

Testemunho de um pai Se os transportarmos sempre às costas, eles não aprenderão a andar; se os obrigarmos a seguir o nosso trajecto, não aprenderão a escolher; se não os deixarmos explorar, não aprenderão a resolver problemas e se não os acompanharmos, ainda que um pouco à distância, poderemos ser cúmplices dos seus fracassos.

No percurso para a vida adulta o rapaz e a rapariga procuram identificar-se com modelos privilegiados. Durante a infância, o rapaz tentava comportar-se como um homem, assumindo gestos e atitudes do pai e a rapariga imitava a mãe.

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Na adolescência, o espírito crítico desperta. O mundo exterior é subitamente descoberto em toda a sua grandeza e os pais deixam de ser considerados os «maiores» e os «melhores». A questão essencial em jogo é a de como ser diferente do outro, como assumir a sua própria identidade. A diferenciação do eu em relação a tudo o resto permanecerá como a pedra basilar da construção da identidade, que levará depois ao entendimento do papel de cada um na sociedade. O jovem abandona momentaneamente as identificações anteriores, o que lhe deixa um vazio profundo, sente-se desamparado e, tendo em vista o refazer de uma nova coesão, vai procurar novos modelos de identificação. Na adolescência podemos falar de dois momentos: — O primeiro caracteriza-se pela revolta e consequente ofensiva geral contra o meio familiar e a autoridade, mas esta ofensiva e revolta é descoordenada e incoerente. É uma fase anárquica em que os jovens tentam quebrar os laços que os ligam à infância e procuram afirmar-se na negação dos valores e das ideias recebidas: são provocadores, ruidosos, agressivos e inconformistas; — No segundo momento, o adolescente faz uma introspecção profunda e, reflectindo sobre si mesmo, organiza todas as vivências do período anterior.

Testemunho de uma mãe Como conviver com alguém que amamos tanto, mas que nos põe tão loucos? Sem dúvida que os adolescentes são seres incompreensíveis, com acessos súbitos de revolta, com reivindicações insustentáveis, com medos infundados, com uma completa ausência de capacidade para raciocinar de forma lógica e coerente. Mas, no meio da zanga, da angústia e dos trovões, como não nos enternecermos com a sua ingenuidade, generosidade, fragilidade, energia, criatividade e esperança?


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Testemunho de uma adolescente Como viver com alguém que nos abafa, mas sem o qual não podemos passar? Sem dúvida que os pais são seres antiquados, irrecuperáveis, incompreensíveis, mas ainda são eles que detêm o poder e, apesar de todos os seus defeitos, devem ter algumas competências secretas e misteriosas para conseguirem sobreviver no mundo sem sentido que criaram. Além disso, sabe sempre bem ter alguém a quem humilhar pela sua mesquinhez (quando não querem apoiar os nossos maiores projectos), pela sua ignorância (quando não reconhecem as mais elementares bandas musicais), pela sua crueldade desnecessária (quando não nos deixam sair à noite), estando sempre certos de que a sua maior qualidade é o amor idiota que sentem por nós, apesar dos maus tratos que lhes infligimos… R. Carneiro. Enciclopédia dos Pais

PAIS

ADOLESCENTES

Necessidade de afirmação pessoal e autonomia

Necessidade de educar e proteger

Conflito de interesses

Falta de diálogo

Submissão à vontade dos pais

Revolta Desobediência

Diálogo Responsabilidade

Equilíbrio Liberdade Responsabilidade

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unidade 3 Mas o conflito, no plano familiar, não acontece apenas com os pais, também sucede com os irmãos.

Uma lágrima movediça, fazendo caretas à vida O Carlos tem já 13 anos. Considera-se muito mais velho do que o seu irmão Pedro, que tem apenas 9 anos. A relação entre os dois não é sempre a melhor. O Pedro quer fazer tudo o que o Carlos faz, pois considera-o o seu herói; mas isso é causador de alguns conflitos. Os pais têm de intervir muitas vezes, umas dando razão a um, outras dando razão a outro. No entanto, o Carlos sente-se um pouco mal com a situação. Por um lado, gosta muito do irmão, embora raramente o confesse; por outro, acha que ele se intromete nos seus assuntos e que os pais tomam demasiadas vezes o seu partido. No fundo, sente que o carinho dos pais, outrora direccionado só para ele, tem de ser partilhado com o irmão. Por ser o mais pequeno, o Pedro parece monopolizar uma boa dose do afecto dos pais, ao contrário do que acontece com o Carlos. Há uma semana, o Carlos estava a jogar no computador. O irmão quis jogar o mesmo jogo. Apesar de ter um computador no seu quarto, o Pedro não o quer usar; acha sempre que as coisas do irmão são melhores do que as suas. O conflito incendiou-se quando o Carlos lhe recusou o acesso ao jogo. O Pedro irritou-se com ele e correu a chorar para a mãe. – Queixinhas – chamou-lhe o Carlos. A mãe teve de apaziguar as hostes, dizendo ao Carlos que jogasse primeiro mas que deixasse o irmão jogar logo que acabasse, e fixou-lhe um prazo. No entanto, o Pedro não se calava um bocadinho: – Já é hora; tens de me deixar jogar; não ouviste a mãe? – É mesmo preciso ter muita paciência! – pensou o Carlos. De vez em quando berra com ele. Mas, pouco tempo depois, sente remorsos. A sua consciência acusa-o de tratar mal o seu irmão. Sendo mais velho, espera-se que o proteja e seja o garante da sua felicidade. No seu interior gera-se um conflito: por um lado tem o direito de usufruir do seu tempo e do seu espaço, sem ser importunado por ninguém; por outro lado, sente que também deve ser solidário com o irmão e partilhar as suas coisas com ele. Quando o irmão fica doente, sente-se mal. Nesses momentos, porque gosta muito dele, acorrem-lhe à memória as situações em que se havia zangado com ele, ou em que tinha açambarcado o computador e a televisão, não permitindo que o irmão escolhesse o jogo ou o programa televisivo de que mais gostava. Como era mais velho, tinha conseguido levar a sua avante. Outra estratégia que usava para convencer o irmão era falar-lhe mansamente, ao coração, para o persuadir a comprar os jogos de que ele gostava, ou a comprar os filmes que mais apreciava. Mas agora, tendo o irmão já 9 anos, tudo era mais difícil! O Pedro queria também afirmar-se e a coisa não ia lá com falinhas mansas. Por isso, os pais têm de resolver conflitos com muito mais frequência e são chamados a tomar decisões sobre as compras a fazer. Para resolver a contenda, determinam que o dinheiro de cada um deve ser usado para comprar o que cada um deseja mais. O Carlos fica furioso, porque, desta maneira, não consegue comprar o que quer, visto que o preço é demasiado alto e o dinheiro do irmão já não pode ser usado para esse fim. A somar a esta dificuldade está ainda o facto de os pais os não deixarem comprar


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o que pretendem, sempre que têm dinheiro. Só se compra na altura certa. Os filhos têm de aprender a esperar, a não gastar imediatamente o dinheiro que têm e a não satisfazer prontamente os seus desejos. Desenvolvem, assim, a paciência e a capacidade para controlar os seus impulsos. No entanto, isso não lhes agrada. O Pedro fica furioso quando o irmão sai com os seus amigos e ele tem de ficar em casa. Por que razão não poderia ele sair também? – Ainda não é tempo – garantem os pais. Mas quando chega o tempo? Tudo parece correr tão lentamente que até aborrece! Os pais dizem-lhes que é preciso aprender a saborear o tempo presente e a não viver constantemente projectados no futuro, como se o futuro lhes trouxesse a felicidade toda. Cada dia tem os seus próprios ingredientes que o tornam interessante; mas só é possível apreciá-lo se estivermos dispostos a isso e se valorizarmos o que temos já e, principalmente, o que somos, bem como a relação que podemos estabelecer com os outros. Contudo, aos seus ouvidos, esta conversa só é válida para os “velhos”. Hoje, o Carlos vai para a rua jogar com o Pedro. Esses momentos são a felicidade do Pedro. Mas depois de jogarem algum tempo, logo se desentendem. O Pedro acha que o irmão quer sempre ganhar e nunca o deixa jogar em condições; o Carlos acha que o irmão não sabe fazer nada de jeito. E assim voltam para casa, com o cenho carregado; e, no olho do Pedro, uma lágrima movediça, fazendo caretas à vida.

Identidade e risco A imprevisibilidade no processo de crescimento coloca-nos perante o medo e o desejo: medo do desconhecido e desejo de realização. Há pessoas que arriscam muito pouco, protegendo-se, assim, das incertezas e dos imprevistos, mas reduzindo o seu mundo a um espaço mínimo e atrofiado. Por outro lado, existem pessoas que, vivendo em permanente situação de risco, estão sempre numa tal instabilidade que no seu mundo, quase sem fronteiras, se sentem vazias ou perdidas.

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O risco faz parte do crescimento. Tem como função testar os limites, reajustar fronteiras na construção, demarcação e afirmação da identidade. A adolescência é, por definição, a espantosa oportunidade de se afirmarem escolhas, de se realizarem fantasias, de se ensaiarem modalidades, de se explorarem realidades. A sabedoria do adolescente está no facto de saber viver no equilíbrio entre o risco necessário para a construção do futuro e o risco perigoso e inútil.

O equilíbrio entre o eu e os outros Apesar da extrema importância que os outros têm nas nossas vidas, os contornos da identidade vão-se estabelecendo no sentido da autonomia e da capacidade de estar só, isto é, de se estar em companhia de si mesmo. Mas o bem-estar individual passa naturalmente pela capacidade de se estar com os outros. Durante a adolescência, aos outros é atribuído um papel muito particular na construção do autoconhecimento. Na relação com os seus pais, o adolescente tende a preservar cada vez mais a sua intimidade: nem tudo lhes é contado; muitas vezes, os silêncios substituem as antigas conversas no espaço familiar; os amigos poderão ser agora os novos confidentes; os diários assumem a função do outro que não recrimina, não julga, apenas ouve. Também o território é delimitado, criando espaços interditos aos pais, dentro e fora de casa: são as portas (do quarto e da casa de banho) subitamente fechadas, as horas ao telemóvel com os amigos, as conversas no messenger…

Estou triste! Estou triste, há algo dentro de mim que me deprime, embora eu não saiba o quê. A minha mãe diz-me que eu estou diferente, rebelde, que não sabe como falar comigo. Os meus amigos são os únicos que me compreendem, embora às vezes prefira estar só. Cada vez tenho mais necessidade de estar só, talvez por isso esteja triste. Um adolescente


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Deixares de ser criança não é apenas veres-te maior em estatura e sexualmente desenvolvido. É também e simultaneamente o desejo e necessidade que sentes de mudar, de te desligares dos comportamentos e dos modos de relacionamento vividos ao longo da infância. É aqui que te sentes confuso e perdido e até incompreendido. Vês-te e és visto como crescido fisicamente, mas, por vezes, tratado como criança. Como sabes, «ninguém é uma ilha» e sem as outras pessoas não é possível a construção e afirmação da identidade.

A conquista da aceitação social A necessidade de pertença e a vontade de se ser aceite levam frequentemente à utilização de várias estratégias tendo em vista a conquista de um lugar entre os pares. Seduzir, hostilizar, mentir, submeter-se, mostrar disponibilidade, oferecer objectos impensáveis, em suma, dar uma atenção especial aos outros é a forma que o adolescente encontra de se tornar imprescindível. No seu quotidiano, o adolescente apercebe-se de que algo que disse ou fez agrada ao parceiro ou ao interlocutor por quem nutre sentimentos de estima, de respeito ou de amizade. Esta situação pode dar origem à necessidade de procurar uma forma de estar que não é genuína, que não é a sua, fazendo-se passar por aquilo que não se é, contribuindo para a construção de uma personagem irreal. Com efeito, não raras vezes, na ânsia de ser aceite, o adolescente age de forma fictícia, arriscando-se a entrar num jogo, cujas regras não domina; torna-se mais frágil e inseguro, origina situações de sofrimento e dor. Para alguns esse desejo de ser aceite pelos outros pode tornar-se uma obsessão doentia, usando estratégias que podem pôr em causa a sua integridade física e psicológica (por exemplo, quando se pretende atingir um ideal de beleza, quando se mente compulsivamente para se afirmar). Inúmeras jovens esforçam-se por serem magras, recorrendo aos mais diversos métodos para conseguirem esse intuito. Sem consultarem ninguém com conhecimentos específicos, inventam ou copiam “receitas” de emagrecimento que podem trazer consequências graves para a saúde física e mental. Alguns rapazes, por sua vez, em nome de um corpo saudável e bem constituído, para além de práticas desportivas por vezes demasiado violentas, ingerem substâncias proibidas para tornarem o seu físico “desejável”.

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AMOR E SEXUALIDADE A sexualidade humana é uma das dimensões mais importantes do ser humano e compreende várias vertentes — afectos, comunicação, companhia, partilha, reprodução, amizade… O ser humano, desde o primeiro momento de vida, é um ser dotado de sexualidade e vive-a até ao fim da sua existência. Não, evidentemente, do mesmo modo, nem com os mesmos ritmos.

Desejo e atracção É nesta fase da vida que começamos a descobrir o outro diferente de nós, e a compreender as diferenças significativas entre o género feminino e masculino. Na verdade, conhecermos e compreendermos o outro sexo é um grande desafio para nós. Por isso, relacionamo-nos com pessoas do outro sexo cada vez com mais seriedade; a princípio com uma certa vergonha dessa aproximação, mas depois com mais gosto por estarmos na companhia de quem é diferente de nós. Sentimo-nos atraídos pelo sexo oposto: a primeira conversa a sós, a troca de sms’s, o nervosismo de cada vez que nos vemos, o desabafo com os colegas… enfim, começamos a gostar de outra pessoa!


unidade 3 A beleza (e há tantos conceitos diferentes de beleza), a inteligência, a ternura, a simpatia, o humor, o feitio, a elegância (no corpo e na maneira de ser), são alguns entre tantos ingredientes que provocam a atracção e o desejo de conquistar o outro.

Depois deste primeiro momento, segue-se outra fase: a da confirmação da escolha, que terá de passar por um melhor conhecimento dos pontos fracos e fortes da pessoa amada. Mas o pior é que a paixão e o desejo de conquista, pela sua natureza transitória, faz, muitas vezes, perder a noção crítica e a lucidez. Uma pessoa apaixonada não tem os pés na terra, para ela só o outro existe; o mundo e as outras pessoas dissipam-se perante a única prioridade da vida. Também começamos a descobrir que há coisas que nos magoam, e que existem alguns riscos quando partilhamos os nossos segredos, os nossos sonhos e esperanças com outras pessoas. É imprescindível que não nos deixemos aprisionar pelas opções ou vontades da outra pessoa. Apesar de gostarmos muito dela, é urgente que pensemos pela nossa cabeça e nos aconselhemos com alguém que merece crédito. Não podemos deixar que ninguém nos obrigue a fazer aquilo que não queremos ou que sabemos que nos vai fazer mal. Porque se essa pessoa de quem gostamos muito nos pede algo que nós não queremos fazer, isso só significa que não gosta de nós como nós gostamos dela. No amor, quando um está contente, o outro partilha com ele essa alegria; o mesmo acontece quando se está triste, nos olhos do outro vemos espelhada a nossa tristeza. Amar é não pensar, em primeiro lugar, na própria felicidade, mas em como fazer feliz o outro, porque só na sua felicidade posso encontrar a minha.

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unidade 3 O namoro não é uma brincadeira. É o momento em que nos empenhamos na relação afectiva com alguém que amamos. De facto, o que está em jogo é a relação com outra pessoa, por isso, transformar o namoro num jogo sem sentido é diminuirmo-nos a nós mesmos e diminuirmos o outro. Mas o amor não é algo que, uma vez adquirido e sentido, seja uma conquista para sempre. É, pelo contrário, algo frágil, que, como uma planta, precisa de ser regado e cuidado. Descurarmos a relação com a pessoa que amamos, é condenar essa relação ao fracasso. Isso exige uma atitude de descentração (deixarmos de viver centrados em nós mesmos), o que não é nada fácil. A nossa tendência natural é pensarmos e agirmos em benefício pessoal, independentemente dos interesses, necessidades e sentimentos dos outros. Mas vale a pena fazê-lo, porque o amor compensa. Se procurarmos aquilo que faz bem ao outro, então começamos a viver o amor. Amar alguém não significa que deixamos de passar por dificuldades; a nossa vida não passa, como por um toque de magia, a ser uma história encantada. Mas a companhia amorosa faz-nos suportar melhor as agruras da vida, os sofrimentos inevitáveis, os momentos difíceis, não permitindo que nos deixemos esmagar pelo peso das circunstâncias; é o amor que sentimos pelo outro que nos empurra para a felicidade.

ENAMORAMENTO

Capacidade de amar e deixar-se amar

Paixão Encantamento

Não é correspondido

Infelicidade Sofrimento Desilusão Baixa auto-estima

É correspondido

Relação impossível

Relação estável

Felicidade


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34 Os jovens são como laranjas Era uma vez uma laranjeira, que um dia produziu flores, que um dia murcharam… Um homem que não entendia de laranjeiras disse que ela não daria coisa alguma. Mas o homem que entendia de laranjeiras ficou tranquilo e disse que agora é que começariam a nascer os frutos.

Quando chegou a época, o homem que não entendia de laranjas, disse que ela já devia ser colhida. — Tem o tamanho físico de uma laranja, parece uma laranja, não vai crescer muito mais que isso; daqui por diante ela só vai envelhecer; logo, vamos colher esta laranja enquanto é nova.

E os frutos começaram a nascer. O homem que entendia de laranjas pôs-se a observar um dos frutos que nasciam. E o fruto que tinha sido florzinha que murchara, tinha um centímetro. Era pequeno e imaturo. Cresceu e continuou pequeno e imaturo. Cresceu um pouco mais e tornou-se médio e imaturo. Cresceu mais ainda e tornou-se grande e imaturo.

Mas o homem que entendia de laranjas, contestou e disse: — O senhor não entende nada sobre a vida! Ela parece uma laranja, tem tamanho físico de uma laranja, não vai crescer mais do que isso,mas ainda não é laranja: ELA AINDA NÃO ESTÁ MADURA NEM DOCE POR DENTRO!!! Deixe que ela receba a luz do alto, sugue a seiva da terra com mais intensidade do que antes, e transforme o seu íntimo em substância doce. Então começará a ficar dourada por fora e silenciosamente começará a dizer que amadureceu. Adaptado de Pe Zézinho

O amor humaniza a sexualidade As relações sexuais e a erotização são parte integrante da sexualidade, mas é demasiadamente redutor confundir sexualidade com relações sexuais. Somos um corpo sexuado, preparado para responder a estímulos de natureza afectiva e sexual e para procurar o prazer e o bem-estar emocional. A sexualidade, como dimensão humana e relacional, é um

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elemento essencial na formação da identidade global, da auto-estima e do relacionamento com os outros. A sexualidade, que na adolescência se manifesta de forma brusca e acelerada, é determinada pelo processo contínuo de socialização de cada pessoa, através de aprendizagens e interacções realizadas em todos os círculos de vida a que pertencemos: contexto familiar, grupo de pares, escola, igreja e outros. É a assunção de valores éticos que nos permite agir por nós próprios, assumir opções conscientes e responsáveis, reconhecendo na sexualidade uma fonte de vida e de amor para as relações interpessoais e para a realização pessoal. Viver a sua sexualidade de forma autêntica é, do ponto de vista cristão, vivê-la a partir do amor como doação de si mesmo ao outro; sem esta perspectiva, a sexualidade fica desvirtuada. O que se apresenta a seguir são duas posições extremas. Na realidade, as situações situam-se muitas vezes a meio caminho entre estas duas posições.


unidade 3 Sexualidade sem amor

Sexualidade com amor

• Simples prazer físico egocêntrico sem atender ao bem-estar do outro.

• O bem-estar da pessoa que se ama está em primeiro lugar, sem negar o próprio bem-estar.

• Força incontrolável que se exerce quer o outro queira, quer não (violação...)

• Capacidade de auto-controlo para corresponder aos interesses daquele que se ama.

• Violência sobre os mais fracos (pedofilia) que revela uma profunda imaturidade.

• Relação entre adultos que exercem a sua liberdade.

• Comercialização da sexualidade (prostituição).

• A sexualidade é vista como uma dádiva ao outro, um encontro que não se vende, nem se compra.

• Possessão do outro como um bem próprio (ciúme extremo).

• O outro é visto como uma liberdade, uma pessoa com dignidade e valor que não é pertença de ninguém.

•O bsessão que transforma a vida numa procura de prazer sexual.

• A relação sexual não é a única forma de encontrar realização: o diálogo, o afecto, a atenção ao outro... são ingredientes igualmente importantes. A vida não se esgota no prazer sexual.

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Integração social Mas a sexualidade não se reduz à relação amorosa entre casais. Também se manifesta no afecto e na amizade que nutrimos pelos outros. A sexualidade orienta o ser humano para os outros, para a relação de pertença a grupos. Desde que nasce até à morte, o ser humano vive em grupo: na família, na escola, no desporto, com os amigos. Esta dimensão torna-se essencial para a definição da própria identidade, que é ao mesmo tempo individual e social. O grupo familiar constitui o primeiro agregado onde se desenvolve o sentimento de pertença. Só a partir desta primeira experiência, em que se adquirem os alicerces para as futuras relações, o adolescente se aventurará mais tarde a integrar-se no grupo do bairro, dos colegas de escola, do desporto, da Igreja... As primeiras e mais profundas raízes do indivíduo estão ancoradas no grupo familiar, permitindo, deste modo, a formação de sentimentos positivos face a si próprio e de ligações afectivas com os outros. O adolescente sente necessidade de se juntar com os seus pares e constituir grupos ou integrar outros já organizados. Encontra neles a possibilidade de concretizar aspirações comuns. No grupo assume novas atitudes, aprende uma nova linguagem, adquire um novo modo de pensar e sentir e empenha-se em novas acções e experiências. Muitas vezes o chefe de grupo ou outro elemento mais velho é tomado como modelo, pois encarna os sonhos e qualidades que o adolescente desejava ter. A pertença ao grupo de pares possibilita-lhe sentir-se membro de uma cultura da sua idade e manter relações estáveis que conduzem a uma convergência de atitudes, opiniões, preocupações e inquietações que não são as da infância, mas que também não são as dos adultos.


unidade 3 Um grupo de pares caracteriza-se por ter as suas próprias modas e hábitos, o seu estilo de vida, as suas prioridades; por ter interesses e preocupações cuja partilha é importante, porque ajuda na construção individual de todo um sistema de valores e princípios, em que vão assentar as novas relações interpessoais da idade adulta. O adolescente reivindica originalidade e independência, no entanto, sem se aperceber, pode deixar-se aprisionar por um novo conformismo em relação às ideias, atitudes e promessas impostas pelo grupo em que se quer inserir. Por isso, é essencial que desenvolva a sua autonomia frente aos outros, não apenas em relação aos pais e outras autoridades, mas também aos membros dos grupos a que pertence. Saber dizer sim, quando deve ser dito, e não quando é necessário, é característica de quem tem uma personalidade madura. Na adolescência, surgem os confidentes e os amigos íntimos a quem se revelam os pensamentos, os desejos, as emoções, as dúvidas e apreensões. Muitas vezes imitam-se os modos, as qualidades e os defeitos. “O amigo é como um outro eu que ajuda a conhecer-me melhor.” A afectividade é a carga emotiva que dinamiza qualquer relação de amizade sincera; é aquilo que nos permite viver e compreender a felicidade. Os momentos da nossa vida que melhor recordamos, aliás, que não somos capazes de esquecer, são os momentos felizes. Ora, esses momentos felizes só o são porque foram adornados com instantes de positiva união, com verdadeiros gestos de afecto: um abraço, um beijo, uma carícia, um olhar cheio de ternura, um conselho… Estes momentos afectivos têm um significado especial nos períodos mais difíceis da nossa vida, quando nos sentimos mais tristes, mais sozinhos… porque é nesses momentos que, de facto, aparecem os verdadeiros amigos, aquelas pessoas que gostam de nós incondicionalmente, e nos dão a mão, nos ajudam a erguermo-nos e a seguir em frente. Só fazendo a experiência da afectividade seremos capazes de viver cada momento da nossa vida com ousadia, com dedicação, com uma vontade enorme de vencer, de ultrapassar todos os obstáculos! A presença dos outros na nossa vida é essencial.

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35 Ditos sobre a amizade • O amigo certo reconhece-se nos momentos incertos (Amicus certus in re incerta cernitur). (Cícero, filósofo romano do séc. I a.C.) • Quem encontrou um amigo, descobriu um tesouro. (Sir 6,14) • Nenhum caminho é longo demais, quando um amigo nos acompanha. (Anónimo) • Os nossos amigos conhecem-nos na prosperidade; na adversidade conhecemos os nossos amigos. (Collins) • A amizade é identificação e diferença. (Hermann Hesse) • Não deixes que a má erva cresça no caminho da amizade. (Platão) • Nunca é largo o caminho que conduz à casa de um amigo. (Juvenal) • Não preciso de amigos que mudem quando eu mudo e concordem quando eu concordo. A minha sombra faz isso muito melhor. (Plutarco) • Amizade consiste em esquecer o que se dá e lembrar o que se recebe. (Alexandre Dumas)

36 O essencial é invisível aos olhos — Vai ver outra vez as rosas. Compreenderás que a tua é única no mundo. Quando voltares para me dizer adeus, faço-te presente de um segredo. O principezinho foi ver outra vez as rosas. — Vocês não são nada parecidas com a minha rosa; ainda não são nada, disse-lhes ele. Ninguém vos cativou, nem cativaram ninguém. Vocês são como era a minha raposa. Mas fiz dela minha amiga e agora é única no mundo. As rosas ficaram bastante aborrecidas. — Vocês são belas, mas vazias, disse-lhes ainda o principezinho. Ninguém vai morrer por vocês. É certo que, quanto à minha rosa, qualquer vulgar transeunte julgará que ela se vos assemelha. Mas, sozinha, ela vale mais do que vocês todas juntas, porque foi ela que eu reguei. Porque foi ela que eu pus numa redoma. Porque foi ela que abriguei com um biombo. Porque foi por causa dela que matei as lagartas (excepto duas ou três para as borboletas). Porque foi ela e só ela que ouvi lamentar-se ou gabar-se, ou mesmo, por vezes, calar-se. Porque é a minha rosa. E voltando para junto da raposa: — Adeus, disse ele. — Adeus, disse a raposa. Vou dizer-te o meu segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos. — O essencial é invisível para os olhos, repetiu o principezinho, a fim de se recordar. — Foi o tempo que perdeste com a tua rosa que tornou a tua rosa tão importante. — Foi o tempo que perdi com a minha rosa... repetiu o principezinho, a fim de se recordar. — Os homens esqueceram esta verdade. Mas tu não deves esquecê-la. Ficas para sempre responsável por aquele que cativaste. És responsável pela tua rosa. — Sou responsável pela minha rosa, repetiu o principezinho, a fim de se recordar. Antoine de Saint-Exupéry. O Principezinho


SABER

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Antoine Jean Baptiste Marie Roger Foscolombe de Saint-Exupéry nasceu em Lyon (França) a 29 de Junho de 1900 e morreu a 31 de Julho de 1944, no Mar Mediterrâneo, durante uma missão de reconhecimento; os destroços do avião que pilotava apareceram perto da costa de Marselha mas o seu corpo nunca foi encontrado. Saint-Exupéry foi escritor, desenhador e piloto na Segunda Guerra Mundial. O Principezinho — a sua obra de maior sucesso — é um texto aparentemente simples mas carregado de enorme profundidade e simbolismo; é uma ficção onde, a par da intensa crítica social, se mostra a importância de descobrir o segredo do que é realmente importante na vida.

Os ídolos suscitam admiração e imitação, porque revestidos de uma auréola de mistério e de irrealidade. São cantores, jogadores de futebol, heróis e heroínas do cinema ou da televisão. Por vezes têm uma influência negativa, porque a sua imitação pode levar a comportamentos de risco.

SER HOMEM E SER MULHER: IDENTIDADE E CULTURA Ser homem ou ser mulher não é a mesma coisa! Para além das diferenças anatómicas óbvias, há também aquilo que podemos designar por psicologia feminina e psicologia masculina. Os homens e as mulheres pensam e relacionam-se de modo diferente. Todos nós podemos constatar essas diferenças, embora nem sempre seja fácil explicitá-las pormenorizadamente. Também é verdade que nem todas as mulheres se comportam dentro do “padrão feminino” tal como acontece com os homens. Há, depois, toda uma série de diferenças que a cultura e a educação familiar e escolar foram construindo, algumas das quais têm servido de base para a discriminação da mulher. Desde a antiguidade e em todas as culturas houve (e há) teorias e perspectivas que procuram desvalorizar a mulher em relação ao homem… como se os dois não tivessem a mesma natureza e a mesma dignidade!

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37 L iberdade e igualdade “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”. Art.º 1.º da DUDH

Atribuiu-se à mulher um papel menor na sociedade reduzindo-se a sua participação ao âmbito da casa e da família, assumindo exclusivamente (ou quase) a função de mãe e esposa. As mulheres tinham menos acesso à educação e à vida pública e política e a sua existência estava completamente dependente do homem, fosse ele o pai, o marido, o irmão, o tio. Esta perspectiva de pensamento conduziu no passado, e ainda hoje, a generalizações (estereótipos) sobre o género feminino que, muitas vezes, serviram de suporte a atitudes negativas (preconceitos) e discriminação sobre as mulheres. Actualmente há uma consciência quase universal de que o ser humano — masculino e feminino — é dotado da mesma dignidade pessoal, sendo, por isso, livre de escolher o seu papel social e profissional. A afirmação da mesma dignidade não significa a uniformização das pessoas, negando as diferenças individuais ou de género, antes pelo contrário: é urgente aceitar as diferenças que cada um transporta consigo, porque só assim a humanidade se engrandece. Homem e mulher são pessoas que, no respeito mútuo, se complementam… só no encontro das diferenças acontece a vida. Mas a afirmação das diferenças não pode servir de suporte a qualquer tipo de discriminação.

O AGIR MORAL A capacidade de raciocinar e pensar da criança está muito dependente da realidade concreta, do que vê, ouve e experimenta. O adolescente, porém, perante uma situação ou problema, é capaz de formular várias hipóteses de solução, desenvolvendo um pensamento abstracto. Já não diz apenas o que uma situação-problema é, mas também, o que deveria ser. A esta nova capacidade de pensar damos o nome de raciocínio hipotético-dedutivo.


SABER

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Pensamento hipotético-dedutivo Hipotético porque se baseia na capacidade de colocar hipóteses, quer dizer, explicações possíveis para uma determinada situação ou problema; dedutivo porque se baseia no uso dos factos para testar as hipóteses colocadas, verificando se são verdadeiras ou falsas e daí retirar consequências lógicas.

Tal como acontece com as restantes transformações, esta nova capacidade não se desenvolve de um momento para o outro, mas é um caminho, mais ou menos longo, variando de pessoa para pessoa. Ancorada neste percurso está a maturação da consciência moral, ou seja, a capacidade de julgar as situações a partir de critérios de valor fundados racionalmente. O adolescente já não evita um determinado comportamento porque os pais lhe dizem para o não fazer; evita-o porque vê nele um mal que prejudica os outros ou a si mesmo. Com o desenvolvimento desta capacidade, ele já não se pergunta apenas o que é a realidade, mas como deveria ser a realidade. Esta capacidade de abstracção torna mais complexo o processo de tomada de decisões, viabilizando opções com um maior alcance. Nesta fase, se por um lado há uma abertura ao mundo circundante, que se critica e questiona, mas no qual se quer participar com as suas aventuras e ideias, há ainda, por outro lado, uma tendência para o adolescente concentrar os seus pensamentos em si próprio, criticando os outros e a realidade, não como são, mas como ele quer que sejam. Precisa de crescer ainda até perceber que uma coisa é o bem moral (o que deve ser a realidade) e outra os caprichos individuais (o que eu quero que seja a realidade, sem que para tal tenha justificação adequada). O adolescente é agora capaz de raciocinar sem recorrer a exemplos concretos, discute e aprecia acontecimentos que não lhe dizem directamente respeito ou que na realidade não existem. Analisa factos, ideias e acontecimentos, critica-os e imagina possibilidades para resolver contradições e incoerências humanas. A sua inteligência é, doravante, um instrumento eficiente para enfrentar, nem sempre com sucesso, os problemas do quotidiano, mas também para sonhar o futuro e equacionar soluções para os males da humanidade, como a fome, as guerras, a poluição e as injustiças.

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38 Dilema de Henrique Uma mulher está a morrer de cancro. Mas pode ser salva por um medicamento que um farmacêutico da sua cidade desenvolveu. O farmacêutico pede uma quantia exorbitante pelo remédio. Henrique, marido da doente terminal, procura todas as pessoas que conhece e pede-lhes dinheiro emprestado, conseguindo apenas metade da quantia necessária. Explica ao farmacêutico que a sua mulher está a morrer e pede-lhe que venda o curativo mais barato ou que o deixe completar o pagamento posteriormente. Mas o farmacêutico diz que não porque aquele medicamento é o trabalho de toda a sua vida e não pode vendê-lo ao desbarato. Henrique fica desesperado, arromba a farmácia e rouba o medicamento para a sua esposa. Agiu moralmente bem? Porquê? Kohlberg

A QUESTÃO RELIGIOSA O sentimento de pertença religiosa tende a ser contestado nesta idade. De facto, a atitude de pôr tudo em causa, leva o adolescente a questionar-se sobre o sentido das suas crenças, das crenças dos seus pais e da sua participação numa comunidade religiosa.

Acreditar em Deus… é possível? Há quem julgue que eu, por ter a idade que tenho, não posso ter a minha própria opinião sobre as coisas. Ser adolescente não significa ser estúpido, ou incapaz de pensar. É verdade que as coisas podem ser um pouco complicadas... Vem isto a propósito de uma discussão que tive com o meu tio que queria, à força toda, que eu acreditasse em Deus. Mas os argumentos que ele usava eram pouco mais que nada: a autoridade dos nossos antepassados chegava para ele. Mas para mim, não; razão por que nos desentendemos. Ultimamente tenho-me perguntado se faz sentido acreditar na existência de um Deus. Se nunca o vi, como é que posso saber que existe? Às vezes admira-me muito a segurança com que os adultos afirmam coisas que são tão incertas como esta. Que razões têm eles para acreditar nisso? Alguns amigos meus dizem-me que Jesus Cristo nunca existiu. Mas eu sei que não é nada disso. Jesus existiu mesmo. Viveu numa determinada região, num determinado tempo. E Deus?


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Os meus pais acreditam em Deus. Vivo numa sociedade em que a maioria das pessoas se diz crente. Transmitiram-me estas ideias religiosas. E se eu tivesse nascido noutro tempo ou noutra parte do mundo? Qual seria a minha crença? Se Deus existe, por que razão há sofrimento no mundo? E, contudo, quando ponho em causa a sua existência, sinto um vazio tão grande dentro de mim! Tudo isto é confuso. De certa maneira, tenho saudades do meu tempo de criança em que acreditar em Deus era tão natural como beber um copo de água. Eu sabia que ele ali estava cada vez que dele precisava. Pressentia a sua presença na minha vida, como se fosse a presença dos meus pais. Hoje, sinto que tenho de me destacar das crenças que recebi em herança e seguir o meu próprio caminho. Mas significará isso necessariamente ter de deixar de acreditar em Deus? Talvez não; no entanto, tudo parece nebuloso e pouco claro. A minha mãe diz-me que acreditar em Deus é depositar nele a nossa confiança, apesar das nossas dúvidas. Apesar das muitas dúvidas… Diário de um adolescente

Foi num turbilhão de emoções que, apesar do ambiente que me envolvia (clima de guerra, perseguição e medo), descobri algo maravilhoso: o amor entre mim e o Peter. Nestes anos aprendi a sensação agradável que é dar felicidade aos outros. A felicidade é uma procura pessoal e a religião ajuda nesta procura. Como sabes, fui educada no Judaísmo e acredito que a atitude perante Deus não deve ser de medo, mas de amor. Nos textos da Bíblia revela-se a grandeza do amor. Vais conhecer um texto do Antigo Testamento em que o amor humano é exaltado e apresentado como expressão do amor divino — o Cântico dos Cânticos. Embora tradicionalmente atribuído ao rei Salomão, não se conhece a autoria deste texto; apenas se sabe que foi redigido na Palestina, por volta do século V ou IV a.C.

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A BÍBLIA CANTA O AMOR

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la: B eija-me com os teus doces lábios; que as tuas carícias são mais deliciosas que o vinho.

Ele: C omo és bela, minha amada! Como és bela! Os teus olhos são duas pombas! Ela: Como és belo, meu amor! Como és encantador! O nosso leito é de verdura; os cedros são as vigas da nossa casa; e os ciprestes o tecto que nos cobre. Ele: S im, como uma açucena entre espinhos, assim é a minha amada comparada com as outras raparigas. Ela: Como a macieira entre as outras árvores, assim é o meu amado comparado com os outros rapazes. À sua sombra me sento com prazer; os seus frutos são deliciosos. Levou-me a beber na sala de banquetes e ergueu sobre mim o estandarte do amor. Durante a noite, na minha cama, procurei o amor da minha vida; procurei-o, mas não o encontrei. Ele: Eu entrei no meu jardim, ó minha amiga, minha noiva. Já colhi a minha mirra e ervas perfumadas; já provei o mel do meu favo; já bebi o meu vinho e o meu leite. Que os meus amigos comam e bebam; E se embriaguem de amor!

Elas: Para onde foi o teu amado, ó formosa entre as formosas? Para onde se dirigiu o teu amado? Nós queremos procurá-lo contigo. Ela: O meu amado foi ao seu jardim, ao seu delicioso jardim perfumado, para se recrear entre as flores e colher açucenas. Eu sou do meu amado e ele meu. Ele recreia-se entre as açucenas. Eu sou do meu amado e é a mim que ele deseja. Anda, meu amado, vamos para o campo! Passaremos a noite sob os cedros. De manhãzinha iremos às vinhas, para vermos se elas floresceram e se as suas flores já abriram. Ali te darei o meu amor. As mandrágoras exalam o seu perfume e à nossa porta há frutos excelentes. Querido, guardei para ti frutos frescos e secos. Grava o meu nome no teu coração como selo, como tatuagem no teu braço. Que o amor é tão forte como a morte; e como a morte, também a paixão é incontrolável. O fogo ardente do amor é uma chama divina! Toda a água dos oceanos não seria suficiente para apagar o fogo do amor; toda a água dos rios seria incapaz de o extinguir. Se alguém tentasse comprar o amor com toda a sua fortuna, receberia em troca apenas desprezo. Ct 1, 2.15-17; 2,2-4; 3,1; 5,1; 6,1-3; 7, 11-14; 8, 6-7


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Cântico dos Cânticos… beleza e sedução O título “Cântico dos Cânticos” é um superlativo. Significa o maior cântico, o mais belo cântico, o cântico por excelência. O Cântico dos Cânticos é um livro sapiencial que se interessa pela condição humana e reflecte sobre um dos seus aspectos vitais — o amor. É um poema do Antigo Testamento que, utilizando uma linguagem própria do tempo, com recurso a imagens retiradas da pastorícia e da agricultura, exalta precisamente a bondade e a dignidade do amor. Celebra a beleza e o milagre do amor humano, a alegria sincera na atracção física. Sublinha o facto de que Deus quer que o ser humano viva a experiência do amor, ao mesmo tempo físico e afectivo, para a realização a dois: no amor humano brilha o amor de Deus. As cenas deste texto poético passam-se na Primavera. O poema é um todo vibrante de paixão e de alegria pelo amor humano. Foi constituído a partir de um conjunto de cânticos para serem usados nas bodas de casamento que duravam uma semana, como ainda hoje acontece no Médio Oriente, quando a esposa e o esposo são coroados rei e rainha. À primeira vista, o livro do Cântico dos Cânticos apresenta simplesmente um homem e uma mulher que celebram a maravilha do amor que os atrai um para o outro. Mas se lermos com atenção percebemos que há muitos pormenores a indicar que este poema está cheio de intenções simbólicas. Sabendo que se trata de um texto da Bíblia e tendo em conta que a Bíblia compara, noutros textos, a relação conjugal à relação entre o povo de Israel e Deus — o amor humano é a grande metáfora para falar de Deus —, percebemos que a referência ao amado e à amada reproduz a história da aliança entre Deus e o seu povo.

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unidade 3 Com efeito, nos retratos da amada há alusões simbólicas a Israel, e o amado simboliza o próprio Deus. Neste poema, em que a existência religiosa é entendida como uma realidade conjugal, todos os crentes são convidados a reconhecer-se na amada. Assim, o Cântico dos Cânticos exprime em primeiro lugar o amor profundo entre um homem e uma mulher e, metaforicamente, exprime a relação de amor que existe entre Deus e o seu Povo, entre Deus e cada pessoa que se abandona ao seu amor. O Cântico dos Cânticos ensina precisamente que o amor humano se salva no amor de Deus. Numa época em que se praticava a poligamia, o Cântico dos Cânticos evoca um amor único e exclusivo; num tempo em que o repúdio era uma solução vulgarizada, o Cântico declara um amor forte e inabalável; quando os papéis masculino e feminino eram concebidos de forma assimétrica, o Cântico mostra a igual dignidade entre o homem e a mulher. O Cântico dos Cânticos enaltece a dimensão afectivo-sensual, transmitindo a ideia de que o ser humano é uma realidade complexa que inclui a dimensão física, a dimensão afectiva, a dimensão volitiva, sendo todas elas importantes para a realização de cada pessoa. O Cântico ajuda a pensar e a viver a sexualidade sem angústia, sem falsos pudores, sem mistificações, sem criar fábulas espiritualistas e irreais. Nele se distingue a genuinidade do amor, que não é domínio, nem submissão, nem violência, nem brutalidade, nem realização meramente fisiológica mas é procura e encontro, entrega e doação da totalidade do ser humano. O Cântico é uma gloriosa bênção lançada por Deus sobre o amor humano. É um magnífico poema de felicidade e de esperança. Do início ao fim do poema, manifesta-se a sedução, o amor, a procura, e — como resposta — a correspondência, o encontro; e isto, tanto no plano da relação homem e mulher, como na relação entre


unidade 3 Deus e o seu povo. O divino e o humano andam juntos. Deus e o crente procuram-se mutuamente até que se realize o encontro que preenche a alma humana do amor e da felicidade plena que só Deus é. O casamento humano é, de acordo com a Bíblia, imagem da Aliança sempre refeita entre Deus e a humanidade.

A ousadia do Amor A 1ª Carta de São Paulo aos cristãos de Corinto, escrita por volta do ano 55, tem por objectivo advertir a comunidade para a necessidade de uma vida íntegra radicada no mandamento do Amor. Numa cidade marcada pelo eros e pelo egoísmo, o Hino ao Amor é a rejeição do egoísmo e a afirmação do amor gratuito e altruísta que quer o bem do outro e impulsiona cada pessoa a fazer de si uma dádiva para o outro.

Mapa da Grécia

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unidade 3 A antiga e célebre cidade grega de Corinto, cujo porto marítimo era dos mais frequentados entre a Europa e a Ásia, foi conquistada pelos Romanos em 146 a.C. Dada a sua importância estratégica, foi elevada, pelo imperador Octaviano, a capital da província da Acaia no ano 27 a.C., conhecendo, a partir daí, um grande desenvolvimento que fez dela uma das principais metrópoles do Império.

S. Paulo, por Giuseppe de Fabris.

Corinto era uma cidade cheia de movimento e ponto de encontro de muitas culturas, povos e religiões do Mediterrâneo, contando, no início da nossa era, com uma população de cerca de 500.000 habitantes, uma boa parte dos quais escravos ou libertos (classes menos favorecidas). Nesta cidade existia um grande santuário à deusa Afrodite, a deusa do amor (eros — amor físico). O Cristianismo chega a esta cidade através do apóstolo Paulo e, por volta do ano 49 ou 50, já existia uma comunidade cristã, que se desenvolveu neste ambiente cosmopolita. Esta comunidade conheceu alguns conflitos e divisões internas, que S. Paulo procurou resolver através das suas cartas.

39 Amor — Eros, Philia e Ágape Ao amor entre homem e mulher a Grécia antiga deu o nome de eros. Diga-se desde já que o Antigo Testamento grego usa só duas vezes a palavra eros, enquanto o Novo Testamento nunca a usa: das três palavras gregas relacionadas com o amor — eros, philia (amor de amizade) e agape — os escritos do Novo Testamento privilegiam a última, que, na linguagem grega, era quase posta de lado. Quanto ao amor de amizade (philia), este é retomado com um significado mais profundo no Evangelho de João para exprimir a relação entre Jesus e os seus discípulos. A marginalização da palavra eros, juntamente com a nova visão do amor que se exprime através da palavra agape, denota, sem dúvida, algo de próprio relativamente à compreensão do amor. Agora o amor torna-se cuidado do outro e pelo outro. Bento XVI. Encíclica Deus Caritas Est (excerto adaptado)


unidade 3

O mais importante é o amor

P

rocurem os dons mais importantes. E o caminho melhor é aquele que agora vos vou mostrar.

Ainda que eu seja capaz de falar todas as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, as minhas palavras são como o badalar de um sino ou o barulho de um chocalho. Ainda que eu tenha o dom de falar em nome de Deus e possa conhecer os seus planos e saber tudo; ainda que eu tenha uma fé capaz de transportar montanhas, se não tiver amor, não presto para nada. Ainda que eu dê em esmola tudo o que é meu; ainda que me deixe queimar vivo, se não tiver amor, isso de nada me serve. O amor é paciente e prestável. Não é invejoso. Não se envaidece nem é orgulhoso. O amor não tem maus modos nem é egoísta. Não se irrita nem pensa mal. O amor não se alegra com uma injustiça causada a alguém, mas alegra-se com a verdade. O amor suporta tudo, acredita sempre, espera sempre e sofre com paciência. O amor é eterno. 1Cor 12,31-13,8a

Há quem chame a este Hino ao Amor o Cântico dos Cânticos do Novo Testamento. A mensagem que S. Paulo aqui transmite de forma clara e incisiva é que só há um talento, um dom absoluto: o amor; tudo o mais é relativo. O caminho da perfeição é o caminho da aprendizagem do amor; por isso, o amor permanecerá para sempre; não desaparecerá nunca nem mudará jamais. Evidentemente, o amor de que Paulo fala é o amor (ágape) tal como ele é entendido pelos cristãos: não é o amor egoísta, que procura o próprio bem, ou o amor simplesmente físico, mas o amor gratuito, desinteressado, sincero, fraterno, que se preocupa com o outro, que

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unidade 3 sofre pelo outro, que procura o bem do outro sem esperar nada em troca. Para S. Paulo, dizer amor é o mesmo que dizer Deus e viver no amor é viver em Deus. Neste excerto da 1ª Carta aos Coríntios, S. Paulo afirma que sem amor, até as melhores coisas (a fé, a ciência, a profecia, a distribuição de esmolas pelos pobres) são vazias e sem valor, pois só o amor dá sentido a toda a vida e a toda a experiência humana e cristã. Depois, personifica o amor, apresentando-o com características humano-divinas: ele é a fonte e a origem de todos os bens e qualidades. Paulo enumera quinze características do amor autêntico (sete formuladas positivamente e oito de forma negativa) sendo que todas elas se referem a realidades simples e quotidianas, que experimentamos e vivemos a cada instante, para que ninguém pense que o amor só diz respeito aos santos ou aos sábios. O amor cristão — isto é, o amor desinteressado que leva a procurar o bem do outro por pura gratuidade — é a essência da vida cristã. Desse amor partilhado nasce a comunidade de irmãos a que chamamos Igreja. O amor, como doação de si mesmo, é a conquista da maior riqueza. O egoísmo reduz a pessoa à miséria espiritual e humana.

40 Urgentemente É urgente o amor. É urgente um barco no mar. É urgente destruir certas palavras, ódio, solidão e crueldade, alguns lamentos, muitas espadas. É urgente inventar alegria, multiplicar os beijos, as searas, é urgente descobrir rosas e rios e manhãs claras. Cai o silêncio nos ombros e a luz impura, até doer. É urgente o amor, é urgente permanecer. Eugénio de Andrade. Até Amanhã.


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À DESCOBERTA DE NOVOS VALORES Uma casa constrói-se pelos alicerces, e quanto mais profundos e seguros eles forem, menos perigos de oscilações haverá. Do mesmo modo, devemos começar a construir a nossa personalidade em alicerces seguros e profundos, baseada em valores, ou seja, em pontos de orientação que dão sentido à nossa vida e ao nosso comportamento. No entanto, não é tarefa fácil! Até porque essa construção pessoal se desenvolve particularmente em momentos conturbados da nossa vida: a adolescência. Mas, também não é fácil estudar para ter sucesso escolar, entrar na universidade, encontrar um emprego… e dedicamo-nos anos a fio ao cumprimento desses objectivos. Não terá a mesma importância (ou até talvez mais ainda) a construção da nossa personalidade, sobre valores seguros, dedicando-nos ao nosso crescimento afectivo e à construção da nossa identidade? Que valores serão esses? Todo o ser humano é dotado de dignidade. Esta afirmação oferece-nos um dos mais importantes valores: a afirmação da importância de cada uma das pessoas. Por isso, gostar de si e dos outros é essencial para a conquista da felicidade. Gostar de si, implica gostar do seu corpo, uma vez que a pessoa é o seu corpo, a sua mente, os seus sentimentos. Saber aceitar e lidar com o corpo é um primeiro passo para uma auto-estima positiva. O valor dos outros expressa-se em nós pela descoberta da amizade. É aos amigos que confiamos todas as nossas preocupações, os nossos sonhos… parece que só eles é que nos compreendem, uma vez que estão a passar por momentos semelhantes, com interesses e necessidades idênticas.

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Na expressão das nossas vivências, utilizamos uma linguagem própria — a linguagem do amor, do encontro — comunicando através de sinais, de posturas corporais, de afectos, de olhares, de silêncios… Para que essa linguagem resulte positivamente e tenha o sucesso que nós esperamos, é necessário que gostemos de nós próprios — ou seja, tenhamos auto-estima. Da nossa auto-estima vai depender a forma como encaramos a vida e os outros. As pessoas que se apreciam a si mesmas, porque reconhecem em si qualidades e valores, enquanto seres humanos únicos, responsabilizam-se pelos próprios actos e escolhas e disponibilizam-se para dar apoio aos outros. Ao contrário, aquelas que não se estimam a si próprias responsabilizam sempre os outros ou as circunstâncias pelos seus medos e fracassos.

Mas, atenção, ter auto-estima não é elevar-se aos píncaros, pensar que se é o melhor, o mais perfeito, o mais engraçado, ou seja: ser presunçoso. Quando assim é, as coisas não poderão correr bem, porque os outros não vão apreciar a nossa postura no relacionamento com eles. Ter auto-estima é acreditar em nós próprios e naquilo que fazemos, sem deixar de reconhecer as nossas limitações.


A auto-estima também se refere àquilo que é importante para nós. Uma pessoa pode descrever-se como desportista medíocre, apresentando, assim, um baixo auto-conceito físico. No entanto, se ele considera que o desporto não tem muita importância na sua vida, a sua auto-estima não será afectada. Se formos encorajados e ajudados numa área que valorizamos e em que somos bem sucedidos a nossa auto-estima aumenta. Através da linguagem do encontro, da doação de si mesmo e da aceitação do outro diferente de nós, poderemos construir a comunhão, a amizade… é neste relacionamento, livre de medos, que construímos a nossa casa, que tem por fundações a amizade, o amor, a liberdade e a solidariedade. Assumimos, assim, a responsabilidade de sermos homens e mulheres verdadeiramente felizes. A adolescência é uma época de confiança e esperança. É nos adolescentes que está uma das maiores forças do nosso mundo: fazem mover uma casa, uma escola, uma comunidade, um país, o mundo! São os homens e mulheres de amanhã, cheios de sonhos e de projectos para construir um mundo mais justo e humano.

O ADOLESCENTE E OS OUTROS

Gostar de si mesmo

Gostar dos outros

Aceitar o seu corpo e aprender a cuidar dele Conhecer a sua maneira de ser e de reagir e ser capaz de controlar os seus impulsos

Conhecer e escutar os outros Respeitar opiniões diferentes da sua

Família Clubes Grupos

Novos valores Novas atitudes Novas opiniões

Amigos

AUTONOMIA

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Ficas para sempre responsável por aquele que cativaste. Saint-Exupèry. O Principezinho


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GLOSSÁRIO Acne: Muitas “borbulhas” na pele devido à elevada acumulação de gordura; é comum na adolescência. Assédio sexual: Fazer propostas sexuais indesejadas a alguém, molestar essa pessoa. Caracteres sexuais: Marcas, sinais e órgãos externos que identificam e distinguem os rapazes das raparigas. Contracepção: Conjunto de métodos usados pelo homem ou pela mulher para impedir a gravidez. Ejaculação: Expulsão de esperma pelo pénis. Erecção: Endurecimento e dilatação do pénis, em consequência da excitação sexual que provoca um maior afluxo de sangue. Escroto: Saco que contém cada um dos testículos. Esperma: Líquido espesso e esbranquiçado que contém milhões de espermatozóides e que é expulso pelo pénis durante a ejaculação. Espermatozóides: Células reprodutoras masculinas existentes no esperma; formam-se nos testículos. Fecundação: Junção do óvulo com o espermatozóide, resultante, em geral, da relação sexual. Ginecologista: Médico especializado em doenças do sistema reprodutor feminino. Gravidez: Estado da mulher que aguarda um filho. Começa no momento da fecundação e acaba no parto. A sua duração normal é de 38 a 40 semanas.

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“Grooming”: Conquistar a confiança de uma criança, muitas vezes através da Internet, com o objectivo de abusar dela sexualmente. Homossexualidade: Atracção sexual (incluindo ou não prática sexual) por pessoas do mesmo sexo. Hormonas: Substâncias químicas produzidas pelas glândulas endócrinas. Identidade sexual: Convicção de se ser rapaz ou rapariga e de por isso pertencer ao grupo dos homens ou das mulheres. Infertilidade: Incapacidade de gerar filhos. A percentagem de infertilidade é a mesma para ambos os sexos. Masturbação: Acto de se excitar a si mesmo com o objectivo de obter prazer sexual. Menstruação: Período em que a mulher tem o seu fluxo menstrual. É a expulsão, pela vagina, da mucosa uterina, produzida para receber o ovo (óvulo fecundado). Acontece


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sempre que não existe fecundação. Este fenómeno ocorre, normalmente, de 28 em 28 dias e tem uma duração de 3 a 5 dias. À primeira menstruação chama-se menarca. Monogamia: Organização social e familiar em que o homem só tem uma mulher e esta só tem um marido. Orientação sexual: Sentido da atracção sexual dirigida para uma pessoa de outro sexo (heterossexualidade) ou do mesmo sexo (homossexualidade). Ovários: Glândulas sexuais femininas. Ovo: Primeira célula humana. Resulta do encontro do óvulo com o espermatozóide. Óvulo: Célula reprodutora feminina produzida pelos ovários. Papéis sexuais: Condutas e comportamentos atribuídos a cada sexo. Pedofilia: Situação em que adultos abusam sexualmente de crianças. Pénis: Órgão genital externo do homem, que tem a função de expulsar a urina e também o esperma. Poligamia: Organização social e familiar em que é aceite que o homem tenha mais do que uma mulher. Pornografia: Imagens, textos ou filmes relacionados com sexo e com relações sexuais e que se destinam a provocar excitação sexual, com fins comerciais. Preservativo: Invólucro de látex que é colocado no pénis durante a relação sexual para impedir que o esperma masculino entre no útero feminino. É usado para evitar a gravidez, mas também para impedir a transmissão de doenças sexualmente transmissíveis (D.S.T.). Promiscuidade: Ter relações sexuais com diversos parceiros que não se conhecem muito bem ou que se encontram casualmente. Prostituição: Relações sexuais em troca de dinheiro. Pode ser masculina ou feminina. Relação sexual: Nome dado à união entre os sexos. Correntemente diz-se “fazer amor”. Reprodução: Função pela qual um homem e uma mulher dão origem a outros seres humanos. Testículos: Glândulas sexuais masculinas. Vagina: Órgão genital externo da mulher que permite a expulsão do fluxo menstrual, a relação sexual e o nascimento do bebé. Violação: Acto de obrigar alguém a ter relações sexuais contra a sua vontade. Virgem: Alguém que nunca teve relações sexuais.

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UNIDADE LECTIVA

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Construir a paz


Nesta unidade vamos reflectir sobre: • A paz como grande sonho da humanidade, • Situações de falência da paz, • A promoção e a defesa da paz, • A mensagem bíblica sobre a paz, • O desafio e a responsabilidade de cada um na construção da paz.


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Olá. Chamo-me Nelson Mandela e vou abordar um tema que certamente te interessa muito: a paz. De facto, sem paz, a vida torna-se um autêntico inferno! E olha que eu sei do que falo! Nasci em 1918 na África do Sul e pertenço ao povo (tribo) «Themba». Fiquei órfão de pai muito cedo e fui estudar para uma escola cristã. Logo na infância, apercebi-me de que, no meu país, as pessoas não eram todas consideradas com igual dignidade. Havia um preconceito racista terrível que dava pelo nome de «apartheid» e consistia na separação entre brancos e negros. Toda a vida social e política estava organizada de maneira tal que as pessoas brancas eram consideradas mais importantes do que as negras; por isso, eram elas que mandavam e que tinham os melhores empregos. Às pessoas não brancas eram negados os direitos sociais e de participação política. Existiam hospitais só para brancos e hospitais só para negros; restaurantes só para brancos e restaurantes para as outras pessoas: negros, mestiços, indianos… Sempre me custou muito que brancos (a minoria) e negros (a maioria) não partilhassem, em comum, a governação do país e não vivessem em concórdia e fraternidade. Juntei-me a outras pessoas no Congresso Nacional Africano (ANC) e comprometemo-nos a lutar contra o «apartheid», de maneira a garantir uma vida melhor para as pessoas negras e uma sociedade mais justa. Em 1962 fui preso, julgado e condenado à morte. Entretanto, alteraram a pena para prisão perpétua. Durante os longos anos de reclusão, consegui viver sem rancor nem ódio, apesar de me sentir muito injustiçado. Fui libertado em 1990, quando o sistema político do «apartheid» terminou. Recebi o Prémio Nobel da Paz em 1993 e fui presidente da África do Sul de 1994 a 1999. Quero dizer-te que a paz é indispensável ao relacionamento entre os povos e entre as pessoas. Mas não pode existir paz sem justiça. Uma e outra andam de mãos dadas. É importante cresceres com a certeza de que a paz no mundo também depende de ti… é o desafio que te colocamos.


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A PAZ — O GRANDE SONHO DA HUMANIDADE O desejo de paz faz parte dos anseios mais profundos da pessoa e marca a história, a arte e a cultura dos povos. Em todos os tempos e lugares o ser humano fala, escreve, pinta… procura a paz. No íntimo de si mesma, cada pessoa sempre quis e continua a querer a civilização do amor, edificada na justiça, na harmonia, na concórdia e na paz. A paz que nasce de um diálogo sincero não é uma ideia abstracta, mas sim o gesto radical de ir ao encontro do outro na busca da verdade e de soluções válidas para os problemas que surgem continuamente na vida interpessoal, social e universal. A paz é um bem precioso e supremo, o único ambiente onde é possível uma vida verdadeiramente humana. A sua construção envolve cada um. A paz não é apenas ameaçada pelas armas, mas também por todas as formas de injustiça: pobreza, marginalização, agressão e destruição da vida, terrorismo... A estes males deve responder-se com uma atitude pessoal e colectiva baseada na solidariedade e na fraternidade universal. A paz foi cantada em todas as línguas e em todos os povos, na certeza de que os ódios pessoais e as violências entre grupos e nações são contrários à natureza humana. Sair ao encontro do outro e oferecer o dom da paz é a utopia dos corajosos e dos emissários de boas notícias…

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A paz na arte São inúmeras as referências à paz na história da literatura. Sobre a paz escreveu Leão Tolstói, em 1869, Guerra e Paz — uma obra monumental que relata a invasão napoleónica da Rússia em 1812 e o desejo de concórdia. Sobre a paz escreveu o Papa João XXIII uma carta a todos os cristãos e homens de boa vontade, a encíclica Pacem in Terris — “Paz na Terra”, em 1963, onde expressa a sua preocupação com a paz mundial, ameaçada pela Guerra-fria e apela à conciliação. Sobre a paz escreveram muitas centenas de poetas.

41 A paz sem vencedor e sem vencidos ai-nos Senhor a paz que vos pedimos D A paz sem vencedor e sem vencidos Que o tempo que nos deste seja um novo Recomeço de esperança e de justiça Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos A paz sem vencedor e sem vencidos E rguei o nosso ser à transparência Para podermos ler melhor a vida Para entendermos vosso mandamento Para que venha a nós o vosso reino Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos A paz sem vencedor e sem vencidos F azei Senhor que a paz seja de todos Dai-nos a paz que nasce da verdade Dai-nos a paz que nasce da justiça Dai-nos a paz chamada liberdade Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos A paz sem vencedor e sem vencidos Sophia de Mello Breyner Andresen. Dual


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42 Eu podia escolher Não tinha ideia. Escolhi a paz. A verdade e a beleza deixei-as ir, e também a sageza e a nostalgia — até o amor, que tão embevecido me olhava, negras nuvens com ele se deslocavam. Paz, era paz. E nos recônditos da minha alma dançavam seres de que nunca tinha sequer ouvido! E no céu pendia um outro sol. Toon Tellegen. Rosa do Mundo

Pela paz cinzelaram escultores, coloriram pintores, compuseram músicos. “Guerra e Paz”, título da obra de Tolstói, é também título de uma ópera de Sergei Prokofiev e de várias pinturas e esculturas célebres.

Prémios, organizações e comemorações Para educar para a paz, Paulo VI propôs a criação de um Dia Mundial da Paz. Celebra-se a 1 de Janeiro, desde 1968. Para garantir a paz foram fundadas organizações nacionais e internacionais, como a Organização das Nações Unidas, o Conselho Português para a Paz e Cooperação, a Comissão Nacional Justiça e Paz. Por causa da paz foi estabelecido o Dia Escolar da Não-Violência e da Paz. Celebra-se a 30 de Janeiro, dia da morte de Gandhi. Para premiar os que se destacam na promoção e defesa da paz foi criado o Prémio Nobel da Paz.

Pomba, por Pablo Picasso


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saber

+

Sobre a paz falam todos os seres humanos, cada um na sua língua PAZ ( Português e Espanhol) FRIEDEN (Alemão) МИРА (Russo) Wangari Maathai

(Chinês)

PEACE (Inglês)

PAIX (Francês)

PACE (Italiano e Romeno)

SHALOM (Hebraico)

МИР (Ucraniano)

SALAAM (Árabe)

ΕΙΡΉΝΗ (Grego)

VREDE (Holandês)

Símbolos da paz Os símbolos da paz foram-se desenvolvendo ao longo dos tempos. São sinais que servem para recordar às pessoas de cada época e lugar a necessidade de construir a concórdia.

Pomba branca com um ramo de oliveira A pomba é símbolo de paz e harmonia, numa tradição que tem as suas origens na história bíblica da Arca de Noé. Segundo o relato do Antigo Testamento, depois do dilúvio, Noé soltou uma pomba que regressou com um ramo de oliveira no bico, mostrando que a água estava a regredir e que tinham sido feitas as pazes com Deus (Cf. Gn 8, 8ss).

Arco-íris Une o céu e a terra e significa a harmonia e a paz com Deus e com o Universo; a narrativa bíblica do dilúvio descreve-o como símbolo da Aliança de paz entre Deus e a humanidade e toda a criação (Cf. Gn 9, 8-17).

Bandeira branca A Bandeira Branca é um símbolo usado para representar a paz mundial entre os povos. Durante a Idade Média, quando um povo se colocava fora de uma guerra ou batalha, hasteava a bandeira branca em sinal de trégua e de paz.


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Lira Símbolo dos poetas e da harmonia cósmica, segundo os budistas.

Cachimbo da paz Usado pelos índios americanos que faziam a fumaça subir até aos deuses da concórdia. Todos fumavam do mesmo cachimbo em sinal de compromisso com as decisões tomadas.

Anéis olímpicos Cinco anéis que retratam a união dos continentes. Na Grécia Antiga durante o período dos jogos olímpicos eram interrompidas as guerras.

Vela A luz significa a presença de Deus no interior do ser humano, como paz e esperança de uma vida plena e justa.

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Mas afinal o que é a Paz?

A paz é geralmente definida como um estado de calma ou tranquilidade, sem perturbações ou agitação. Deriva do latim pax que se refere à ausência de violência e de guerra. A paz é uma preocupação constante na vida das pessoas, das famílias, dos grupos, das sociedades, das nações. No íntimo de cada um há um apelo à coexistência pacífica e a paz é simultaneamente uma utopia e uma causa pela qual se dá a vida. No plano das relações interpessoais e entre povos, a paz implica a construção de relações de diálogo e de respeito mútuo que possam evitar problemas e prevenir a resolução de conflitos através da violência ou da guerra.


unidade 4 A paz é desejada por cada pessoa para si própria e para os outros, a ponto de se ter tornado uma saudação interpessoal (que a paz esteja contigo ; vai em paz). Muitas pessoas tomam como objectivo de vida construir a paz, quer interior, procurando o seu equilíbrio pessoal, quer no mundo, através da sua participação em organizações, manifestações e acções que procurem a justiça, o respeito pelos direitos humanos e uma partilha mais equilibrada dos bens entre as pessoas e os povos. A paz é um valor essencial na construção da nossa identidade, da nossa realização pessoal e da nossa felicidade. Sem ela a vida tornar-se-ia um contínuo sofrimento; o medo e o pânico instalar-se-iam e obrigar-nos-iam a ver os outros como inimigos e adversários a eliminar. A paz é uma conquista de cada pessoa, de cada comunidade, de cada povo; não é algo que se adquire uma vez por todas, mas que tem de estar em permanente construção. Usar armas é fácil; empenhar-se pela paz, deixar-se sacrificar por este ideal é grandeza de poucos. Mas não podemos deixar de olhar para a força dos pacíficos e para a dinâmica da paz. A paz é um compromisso e um modo de vida que exige que se satisfaçam as expectativas legítimas de todos, como o acesso à alimentação, à água e à energia, à medicina e à tecnologia… Só assim se poderá construir o futuro da humanidade. Sem a justiça, a justa distribuição dos bens, a verdade e a liberdade não é possível construir relações de paz.

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SITUAÇÕES DE FALÊNCIA DA PAZ Desde sempre, o ser humano tem tendência para se apropriar de territórios e bens, como garantia de segurança, bem-estar e protecção ou simplesmente como satisfação do seu desejo de poder. No entanto, a posse de territórios e de bens materiais pode dar origem a egoísmos geradores de injustiças e de violência. Ao longo da história das sociedades, as pessoas criaram códigos de actuação, leis e tratados para definir o acesso e a posse dos bens. Muitas vezes estes acordos foram impostos pela força, ou basearam-se num equilíbrio de poder militar entre as partes. Na história da procura da paz entre os povos e nações encontramos mais fracassos do que êxitos. São aos milhares os tratados, em princípio, destinados a durar eternamente, mas que fracassaram passado pouco tempo, arrastando com o seu insucesso milhares de vítimas. Sempre que no edifício da paz falham os pilares da igualdade, respeito, justiça e liberdade, todo o edifício se desmorona. São muitos os que pensam que a paz é impossível e irreal. Esta crença perigosa leva, por vezes, à conclusão de que a guerra é inevitável e de que a humanidade está condenada a esta “necessidade biológica”. O poderio económico do fabrico e venda de armas faz-nos esquecer que a guerra não é necessariamente parte essencial do drama humano, mas decorre da ganância e da vontade de poder que a todos prejudica. A falência da paz é a ruptura das boas relações entre pessoas e povos. Esta ruptura não implica que haja guerra, pois só pelo simples facto de se quebrarem as relações de harmonia e felicidade, existe desde logo a derrocada da paz.


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Deparamo-nos frequentemente com situações de conflito e de agressão: na família, na turma, na escola, no bairro, no mundo… situações em que todos saem prejudicados, tristes e infelizes; não apenas aqueles que se envolvem mais directamente, mas também os outros que estão em redor. Ainda hoje muitos lutam para que os direitos fundamentais lhes sejam reconhecidos e possam alcançar a paz, ou seja, a felicidade suprema do ser humano. Mas vemos e ouvimos todos os dias nos telejornais, na rádio e na imprensa notícias de como, em diferentes países, ocorrem situações de fracasso da paz.

43 Ameaças à paz Observa-se nos nossos dias uma consciência crescente de que a paz mundial está ameaçada, não apenas pela corrida aos armamentos, pelos conflitos regionais e por causa das injustiças que ainda existem no seio dos povos e entre as nações, mas também pela falta do respeito devido à natureza, pela desordenada exploração dos seus recursos e pela progressiva deterioração da qualidade de vida. Semelhante situação gera um sentido de precariedade e de insegurança, que, por sua vez, favorece formas de egoísmo colectivo. João Paulo II, Dia Mundial da Paz — 1 de Janeiro de 1990 Favela, Rio de Janeiro, Brasil

Ganância

Violência

Desejo de poder

Terrorismo

Conflitos

Egoísmos Injustiça

Agressividade

Genocídios

Insegurança

Indiferença


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Um dos aspectos mais chocantes do século XX foi a suprema hipocrisia das grandes potências mundiais. Ao mesmo tempo que defendiam a paz e os direitos humanos, fomentavam (ou não condenavam) guerras, ditaduras, segregações, eliminação de pessoas e povos… um pouco por todo o mundo. E muitas vezes para lucrarem com a poderosa e escandalosa indústria do armamento. O egoísmo gera violência e a violência origina sempre mais violência… tem sido assim ao longo da história da humanidade. A violência é a forma ilusória de resolver as dificuldades. Quando algum país aumenta a sua força militar, logo os outros procuram reforçar também o seu arsenal bélico, com a justificação de que é para manter a paz. Mas uma paz baseada na igualdade de armamentos e no medo, nunca será senão uma “paz podre”. A verdadeira paz assenta na confiança recíproca, na verdade, na justiça e na solidariedade. Haverá paz quando o ser humano for capaz de encaminhar todos os esforços — intelectuais e emocionais — para esse fim, em vez de os usar para o desenvolvimento bélico. O século XX será também recordado como o século em que o extermínio de milhões de seres humanos ultrapassou todos os limites.

As guerras mundiais A I e a II Guerra Mundial foram desastrosas. Não só pela destruição que provocaram mas principalmente pelo número de mortos, mesmo civis, implicados: aproximadamente 10 milhões de mortos, na primeira guerra mundial, e 50 milhões de mortos, na segunda guerra mundial. Cerca de 6 milhões de judeus foram vítimas de genocídio nazi, durante a segunda guerra mundial.

I Guerra Mundial: 1914-1918

II Guerra Mundial: 1939-1945


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A primeira bomba atómica foi lançada pelos EUA sobre a cidade japonesa de Hiroshima em 6 de Agosto de 1945, para pôr fim à segunda guerra mundial. Três dias depois foi bombardeada a cidade de Nagasaki com outra bomba atómica. Estima-se que 70 mil pessoas morreram imediatamente nas explosões e que 130 mil faleceram nos anos seguintes devido a ferimentos e doenças causadas pela exposição à radiação. Mas esta estimativa foi minimizada; a verdade é que nunca se saberá ao certo quantas centenas de milhares de vidas foram vitimadas com apenas duas explosões.

44 Bomba atómica A bomba atómica é triste Coisa mais triste não há Quando cai, cai sem vontade Vem caindo devagar Tão devagar vem caindo Que dá tempo a um passarinho De pousar nela e voar... Coitada da bomba atómica Que não gosta de matar Mas que ao matar mata tudo Animal e vegetal Que mata a vida da terra E mata a vida do ar Mas que também mata a guerra. Bomba atómica que aterra! Pomba atónita da paz!

Pomba tonta, bomba atómica Tristeza, consolação Flor puríssima do urânio Desabrochada no chão Da cor pálida do hélio E odor de rádio fatal Loelia mineral carnívora Radiosa rosa radical. Nunca mais, oh bomba atómica Nunca em tempo algum, jamais Seja preciso que mates. Onde houve morte demais: Fique apenas tua imagem Aterradora miragem Sobre as grandes catedrais: Guarda de uma nova era Arcanjo insigne da paz! Vinícius de Moraes. O Encontro do Cotidiano

Explosão da bomba atómica

A Cidade de Hiroshima (Japão), após explosão da bomba atómica


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Guerra fria Foi a designação atribuída ao conflito político-ideológico entre os Estados Unidos da América (EUA), defensores da democracia liberal e do capitalismo, e a União Soviética (URSS), defensora da ditadura comunista e da economia socialista, entre o final da Segunda Guerra Mundial (1945) e a extinção da União Soviética (1991). É chamada “fria” porque não houve qualquer combate físico, embora o mundo todo temesse a chegada de um novo conflito mundial por se tratar de duas superpotências com grande arsenal de armas nucleares. Presidentes Reagan (EUA) e Gorbatchev (URSS) selando o fim da Guerra Fria

Muro de Berlim

No final da Segunda Guerra Mundial a Alemanha foi dividida em dois Estados. Posteriormente, em 1961, na cidade de Berlim foi construído um muro que durante 28 anos separou amigos, famílias e uma nação. O muro era feito de aço, cimento e cercas de arame farpado com armadilhas e explosivos. Muitas pessoas foram mortas ao tentar transpô-lo. Em 1989, o muro de Berlim foi derrubado e a Alemanha foi reunificada. Esse muro foi o símbolo da separação (cortina de ferro) entre as democracias ocidentais e os países dominados pela ditadura comunista.


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Guernica, por Pablo Picasso

Guernica A 26 de Abril de 1937, tropas alemãs, a pedido do General Franco, ditador que governou a Espanha de 1939 a 1975, participaram num ataque feroz ao povo basco. Guernica foi uma das cidades-alvo. Pintado por Pablo Picasso em 1937, este quadro retrata o horror causado pelos bombardeamentos dos aviões alemães sobre a cidade espanhola Guernica. Esta pintura revela a grande brutalidade dos ataques que é, no entanto, negada pela flor junto à espada quebrada e pelo Sol em forma de olho a expressar uma mensagem de esperança numa vida nova.

Balanço dos estragos A Organização Mundial de Saúde, em Outubro de 2002, revelou as contas das barbaridades cometidas durante o século XX. Os conflitos armados provocaram, directa ou indirectamente, a morte de 191 milhões de pessoas, mais de metade dos quais eram civis. Estas estatísticas estão longe de contabilizarem todos os mortos, dado que a maioria dos actos de violência são cometidos longe de qualquer olhar.

As causas da guerra São várias as causas da guerra, mas as maiores serão a injustiça, a miséria, a indiferença, os preconceitos ideológicos e culturais, os interesses políticos e económicos, a discriminação e exploração de mulheres e crianças, a vontade de dominar os outros, a ganância, a inveja, o desprezo pelo ambiente e pela natureza; em suma, o egoísmo de cada ser humano.

Cemitério dos soldados aliados na Normandia, França


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45 Ameaça à paz As injustiças, as excessivas desigualdades de ordem económica ou social, a inveja, a desconfiança e o orgulho que grassam entre os homens e as nações, são uma constante ameaça à paz e provocam as guerras. Tudo o que se faz para combater estas desordens contribui para edificar a paz e evitar a guerra. Catecismo da Igreja Católica (CCE), 2317

Para pacificarem as suas consciências, alguns tendem a atribuir as situações de injustiça e de miséria à vontade de Deus ou ao destino. Mas tal justificação ou tal ideologia é falsa e inaceitável. Como poderemos atribuir a Deus aquilo que afinal é apenas o resultado da nossa desumanidade? A guerra interessa a muitos, uma vez que movimenta quantias avultadas de dinheiro, por meio da venda de armas. Para alguém que só pensa em acumular riqueza e se esquece totalmente do seu próximo, convém-lhe que haja guerra. Quantas mais guerras houver, maior será o lucro acumulado com a crescente venda de armas. Tal como o negócio da droga, o negócio das armas é uma fonte inesgotável de lucro para alguns e uma fonte inesgotável de miséria e morte, para muitos. Pode uma pessoa viver bem com a sua consciência quando enriquece à custa da morte dos outros?


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46 Venda de armas O Presidente francês, Nicolas Sarkozy, garantiu hoje que o contrato de vendas de armas entre o grupo europeu EADS e a Líbia estava a ser negociado “há já 18 meses”. Jornal Público, 05.08.2007

O terrorismo O terrorismo consiste no uso de violência física ou psicológica, por indivíduos ou grupos, contra a ordem estabelecida, através de ataques a um governo ou à população. É um tipo muito específico de violência onde se incluem assassínios, explosões, bombistas suicidas, matanças indiscriminadas, raptos, sequestros… Trata-se de uma estratégia política e não militar, e é levada a cabo por grupos que não têm poder suficiente para efectuar ataques abertos. A intenção é causar um estado de medo na população, com o objectivo de provocar no inimigo (ou no seu governo) uma mudança de comportamento. Este tipo de violência sacrifica, muitas vezes, crianças e jovens, como meios para atingir os fins. Os atentados de 11 de Setembro de 2001 consistiram numa série de ataques suicidas, coordenados pela Al-Qaeda, contra alvos civis nos Estados Unidos da América. Na manhã desse dia, quatro aviões comerciais foram sequestrados: dois deles colidiram contra as torres gémeas do World Trade Center em Nova Iorque; um outro avião foi direccionado pelos sequestradores contra o Pentágono; o quarto avião não atingiu o seu alvo e despenhou-se na Pensilvânia.

Atentado terrorista de 11 de Setembro de 2001 ao World Trade Center, EUA


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unidade 4

Os Fuzilamentos de 1808, por Francisco Goya

Outras formas de violência No início do século XIX, a Europa estava sob a ameaça de Napoleão Bonaparte. Se, por um lado, a França tinha sido a defensora dos ideais da Igualdade, Fraternidade e Liberdade, com a subida ao poder de Napoleão Bonaparte e a instauração do império, a França torna-se a potência estrangeira que pretende submeter ao seu poder toda a Europa. O quadro de Goya retrata os fuzilamentos de 1808, em que espanhóis defensores da independência do seu país são barbaramente fuzilados pelos invasores franceses. A fome de 1932-33, na Ucrânia, foi provocada por factores políticos. Consistiu no extermínio físico de milhões de cidadãos pelo regime soviético, através da não distribuição de alimentos num acto de verdadeiro terrorismo dirigido contra pessoas pacíficas. Matar deliberadamente pela fome contraria o mais básico e elementar princípio de entre-ajuda humana.


unidade 4

47 A grande fome O Governo da Ucrânia em 2003 aprovou uma série de medidas com vista a recordar o 70.º aniversário do Holodomor (grande fome) e apelou à Comunidade Internacional para reconhecer o Holodomor de 1932-1933 como um acto de genocídio contra o povo ucraniano. (Comunicado à imprensa da Embaixada da Ucrânia em Portugal)

No início do século XXI, os EUA utilizam a base naval de Guantânamo, em Cuba, para deter prisioneiros da operação militar que derrubou o regime Taliban no Afeganistão, e suspeitos de integrar a rede terrorista Al-Qaeda. O governo americano não lhes dá os direitos estabelecidos pela Convenção de Genebra, sob o argumento de que não são “prisioneiros de guerra” mas sim, “combatentes inimigos” — uma definição que não existe no mundo jurídico e que assim coloca os presos fora das leis internacionais.

48 Violência nos arredores de Paris Mais de 60 polícias ficaram feridos durante os confrontos entre grupos de jovens e as autoridades, registados na noite de segunda para terça-feira nos arredores de Paris. No total, 63 veículos e 5 edifícios foram incendiados, entre os quais a biblioteca Bellevue, duas escolas, a repartição de finanças e um supermercado em Villiers-le-Bel. Revista Visão, 27.11.2007

O genocídio (de genos — família, tribo, raça; e caedere — matar) define-se como o extermínio deliberado de pessoas, motivado por diferenças étnicas, religiosas ou ideológicas. Pode referir-se igualmente a acções deliberadas cujo objectivo seja a eliminação física de um grupo humano.

199


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unidade 4

Alguns genocídios no século XX País

Ideologia

Dirigente

Período

Mortos (milhões)

URSS

Comunismo

Estaline

1929-1953

43

China

Comunismo

Mao Tse-Tung

1923-1976

38

Alemanha

Nazismo

Hitler

1933-1945

21

URSS

Comunismo

Lenine

1917-1924

4

Japão

Militarismo

Tojo Hideki

1941-1945

4

Cambodja

Comunismo

Pol Pot

1968-1987

2,4

Turquia

Militarismo

Kemal Ataturk

1919-1920

2

Ruanda

Militarismo

Radicais hutus

1994

1

Burundi

Militarismo

Radicais tutsis

1972

0,2

Adaptado de Rudoph Rummel. Death by Government, 1996

Dalai Lama, vencedor do Nobel da Paz

Em Junho de 1989, tanques do exército chinês massacraram manifestantes pró-democracia na Praça de Tiananmen, em Pequim. As câmaras de televisão gravaram os acontecimentos, que foram títulos de primeira página em todo o mundo. Milhares de pessoas foram testemunhas. Centenas de corpos foram detectados em morgues e hospitais. No entanto, o governo referiu inicialmente que ninguém tinha sido morto. Esta versão foi mais tarde modificada: o governo acabou por admitir que 200 civis tinham sido mortos em Pequim em confrontos entre soldados e manifestantes, uma grosseira estimativa abaixo da realidade. Em todo o mundo, centenas de milhares de pessoas estão na prisão, não porque são criminosos, mas por aquilo em que acreditam. São muitas vezes detidas sem julgamento, ou depois de um julgamento secreto, ou um julgamento levado a cabo na sua ausência. Muitos prisioneiros de consciência são privados da sua liberdade por discordarem pacificamente dos seus governos. Estas detenções são condenadas pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. Todos os anos, dezenas de milhares de pessoas deixam os seus lares e muitas vezes os seus países devido a perseguições ou guerra. Estas pessoas tornam-se refugiados. Quase sempre têm de se mudar repentinamente, separando-se da sua família e deixando para trás os seus haveres. Muitos nunca mais terão possibilidade de regressar às suas casas. A maior parte dos refugiados procura segurança num país vizinho. Outros têm de percorrer grandes distâncias para encontrar alguma segurança. Muitas vezes, chegam aos aeroportos e portos marítimos, longe da sua terra natal, pedindo para entrar.


unidade 4

201

A humanidade do século XX experimentou níveis elevados de bem-estar, registando-se extraordinários avanços tecnológicos e científicos em todas as áreas. O poder dos meios de comunicação ofereceu ao ser humano um auxílio valioso para se libertar de uma visão estreita do mundo e dos outros para, mediante a informação, abrir-se ao diálogo e ao encontro. Mas foi também durante o século XX que o mundo se dividiu em lutas fratricidas e globais que conduziram ao extermínio de milhões de pessoas e a um desequilíbrio económico e político: guerras, fome, ditaduras, negação das liberdades, ódios. Hoje o nosso mundo está dividido em ricos e pobres, em dominadores e dominados. Surgem novos conflitos e novas torturas e parece que já nos habituámos a lidar com a contenda (de tudo e de todos). Mas o grande desafio é sempre o de tornar possíveis a paz e a reconciliação.

PROMOÇÃO E DEFESA DA PAZ Medidas defensivas e de reconstrução da paz Foram muitas e diversas as tentativas de reconstrução da paz ao longo dos séculos, impondo medidas que visavam atenuar os males provenientes das guerras. Ao longo da história existiram vários tratados e códigos com o objectivo de garantir a paz: — O Código de Hamurabi, um dos mais antigos conjuntos de leis de que há conhecimento, é composto por 282 preceitos que regulamentam a vida quotidiana e estão gravados num monólito com 2,5 metros de altura. Foi elaborado por Hamurabi, rei da Mesopotâmia, por volta do ano 1700 a.C.

Parte do monólito com o Código de Hamurabi, Museu do Louvre, Paris


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49 Excertos do Código de Hamurabi 5. Um juiz deve julgar um caso, formular um veredicto e apresentá-lo por escrito. Se posteriormente se verificar errada a sua decisão e de tal for culpado, deverá pagar doze vezes a pena que ele mesmo impôs e ser publicamente destituído da sua posição de juiz. 42. O dono de um campo só pode exigir o grão a que tem direito se provar que o arrendatário não obteve colheita porque não trabalhou o campo. 55. Se alguém abrir os seus canais para regar o seu campo, mas for descuidado, e a água inundar o campo do vizinho, deverá pagar-lhe o prejuízo causado. 57. Se um pastor, sem a permissão do dono do campo e sem o conhecimento do dono do rebanho, deixar as ovelhas entrarem neste campo para pastar, deverá pagar ao proprietário do campo o prejuízo causado. Monólito com o Código de Hamurabi

203. Se um homem livre espancar outro homem seu igual, deverá pagar uma mina em ouro.

— O Decálogo, conjunto de 10 leis dadas por Deus, de acordo com o relato bíblico, ao povo de Israel, no séc. XIII a.C., é outro código antiquíssimo que também visa defender e promover a paz.

50 Excertos do Decálogo 5. Respeita o teu pai e a tua mãe. 6. Não mates ninguém. 8. Não roubes. 9. Não faças uma acusação falsa contra ninguém. 10. Não cobices nada do que pertence aos outros. Ex 20, 12-13.15-17 Moisés, por Gustave Doré

Durante a Idade Média, nomeadamente dos séculos XI a XIII, com o objectivo de impedir a violência e as vinganças pessoais e entre grupos que ensanguentavam cidades e aldeias da Europa, a Igreja promoveu um movimento a favor da paz. Consistia em duas formas

.


unidade 4 complementares: a “Paz de Deus” que protegia todos os não combatentes, e a “Trégua de Deus” que impedia a guerra e as hostilidades bélicas em certos dias. — A Paz de Deus obrigava todos os homens de armas a não agredir e a proteger aqueles que não estavam directamente ligados à guerra: os pobres, as mulheres, as crianças, os peregrinos, os sacerdotes. — A Trégua de Deus determinava períodos de tempo, na semana e no ano, em que era proibido qualquer tipo de combates armados: da noite de sábado até à manhã de segunda-feira, durante os períodos do Advento, Natal, Quaresma e nas festas de Maria e dos Apóstolos. Estas proibições partiam do princípio de que Deus não queria a guerra, mas a paz e tinham como finalidade estabelecer a concórdia entre as pessoas e os povos e afirmar o ideal da paz, que ajudou a Europa a constituir-se como uma civilização mais humana e uma sociedade respeitadora da dignidade da pessoa.

203

Sé da Guarda

51 Oração de S. Francisco Senhor, faz de mim um instrumento da tua paz: Onde houver ódio, que eu leve o amor; Onde houver ofensa, que eu leve o perdão; Onde houver discórdia, que eu leve a união; Onde houver dúvida, que eu leve a fé; Onde houver erro, que eu leve a verdade; Onde houver desespero, que eu leve a esperança; Onde houver tristeza, que eu leve a alegria; Onde houver trevas, que eu leve a luz. Ó Mestre, Faz que eu procure mais Consolar, que ser consolado; Compreender, que ser compreendido; Amar, que ser amado; Pois é dando, que se recebe; É perdoando, que se é perdoado; E é morrendo, que se vive para a vida eterna. Atribuída a S. Francisco de Assis

S. Francisco de Assis


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unidade 4 — A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que sintetiza em dezassete artigos os ideais da Revolução Francesa, foi proclamada a 2 de Outubro 1789.

52 Excerto da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão 3. Todos os homens são iguais por natureza e diante da lei. 4. A lei é (...) a mesma para todos, quer proteja, quer castigue; ela só pode ordenar o que é justo e útil à sociedade; ela só pode proibir o que lhe é prejudicial.

Gravura representando a Declaração. Museu Carnavalet. Paris

6. A liberdade é o poder que pertence ao Homem de fazer tudo quanto não prejudica os direitos do próximo: ela tem por princípio a natureza; por regra a justiça; por salvaguarda a lei; o seu limite moral está na máxima: “Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti”.

Com a evolução constante dos meios tecnológicos, as guerras foram-se tornando cada vez mais hediondas. Se por um lado o progresso tecnológico é bom para a humanidade, por outro, quando se põe ao serviço do mal, tem efeitos catastróficos. Emerge, portanto, a necessidade de validar tratados internacionais de promoção e defesa da paz e, ao mesmo tempo, de desenvolvimento concertado em prol do bem comum.

saber

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Uma noite de paz Na noite de Natal de 1914, durante a Primeira Guerra Mundial, soldados alemães, franceses e britânicos, conseguiram encontrar coragem para deixar a espingarda no fundo das trincheiras e irem ter com quem estava do outro lado, apertar-lhe a mão, trocar chocolates e desejar Feliz Natal, confraternizando em vários locais da frente de batalha.

É neste sentido que surge a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos.


unidade 4

205

— A Organização das Nações Unidas (ONU) foi fundada logo após o fim da 2.ª Guerra Mundial, a 24 de Outubro de 1945, em São Francisco (EUA), com o objectivo de promover a cooperação internacional e conseguir a paz e a segurança entre os povos. Um dos feitos mais notáveis da ONU foi a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 10 de Dezembro de 1948.

53 Excerto da Declaração Universal dos Direitos Humanos 1. Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade. 3. Todo o indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. 4. Ninguém será mantido em escravatura ou em servidão; a escravatura e o trato dos escravos, sob todas as formas, são proibidos. 5. Ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. 25.1. Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários; e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade. 26.1. Toda a pessoa tem direito à educação. A educação deve ser gratuita, pelo menos a correspondente ao ensino elementar fundamental. O ensino elementar é obrigatório. O ensino técnico e profissional deve ser generalizado; o acesso aos estudos superiores deve estar aberto a todos em plena igualdade, em função do seu mérito. 26.2. A educação deve visar à plena expansão da personalidade humana e ao reforço dos direitos humanos e das liberdades fundamentais e deve favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais ou religiosos, bem como o desenvolvimento das actividades das Nações Unidas para a manutenção da paz. 26.3. Aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o género de educação a dar aos filhos.

Sede da ONU, em Nova Iorque


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unidade 4 — As Convenções de Genebra são uma série de tratados, formulados nesta cidade suíça, que definem normas sobre os direitos e os deveres das pessoas em tempo de guerra.

54 Excerto da Quarta Convenção de Genebra 1. Os países em guerra não podem utilizar armas químicas uns contra os outros. 2. O uso de balas explosivas ou de material que cause sofrimento desnecessário nas vítimas é proibido. 4. Os prisioneiros de guerra devem ser tratados com humanidade e protegidos da violência. 7. É proibido matar alguém que se tenha rendido. 8. Nas áreas de batalha, devem existir zonas demarcadas para onde os doentes e feridos possam ser transferidos e tratados. Activistas defendem o cumprimento da Convenção de Genebra na Prisão de Guantânamo

11. Tripulantes de navios afundados pelo adversário devem ser resgatados e levados para terra firme com segurança. 12. Qualquer exército que tome o controle de um país deve providenciar comida para os seus habitantes locais. 13. Ataques a cidades desprotegidas são proibidos. 14. Submarinos não podem afundar navios comerciais ou de passageiros sem antes ter retirado os seus passageiros e tripulação.

— O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), sedeado em Genebra, foi criado pela Assembleia-geral da ONU, em 14 de Dezembro de 1950, para proteger os direitos dos refugiados. — A Amnistia Internacional, criada em 28 de Maio de 1961, dedica-se à investigação e acção destinadas à prevenção e extinção dos atentados à integridade física e mental, à liberdade de consciência e de expressão, e a todas as formas de discriminação, dentro do contexto da promoção dos Direitos Humanos. Publica anualmente um relatório onde são denunciados os atentados à dignidade humana e os países onde acontecem.


saber

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207

Criação da Amnistia Internacional A criação da Amnistia Internacional teve origem numa notícia publicada no jornal inglês “The Observer” onde era referida a prisão de dois estudantes portugueses por terem gritado “Viva a Liberdade!” numa rua de Lisboa. O advogado britânico Peter Benenson lançou então um apelo no sentido de se organizar uma ajuda prática às vítimas de discriminação étnica, política ou religiosa. Um mês após a publicação do apelo, Benenson tinha já recebido mais de mil ofertas de ajuda para recolher informações sobre casos, divulgá-las e entrar em contacto com governos. Dez meses depois, representantes de cinco países estabeleciam as bases deste movimento internacional. O primeiro presidente do Comité Executivo Internacional da organização (1963 a 1974) foi Sean MacBride, laureado com o Prémio Nobel da Paz em 1974.

— O Tribunal Penal Internacional (TPI) é um tribunal permanente que investiga e julga indivíduos pelos crimes internacionais mais graves: genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra. É um tribunal de última instância, que só intervirá caso as autoridades nacionais não possam ou não queiram iniciar determinados processos judiciais. Foi constituído em 1998 e está sedeado em Haia, na Holanda. — O Desarmamento, nome dado à recolha e destruição de armas e munições, é também uma medida defensiva da paz. Arma com um nó, Sede da ONU

55 Corrida aos armamentos A acumulação de armas aparece a muitos como o processo paradoxal de dissuadir da guerra eventuais adversários. Porém, a corrida aos armamentos não garante a paz. Longe de eliminar as causas da guerra, corre o risco de as agravar. O dispêndio de fabulosas riquezas na preparação de novas armas impede que se auxiliem as populações necessitadas, e trava o progresso dos povos. O super armamento multiplica as causas de conflito e aumenta o risco de contágio.

CCE, 2315


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56 Legítima defesa Cada cidadão e cada governante deve trabalhar no sentido de evitar as guerras. No entanto, enquanto subsistir o perigo de guerra e não houver uma autoridade internacional competente, dotada dos convenientes meios, não se pode negar aos governos, uma vez esgotados todos os recursos de negociações pacíficas, o direito de legítima defesa. Devem ser ponderadas com rigor as estritas condições duma legítima defesa pela força das armas. A gravidade de uma tal decisão deve obedecer a rigorosas condições: — Que o prejuízo causado pelo agressor à nação ou comunidade de nações seja duradouro, grave e certo; — Que todos os outros meios de o evitar se tenham revelado impraticáveis ou ineficazes; — Que estejam reunidas condições sérias de êxito; — Que o emprego das armas não traga consigo males e desordens mais graves que o mal que se pretende afastar. O poder de destruição dos meios modernos pesa muito fortemente na apreciação desta condição. Verificadas todas estas condições, dá-se então o nome de «guerra justa». CCE, 2308-2309

Mahatma Gandhi

— A resistência pacífica, método usado por Gandhi, é uma das formas mais interessantes de resolver conflitos sem recurso à violência. Mahatma (nome que significa “Alma Grande”) Gandhi deu um novo significado à não-violência. Para ele, “algo que seja ganho através da violência não vale a pena possuir”. Nasceu no ano de 1869 em Guzerate, Índia. Formou-se em Direito na Inglaterra e depois exerceu advocacia na África do Sul. Aí, teve pela primeira vez a experiência da discriminação racial. As leis proibiam que as pessoas não brancas exercessem a profissão de advogado e médico, viajassem nos comboios em compartimentos de primeira classe, utilizassem os mesmos espaços públicos dos brancos. Viu que muitos negros na África do Sul eram maltratados e explorados pelos brancos. Organizou protestos pacíficos e foi preso por lutar contra essas injustiças. Desde o começo da sua vida como activista, orientou-se pelas suas profundas convicções religiosas. Era um crente hindu. Acreditava que a violência era sempre um erro. Voltou para a Índia em 1915. A pobreza era enorme. Os ingleses governavam este país severamente; cobravam taxas que o povo não

.


unidade 4 podia pagar e impediam os indianos de chefiar a sua própria nação, usando a força. Em 1930, Gandhi resolve protestar contra o imposto sobre o sal. O sal pode ser extraído da água do mar, mas na Índia todo o sal era preparado e vendido pelo governo inglês que ganhava dinheiro com isso. Afirmou decididamente que o sal pertencia à Índia e que, portanto, quebraria a lei britânica. Pediu, num primeiro momento, para discutir o assunto com o chefe do governo britânico na Índia, o Vice-rei, mas este recusou, menosprezando a sua força. Em Março desse ano, quando tinha 60 anos, iniciou com os seus seguidores uma marcha de 322 quilómetros desde a sua casa até ao mar para extrair sal. Durante vinte e quatro dias o povo da Índia e do resto do mundo seguiu o seu percurso. A expectativa era enorme. No dia 6 de Abril, com milhares de observadores, caminhou até ao mar e apanhou uma mão cheia de sal. Este acto de desafio era um sinal à nação. Ao longo da costa da Índia o povo começou a extrair sal ilegalmente. “Eu quero a compaixão mundial nesta batalha da Justiça contra a opressão” — tinha escrito Gandhi, mas um mês mais tarde foi preso juntamente com outros milhares de indianos. Ele e o povo da Índia passaram ainda mais alguns anos a protestar para que os ingleses decidissem conceder a independência ao país. Finalmente, em 1947, a Índia tornou-se um Estado independente. O promotor da não-violência, que procurou a liberdade orientada pelos princípios da “força da verdade e do amor”, foi assassinado no dia 30 de Janeiro de 1948, em Nova Deli, por um hindu radical que disparou vários tiros. “Se sucumbir vítima da bala de um assassino, não deve haver cólera no meu interior. Deus deverá estar no meu coração e nos meus lábios”, tinha escrito dez dias antes. O corpo de Mahatma foi cremado e as suas cinzas foram lançadas ao Ganges, o rio sagrado.

57 Frases de Gandhi: — A não-violência é o meu primeiro artigo de fé. A violência apenas multiplica o mal. A não-violência é o meio para alcançar a verdade e a paz. — Uma força é tanto mais eficiente quanto mais silenciosa e subtil for. O amor é a mais subtil das forças do mundo. — A paz exterior é inútil na ausência de paz interior.

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Margens da foz do rio Ganges

Mahatma Gandhi


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Alfred Nobel, químico sueco que instituiu o prémio Nobel

— O Nobel da Paz é um dos Prémios Nobel, deixado à humanidade pelo inventor da dinamite, o sueco Alfred Nobel. De acordo com a sua vontade, o prémio deveria distinguir a(s) pessoa(s) que tivesse(m) feito a maior ou melhor acção pela fraternidade entre as nações, pela abolição e redução dos esforços de guerra e pela manutenção e promoção de tratados de paz. Ao contrário dos outros prémios Nobel, o Nobel da Paz pode ser atribuído a pessoas ou organizações que estejam envolvidas num processo de resolução de problemas, em vez de apenas distinguir aqueles que já atingiram os seus objectivos nalguma área específica. É atribuído anualmente, a 10 de Dezembro, a pessoas que se evidenciaram pelo seu contributo para o fim das violências, conflitos ou opressões através do seu empenho, entrega e liderança moral.


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Alguns laureados com o Prémio Nobel da Paz Função / Razão do reconhecimento

Ano

Premiado

País

1901

Jean Henri Dunant e

Suíça

Fundador da Cruz Vermelha Internacional

Frédéric Passy

França

Fundador da Sociedade Francesa para a Paz

1913

Henri la Fontaine

Bélgica

Presidente do Gabinete Internacional Permanente para a Paz

1954

Gabinete do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR)

1964

Martin Luther King Jr

1965

Fundo Internacional das Nações Unidas para o Auxílio à Infância (UNICEF)

1965

René Cassin

França

Presidente do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos

1975

Andrei Dmitrievich Sakharov

URSS

Activista dos direitos humanos

1976

Betty Williams e Mairead Corrigan

Irlanda

Fundadoras do Movimento das Mulheres para a Paz na Irlanda do Norte, mais tarde chamado de Peace People (Gente de Paz)

1977

Amnistia Internacional

1979

Madre Teresa de Calcutá

Índia

Luta contra a pobreza na Índia

1984

Desmond Tutu, bispo anglicano

África do Sul

Oposição ao apartheid

1989

Tenzin Gyatso, o 14º Dalai-Lama

Tibete

Luta pela independência do Tibete

1993

Nelson Mandela e Frederik Willem de Klerk

África do Sul

Activistas dos direitos humanos

1996

D. Carlos Ximenes Belo e José Ramos-Horta

Timor-Leste

Trabalho conducente a uma solução justa e pacífica para o conflito em Timor-Leste

1999

Médicos Sem Fronteiras

2004

Wangari Maathai

Quénia

Ambientalista e activista dos direitos humanos

2007

Al Gore e Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas

EUA

Ambientalista

EUA

Activista dos direitos humanos

Centro do Nobel da Paz, em Oslo (Todos os outros prémios Nobel são entregues em Estocolmo)


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unidade 4

Erasmo de Roterdão

Erasmo de Roterdão Erasmo nasceu no dia 27 de Outubro de 1466 em Roterdão, Holanda. Foi religioso, teólogo e filósofo. Faleceu a 12 de Julho de 1536, em Basileia, Suíça. Optou por uma vida de académico e estudioso independente de tudo o que pudesse interferir com a sua liberdade intelectual. Afirmou-se como o pregador da rectidão e da paz, dentro dos princípios do Evangelho de Jesus Cristo. O principal mal dos seus dias, dizia ele, era o formalismo, um respeito por tradições sem consideração pelo verdadeiro ensinamento de Cristo. Reagiu contra os abusos de poder e de corrupção de alguns cristãos e insistiu sobre a urgência de reformas, de mudanças e de transformações na vida da Igreja. Mas, como cristão esclarecido e humanista sincero, recusou-se a contribuir para a fragmentação e divisão da comunidade cristã; odiava a guerra, a violência verbal e a intolerância religiosa e de ideias. Trabalhou para uma reforma radical do Cristianismo e pronunciou-se contra todos os comportamentos impróprios dos líderes religiosos da época, defendendo uma educação esclarecida e racional. O seu ideal era a paz, tal como tinha sido apresentada por Jesus Cristo; só ela podia garantir a colaboração e o respeito entre as pessoas e os povos. Viveu a misericórdia porque soube ouvir, perdoar e apresentar as suas perspectivas em espírito de serviço. Erasmo apresentou a necessidade do diálogo entre as pessoas e as diferentes perspectivas religiosas. O diálogo e a tolerância não são um “neutralismo” nem uma “falta de coragem”, mas um caminho para o encontro de todos, evitando, assim, guerras, ofensas, sofrimento.


unidade 4 A esta atitude conciliadora e pacificadora inspirada na compreensão e no amor, que visa pôr fim aos confrontos de ideias ou de religião, dá-se o nome de irenismo (da palavra grega Irene que significa Paz). Erasmo, que sempre procurou a unidade entre os cristãos, é hoje apresentado como referência e como fonte inspiradora dos que procuram a verdade e dos que sonham com um mundo mais humano imbuído de um clima de concórdia e de paz.

58 O valor supremo da paz Fazemos a guerra sem cessar, um povo bate-se contra outro povo, um reino contra outro reino, uma cidade contra outra cidade, um príncipe contra outro príncipe, uma raça contra outra raça, e o amigo contra o amigo, o parente contra o parente. Por fim — o que eu não tenho dúvidas em considerar como muito mais horrível do que tudo isto —, o cristão faz guerra a seres humanos. E ninguém se espanta com isto, ninguém o desaprova! Há quem aplauda, quem elogie, quem chame santa a uma actividade mais que infernal e quem estimule os príncipes, já de si endoidecidos, deitando azeite no fogo. Que coisa existe na natureza mais doce ou melhor que a amizade? Nenhuma, seguramente. E todavia, que outra coisa é a paz, senão a amizade de muitos entre si? Do mesmo modo que, inversamente, a guerra mais não é do que o rancor de um grande número. A paz é a fonte de tudo quanto há de bom. A guerra, rapidamente e de modo definitivo, destrói, aniquila e suprime tudo quanto é alegre, tudo quanto é belo. Em tempo de paz cultivam-se os campos, edificam-se cidades; a riqueza cresce, os contentamentos florescem, a solidariedade humana avulta. Porém, assim que sobrevém a furiosa tempestade da guerra, santo Deus!, como é imensa a maré dos males que ocupa, inunda e destrói todas as coisas! A guerra talvez se pudesse tolerar, se as guerras nos fizessem somente infelizes, e não de igual modo maus; se a paz nos tornasse apenas mais felizes, e não igualmente melhores. A um só preceito Cristo chamou seu, o do amor. Que há de mais oposto a este que a guerra? Cristo saúda os seus com o benévolo voto de paz. Aos discípulos, para além da paz, nada deixou. Não ouves senão paz, senão amizade, senão concórdia. Examina toda a doutrina de Cristo: em nenhuma parte encontrarás coisa alguma que não respire paz, não tenha o gosto do amor. E porque sabia que a paz não pode subsistir a menos que se desprezem aquelas coisas pelas quais este mundo combate, mandou que dele aprendêssemos a ser mansos, proibiu que se fizesse frente aos maus. Em resumo, do mesmo modo que toda a sua doutrina ordena a tolerância e o amor, assim a sua vida inteira não ensina outra coisa senão a mansidão. Excertos adaptados de Erasmo de Roterdão. A Guerra

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construção da paz ao longo da história

Séc. XVIII a.C.

Código de Hamurabi (Mesopotâmia)

ANTIGUIDADE

IDADE MÉDIA

Séc. XIII a.C.

Decálogo (Monte Sinai)

Séc. XI-XIII

Paz e Trégua de Deus (EUROPA)

Séc. XV-XVI

Erasmo de Roterdão (Holanda)

IDADE MODERNA Séc. XVIII

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (França)

Mahatma Gandhi (India)

ONU (S. Francisco – EUA)

IDADE CONTEMPORÂNEA (Séc. XX)

DUDH (Nova Iorque – EUA)

ACNUR (Genebra – Suíça)

Amnistia Internacional (Londres – Inglaterra)

TPI (Haia – Holanda)


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MENSAGEM BÍBLICA SOBRE A PAZ A lei de talião

Q

uem matar alguém, é réu de morte. 18Quem matar um animal tem de restituir outro animal igual. 19Se um homem causar uma ferida a outra pessoa, devem fazer-lhe o mesmo a ele: 20fractura por fractura, olho por olho, dente por dente. O que ele fez ao outro devem fazê-lo também a ele. 21Quem matar um animal tem de restituir outro; quem matar um homem será condenado à morte. 17

Lv 24, 17-21

Talião significa “tal e qual”. A Lei de talião, vulgarmente designada pela expressão olho por olho, dente por dente, consiste na aplicação de um castigo igual ao dano causado. É uma das leis mais antigas de que há conhecimento. Encontramo-la no Código de Hamurabi e na legislação egípcia, grega e romana. É de notar que esta lei introduziu alguma contenção relativamente ao tratamento dado aos infractores, limitando os excessos da vingança e evitando que as pessoas fizessem justiça aplicando aos outros um castigo maior do que o mal sofrido. Em Israel, onde o perdão também era prescrito como norma, a lei de talião foi progressivamente perdendo a sua brutalidade primitiva. No Antigo Testamento o amor e o perdão ao inimigo estavam limitados aos compatriotas; o ódio ao inimigo que não fazia parte do povo de Israel era considerado perfeitamente natural.

A força invencível do amor

O

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uviram o que foi dito: Olho por olho e dente por dente. 39Mas eu digo-vos mais: Não resistam a quem vos fizer mal. Se alguém te bater na face direita, apresenta-lhe também a 40 outra. Se alguém te quiser levar a tribunal para te tirar a camisa, dá-lhe também o casaco. 41Se alguém te obrigar a levar alguma coisa até um quilómetro de distância, acompanha-o dois quilómetros. 42Se alguém te pedir qualquer coisa, dá-lha; e a quem te pedir emprestado, não lhe voltes as costas. 43Ouviram o que foi dito: Amarás o teu próximo e desprezarás o teu inimigo. 44Mas eu digo-vos mais: Tenham amor aos vossos inimigos e peçam a Deus por aqueles que vos perseguem. 45É deste modo

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unidade 4 que se tornarão filhos do vosso Pai que está nos céus, porque ele faz brilhar o Sol tanto sobre os bons como sobre os maus, e faz cair a chuva tanto para os bons como para os maus. 46Se

amarem apenas aqueles que vos amam, que recompensa poderão esperar de Deus? Não fazem também isso os cobradores de impostos? 47E se saudarem apenas os vossos amigos, que há nisso de extraordinário? Qualquer descrente faz o mesmo! 48Portanto, sejam perfeitos como o vosso Pai celestial é perfeito. Mt 5, 38-48

Jesus vai muito mais além do que a doutrina do Antigo Testamento e introduz uma novidade radical: o amor ao inimigo — seja ele quem for. Afirma a necessidade de amar quem nos odeia, amar quem nos calunia e amaldiçoa, amar quem nos bate, rouba ou maltrata. Antes de mais, percebamos que o amor a que Jesus se refere — o “ágape” — não é simplesmente um sentimento ou um afecto, mas sobretudo uma determinação da vontade; para Jesus o ideal da perfeição é querer o bem dos outros, mesmo que eles queiram o nosso mal; é agir em conformidade com essa vontade de ser bom para os outros, mesmo que as suas acções nos prejudiquem. Não se trata, pois, de amar os inimigos da mesma maneira que amamos os amigos: sentindo ternura por aqueles que nos tratam mal. O que Jesus propõe é que tenhamos uma vontade firme de fazer o bem aos outros, mesmo que para isso tenhamos de contrariar os sentimentos que experimentamos instintivamente. Amar os inimigos é, assim, desejar-lhes o bem em vez do mal; é não alimentar contra eles o ódio, o rancor, ou o desejo de vingança. E isto, embora difícil, é perfeitamente possível. Esta atitude, pela sua elevação moral, dignifica a pessoa. Na exigência que Jesus propõe, não está dito que esqueçamos o mal que nos foi feito; o que propõe é a recusa total da violência. Recomenda o diálogo, aponta caminhos novos, como o perdão e a oração (peçam a Deus por aqueles que vos perseguem) e incentiva a resolver os conflitos com métodos pacíficos, com os métodos de Deus, amante da vida e da paz. Muitas vezes é transmitida a ideia de que a não-violência é um sinal de fraqueza e de cobardia e Sermão da Montanha, por Fra Angelico


unidade 4 que, pelo contrário, é um sinal de coragem e de força pagar o mal com o mal — se possível, com um mal ainda maior. Achamos, assim, que defendemos a nossa honra e o nosso orgulho e conquistamos a admiração dos que nos rodeiam. Mas estes princípios, pressupostos na lei de talião, geram, inevitavelmente, mais inimizades e conflito, divisões e separações, guerras e destruições. É preciso inventar uma dinâmica de amor que desarme a violência e o ódio. Não se trata de ser cobarde ou, muito menos, de colaborar com a injustiça e a opressão, mas de ser capaz de gestos concretos que invertam a espiral de violência e de ódio, não respondendo na mesma moeda, nem cortando as vias do diálogo e da compreensão. Esta maneira de agir nasce da consciência de que o Homem Novo é superior à mesquinhez. Ele não pede somente que sejamos bons ou que melhoremos o nosso modo de ser; pede, sim, que sejamos como Deus e que troquemos os farrapos do nosso egoísmo pela veste magnífica da generosidade. Agir assim é ter o coração repleto da misericórdia de Deus. O modelo inspirador da acção cristã é a misericórdia do Pai, que é igualmente bondoso para bons e maus. Se Deus respondesse às ofensas humanas eliminando o pecador, não haveria ninguém sobre a Terra; mas Deus tem paciência com os ingratos por nutrir a esperança de que se convertam ao bem e à solidariedade.

Porquê amar os inimigos? Amar os inimigos é fundamentalmente estar disposto a reconciliar-se com eles. Esta atitude baseia-se, em primeiro lugar, no reconhecimento de que também nós praticamos o mal. Até no mal nós somos irmãos dos outros! Em segundo lugar, a má acção de um inimigo, aquilo que nos magoa, nunca exprime a sua completa maneira de ser; é sempre possível descobrir um elemento de bondade no nosso inimigo. Reconhecemos que o seu ódio foi criado pelo medo, orgulho, ignorância, preconceito ou mal-entendidos, mas vemos também que, apesar disso tudo, a imagem de Deus se mantém inegavelmente gravada no seu ser. Para Jesus, amamos os nossos inimigos porque partilhamos com eles a mesma natureza de filhos de Deus. A principal razão pela qual devemos amar os inimigos é perfeitamente óbvia: retribuir o ódio com o ódio, multiplica o ódio e aumenta a escuridão de uma noite já sem estrelas. O ódio não expulsa o ódio: só o amor o pode fazer. A violência multiplica a violência e a

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unidade 4 dureza multiplica a dureza, numa espiral que termina na destruição. O amor é o instrumento mais poderoso e eficaz para a paz e para a segurança da humanidade. O ódio deixa na alma humana profundas cicatrizes. Não é apenas prejudicial à pessoa a quem se dirige é igualmente prejudicial à pessoa que odeia. É como um cancro incurável que corrói a personalidade e lhe desfaz a unidade vital; o ódio faz com que a pessoa confunda o verdadeiro com o falso, o bem com o mal. O amor é, também, a única força capaz de transformar o inimigo num amigo. A conquista do coração alheio, mesmo que toldado pelo ódio, só se faz por via do amor. Para Jesus é claro que só opondo o amor ao ódio é que cada um se há-de tornar verdadeiramente humano, pois foi criado por amor. O amor aos inimigos e a não-violência são características essenciais do trabalho dos filhos de Deus pela paz.

59 Dá-me um coração... Dá-me um coração de POBRE Capaz de amar, de se abrir e de se entregar. Dá-me um coração PACIENTE Capaz de amar e de viver na esperança. Dá-me um coração PACÍFICO Capaz de amar e de semear a paz no mundo. Dá-me um coração JUSTO Capaz de amar e de tudo arriscar pela justiça. Dá-me um coração MISERICORDIOSO Capaz de amar, de compreender e de perdoar. Dá-me um coração SENSÍVEL Capaz de amar e de chorar sem desalentos. Dá-me um coração PURO Capaz de amar e de descobrir Deus na pessoa do outro. Dá-me um coração FORTE Capaz de amar e ser fiel até à morte. Dá-me um coração EVANGÉLICO Capaz de AMAR. Conselho Mundial de Igrejas – 2006


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60 Deus não nos ordena um sentimento que não possamos suscitar em nós próprios. Ele ama-nos, faz-nos ver e experimentar o seu amor, e desta «antecipação» de Deus pode, como resposta, despontar também em nós o amor. Bento XVI. Encíclica Deus caritas est

RESPONSABILIDADE DE CADA UM NA CONSTRUÇÃO DA PAZ 61 O valor dos pequenos – grandes – gestos Era uma vez uma vírgula aborrecida com a pouca consideração em que toda a gente a tinha. Nem sequer as crianças das escolas lhe davam importância. Não gostava nada de ser apenas um pequeno sinal que se põe na escrita mas não se lê. Um dia, cansada desta falta de apreço, a vírgula decidiu revoltar-se. E fê-lo da seguinte maneira: O presidente de uma grande nação escrevera nesses dias uma comunicação a um outro presidente de um grande país guerreiro, mandando a seguinte mensagem: «Paz não, vamos lançar os mísseis». A vírgula, para mostrar que tinha importância, antes da mensagem chegar ao destinatário, mudou de sítio. E então a mensagem ficou assim: «Paz, não vamos lançar os mísseis». Dando um pequeno salto, recuou uma palavra mudando de um sítio para o outro. A mudança modificou por completo o sentido da mensagem. O presidente adversário, ao ler a mensagem, percebeu que era o momento de fazer a paz. E assim, por causa de uma vírgula, a paz foi possível. Autor desconhecido

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O diálogo conduz à paz Em situações de ausência de paz, sabemos a importância que assume o diálogo como meio para chegar à compreensão do outro, ao entendimento e para pôr termo a situações de conflito. Isto é tão verdade nas relações entre povos e culturas, como nas relações interpessoais no seio da família, entre colegas, amigos ou vizinhos e individualmente na relação pessoal de cada qual consigo próprio. Mas não se trata de um diálogo qualquer! Numa sociedade em que são disponibilizados todos os meios possíveis para a comunicação, parece não haver espaço para o diálogo autêntico. Fala-se muito, mas diz-se pouco, ouve-se sem se escutar, contacta-se mas não se encontra, repete-se sem se compreender, usam-se muitos meios de comunicação, mas comunica-se pouco. É difícil dialogar neste contexto e mais difícil se torna se atendermos à sua condição essencial: a escuta. A experiência quotidiana diz-nos que é bem mais difícil escutar do que falar, pois existe em cada pessoa uma constante vontade de se sobrepor aos outros. É aqui que o diálogo aparece como o melhor meio para a paz porque permite perceber que o outro também tem valor, que tem ideias interessantes, sentimentos que suscitam em nós questões, um modo de estar e de ser únicos que nos enriquecem se estivermos dispostos a ser interpelados por eles. A finalidade de um verdadeiro diálogo não é convencer o outro da própria verdade, mas fazer-se compreender e compreendê-lo. Dialogar não é atacar o outro, mas expor e escutar, com o verdadeiro desejo de compreender e fazer-se compreender.

Papa João Paulo II, a dialogar com o homem que o tentou assassinar


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Perdoo, mas não esqueço Sempre que alguém nos ofende é como se invadisse o nosso íntimo e nele abrisse uma ferida, deixando marcas mais ou menos profundas. Esta ofensa traz implicações nas relações interpessoais e poderá gerar situações de conflito e, consequentemente, a falência da paz. Como agir nestas situações? Será que faz sentido falar de perdão como solução ou remédio para a cura das feridas? Poderemos, por outro lado, perdoar alguém sem com ele restabelecer relações de convivência? Por vezes confunde-se perdão com esquecimento da ofensa, considerando-se que o esquecimento é uma prova do perdão. A frase “perdoa e esquece” pode, pois, levar-nos a algumas confusões sobre o que significa perdoar. Vejamos o seguinte exemplo: alguém que é ridicularizado pelos colegas de turma. Fazer troça de alguém é sempre uma ofensa que magoa o íntimo das pessoas. Perante uma situação destas, poderemos registar várias reacções à ofensa: insulto verbal, agressão física, indiferença… pela negativa; ou, pela positiva: o diálogo com quem ofende a fim de se manifestar o desagrado sentido e, mais importante ainda, o perdão da ofensa. A dor causada pela ofensa exige tempo para sarar completamente. Mas o perdão é o único caminho que pode conduzir à cura. A recusa do perdão leva ao ressentimento impossibilitando o restabelecimento da paz entre as pessoas. Podemos dizer, portanto, que perdoar ajuda a curar a memória da ofensa. O perdão ajuda a crescer, tornando a pessoa mais sensível aos sofrimentos dos outros e mais humana. Por outro lado, perdoar permite-nos recordar constantemente que a pessoa não é perfeita. Embora a ofensa, mesmo perdoada, magoe profundamente alguém, a sua memória pode ter um efeito positivo: evitar fazer o mesmo a outrem. É a regra de ouro dita de uma outra forma: não faças aos outros o que de mal te fizeram a ti. Esta é a força do perdão: nasce pelo diálogo, exprime-se pela compreensão, põe termo ao ódio, não dá espaço à vingança, e conduz sempre ao encontro entre as pessoas, possibilitando o seu crescimento num ambiente de paz.

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Perdão e reconciliação Se perdoar significa querer restaurar a relação com o outro, poderemos dizer que a reconciliação é uma consequência do perdão. Mas, para haver reconciliação terá que haver reciprocidade, um esforço comum. O que significa isto? Significa que enquanto que o perdão depende de quem o oferece, a reconciliação só existe quando duas pessoas querem. Reconciliar-se com alguém significa restabelecer uma relação quebrada.

O Carpinteiro Certo dia, dois irmãos que moravam em fazendas vizinhas, separadas apenas por um ribeiro, entraram em conflito. Foi a primeira grande desavença em toda uma vida de trabalho lado a lado. O que começou com um pequeno mal-entendido explodiu finalmente numa troca de palavras ríspidas, seguidas de semanas de total silêncio. Numa manhã, o irmão mais velho ouviu bater à porta. — Bom dia. Sou um carpinteiro à procura de trabalho. Talvez o senhor me arranje algum serviço. — Sim. Está a ver aquela fazenda ali, para lá do ribeiro? É do meu vizinho. Na verdade, é do meu irmão mais novo. Estamos zangados e já não o suporto. Vê aquele monte de madeira ali no celeiro? Pois bem, use-o para construir uma cerca bem alta. — Acho que entendo a situação. Mostre-me onde estão a pá e os pregos. O irmão mais velho entregou-lhe o material e foi para a cidade. O homem ali ficou cortando, medindo, trabalhando o dia inteiro… Quando o fazendeiro chegou, não queria acreditar no que via: em vez de uma cerca, uma ponte havia sido construída, ligando as duas margens do ribeiro. Era um belo trabalho, mas o fazendeiro ficou enfurecido e disse: — Depois de tudo o que lhe contei acerca do meu vizinho, o senhor foi impertinente ao construir essa ponte. Ao olhar novamente para a ponte, viu o irmão a aproximar-se de braços abertos. Por um instante permaneceu imóvel do seu lado do rio. O irmão mais novo, então, disse-lhe: — Irmão, depois de tudo o que te disse, tiveste um gesto de um verdadeiro amigo construindo esta ponte. De repente, num só impulso, o irmão mais velho correu na direcção do outro e abraçaram-se, chorando no meio da ponte. Estavam tão emocionados com o sucedido que nem repararam que o carpinteiro guardara as ferramentas e fazia menção de partir. Quando se aperceberam, o irmão mais velho disse-lhe: — Espere, fique um pouco connosco! Tenho outros trabalhos para o senhor. Mas o carpinteiro respondeu: — Seria bom ficar, agora que a paz regressou, mas tenho outras pontes para construir... Adaptado do Jornal Missão Jovem


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Perdão e justiça Será justo perdoar alguém que provocou uma ofensa? A justiça não requer antes o castigo da pessoa que ofendeu? Na verdade, o perdão não se opõe à justiça, mas sim ao ódio, ao rancor e à vingança. Castigar alguém com ódio e por vingança não é, definitivamente, o caminho para a paz. A Lei de Talião não é, por isso, caminho porque, querendo ser justa, falta-lhe a força do perdão, que, no fundo, é a força do amor. Se alguém, querendo ser justo, ofende porque foi ofendido não está a ser original, mas repetidor de um acto que se vai somando e, por isso, se vai acumulando e criando novas dificuldades. Daí não pode nascer a paz, mas sim o ressentimento e o ódio. O perdão é assim um acto de coragem e não de fraqueza, pois enfrenta a injustiça do mal que é cometido. O primeiro desafio para cada pessoa é não repetir a mesma ofensa, a mesma injustiça; é não fazer aos outros o que não é desejado para si.

62 A satisfação produzida pela vingança é de curta duração e, mais do que sarar a ferida do ofendido, contribui apenas para a crispar e para criar violência. O perdão é um acto criativo que transforma os indivíduos de prisioneiros do passado em pessoas que ficam em paz com as memórias do passado. Annalisa Giulanini. A Capacidade de perdoar

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unidade 4 O que dizer do castigo que os pais aplicam aos filhos, as escolas aos alunos e, em geral, aqueles que têm responsabilidade sobre a educação dos outros, quando eles cometem actos reprováveis? É preciso ver que estes castigos não são ditados pelo ódio nem pela vingança, mas pelo amor, pela vontade de ver o outro verdadeiramente feliz; e as pessoas só podem ser felizes se aprenderem a não magoar os outros e a respeitá-los. Esta é a finalidade dos castigos dados por quem tem responsabilidade na educação das crianças e jovens: vê-los crescer de forma saudável, para serem adultos felizes. A atitude que está na base destes castigos é, portanto, o amor. Também a prisão e outros castigos dados pela sociedade às pessoas que cometem infracções tem vários objectivos; referimos apenas dois: 1) Tornar segura a vida social, afastando do convívio com os outros, aqueles que ainda não aprenderam a estabelecer relações de fraternidade; 2) Levar a pessoa que cometeu a infracção a mudar de atitude, para que possa relacionar-se com os outros de forma saudável. Nenhum destes objectivos é ditado pelo ódio ou pela vingança, bem pelo contrário. E é por isso que as prisões devem ser cada vez mais lugares de aprendizagem da vivência social, em vez de serem lugares onde as pessoas se sentem humilhadas e objecto do ódio e da vingança da sociedade.

63 As quatro colunas da paz Espírito clarividente que era, João XXIII identificou como condições essenciais da paz quatro exigências concretas da alma humana: a verdade, a justiça, o amor e a liberdade. A verdade, dizia ele, será fundamento da paz, se cada indivíduo honestamente tomar consciência não só dos próprios direitos, mas também dos seus deveres para com os outros. A justiça edificará a paz, se cada um respeitar concretamente os direitos alheios e se esforçar por cumprir plenamente os próprios deveres para com os demais. O amor será fermento de paz, se as pessoas sentirem como próprias as necessidades dos outros e partilharem com eles o que possuem, a começar pelos valores do espírito. Finalmente a liberdade alimentará e fará frutificar a paz, se os indivíduos, na escolha dos meios para alcançá-la, seguirem a razão e assumirem corajosamente a responsabilidade dos próprios actos. João Paulo II

Da mensagem do Papa João Paulo II para o Dia Mundial da Paz — 2003


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A Pintura Havia um rei que se dispôs a oferecer um grande prémio ao artista que fosse capaz de captar numa pintura a paz perfeita. Foram muitos os artistas que o tentaram. O rei observou e admirou todas as pinturas, mas houve apenas duas de que ele realmente gostou; e teve de escolher entre ambas. A primeira era um lago muito tranquilo. Este lago era um espelho perfeito onde se reflectiam umas plácidas montanhas que o rodeavam. Sobre elas encontrava-se um céu muito azul com ténues nuvens brancas. Todos os que olharam para esta pintura pensaram logo que ela reflectia a paz perfeita. A segunda pintura também tinha montanhas. Mas estas eram escabrosas e estavam despidas de vegetação. Sobre elas havia um céu tempestuoso do qual se precipitava um forte aguaceiro com relâmpagos e trovões. Montanha abaixo retumbava uma espumosa torrente de água. Tudo isto se revelava muito pouco pacífico. Mas, quando o rei observou mais atentamente, reparou que atrás da cascata havia um arbusto crescendo numa fenda da rocha. Neste arbusto encontrava-se um ninho. Ali, no meio do ruído da violenta catarata, estava um passarinho placidamente sentado no seu ninho... Paz perfeita! O rei escolheu a segunda e explicou: — Paz não significa estar num lugar sem ruídos, sem problemas, sem trabalho árduo ou sem dor. Paz significa que, apesar de tudo isso, permanecemos calmos no nosso coração. Este é o verdadeiro significado da paz. Tudo nos pode ser roubado, mas uma paz interior, laboriosamente alcançada, nenhuma tempestade a poderá aniquilar. Autor Desconhecido

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64 Felizes os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus. Jesus Cristo

O fruto da fé é o amor. O fruto do amor é o serviço. O fruto do serviço é a Paz. Madre Teresa de Calcutá

A paz não pode ser mantida à força; somente pode ser atingida pelo entendimento. O mundo não está ameaçado pelas más pessoas, mas sim por aqueles que permitem a maldade. Albert Einstein

Não existe um caminho para a paz; a paz é o caminho. A humanidade não pode libertar-se da violência senão por meio da não-violência. Mahatma Gandhi

Não direi mal de ninguém, mas só o que souber de bom acerca de cada pessoa. Benjamin Franklin

Discordo daquilo que dizes, mas defenderei até à morte o teu direito de o dizeres. Voltaire

A paz vem de dentro de ti próprio, não a procures à tua volta. Buda


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65 Hoje, nesta noite do mundo e na esperança da Boa Nova, afirmo com audácia a minha fé no futuro da Humanidade. Nego-me a concordar com a opinião daqueles que acreditam que o homem é cativo da noite sem estrelas, do racismo e da guerra e que a radiante aurora da paz e da fraternidade jamais nascerá... Creio firmemente que, mesmo entre obuses que atiram e canhões que ressoam, permanece a esperança de um radiante amanhecer. Atrevo-me a acreditar que um dia todos os habitantes da terra poderão ter três refeições por dia para a vida do seu corpo; educação e cultura para o aprimoramento do seu espírito; igualdade e liberdade para a vida do seu coração. Creio também que um dia, toda a Humanidade reconhecerá em Deus a fonte do seu amor. Martin Luther King

66 As mãos Com mãos se faz a paz se faz a guerra. Com mãos tudo se faz e se desfaz. Com mãos se faz o poema — e são de terra. Com mãos se faz a guerra — e são a paz. Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra. Não são de pedras estas casas mas de mãos. E estão no fruto e na palavra as mãos que são o canto e são as armas. E cravam-se no Tempo como farpas as mãos que vês nas coisas transformadas. Folhas que vão no vento: verdes harpas. De mãos é cada flor cada cidade. Ninguém pode vencer estas espadas: nas tuas mãos começa a liberdade. Manuel Alegre. O Canto e as Armas

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67 A paz voltará Se crês que o sorriso é mais forte que as armas, Se crês no poder de uma mão estendida, Se crês que aquilo que une os homens é mais forte que aquilo que os separa, Se crês que ser diferente é uma riqueza e não um perigo, Se sabes olhar para os outros com amor, Se achas que deves dar o primeiro passo ao encontro do outro, Se te alegras com a alegria dos outros, A PAZ VOLTARÁ! Se a injustiça de que os outros padecem te faz sofrer tanto como a de que tu sofres, Se sabes dar gratuitamente um pouco do teu tempo e do teu amor, Se aceitas que os outros te ajudem, Se crês que o perdão vale mais do que a vingança, Se escutas quem te faz perder tempo e permaneces com o sorriso nos lábios, Se sabes aceitar a crítica sem te defenderes, Se crês que os outros te podem ajudar a mudar, Se o Evangelho não te escandaliza, A PAZ VOLTARÁ! Se sabes aceitar um ponto de vista diferente do teu, Se não atribuis as tuas culpas aos outros, Se o outro é para ti sobretudo um irmão, Se a cólera é para ti sinal de fraqueza e não de força, Se olhas para o pobre e oprimido sem te considerares herói, Se crês que o amor é a única força, Se crês que a paz é possível, A PAZ VOLTARÁ! J. F. Moratiel

A PAZ

Nasce no íntimo de cada pessoa e vive-se no encontro com os outros.

SONHO E COMPROMISSO DA HUMANIDADE

Em permanente construção, assente nos valores do diálogo, respeito, justiça, verdade e liberdade.

É falada, escrita, pintada, esculpida, tocada, cantada, representada, simbolizada, sentida, desejada... VIVIDA.


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PARA CANTAR 1. DEUS NO MUNDO Olhai o admirável mundo que habitamos Tentai descobrir nele o Senhor Pois vivemos num Universo

Os homens são irmãos de todos Deus é Pai. Paz e Bem! Amigos, mãos nas mãos chorando se alguém cai.

que nos revela Deus Tenta pela fé ver Se a chuva que cai do céu

3. O SENHOR CONDUZ

Não te fará despertar ânsia de louvar Deus

O senhor conduz a marcha deste mundo

Olhai o admirável mundo que habitamos…

cada dia, cada instante

Tenta pela fé ver

Ele está presente, está connosco aqui

Se a terra, o mar e céu

porque unidos no amor

Não te farão despertar ânsia de louvar Deus

O Senhor criou o homem

Olhai o admirável mundo que habitamos…

e lhe deu grande tarefa

Tenta pela fé ver

de colaborar com Ele

Se o sorriso de uma criança

na obra da criação

Não te fará despertar ânsia de louvar Deus

O senhor conduz a marcha...

Olhai o admirável mundo que habitamos…

Ó Senhor Tu bem o sabes

Tenta pela fé ver

temos sede de amor

Se o rosto de um velhinho

sonhamos com o infinito

Não te fará despertar ânsia de louvar Deus

queremos tua amizade

Olhai o admirável mundo que habitamos…

O senhor conduz a marcha...

Tenta pela fé ver

Todo o homem que perdoa

Se um jovem que enfrenta a vida

a falta do seu irmão

Não te fará despertar ânsia de louvar Deus

está a construir em Cristo o Reino da Salvação

2. PAZ E BEM Paz e Bem!

4. SER FELIZ

A toda a criatura saúdo por irmã.

Se procuras em vão ser feliz

Paz e Bem!

Ouve o que diz esta canção

A longa noite escura é gémea da manhã

Se deveras tu queres ser feliz

Paz e Bem!

Hás-de servir teu irmão

O grito é um abraço a todos estendido.

Todo o homem é um jardim

Paz e Bem!

onde se pode colher uma flor

No tempo e no espaço caminho percorrido.

Todo o homem é nosso irmão

Paz e Bem!

e se deve tratar com amor

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Tudo te sorrirá se tu sorrires

Que a maneira de chegar ao céu é amar

Tudo te cantará se tu cantares

É amar, é amar o pobre o rico o pecador

Tudo, tudo, tudo te amará

E tudo o que nesta vida é querido do Senhor

se tu servires, se tu amares

Se Deus quiser,

Se te queixas que o mundo vai mal

Hei-de deixar de pensar em mim

pensa que o mundo és tu e eu

E assim roubar tempo ao tempo para o adorar

Só depende de nós afinal

Serei feliz e comigo será todo o que cantar

que o mundo seja melhor

8. GUIADO PELA MÃO 5. SERIA BELO

Guiado pela mão com Jesus eu vou

Que seria do mundo inteiro

Sigo como ovelha

se cada homem desse uma flor

que encontrou pastor

em troca do ódio

Guiado pela mão

que tem no coração

com Jesus eu vou aonde Ele vai

Seria belo, seria feliz

Se Jesus me diz:

E assim

“Amigo, deixa tudo e vem comigo”

o mundo seria um jardim

Como posso recusar o seu amor?

Porque não somos como uma flor

Se Jesus me diz:

deixarmo-nos regar pelo amor

“Amigo, deixa tudo e vem comigo”

Seria belo, seria feliz…

Minha mão porei na sua; irei com Ele Guiado pela mão...

6. TODO O MUNDO

Se Jesus me diz: “Amigo, deixa tudo e vem comigo”

Todo o mundo é um hino de glória

Como posso ser feliz sem ir com Ele?

à grandeza de Deus nosso Rei

Se Jesus me diz:

Cada homem é a imagem sagrada

“Amigo, sou teu tudo, vem comigo”

do amor de Deus nosso Pai

Seguirei o seu caminho irei com Ele

Aleluia, Deus Pai e Senhor Aleluia, p’lo teu grande amor.

7. SE CRÊS EM DEUS

9. DEIXA DEUS ENTRAR Deixa Deus entrar na tua própria casa Deixa-te tocar pela Sua Graça

Se crês em Deus

Dentro em segredo, reza-lhe sem medo

Se acreditas que Ele há-de voltar

Senhor! Senhor! Que queres que eu faça?

Segue o caminho que Jesus nos veio ensinar

Só no fundo do ser eu vou encontrar

Então verás que a vida se pode tornar melhor

As razões de viver, as razões de amar

Cantarei, cantarei

É bem dentro de nós que está a raiz

o que Deus nos veio ensinar

Que nos faz amar e ser feliz.

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unidade 4 Deixa Deus entrar na tua própria casa... Tanta coisa me impede de O escutar Me desvia da meta que me propus Vou ter coragem de O deixar entrar Vou seguir o clarão da Sua Luz

11. CIDADÃO DO INFINITO Por escutar uma voz que disse Que faltava gente para semear Deixei meu lar e parti sorrindo E assobiando para não chorar Fui-me alistar entre os operários

10. NOVA GERAÇÃO Eu venho do Sul e do Norte, do Oeste e do Leste e de todo o lugar Estradas da vida eu percorro levando o socorro a quem precisar Assunto de paz é meu forte eu cruzo montanhas e vou aprender O mundo não me satisfaz que eu quero é a paz, o que eu quero é viver No peito eu levo uma cruz no meu coração, o que disse Jesus Eu sei que eu não tenho a idade e a maturidade de quem já viveu Mas sei que já tenho a idade de ver a verdade o que eu quero é ser eu O mundo ferido e cansado

Que deixam tudo para Te ir levar E fui lutar por um mundo novo Não tenho lar mas ganhei um povo Sou cidadão do infinito Do infinito, do infinito E levo a paz no meu caminho No meu caminho, no meu caminho Eu procurei semear a paz E onde fui andando falei de Deus Abençoei quem fez pouco caso E espalhou cizânia onde eu semeei Não recebi condecoração Por haver buscado um país irmão Vou semeando por entre o povo E vou sonhando este mundo novo Sou cidadão do infinito...

de um negro passado, de guerras sem fim tem medo da bomba que fez e da fé que desfez e aponta p’ra mim No peito eu levo uma cruz no meu coração, o que disse Jesus Eu venho trazer meu recado não tenho passado mas sei entender um Jovem foi crucificado por ter ensinado a gente a viver Eu grito ao meu mundo descrente eu quero ser gente, eu creio na Cruz eu creio na força do jovem que segue o caminho de Cristo Jesus No peito eu levo uma cruz…

12. NAVEGADORES Todo o sonho é promessa de futuro E o Evangelho em caravelas fez-se ao mar No azul das ondas traçou o caminho duro Içou as velas com a cruz a brilhar Navegamos o mar do nosso tempo E gritamos bem alto a novidade: A cruz de Cristo é luz que dá alento p’ra entre os homens criar unidade (bis) Todo o mar é caminho de aventura E os perigos desafiam este povo Seguindo o céu estrelado em noite escura No seu peito inscreve o rumo novo

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232

unidade 4

Navegamos...

Cantai comigo que o Sol já vem

Toda a terra se abraça neste mar

E eu já alcanço Jerusalém

E o padrão assinala o momento

Se o mundo cansa de tanta guerra

Em que os homens constroem um só lar

Uma criança nasceu da terra

Dando as mãos para erguer o novo tempo.

Um dia novo Ela nos traz

Navegamos...

Dará ao povo a flor da paz

Todo o mundo está sempre em construção

Surgi depressa que não é cedo

E cada homem procura a verdade

Cantai comigo irmãos do medo

Descobridor é quem lê o coração

Cantai comigo que o sol já vem

E semeia nele a fraternidade.

E eu já alcanço Jerusalém Hoje um Menino venceu a morte Nasceu franzino mas é Deus forte

13. SHEMA Shema Israel Adonai Elokêinu Adonai Echad

Será chamado Emanuel E sustentado de leite e mel De longe, longe chegam os povos Vindo à procura de tempos novos Cantai comigo que o Sol já vem

14. SHALOM

E eu já alcanço Jerusalém

Shalom rave rim, Shalom rave rim Shalom, Shalom Leritra a ó, Leritra a ó Shalom, Shalom

16. SÃO DIAS QUE PASSAM São dias que passam, são horas que vão

15. CANÇÃO DA CIDADE NOVA

São lábios que cantam são mãos que se dão

Ó navegante do mar do medo

E deixam saudades de não ser assim

Ouve um instante o meu segredo

Toda a vida a vida de agora

Ó caminhante da noite fria

É tempo, é tempo de aprender a ser

Sente um instante minha alegria

Subindo por dentro e sempre a crescer

Ao longe, longe já aparece

Pisando caminhos, esquecendo talvez

uma cidade que resplandece

o deserto de ontem sozinho

Ao longe, longe o sol já vem

Tudo quanto penso, tudo quanto sou

E eu já alcanço Jerusalém

é grande, é imenso é tudo o que dou

Virá o pobre do mundo inteiro

e ao dá-lo recebo e fico maior

Há pão que sobre e sem dinheiro

do que sou quando me nego

Há pão e vinho em abundância

Criança era outrora, cresci e esqueci

E o seu caminho é sem distância

na aposta da vida ganhei e perdi

Não tem distâncias esta cidade

O risco me trouxe até ao que sou

Senão o medo que nos invade

Nunca basta a vida que foi

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unidade 4

17. OS LÍRIOS

233

E então decida novamente construir o amor que faz o mundo irmão

O que importa são os lírios

E gente então procure gente

porque os lírios, lírios são

buscando se compreender

Vinde todos e cantemos a canção

destruindo os muros qu’inda nos separam

que nos une, que nos enche

e não deixam nunca povo algum crescer

que nos faz estar aqui onde a vida e a amizade nos sorri Vem dos lados da montanha

19. VÊ LÁ BEM

uma canção que nos diz que o vento que a acompanha é feliz

Vê lá bem que um ser livre só faz o que quer

Cantai todos como o vento

se tiver amor no pensamento (bis)

que a floresta faz vibrar

Decidir, dizer sim, dizer talvez ou não

o silêncio da floresta faz cantar

é tarefa que vem cá de dentro (bis)

Nasce o dia, vem a tarde,

Deixa então que o teu peito se encha de ar

cai a noite sobre nós

Vai gritando que ser livre também é amar

Fica a vida que nos arde, fica a voz

Há Alguém que te quer livre como a ave

da saudade, da lembrança,

que voa no sonho da criança

da presença que ficou a dizer-nos

Decidir é difícil mas nunca estás só

que a esperança não findou

Dá um passo à frente e avança Deixa então que o teu peito se encha de ar Vai gritando que ser livre também é amar

18. OS MUROS VÃO CAIR Os muros vão cair Os muros vão cair E mesmo que demore muito

20. VEM TER CONNOSCO

Eu só sei dizer que os muros vão cair

Vem, vem ter connosco

Tijolo vai sobre tijolo para erguer o lar

E canta a mesma canção

de quem deseja amar

O mundo é bem melhor

Tijolo também ergue muros

Quando alguém nos dá a mão

para dividir quem se pode encontrar

A

Vizinhos já não se conhecem

2 e 1 são 3, 3 e 1 são 4, 4 e 1 são 5;

nem se podem cumprimentar

e assim já somos mais, são 6;

porque há mais cimento

6 e 1 são 7, 7 e 1 são 8

construindo muros

E nunca somos demais

do que passarelas para dialogar

Vem, vem ter connosco

Os muros vão cair...

E dá-nos a tua mão

Quem sabe um dia minha gente

Ninguém se basta a si próprio

olhando para o céu não veja a divisão

Nesta nossa geração

.

e

i

o

u


234

unidade 4

21. UM AMIGO Um amigo é um bem, um tesouro que se tem Sois vós, luz de estrelas que me guiam mais além São momentos bons e maus

E os jovens têm fé no amor Vem então Vamos ajudar a construir Um mundo com justiça e pão Sem guerra e dor com paz e amor Vem irmão

nesta estrada percorrida Digo mais:

23. CANTA COMO UMA AVE

não vos trocava

Canta, canta como uma ave ou um rio

por nada desta vida E talvez um dia chegue a hora do adeus deixar-vos-ei com pena amigos meus Mas mesmo longe vós estais perto, ao pé de mim pois entre amigos é assim Um amigo é um irmão nosso pensar, nossa mão Meus amigos, estais aqui para vós canto esta canção O tempo voa nestes instantes e já estamos de partida Digo mais: não vos trocava por nada desta vida

Dá o teu braço aos que querem sonhar Quem trouxer mãos livres ou um assobio Nem é preciso que saiba cantar Tu que tens dez reis de esperança e de amor grita bem alto que queres viver Compra pão e vinho, mas rouba uma flor tudo o que é belo não é de vender Não vendem ondas do mar nem brisa ou estrelas, sol ou lua cheia Não vendem moças de amar nem certas janelas ou dunas de areia Canta, canta como uma ave ou um rio.. Tu que crês num mundo maior e melhor grita bem alto que o céu está aqui Tu que vês irmãos, só irmãos em redor crê que este mundo começa por ti Traz uma viola, um poema um passo de dança, um sonho maduro

22. MEU IRMÃO

Canta glosando este tema: em cada criança há um homem puro

Meu irmão

Canta, canta como uma ave ou um rio..

Porque há guerra, desespero e dor

Tu que crês num mundo maior e melhor

Um mundo de ódio, raiva e fome

luta p’la paz, p’la justiça e p’lo bem

Com injustiça e sem amor?

Faz da vida um serviço de paz e de amor

Meu irmão

e a alegria chegará também

Porque não tens alegria e paz

Não queiras ódios nem guerras

E porque o mundo novo

violência, a morte, injustiça, opressão

Não acontece mas se faz?

Não queiras falsos amores

Porque ainda há crianças a sorrir

que esmagam os outros e matam o irmão

.


unidade 4

24. CANTATA DA PAZ

Se a esperança cai desfeita a teus pés

Vemos, ouvimos e lemos

Recomeça, recomeça

Não podemos ignorar

Irei contigo

Vemos, ouvimos e lemos Relatórios da fome O caminho da injustiça

26. DOU-VOS UM MANDAMENTO NOVO

A linguagem do terror

Dou-vos um mandamento novo

Vemos, ouvimos e lemos...

Dou-vos um mandamento novo

A bomba de Hiroshima

Sorrir e querer dar as mãos

Vergonha de todos nós

Dou-vos um mandamento novo

Reduziu a cinzas

Dou-vos um mandamento novo

A carne de crianças

Dou-vos um mandamento novo

Vemos, ouvimos e lemos...

Amar cada irmão

D’África e do Vietname

Dou-vos um mandamento novo

Sob a lamentação

Que é belo e universal

Dos povos destruídos

Cada passo é uma flor

Dos povos destroçados

Aberta para amar

Vemos, ouvimos e lemos...

Este rio que agora canta

Nada pode apagar

Tem a voz que não é minha

O concerto dos gritos

É o prémio de um caminho

O nosso tempo é pecado organizado

De um caminho para a vida Dou-vos um mandamento novo…

25. AO AMOR QUE TE ARRASTA

Neste mundo em que vivemos Muito se tem a fazer

Ao amor que te arrasta não perguntes

Gritar bem alto do mundo

Onde vais, onde vais?

Para alguém vir ver

Irei contigo

Esta janela p’ró mundo

Se aos homens vais falar das injustiças

Este abraço de prazer

e da paz e da paz

É o choro da criança

Irei contigo

E da vida a nascer

No corpo da terra semearás Flores de trigo, flores de trigo E às bocas da fome anunciarás Pão de paz, pão de paz

27. PAZ É UM GRITO DE ESPERANÇA

Irei contigo

Paz é um grito de esperança

Se as estradas que percorres

Num sorriso de criança

são de paz e justiça, e justiça

É sentir numa flor

Irei contigo

Que é proibido amar sem amor

.

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236

unidade 4

28. TU VENS SENHOR

Façamos com que os homens felizes sejam

Tu vens Senhor dar amor

mais e mais.

Dá-nos a paz e a tua fé

Vamos dar as mãos ao mundo e gritar paz…

E assim nós seguiremos enfim

Os homens praticam a guerra

Os teus passos de amor e de paz

Já não pensam em paz

Tu és meu Deus, meu Senhor

Vamos transmitir o nosso ideal

Vem a nós, à nossa casa

Juntos conseguiremos

E assim nós seguiremos enfim

Pois já não estamos sós.

Os teus passos de amor e de paz

Mostraremos que a paz existe entre todos nós, cantemos. Vamos dar as mãos ao mundo e gritar paz…

29. HINO À PAZ

Há crianças que morrem de fome

Vamos dar as mãos ao mundo e gritar paz

Crianças que não deixam viver

Chega de ódios e guerras entre irmãos Lutemos pela vida e pelo amanhã Só assim salvaremos o mundo Espalhando a paz, paz, paz O escuta é amigo de todos E irmão de todos os outros escutas Assim nos ensinou Baden-Powell Acabemos com as guerras, com o ódio, viva a paz

Crianças que vivem sofrendo até morrer Há filhos que são órfãos De pais mortos na guerra Temos de espalhar a paz por toda a terra. Vamos dar as mãos ao mundo e gritar paz…


unidade 4

237

Bibliografia Geral • BÍBLIA SAGRADA: Tradução interconfessional, 1999. Difusora Bíblica. Lisboa. • IGREJA CATÓLICA. 1987. Concílio Vaticano II. Editorial Apostolado da Oração. Braga. • IGREJA CATÓLICA. 2005. Catecismo da Igreja Católica. Gráfica de Coimbra. Coimbra. • LOPES Machado. 1984. Atlas Bíblico, Geográfico-Histórico. Difusora Bíblica. Lisboa. • STILWELL. Peter (Coord.). 1989. Caminhos da Justiça e Paz: doutrina social da Igreja: documentos de 1891 a 1987. Rei dos Livros. Lisboa. • VIDAL Marciano. 1993. Moral de Atitudes. Editora Santuário. S. Paulo.

Unidade Lectiva 1 • COUPER Heather. 1993. Atlas do universo. Civilização. Porto. • DOLCETA Roberto Capuzo. 2000. O universo: origens, teorias, perspectives. Caminho. Lisboa. • GALLAVOTTI Barbara. 2000. Segredos da vida. Asa. Porto. • GRELOT Pierre. 1980. As origens do homem – os onze primeiros capítulos do Génesis. Difusora Bíblica. Lisboa. • ROSIQUE Javier. & BARBIERI, Edison. Ecologia: preservar para viver. Cidade Nova. Parede. • URIBE Félix Nunes. 1997. Deus é humor. Gráfica de Coimbra. Coimbra. • PARISI Melania. 2001. A mitologia clássica: deuses e heróis gregos e romanos. Caminho. Lisboa.

Unidade Lectiva 2 • Alcorão. 1979. Publicações Europa-América. Mem Martins. • ARMSTRONG Karen. 2003. O islamismo: breve história. Círculo de Leitores. Lisboa. • BRIGTH John. 1978. História de Israel. Edições Paulinas. S. Paulo. • CLEMENTE. Manuel. 2000. A Igreja no Tempo – História Breve da Igreja Católica. Grifo. Lisboa. • DELUMEAU Jean (Dir.). 1997. As Grandes Religiões do Mundo. Editorial Presença. Lisboa. • TELLO António, PALACIO Jean-Pierre & COMA-CROS Daniel. 2005. Atlas básico das religiões. Didáctica. Lisboa.

Unidade Lectiva 3 • BASTOS Ana Paula. 2003. Afectividade na Adolescência – Sexualidade e educação para os valores. Edições Paulinas. Apelação. • BRACONNIER Alain & MARCELLI Daniel. 2000. As mil faces da adolescência. Climepsi Editores. Lisboa. • CARNEIRO Roberto. 2001. Educar hoje – Enciclopédia dos Pais – Educar Adolescentes. Ed Lexicultural. Lisboa. Vols I e II. • PELLETIER Anne-Marie. 2001. O Cântico dos Cânticos. Difusora Bíblica. Lisboa. • SAINT-EXUPÉRY Antoine de. 2001. O principezinho. Editorial Presença. Lisboa. • SPRINTHALL Norman A. & COLLINS, W. Andrew. 2003. Psicologia do adolescente – uma abordagem desenvolvimentista. Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa. • ZEZINHO Padre. 1980. Se eu pudesse falar aos jovens. Edições Paulinas. Apelação.

Unidade Lectiva 4 • GIULANINI Annalisa. 2006. A Capacidade de Perdoar – Implicações Psicológicas e Espirituais. Paulus. Apelação. • LABBE Brigitte & PUECH Michel. 2002. A Guerra e a paz. Terramar. Lisboa. • MARTINO Renato Raffaele. 2006. Paz e Guerra. Principia Editora. Lisboa.

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