Crítica Performativa - Caranguejo Overdrive

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v crítica performativa textos Ruy Filho (editor) Andrew Knoll (convidado) artes gráficas Patrícia Cividanes realização ANtRO POSITIVO E festival internacional de teatro de curitiba 31 de março de 2016

11h às 19h memorial de curitiba


caranguejo overdrive aquela cia.

rio de janeiro


Crítica Performativa é uma idealização da revista Antro Positivo e consiste em construir uma resenha sobre um único espetáculo, durante 8 horas, em frente ao público e aberta à sua participação

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Direção

Marco André Nunes Texto

Pedro Kosovski Com

Carolina Virguez Alex Nader Eduardo Speroni Fellipe Marques Matheus Macena Músicos em cena

Felipe Storino Maurício Chiari Samuel Vieira Direção Musical

Felipe Storino Iluminação

Renato Machado Instalação Cênica

Marco André Nunes Ideia Original

Maurício Chiari Realização

Aquela Cia. De Teatro

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o bras(z)il nĂŁo conhece o bras(z)il


OS CARANGUEJOS QUE SOMOS Como se vivêssemos de um lado ao outro, caminhando sem nunca andar pra frente, e, assim, permanecêssemos percorrendo tangencialmente a realidade, para nessa realidade, nunca de fato acessada, aprisionados pelos limites impostos por outros, por interesses, por meios escondidos, sobrevivermos ao cotidiano ou tentarmos, ou imaginarmos estarmos tentando sem provocar nenhum ruído radicalmente consistente. Somos como animais aprisionados em cativeiro, domesticados, submetidos, e nunca nos perceberemos assim, pois nunca nos foi dada outra opção. Fomos, antes, animais caçados, perseguidos, destruídos. Feitos os caranguejos. Feitos esses serem que se alimentam com sobras. Caranguejos vivem em seus buracos a constante tentativa de sobrevivência. Caranguejos são iguarias para satisfazer os prazeres banais. É preciso quebrar-lhes a carapaça para conquistar suas carnes. Também assim se age sobre o homem comum, em maior ou menor agressão. Quebram nossas proteções tendo por martelo manipulações sociais, culturais, econômicas e outras. Mas, e principalmente, políticas. Pois é pela política que acabamos expurgados do centro dos acontecimentos, manipulados para, antes de podermos reagir, não desvendar estarmos servindo de alimento exatamente a quem deveria ser extinto. A vida, em seu aspecto caótico, é o mangue aonde nos afundamos. Só que, no fundo desse lamaçal, não encontramos alimentos. Somos nós, os restos. Enquanto o poder se diverte destruindo nossos corpos carapaças, nossas percepções, saboreiando nossa utilidade servil. O espetáculo Caranguejo Overdrive explode tal analogia em plena cara, revela-a sem pudor, violentamente, e se potencializa para muito mais ao ser teatro, enquanto conta uma terrível parte dessa histórica manipulação, durante a modernização da cidade do Rio de Janeiro. O mangue desaparece ao ser aterrado. O mangue permanece na reinvenção do homem como animal de estimação dessa nova sociedade. Tornamo-nos, então, modernos.

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DA PALAVRA AO TEATRO O espetáculo inicia com a precisão de quem necessita do olhar para desenhar um determinado movimento. Enquanto o palco é ocupado por diversos atores, a luz chega à fala, após iniciada e presente, e não o contrário, como comumente exige o trato tradicional, em que primeiro se acende o refletor para então começar o texto. Esse primeiro movimento avisa sem rodeio ser a palavra fundamental. As cenas contam a história do Rio, contam a trajetória do catador de caranguejo, contam sobre a Guerra do Paraguai, contam os nossos acontecimentos políticos até o presente. Contam, porque é impossível ao teatro não contar. Não se trata, porém, de ser o trabalho meramente narrativo ou somente histórico. Junto ao dizer, as cenas são quase sempre nada realistas, o que é diferente de definir como não realistas – a primeira sentença afirma, a segunda nega, e isso muda tudo –, exigindo dos atores reinvenção dos corpos e gestuais, como fuga dos vocabulários literais. Assim, entender a presença determinante da palavra, exige observá-la menos em seu papel narrativo e mais por sua qualidade de apresentação a contextos cênicos. Para tanto, o texto de Pedro Kosovski constrói blocos de palavras poeticamente fortes aos desenhos dos contextos específicos exigidos pela encenação de Marco André Nunes, em sua eficiente invenção de imagens inesperadas e igualmente potentes. O início da fala ao microfone, para o qual a iluminação fora sem pressa dirigida, traz dois aspectos essenciais que permearão a palavra até o final: seu existir como escrita e sua capacidade de construção do imaginário. Ao tempo em que é informativa, é também estética, levando-a a se colocar também em dois níveis de diálogo com o espectador: informação e experiência. Ouvimos e inventamos significados às palavras em sua crueza de vozes e quando intermediadas por microfones via os atores e as sensações de memórias que não possuímos. As palavras de Pedro Kosovski subvertem o sentido do teatro ser meramente um movimento de contação, ainda que conte e muito, para fazer do exercício de dizer algo como o radical encontro com a importância de estarmos juntos em uma sala de teatro.

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AS FALAS SÃO DEFESAS E ATAQUES Falar, esse gesto aparentemente inocente, quase inconsciente, tanto quanto o respirar, não é exatamente isso. É mais. Impõe no seu exercício a condição de ser consequente a quem se é, ao que se quer, ao por que se faz. Mas falar é também ainda outro tanto. É paradoxalmente ataque e defesa, diz a peça. Essa é exatamente a complexidade maior perdida ou esquecida: a inevitável condição de ser a palavra sempre uma duplicidade nela mesma. Sua própria dubiedade. Propriedades de quem a usa e de quem a recebe, seus sentidos são obtidos e compreendidos de modos diferentes nessas condições de falar e ouvir. Como, cada vez mais, damos importância ao falar, enquanto o ouvir se esvazia de estima, acabamos prisioneiros de nós mesmos. Quando Niklas Luhmann trouxe o conceito de Improbabilidade da Comunicação, muito das certezas sobre a fala sucumbiram ao óbvio. Explicou-nos, aqui apresentado de modo reduzido, que nem todo o pensamento pode ser transformado em palavras, como as sensações, por exemplo, e o fato de estarem aprisionadas à subjetividade de que as pronuncia. Portanto, o dito é já reduzido ao pensamento, e seu entendimento é limitado pela subjetividade de quem a escuta. Em um possível epicentro, a palavra se confirma informação entre duas pessoas, desviando-se para se efetivar em defesa e/ou ataque. É preciso compreender, então, ambas as possibilidades não serem antagônicas, e sim simultâneas. Se defender e atacar são a mesma ação, portanto, falar se revela o movimento mais profundo de exposição e confrontamento. Expõe e confronta a si e ao outro. Em Caranguejo Overdrive, a fala é a ampliação estética dessa dubiedade. O espetáculo expõe artistas e espectadores à urgência de nos reaproximarmos da história do país, para além de ideologias marcadas por movimentos e discursos programáticos, enquanto confronta a miséria de nossas memórias histórica e política agradavelmente ignorantes.

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EXISTIR POR ONDE Em certo momento, o caranguejo personagem, cuja presença é voz-depoimento, apenas diz sobre seu mundo: um buraco preto, quente, lamaçal. Nesse submundo, na verdade, denso e enigmático, o animal sustenta sua proteção. É onde existe livre. E também seu maior perigo, pois sabem os catadores que ali, no escuro do buraco, ele estará. Basta enfiar as mãos na lama e dela arrancar-lhe sem qualquer permissão. Curiosamente, por ser o que assistimos teatro, percebemo-nos em igual condição. Estamos também em uma espécie de buraco escuro, quente e lamacento, ainda que metaforicamente. Ao entrarmos em uma sala de espetáculo seguimos a uma espécie de esconderijo às avessas, no qual o indivíduo é convidado a pertencer a outro mundo, a outros pensamentos, outros discursos, experienciar, pela proposição de uma poética, outro convívio e reconhecimento de si mesmo se comparado ao mundo de sempre. Nesse buraco sombrio está a liberdade de sermos quem pudermos e quisermos. E isso é radicalmente perigoso. Toda transformação é por si só ameaçadora por provocar dúvidas e oferecer perguntas. Assim, o teatro, em sua manifestação de esconderijo, traz igual liberdade e risco, como se fossemos o próprio crustáceo. No espetáculo, o contexto de subversão está em oferecer pelo poético a dimensão política ao convívio. Faz do buraco cênico o desvio ao próprio submundo do pensamento, exatamente por não se aprisionar aos argumentos de sempre. Se a lama oferece esconderijo ao animal, o teatro, por sua capacidade em ser lamaçal, confere-lhe exposição máxima. Entrar nesse buraco é arriscado. É como se gritássemos na porta desafiando as normas e valores. E Caranguejo Overdrive faz do grito mais, pois o realiza aos berros, pelos corpos, bateria, baixo e guitarra, pela maneira como faz parecer o passado uma imagem espelhada do presente. Entrar em um teatro é já muita coisa. Entrar em Caranguejo Overdrive é radicalizar a dimensão do risco de não pararmos de querermos algo maior ao viver.

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A FOME REQUER ALGO OU ALGUÉM O mangue beat, a praia-mangue, a lama-casa, a batida do martelo quebrando a carapaça, o corpo-carne, o alimento, os alimentos, a ausência, as ausências. E a fome que se estabelece como algo inevitável que deforma a realidade do faminto enquanto devora por dentro suas possibilidades de reação. Josué de Castro, geólogo, décadas atrás avisou sobre isso. Sobre a fome. Sobre ser ela um instrumento social de controle e submissão, impositivo, nada natural. Chico Science cantou a violência do abandono que se reverte em violência e violenta o abandonado que reagirá sobre quem estiver ao lado. Porque alguns animais assim são. Necessitam do outro, do conflito, do combate para existirem ou, ao menos, justificarem suas animalidades. O homem, não necessariamente esse animal, escolhe sê-lo. Requer o outro para fortalecer o conflito que na verdade é consigo mesmo, autodestrutivo. O homem é animal forjado em espelho de sua própria animalidade. Todos carregamos isso. Caranguejo Overdrive faz o personagem circular por vários atores, oferece dimensões plurais ao signo, sustenta a variação como que nos avisando o quanto é incontrolável sua existência, dada sua capacidade em se adaptar. A fome humana parece mesmo ser a destruição. Melhor se for de alguém e não apenas de algo. Assim, o espetáculo dialoga com o contemporâneo em seu acontecimento mais horrível, a gentrificação daqueles já sucumbidos pela fome e ausência da sociedade como alimentos comuns. Para muitos, a sociedade não é algo disponível. Suas presenças são desprezíveis e servem somente para sustentar o prazer destrutivo aos dominantes. As batidas do mangue beat se tornaram balas reais. A fome se tornou a ausência plena. E o espetáculo age também nos obrigando a reconhecer não estarmos tão afastados do terrível lado vencedor. Afinal, ainda poderemos sair para jantar depois de nos alimentarmos com arte.

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BIG BANG MANGUEBEAT Premissas: Ecoamos até este exato instante ecos do início da primeira explosão geracional - o Big Bang e a proposta de Superacordes Infinitos. Indiscutível a imediata potência estética do efeito musical em nossa lógica de cognição. Cada obra continua a reverberar seu corpo de vetores de informação para além do momento presente de sua apresentação. Pois bem. Pelo modo como se estrutura o espetáculo - fisicalidade somada à potência sonora e narrativa - nós, audiência, observadores, nos vemos tomando parte da obra de forma inevitável: não de forma passiva, mas ativados, e nos deparamos - na caixa cênica - em local como uma possível ergosphera, em torno de um paralelo Buraco Negro, completamente atraídos e incluídos. Observamos e somos parte do Horizonte de Eventos. Não de forma sutil. Pelo contrário: de imediato. Na escuridão inicial temos contato primeiro com o som vocal das palavras no texto – a primeira explosão - para logo a seguir vemos a sonoridade musical preencher e conduzir nosso ritmo cardíaco, nosso pulso, apresenta e apreende o ritmo interno daquela gênese do qual agora somos parte intrínseca. Somos incluídos e atraídos inevitavelmente. Temos em nós uma certa memória catalisadora ancestral, que traz ecos de nossa história e desta energia primal dos primeiros instantes do universo. Isto se manifesta também no Silêncio. Os espetáculos teatrais que trazem em si propostas eficientes, amparados e impulsionados por procedimentos musicais bem arquitetados conseguem aglutinar em seus momentos de silêncio fazer reverberar ecos desta energia primal. A estética do mangue beat entra então como um Clímax-Pré- Colapso. O universo nasce com o Big Bang e irá se findar com o Colapso. Caranguejo Overdrive é um recorte ativado que traz nos silêncios a vibração e os rumores de nosso início primal, e o pleno anúncio de nosso colapso: O colapso de nosso próprio sistema de organização vital, indo ao encontro do colapso universal. Nos silêncios que se insurgem na obra é onde acontece sua potência plena. Nestes se encontram os momentos em que a audiência se encontra no aqui e agora do tempo – intrínseco à obra apresentada em concordância com o tempo presente – reverberando o fluxo de informações apresentados no corpo da obra naquele instante. Para que funcionem, é preciso criar uma máquina potente em seu modo de funcionamento. A banda musical inserida em cena, esta máquina que

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move aquele universo anuncia e reflete não só na camada dos discursos, na energia dos atores, nos corpos e nos discursos. E dentre todas as estéticas possíveis a referenciar a obra, não são gratuitas as escolhas pelo Mangue Beat. Porque este e não qualquer outra estética musical? Poderia se perguntar. Porque esta revela o Homem no contexto atual: A metáfora com o caranguejo e o mangue a elucidar o que pode ser o ser humano no contexto atual. O lodo e o mangue que estamos inseridos – ainda assim um ambiente cheio de possibilidades de novas gêneses. Utilizar tal estética para falar dos temas ali citados faz-se completamente coerente. Internamente tal sonoridade vêm imbuída de elementos que, associados aos discursos ali citados: - A Guerra do Paraguai, o colapso nervoso do soldado no contexto do Rio de Janeiro de 1870, a vibração dos rumores políticos atuais, - refletem sua energia de potência e transgressão, além de aglutinação: Elementos eletrônicos e beats que dão nova roupagem ao universo local original, fazendo-o com isto ganhar dimensões atualizadas. As culturalizações das sucessivas civilizações sobre o planeta funcionam do mesmo modo adicionadas como camada externa ao que somos em essência natural – vide O Pianista, de R. Polanski, - vide O Enigma de Kaspar Hauser, de W. Herzog. Um cerne estrutural ao qual são acondicionadas camadas de aculturações. O Mangue beat detona estas camadas, escancarando-as e, tal qual o caranguejo rompe sua carcaça externa, a potência da sonoridade faz isto a cada um da audiência. É uma proposta de redescoberta ou reinvenção de um projeto de humanidade – no caso, para o Brasil. De volta ao silêncio. Após uma cena central em que é apresentada de forma acelerada – pela personagem Prostituta Paraguaia caracterizada com seu forte sotaque - um apanhado histórico do país tendo como protagonistas seus principais articuladores políticos, somos atropelados e arrebatados pelo brutal silêncio que se instaura. Estrategicamente a música potencializa cada ato em cena. Os silêncios funcionam então como catalisadores à reflexão e aglutinação ante o apanhado com que se acabou de se deflagrar. Até aqui, tudo óbvio. Neste silêncio temos: ecos da cena apresentada até então, ecos do caos político a que nos vemos completamente inseridos somada à energia do apanhado histórico recém apresentado. Ecos deste rumor sonoro que existe para sempre, desde o Big Bang até o Colapso. No

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BIG BANG MANGUEBEAT (continuação)

silêncio, somado ao que ecoa em cada observador inserido aos ecos do momento político atual deste país, emocionar-se faz-se inevitável. Uma peça que traz, através de articulações musicais e de silêncio, fazer o encontro do com ecos da energia primal que existe até o momento presente, e que continua impulsionando sempre para o próximo movimento, para o próximo pulso. Cada acorde nos conecta com a energia do momento e com a sopa cósmica nitzschieana. Eis os Superacordes desde o Big Bang. Além da presença do elemento areia na caixa do cenário funciona como abafadores sonoros e, ao mesmo tempo, local onde nos afundamos em comum, em reflexo com os atores em cena. Estamos todos em Areia Movediça. Do depois: Na reverberação pós espetáculo, os acordes sonoros junto à cena final suspendem ao ar imageticamente cada grão de areia da caixa cênica, envolvendo e colapsando os atores caranguejos. Também nosso próprio colapso - por referência, atração e acompanhamento. Colapso do fim deste universo, anunciando no ensurdecedor silêncio um outro que virá como como possibilidade, anunciado nos silêncios que são aberturas neste percurso de obra.

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NÃO SE ESCAPA DA MERDA O caranguejo engorda suas carnes devorando outros organismos e também as próprias merdas. Alimentando-se dessa maneira, constrói-se corpo para depois, já ao ponto de se tornar suculento, caçado e levado à panela para ser fervido vivo e assim morrer, ser devorado solitariamente em pratos banais ou gastronomias caras. Fato é haver muitas maneiras do caranguejo construído pela merda servir ao paladar do homem. Caminha, assim, ao seu destino como alimento, quando se tornará novamente merda, desta vez de alguém. Mas a merda, provoca-nos Artaud, é a comprovação da necessidade de purificação do corpo, o que nos leva a entender existir na natureza um estado divino. Sua conclusão é simples: a merda é prova final da existência de Deus. Voltamos ao caranguejo... Ele produz a merda, alimenta-se dela e se torna ao fim merda. Essa é sua diferença aos homens. O caranguejo devora Deus e nele o reinventa para ser redevorado. Esse acontecimento, para além de um sistema cíclico, simbolicamente traduz o quanto condicionamos o divino, esse estado presente de purificação natural, ao abandono daquilo que também é nossa verdade. O homem, ao negar seus dejetos, nega também a importância de se perceber ciclicamente corrompido e contaminável, aspecto crucial à auto-percepção. Como se fosse possível sempre zerar e recomeçar. Mas não dá. Assim como o caranguejo, o homem está plenamente envolvido com seus restos. Negar a isso é fazê-lo também em relação à história. E nada sobra nele de humano, de humanidade, apenas sua natureza desprovida de qualquer valor. O que verdadeiramente ocorre, desde sempre, demonstram suas escolhas. Ao homem, o outro é quem existe como sua merda, dejeto negado e abandonado a ser esquecido. Matar e destruir, portanto, são apenas artifícios de sua busca por manter sua falsa pureza incontaminável ao tempo. Antes fossemos caranguejos, então, com tempos definidos pelos restos.

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HISTÓRIAS NÃO POSSUEM TEMPOS Ao falar sobre o ontem, Caranguejo Overdrive expõe o presente de modo extremamente radical. Não apenas nas associações de como as ações de poder se concretizam impositivamente nas urbes e pessoas, mas também pela costura de tempos sobrepostos sem qualquer pretensão de ser explicativa. Ao trazer passado e presente como instantes concomitantes, a peça desafia o espectador a encontrar saídas entre os acontecimentos e nossas ações. O quanto somos cúmplices por nos mantermos supostamente isolados das decisões? Como superarmos a dimensão temporal da história para nos atentarmos às repetições e suas manipulações? São dilemas que o espetáculo não busca responder, e nem precisa. Sua importância é a de agir como ruído sobre a percepção da história. Quando os acontecimentos são aproximados uns dos outros na narrativa, a sensação não é de permanência, mas de ausência de deslocamento. A permanência consistiria no validar a presença, a concretude junto ao instante; reconhecer a si e ao momento em coexistência. Já o deslocamento, diferentemente, potencializa não o existir em um determinado momento, e sim a capacidade de trânsito, sem lhe requer a perspectiva de pleno reconhecimento de quem se é. No entanto, indo além, o espetáculo atua na ausência até mesmo dessa perspectiva. Ou seja, revela ao espectador a incapacidade qual aceitou em reconhecer o próprio transitar pelos acontecimentos. Sem plena possibilidade de perceber a si mesmo e também de sua participação na constituição do instante, o indivíduo limita-se ao existir atemporal e inerte. A consequência é construção tanto do indivíduo como alguém incapaz de se reconhecer dentre os acontecimentos, quanto de ser responsável por eles. O espetáculo revela nossa percepção presa ao instante, ao presente, em sua forma mínima, sem que acontecimentos de agora sejam consequentes. O passado não deveria ser entendido apenas como passado, avisa-nos. E nem sempre o que parece óbvio, de fato o é.

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O ROUBO DA INGENUIDADE Quando Kafka escreveu A Metamorfose, o primeiro parágrafo expunha o homem que, sem qualquer argumento e explicação, acordava transformado em inseto. Começou nesse parágrafo uma revisão da literatura que se expandiu para o entendimento de como elaborar uma narrativa e depois para filosofia e o pensar o homem e o mundo. Caranguejo Overdrive é inevitavelmente consequente a Kafka. Se para o escritor o homem virara bicho, agora o homem se mantém homem, porém animalizado por seu convívio com o ambiente. O mangue que o abriga expande sua condição de ser lugar para a potência de ser uma ambiência, cuja singularidade determina uma maneira de existir e pensar. Esse homem-caranguejo desconhece muito do que está estabelecido como sendo a sociedade. E só quando se transfere ao exército para lutar na Guerra do Paraguai passa mesmo a compreender seu desenho humano. Todavia, é na guerra que a animalidade se concretiza em sua potência máxima. Entre a guerra do mangue, em sua exigência por sobreviver da fome ao isolamento, a guerra da guerra, em sua condição de sobreviver ao outro, as violências se distinguem principalmente pela presença do próprio homem. O estado binário da guerra, como diz o personagem, é, então, mais do que dois lados em conflito. É também a busca por reencontrar os homem para além dele mesmo, em seu estado mais próprio e menos consequente aos interesses e manipulações. Não à toa, quando interrogado se havia participado de atividades terroristas, em seu retorno ao Brasil, após a Guerra do Paraguai, o personagem responde ter servido ao exército brasileiro. O massacre coordenado por Duque de Caxias, o abandono dos próprios combatentes, as torturas disciplinares, a fome, as orgias entre os soldados como expurgação através do esgotamento físico no recurso do prazer, tudo se refere ao homem ainda homem, mas já kafkaniado em um incompreensível animal. Deixara de ser sobrevivência para ser instrumento. Matar caranguejo para se alimentar; matar homens por matar, é sua confusão. E tudo se faz muito maior do que apenas circunstâncias e perspectivas. Um passo à frente e você não está mais no mesmo lugar, diz o homem-caranguejo. A história não lhe esperou, avançou sem ele, enquanto permaneceu escondido ora no mangue ora na trincheira. Essa foi sua armadilha. Nunca lhe foi verdadeiramente possível deixar de ser somente um animal. Descobrimos,

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enquanto assistimos seu lidar com a distância entre os dois habitats, limitado que está ao existir em estado de fome insolúvel, que temos tantas outras ausências que nos aprisionam em nossa animalidade ordinária. Somos igualmente homens-animais, e parte dessa desumanização ocorre precisamente ao nos provocarem desconhecimento dos espaços quais pertencemos, sejam eles físicos, reais, concretos, simbólicos, estruturais, filosóficos. O personagem, ao tentar se reinventar e pertencer, entregando-se ao outro como mão-de-obra, ainda assim permanece sucumbido à sua condição de animal, inferiorizado por seu utilitarismo servil, escravizado por sua dependência construída pelo sistema. O quanto estamos distantes dessa mesma condição? O quanto a manipulação também não tem levado a produzirmos discursos animalizados em seus argumentos primitivos? São tantas as leituras do enfraquecimento do indivíduo possíveis no espetáculo que, muitas vezes, ele se parece mesmo com um grito de desespero à favor do homem. Para além das críticas aos sistemas, aos poderes, aos mecanismos de controle e submissão, Caranguejo Overdrive busca o homem que se perdeu dele e nele mesmo. E, aterrorizantemente, o homem, hoje, parece só ser possível de ser mesmo reconhecido se observado sob a perspectiva de um animal. O homem-animal é tudo, menos ingênuo. Apenas simples na complexidade de seu amplitude. O problema é que sem um pouco de ingenuidade, talvez o homem se torne incapaz de sonhar e, por conseguinte, reagir.

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O CARANGUEJO SEGUE PELAS RUAS A maneira como o caranguejo está em cena é múltipla, e nenhuma é definitiva. Nem mesmo o caranguejo em sua forma animal engaiolado, no aquário, solto e andarilho sobre o mapa da cidade. O bicho é tanto metafórico sobre o homem, quanto o ator é sobre o animal. Ambos se complementam na ampliação da percepção do espectador e na sustentação de haver ali um híbrido representado pela poética do corpo. É pelo corpo, no ator desdobrado nesse outro, que se dá o surgimento de algo radical: o entendimento sobre o gesto não ser uma única possibilidade. Assim, os atores discorrem fisicamente sobre o gesto como movimento, o gesto como representação e construção de simbologias, e o gesto como percepção do próprio gesto. Se ao primeiro cabem bem os personagens históricos, aos segundo a informação, está no terceiro a dimensão maior ao trabalho. Esse acontece não na representação ou informação, mas em sua capacidade de deslocar o entendimento de qual é a figura em cena. Um tanto homem, outro caranguejo, tais gestos induzem às interpretações plausíveis a ambos. E não são próprios de nenhum dos dois. São gestos pertencentes a um estado poético. Ao se revelarem, conquistam um vocabulário muito particular. E na convivência narrativa dada ao espectador, este é que os torna plausíveis e por vezes até mesmo naturais. O corpo, então, está naquele que o observa e não somente em quem demonstra os gestos. Performativamente. Provocativamente. E exige o reconhecimento dos gestos de cada um na leitura de cada movimento. Mesmo quando congelado e coberto de lama, lá está o gesto da espera. O excesso do aguardo se torna alerta e também dor. O homem-caranguejo nos olha fixo em prontidão de ataque. Sabe-se somente, e isso é perfeito ao intento do espetáculo, que ele, o ator-performer-homem-caranguejo está ali nos lembrando todo o tempo que também nós ali estamos. O personagem some ao final. Nós não. E os caranguejos certamente estão em todos os lugares em nossa espera.

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PERFORMATIVIDADE CARANGUEJO Fixe a imagem do caranguejo no momento em que troca sua carapaça. Inveja. Quem dera sermos também capazes de tal atribuição. Ele deixa para trás sua camada mais externa, sua roupa gasta, sua imagem envelhecida com ecos de seu passado, a fim de poder expandir-se e dar continuidade à seu ciclo evolutivo. Diretrizes do gene. Que seja. O que gostaria de ressaltar é haver movimentos completamente adequados à sua diretriz natural evolutiva que, apesar de forças vetoriais contrárias que possam aparecer, não há o que se faça, não poderá ser contido. Assim se dá também em outros campos, no social, político, na filosofia, também em campos de performatividade, também na escrita, obras de arte abarcam tais procedimentos. Quando algo insurge-se com potência plena – atrelada ao grau de originalidade ali inserido – torna-se inevitável conter seu avanço. Como os avanços históricos sobre a arte do ator – um paralelo possível. Seres humanos não somos como caranguejos literais. Impossibilitados de uma troca efetiva de corpo, nos propomos a constantes trocas performáticas. O Corpo é o único que nunca te abandona. Mas pode ser revisitado poeticamente. Em Caranguejo Overdrive vemos tais paralelismos. Vamos em paralelo a um ambiente de performatividade em que a visualidade é o fator principal de informação: a dança. Assim, como um observador atento, fico instantaneamente inserido ao vocabulário e discurso de movimentos e aos variados quadros rítmicos ali propostos, em qualquer outro âmbito, o mesmo acontece. De forma imediata. Se temos atores em cena que nos propõem referenciais minimamente reconhecíveis, imediatamente enquanto audiência atenta nos projetamos junto com os enunciadores dos discursos: Atores em cena, visualidade e sonoridade compondo elaborações complexas instigantes: processos críticos à gentrificação; urbanização imperativa mascarada e subliminar, amparada por efeito musical; apresentação e transformação de contextos radicais: inclusive em questões de fisicalidade apresentadas - a fim de nos instigar a livrar-nos também de nossas carapaças – ainda que por apenas dentro do tempo proposto pelo espetáculo – com reverberações pós apreciação in loco. O ator ampara-se em concomitância a esta troca estética. Dos modelos históricos de performatividade, desde identificação com ideais clássicos de personagem ao Naturalismo, a modelos que versam sobre Desconstrução,

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Desvelamento, ou até mesmo Invenção, temos na ideia de Troca de Carapaça um meio possível para uma abordagem ao trabalho de interpretação. Sair-se do que se é, indo ao encontro de uma essência interna pronta e disposta a encarar qualquer abordagem com um novo olhar – neste caso específico, um olhar caranguejo. Seria este um ator reformulado, que têm como seu ambiente natural o mangue lodo – impondo dificuldades próprias a seu habitat – e assim sendo, vencê-lo pela permanência e adequação. Nisto, um outro corpo faz-se premente: Dois braços apenas nunca serão suficientes, e nova camada de proteção e combate surgem inevitavelmente. O ator caranguejo é algo novo combativo, com deslocamentos rápidos em lateralidades e momentos de circunspecção, a um olhar atento, observativo e reflexivo em meio a abordagens rápidas em relação ao próprio trabalho. Um novo método de abordagem como avanço ao trabalho de ator.

Andrew Knoll

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foto elisa mendes 40

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foto fiac bahia e joĂŁo julio mello


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Pedro Kosovski e Marco AndrĂŠ Nunes

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foto patrĂ­cia cividanes 50

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Primeira vez escrevendo com pé na areia, dentro do cenário da peça. Primeira vez dividindo a escrita com um resenhista convidado, Andrew Knoll, dramaturgo e diretor curitibano. Experiências que devem vir para ficar. Crítica Performativa I antro+

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