‘ CRÍTICA on sofá
POR ELAS
UMA PUBLICAÇÃO
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A N T RO + FA RO F FA
__ coordenação editorial ruy filho __ artes gráficas pat cividanes __ resenhistas anna magalhães ave terrena florencia d’antonio guada gold julieta zeta laura petracca maria teresa cruz ramilla souza victoria casaurang __ tradução ariane cuminale
Este especial faz parte do FAROFFA NO SOFÁ (agosto.2020) e foi realizado pela plataforma
digital ANTRO POSITIVO.
www.faroffa.com.br @faroffasp
www.antropositivo.com.br @antropositivo
www.corporastreado.com @corporastreado
www.periplo.com.br @periplo.prod
AUTORIA OCULTA
NÃO TEM ASSINATURA
ESTA É UMA PUBLICAÇÃO COLETIVA OS TEXTOS NÃO SÃO ASSINADOS INDIVIDUALMENTE E TODOS FORAM PENSADOS E ESCRITOS POR MULHERES
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Apresentação _ por Gabi Gonçalves
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Prefácio _ por Ruy Filho
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Linha do Tempo
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CRÍTICAS ave terrena _ segunda queda
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bruno moreno _ plantas e fantasmas
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cena 11 cia de dança _ protocolo elefante
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christiane jatahy _ julia
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cia brasileira _ krum
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cia dos à deux _ irmãos de sangue
96
cia dos atores _ insetos
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cia hiato _ amadores
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cia os crespos _ alguma coisa a ver com uma missão
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coletiva ocupação _ quando quebra queima
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coletivo legítima defesa _ legítima defesa
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cristian duarte _ médelei
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demolition incorporada _ dança doente
184
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elisabete finger, maikon k., renada carvalho e wagner schwartz _ domínio público
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gabriela carneiro da cunha _ guerrilheiras ou para terra não há desaparecidos
220
grupo galpão _ nós
232
grupo magiluth _ dinamarca
244
grupo xix de teatro _ hysteria
256
jussara belchior _ peso bruto
266
karin serafin _ eco
278
lia rodrigues _ encarnado
290
original bomber crew _ treta
302
renata carvalho _ manifesto transpofágico
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só homens cia de dança _ trindade - a drag, o cavalo e o xaile
326
teatro da vertigem _ br3
340
teatro oficina _ hamlet
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vanessa nunes _ nebulosa
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wagner schwartz _ transobjeto
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elas _ autoras
ABERTURA
POR GABI GONÇALVES
“...pra grande maioria dos animais dividir significa destruir, no caso das plantas, dividir significa multiplicar.” STEFANO MANCUSO
É
mesmo muito curioso pensar como no meio do caos, da incerteza, da falta de perspectiva, ainda assim é possível criar, sonhar, imaginar, projetar e fazer junte. E foi isso que fizemos, juntamos todos esses verbos e inspiradas nas plantas, nós, um grupo de produtores, entendemos que ficar parades não seria uma alternativa possível.
A Faroffa tanto em sua versão presencial, quanto na digital, é, antes de mais nada, um programa de aproximação, um espaço livre de experimentação de modos de produção, criação, conexões e oportunidades. Partimos desse pressuposto pois estamos olhando através da produção, de dentro pra fora; isso faz da Faroffa um encontro que acontece quando necessário, quando assuntos se fizerem urgentes, quando modos de produção precisarem ser tratados e assim por diante, expandindo os temas e trazendo espaços de troca. Fazer a versão da Faroffa, no Sofá, foi o modo que encontramos para tratar de uma questão que a própria pandemia nos colocou... como continuar? O que fazer? E como fazer? E foi aí que resolvemos olhar à história dos artistas, propor aos próprios pensar o quê de suas trajetórias seria interessante mostrar, quais as memórias que temos registros para compartilhar. Foi um trabalho conjunto que, pouco a pouco, cresceu, fomos nos aproximando e criando juntes, num movimento contínuo de colaboração, ou seja, a Faroffa só acontece com muitas mãos! A Crítica no Sofá, essa linda publicação que fizemos em parceria com a ANTRO POSITIVO, é também parte desse pensamen-
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to; achamos que seria importante olhar para o papel da critica dentro do processo, e trouxemos perguntas, por exemplo: Como seria fazer uma crítica de um espetáculo que não é estreia? Que já aconteceu há décadas, em alguns casos; como olhá-los, hoje? Qual a diferença de escrever a partir do vídeo? Foi uma experiência muito rica que culminou nesse caderno que é nosso primeiro desdobramento farofeiro, muitos outros virão, porque a pandemia não vai nos deixar saudade, mas nos deixa muitos aprendizados: como olhar para história dos artistas com mais respeito, atenção, e como oportunidade de trabalho, porque esse mundo digital veio pra ficar, então precisamos falar mais sobre ele, e criar futuros possíveis e desejáveis. Viva as Artes da Presença! Que cria novas presenças e se reapresenta!
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PREFÁCIO POR RUY FILHO
E
ste não é um material qualquer. As reflexões sobre 28 espetáculos selecionados a partir da curadoria realizada para o festival FarOFFa no Sofá - sendo este já o segundo movimento, ao iniciado em março de 2020 por Gabi Gonçalves e Pedro de Freitas, quando propuseram em São Paulo uma mostra paralela de criações cênicas para apresentá-los a programadores internacionais -, reúne,
sem se querer definitivo, um amplo panorama da produção brasileira em teatro e dança das últimas décadas. Ao serem reapresentados ao público pelos meios digitais, imposição dada pelas salas fechadas, isolamento social e uma pandemia que não cessa, as obras readquirem outras complexidades e possibilidades de entendimento. O especial Críticas no Sofá: por Elas realizado pela plataforma Antro Positivo serve ao público para norteá-lo às escolhas dos artistas por meio de parâmetros críticos sobre como observá-las ao tempo, construções dos discursos e usos das linguagens, e também aos próprios artistas, na medida em que lhes oferece novos diálogos pela reflexão escrita, agora, diferentemente, por quem muitas vezes não pode assistir os espetáculos quando realizados. Esse ‘não ao vivo’ permeia diversas discussões nos textos a seguir, dando ao encontro pretendido outra ordem de realidade e percepção. Isso, por si só, já seria suficiente para nos estimular à criação desse material. Ao propor novamente olhar aos espetáculos, optamos por fortalecer algo mais atual de nosso momento his-
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tórico. Se outrora a perspectiva feminina fora limitada a existir como complemento ao amplo universo reflexivo masculino dos espaços oferecidos pelos veículos tradicionais, hoje ela é determinante ao desvelamento das próprias armadilhas que aprisionaram as reflexões e estéticas. O coletivo aqui apresentado inexiste formalmente; todavia é real no querer reunir vozes interessadas em constituir outras qualidades observacionais e propriedades de falas. Anna Magalhães, Ave Terrena, Maria Teresa Cruz, Ramila Souza são a face brasileira desse feminine contemporâneo, cuja generosidade em emprestar seus pensamentos e palavras estabeleceram ricos, singulares e necessários paradigmas ao como revisitarmos os espetáculos escolhidos. Digo brasileira, pois nos pareceu - à Pat Cividanes e a mim, editores do especial - fundamental aproximar quem pudesse acessar, ao menos alguns trabalhos, tangenciando nossa cultura. Encontramos na revista argentina Farsa Mag a melhor das companhias, e dela se juntaram à criação dessa cartografia crítica Florencia D’Antonio, Guada Gold, Julieta Zeta, Laura Petracca e Victoria Casaurang nas análises e Ariane Cuminale na tradução do espanhol ao português. Por esse outro ângulo - distante não apenas do acontecimento real, também dos vocabulários quais estamos acostumados ao lidar com nossos artistas -, os espetáculos foram desdobrados a novas qualidades e significados.
A aparente facilidade de pessoalizar as resenhas atribuindo-lhes valores prévios a partir de quem lhe produz, tornou-se uma questão relevante. Por que sistematizar o feminino em uma voz uníssona, retirando de sua manifestação a amplitude de sua eloquência quando múltipla? Isso nos levou a escolheremos não dar antecipadamente ao leitor sugestões interpretativas sobre os materiais. Algo inevitável, quando se limita ao equívoco de antepor gênero, raça e nacionalidade como justificativa ou o que for. Preferimos ir mais adentro, a fim de possibilitar ao feminine reunido manifestar-se dinamicamente. Sendo assim, as resenhas não estão assinadas por alguém, e sim pela totalidade das participantes. Caberá a cada um, cada leitora interessada investigar e encontrar o que individualiza as resenhistas a partir de visão de mundo empreendida e, portanto, de escrita. Tratou-se de estabelecer nesse exercício de busca uma maior aproximação à humanidade daquela que escreve. Dessa maneira, a simplificação de ser esta mais uma publicação com críticas pode ser abandonada desde o início. Em cada página, o leitor é convidado ao diálogo com ume resenhista mais definida a partir do desvelamento de como esta se porta ao mundo. Algo impossível de acontecer de outra maneira, senão pela profunda exposição de seu próprio contexto sociocultural. E é pelos modos com os quais acessam, abordam, dialogam, confrontam
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e amplificam os espetáculos e artistas que as realidades vividas na esfera particular serve ao redimensionamento de tudo aquilo que precisa ser percebido por comum. Encontrá-les e reconhecê-les é como abraçar suas urgências e, por elas, se libertar das classificações. As resenhas merecem mais: em cada espetáculo resenhado coexiste um feminine em seu estado mais íntimo de exposição. E isso pode ser um estímulo revolucionário, se assim nos permitirmos descobri-lo. Os 28 espetáculos iniciam em 1993 e chegam a 2019. O recorte não fora casual. Dentre a centena de obras que integraram o festival FarOFFa no Sofá, escolheu-se artistas nacionalmente consagrados e outros ainda a serem descobertos com mais amplitude, e com algo em comum: a qualidade e relevância de suas criações no contexto brasileiro, e, em alguns momentos, não apenas dentre nós. São diretoras/es, dramaturgues, coreográficas/os, dançarines, performers, coletivas, grupos, companhias. Os formatos diversos revelam pela variedade o quão a cena brasileira não se restringiu a uma ou duas possibilidades de se fazer e como as respostas estipularam o surgimento de linguagens híbridas capazes de articular referências e originalidade sem impedimento criativo. Companhias e artistas já afirmados em suas trajetórias, como Oficina, Vertigem, Lia Rodrigues, Marcelo Evelin, Chris Jatahy, Galpão, Cena 11 e Cia. dos Atores,
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ecoam na maneira como muitos dos mais recentes estruturaram e realizam seus trabalhos. Também por isso são fundamentais participarem deste especial. Mas é mesmo a partir de 2015 que os espetáculos escolhidos passaram a abordar outras perspectivas sobre quem os cria. Surgem importantes mobilizações de coletivos negros, de criadores trans e artistas articulados com ambientes periféricos em suas mais diferentes condições. Por outro lado, a presença de outros centros, que não do eixo sul-sudeste, surge aqui com maior intensidade somente a partir de 2017. Não se trata de algo circunstancial. A dificuldade dos grupos e artistas das demais regiões do país em articular aproximações mais efetivas com os principais centros teatrais ainda é enorme. Enquanto confrontam os dilemas do domínio econômico e midiático do eixo sul-sudeste, sobretudo São Paulo/Rio, pouco sobra ao investimento do registro adequado das próprias pesquisas. E se ninguém imaginaria qualquer utilidade imediata aos registros, agora se revelaram única possibilidade de nos aproximarmos dos espetáculos. É preciso, então, compreender a importância da qualidade técnica diante o recorte realizado: maior investimento não significa somente uma espécie de oportunidade, oferece um meio expositivo mais efetivo diante uma realidade transformada por outra perspectiva ao como acessarmos o teatro, a performance e a dança.
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Ao reunir os espetáculos que tiveram a sorte ou empreendedorismo de registrarem de forma eficiente alguma ou algumas apresentações, construindo nesses acervos a possibilidade de agora os assistirmos, uma informação surge imensa: nas últimas décadas, dentre muito do que se destacou interessar aos artistas, fossem consagrados ou iniciantes, diz respeito aos incômodos decorrentes de uma sociedade não agregadora e profundamente violenta. Quase não há possibilidades de termos pelo poético a busca por outra perspectiva ao humano. Significa, então, a transferência sistêmica do sujeito criador, naquilo que se compreende por individualidade ao mundo, ao sujeito manifesto a partir de seu desdobramento social. Aqui cabem dois diagnósticos: o primeiro diz respeito a um instante passado, em que, por maior possibilidade de se realizar como arte, esta pode, enfim, olhar ao lado para estabelecer diálogos mais profundos e consequentes com a realidade de qual era parte; o segundo, diferentemente, aponta ao isolamento do artista, cada vez mais conduzido a uma interpretação de si mesmo, naquilo que lhe é destituído ou negado pela sociedade ao ser julgado, antes mesmo de existir artista, por preconceitos e classificações deformativas. Esse eu transferido daquele que se é àquele que julgam ser organiza outras lógicas aos espetáculos e performances; nelas o corpo reassume protagonismo de embate
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simbólico aos sistemas normativos escondidos pelas narrativas. Dessa maneira os coletivos passaram a acontecer por interesses específicos anteriores, aos quais confirmam e realizam suas recusas e ideologias pela manifestação na arte, e não mais como reuniões entre interessados em fazer arte, pela qual ideologias surgiriam ao convívio e tempo. Se isso, como poderá ser percebido pelas resenhas, expõe maior urgência ao evidente retrocesso nas liberdades conquistadas dos corpos dissidentes e minorias e ao esfacelamento do processo democrático brasileiro, por outro traduz o interesse na articulação argumentativa dos artistas junto a públicos específicos muitas vezes não integrados aos discursos estéticos. Um contraponto difícil de ser decifrado, já que perdas e ganhos se confundem nas próprias estratégias em iguais métricas. O que nos faz perguntar se, de fato, dado o momento histórico e político em que chegamos, se ainda essa é uma reflexão necessária ou substancial. Por existir um espetáculo como Domínio Público, reunindo nele quatro artistas perseguidos e ameaçados pela sociedade e poder formal, parece que sim: há uma urgência crescente de olharmos o quanto tudo isso tem interferido na ambiência criativa brasileira. Por isso muitas das resenhas aproximarão o leitor do presente, mesmo quando os espetáculos foram realizados mais distantes, no interesse de, a partir deles, amplificar a percepção sobre quais os riscos se colocam já tão perto de serem efetivados ao futuro da arte e cultura brasileiras.
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A organização de um festival como FarOFFa no Sofá potencializa a todos ampliar a percepção dessas transformações narrativas, estéticas e pessoais, e isso é especial. Por olhar ao teatro, dança e performance a partir dos interesses individuais de tantos criadores, descobrindo as aproximações de suas singularidades nas entrelinhas dos espetáculos, chegar-se-á ao entendimento de uma narrativa que não é exclusivamente artística. Por mapear uma geração relativamente próxima, as obras superam suas especificidades para sustentar a observação transversal do instante qual se fizeram, abrindo o campo de percepção sobre elas para além das próprias manifestações. Portanto são igualmente acontecimentos descritivos dos últimos anos, pelos quais poderemos invadir as questões de maneira mais efetiva. Por aqui, obviamente, o leitor não chegará aos espetáculos na qualidade máxima possível apenas quando assistidos. Todavia, ao serem comentados pelas resenhistas convidadas, oferece-se a oportunidade de costurar um ou mais fios de entendimento sobre a casualidade daquilo que as escolhas de cada obra aproximam umas às outras. É como estar diante um documentário em que as fotografias não se dão pela imagem e sim pela imaginação de cada leitor. Tal processo de descoberta individual daquilo que possam vir a ser os espetáculos traduz o leitor ao material e não o contrário. Ou seja, os intuídos por
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cada um, os fios encontrados, são seus próprios silêncios e expectativas. É quando a experiência cênica, de alguma maneira, ainda pode acontecer, mesmo que, e preferencialmente, por palavras apresentadas por terceiros: a elaboração da ideia contextualizada no sujeito, e não somente pela obra, ao performatizar pelo imaginativo o material qual decifra. É preciso dar a esse livro-documento-diálogo-imaginação a contextualização necessária de ser uma experiência digital de linguagens afirmativas fundadas na presença e no encontro. Assistir aos espetáculos dessa maneira implica em três intromissões transformadoras: a mediação imperativa trazida pelas escolhas dos artistas no jogo de câmeras, edições e, em alguns casos, tratamentos de imagens e sons; a interface tecnológica enquanto interferência da própria experienciação, muitas vezes limitadas por capacidades distintas de acesso e equipamento; e, ainda, a ambiência onde se acomoda durante o assistir, ora caótico pela rotina alheia aos interesses daquele que olha à tela, ora controlado e organizado para melhor fruição, distante, por conseguinte, do caótico ou descontrole quando em uma sala de espetáculo. Diversas resenhas apresentam as circunstâncias do próprio processo de assistir aos espetáculos e escrever sobre isso exatamente por perceberem nelas uma experi-
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ência singular. Contudo, há também as que reconhecem ganhos impossíveis diante o presencial, a partir das aproximações e ampliações do como acessar a uma performance ou acontecimento cênico. Significa, então, não ser possível simplificar a transmissão digital de um espetáculo como algo menor ou maior, se real, verdadeiro ou não, mesmo quando assistidos no tempo de suas transmissões ou posteriormente. O fato é que, para além da subjetividade de como agregam ou perdem contextos e sentidos, a organização de um festival de tal natureza oferece ao público a qualidade rara de construir um imenso arcabouço de manifestações diversas, pelo qual aumenta consideravelmente seu vocabulário simbólico sobre como ler o mundo e o humano. Já aos críticos e resenhistas, a situação não se limita ao aumento do vocabulário, e sim, como também pode perceber pelas escritas sua capacidade em desafiar os próprios sentidos ao entendimento daquilo que poderia vir a ser se presencialmente vivenciado. É esse exercício maior sobre sua capacidade imaginativa de identificar o que não está na tela e as condições que fazem da escrita algo entre a reflexão e o devaneio que a liberdade se realiza enquanto condição de ser sobretudo desejo ao outro. Um querer estar próximo ao outro, de existir ali, de olhar aos olhos, de sentir os corpos, de ser igualmente presença. O reconhecer a outra, o outro, a outre como dispositivo de
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acesso ao mundo. Se agora mediado e interferido, ainda assim, o outro permanece como qualificação ao mundo. Não mais como antes, isso é certo. Agora é o real quem o ressignifica durante sua manifestação. Então o outro é a soma daquilo desconhecido no agora e daquele qual nos percebemos na encruzilhada qual o presente se afirma. Não há saída. É preciso olhar ao futuro, querer nos artistas e criações, mesmo quando erguidas no passado, o amanhã. Ter no outro o amanhã, seja como for. É preciso encontrar outra potência de voz a fim de modificar nossas percepções. Por isso, para além de tanto, não há melhor acerto ao Críticas no Sofá do que ter sido escrito por elas.
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LINHA DO TEMPO hamlet
hysteria
encarnado
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guerrilheiras
alguma coisa a ver com uma missão
dança doente
amadores legítima defesa nós protocolo elefante
dinamarca krum nebulosa peso bruto
irmãos de sangue médelei br3
julia
transobjeto
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2011
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domínio público
Eco
insetos
Manifesto
quando quebra queima treta trindade - a drag, o cavalo e o xaile
Transpofágico Plantas e Fantasmas Segunda Queda
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CRÍTICAS
POR ELAS
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AVE TERRENA
SEGUNDA QUEDA
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er uma existência poética parece possível nos caminhos construídos por Ave Terrena, em “Segunda Queda”. A grandeza do existir de algumas identidades que não cabem no denominado em cena por “cistemáticas do mundo”, ultrapassa e amplifica o que se entende por existência, e é isso que significa existir poeticamente: transformar o senti-
do de ser. Sem inventar realidades, o espetáculo não deixa de lembrar as formas de viver ainda compartilhadas como “normais”, enquanto reafirma não serem anormais outras vidas fora dessa “normalidade”, mas rompimentos necessários das ilusórias padronizações de indivíduos e de grupos sociais. Como em um nascimento, “Segunda Queda” se inicia por uma dor, por um grito do fundo da garganta anunciando algo surgir e invadir, tornando-se, a partir daquele momento, parte integrante das emoções, reflexões e responsabilidades dos que congregam naquele teatro. É também pelo sofrer que demonstra a humanidade das personagens e biografias multiplicadas em poesia, música e movimento, não sendo o que machuca a única via que nos apresenta àquela coletividade. Entre relatos de vida explodidas e dançando de boca em boca, corpo em corpo, as histórias de trans, travestis, não-binares e outres identidades, encontram-se e se desencontram em traumas e sonhos parecidos, porém vivenciados por infinitas subjetividades.
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Sim, assistir os tantos ângulos das vidas-artes contadas ali cria uma sensação de infinito, de quebra de fronteiras. O que sempre foi marginalizado toma o centro da questão e se mostra muito mais do que a compreensão rasa e o estereótipo limitante das definições sociais. As referências de estética e linguagem são, então, parte essencial da transformação da forma proposta pelo espetáculo. Com figurinos upcycling, que são uma alternativa de transmutação de materiais na moda e preservação do espaço em que vivemos, os atores tomam a cena em um movimento coletivo e criativo trazendo para o debate as amarras que marginalizam corpos e identidades dissidentes, enquanto a narrativa também valoriza os saberes produzidos por essas culturas, como a música, a dança, em especial o voguing (coreografias estilizadas surgidas na década de 1980), a poesia falada e as expressões orais, além do pajubá, linguagem de origem afro-indígena utilizada dentro da comunidade LGBTQIA+. Os universos se misturam entre atores e público a todo momento no espaço propício do Teatro Oficina e, mesmo pelo vídeo, é possível sentir a presença e potência corporal imprimida nessa relação. O corpo trans e travesti, tão objetificado sexualmente, não abandona, mas assume um erotismo transgressor, que não se imprime no olhar de outrem, e sim em um saber de si, em um poder intrínseco
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de sentimentos e de espíritos que buscam conhecer suas fontes mais profundas e compartilhar um gozo físico, intelectual e artístico por meio do corpo. Os cânticos e vozes de Ave Terrena, Veronica Valenttino, Nathiaga Borges e todo o coro de atores, em certos momentos, reverberam entre os presentes como um culto à algo maior, algo que não pune: liberta. A queda que nos suspende, celebrando o que é motivo de opressão, tem dramaturgia inspirada em obra escrita pelo menino trans Anderson Herzer (1962-1982), “Queda para o alto”, e, assim como a poética presente em Anderson, leva-nos a um olhar complexo e muito mais completo do que as imagens compulsoriamente implantadas em nossos olhos desde que nos damos por gente. É um abismo inverso que nos retira da segurança tacanha de sermos, como cita Herzer, “pessoas (que) se iludem tanto que se tornam incapazes de reparar, de apurar os ouvidos e ouvir um dos nossos minúsculos gemidos”.
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FICHA TÉCNICA Direção: Claudia Schapira e Ave Terrena Atuação: Veronica Valenttino, Nathiaga Borges e Ave Terrena Direção de movimento: Danna Lisboa Texto: Ave Terrena Composição, trilha sonora e música em cena: Malka Julieta e Gabriel Barbosa Direção de arte: Su Martins Figurino: Vicenta Perrota Vestido “O Capital” (entrada do coro): Ateliê Fomenta Visagismo: Toda a equipe Iluminação: Danielle Meireles Vídeo: Vic von Poser Técnica de som: Gabi Lima Preparação vocal: Lucia Helena Gayotto Gravação: Igor Marotti Dumont Produção: Nós 2 Produtoras Associadas (Bia Fonseca e Iza Marie Micelli) Coro: Bibi de Bibi, Bruxa Travesti, Freitas Silva, Gabs Ambròzia, Hani Farias, Iza Ac Robert, Jay Pera, Lommy Lira, Nathalia Barreto, FOTOS LUCA MEOLA
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Nu abe, Veríssimo Veríssimo, Vitinho Rodrigues, Wini Lippi
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BRUNO MORENO
PLANTAS E FANTASMAS
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e é sobre a morte, o teatro sempre teve suas observações. Entre todas as possibilidades de representação cênica, Plantas e fantasmas, para tentar explicar a morte, escolhe como linguagem a performance. Para abordar o trabalho, pensamos em algumas questões filosóficas: Como enfrentamos a morte? É sempre a partir de um lugar de sofri-
mento? Alguma vez pensamos sobre as razões dos nossos rituais? De onde vêm? Por que os perpetuamos? É, talvez, uma forma de atrasar ainda mais o encontro com os falecidos? O que é que tanto nos comove: a ausência, a ideia, o eco, a memória? O que é que nos faz pensar tanto sobre o morto? Será que saber que em algum momento vamos morrer, às vezes, nos paralisa? Muitas vezes, o isolamento surge como uma espécie de “solução” e mandamos o leproso para a ilha. Negar a deterioração é também negar a morte e o fim. Mas, em Plantas e fantasmas, pensa-se ao contrário: no sentido do fim. Por que pensamos no fim como o fim e não como o começo de outra coisa? No espetáculo esse sentido está relacionado à natureza e sua essência cíclica; vai muito além do sinistro. Envolve-nos em uma história de invocação, de fanatismo pela cultura da morte. Há um ritual, há uma inversão de valores naturalizados, há uma proposta de fechamento. As atrizes vestidas com cores complementares: bordô, mostarda e azul claro, destacam-se em uma cena quase
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vazia e muito escura. Elas, as únicas vivas, contrastam com o lugar que habitam, possivelmente um necrotério. No início da performance, o público é instruído a escrever o nome de uma pessoa ou coisa que morreu em um pedaço de papel, retirar as consoantes e colocá-lo no chão (A A E A A A seria Plantas e fantasmas, o título da obra, por exemplo). Neste ponto, há material suficiente para questionar sobre a força das palavras e seu poder de representação. Se a única coisa que resta de nossos mortos é a possibilidade de lembrá-los, nomeá-los, escrever seus nomes no papel é um ato performático. Tentar fazer coisas com palavras. O que fazemos com aquelas letras e palavras recolhidas de uma dramaturgia, em um estado em que não é mais? O que resta, agora, são grafemas. Unidades mínimas da língua escrita. Pequenas marcas no tempo, sombras ou silhuetas do que antes era uma complexa teia de emoções, experiências, vivências, vínculos. Diante da própria morte, as palavras criam uma qualidade de compreensão de tudo o que guardamos na memória. Surge como uma busca de como narrar a nós mesmos e o mundo. Se fizermos o exercício de riscar as consoantes de algumas palavras importantes - como fome (permanece OE), guerra (UEA), pandemia (AEIA) ou injustiça (IUIA) - veremos que o que resta é algo como o esqueleto arbitrário de uma palavra, que em si é uma ideia, uma história ou muitas e milhões de experiências em todo o mundo. No entanto, os
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esqueletos se parecem. Podemos pensar que, em última análise, a experiência da morte nos iguala. Nossa existência, então, não é ressignificada? Embora a morte nos amarre, ela não pode e nunca poderá apagar as subjetividades. A celebração ou ritualização exagerada desse trabalho em torno dos mortos nos lembra daquela premissa. Porque o anterior é apenas o começo. No centro do espaço encontram-se colunas que servirão para amarrar, com mecanismo de cordas e roldanas, as sacolas com os papéis escritos. Os espectadores reconhecem o que está lá como morte. Com comportamento de bichos de quatro patas, as mulheres cuidam dos sacos cheios de morte, os recolhem e cantam como operárias que apitam no meio da jornada de trabalho. Percorrem o espaço, cambaleiam e levantam os pacotes, mobilizando os fantasmas. Atentas ao trabalho, jogam o tronco para frente e trabalham encurvadas. Puxam uma corda e, lentamente, a metáfora sobe. Sentimos as vibrações, as risadas incômodas, o suor, o choro e o ritual. É difícil acompanhar a trajetória, porque queremos que terminem o trabalho. Queremos que parem de sofrer. É como se fôssemos mais uma vez lembrados de como somos incapazes de suportar as marcas da decadência e da doença. Sobre isso, não queremos saber mais nada. É melhor outra pessoa se ocupar disso. No entanto, eles nos oferecem - e talvez nos obriguem - a olhar. A morte também é um trabalho, como a memória, como a preservação das
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conquistas. E o trabalho é tedioso, nem sempre agradável, às vezes um meio para outro fim. O espetáculo nos coloca no abismo também dessa forma: qual é o fim? Pode ser ampliado, modificado, redefinido? Como você conecta o que termina com o que vai para frente, continua? Existe um ponto intermediário de conexão, algo material e palpável, entre vida e morte? Aparentemente, os grafemas representam esse cruzamento. Mesmo assim, a performance nos apresenta outro olhar: nossa maneira de nos posicionarmos diante a morte é presumivelmente ocidental. As intérpretes, ao misturarem seus cantos e movimentos com elementos da natureza, lembram-nos as experiências e os sentimentos não serem universais. Eles podem ser compartilhados, é claro, trocados, e é isso que abre nossas cabeças para entender outras realidades. O sofrimento, o silêncio, o choro, as roupas pretas na frente do falecido são coisas muito familiares. Nesse espetáculo, não há nada disso. A terra, os frutos, o contato com o solo são sinais de vitalidade e saúde. A possibilidade de transcendência, de cruzar as fronteiras do tempo e se tornar matéria viva, composto para plantas, carne para os fantasmas, são opções possíveis. E quem sabe, talvez, reencarnar em outro elemento. Ou, como espectadoras, sairmos com algo semeado dentro. Uma nova ideia. A bela sensação de saber as coisas não serem só de um jeito. E assim, como despedida, enquanto pensamos,
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sentimos, choramos e sorrimos, recordamos o velho poeta uruguaio, Mario Benedetti, que não à toa escolheu a forma do haicai para nos deixar esta poesia: “afinal a morte é apenas um sintoma de que havia vida”.
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FICHA TÉCNICA Criação e direção: Bruno Moreno Criação e performance: Aline Guimarães, Bárbara Fernandes e Vanessa Nunes Colaboração: Isabella Gonçalves Produção: Gui Fontineles/ CAMPO Roupas ,Barco, Imagens: Arthur Doomer, Gui Fontineles, Bibi Dória e Maurício Pokemon Residências artísticas: CAMPO arte contemporânea (Teresina, Brasil) FOTOS BIBI DÓRIA E ARTHUR DOOMER
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Espaço Alkantara (Lisboa, Portugal)
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CENA 11 CIA DE DANÇA
PROTOCOLO ELEFANTE
A
separação de um grupo traz uma sensação de fim do mundo. Um impasse: por que e pra quê continuar como companhia? Essas foram as perguntas que o grupo Cena 11 Cia. de Dança se fez durante a pesquisa do espetáculo Protocolo Elefante, estreado em 2016. Nascido em 1995, depois de décadas pesquisando lingua-
gens continuamente, o grupo precisou de um réquiem nascimento: uma forma de cantar o desaparecimento e ao mesmo tempo renascer nessa forma de cantar. Um exílio do coletivo, em que o isolamento foi caminho para se reconectar à necessidade de pertencimento. No reencontro das individualidades desidentificadas e reencontradas em pertença afinada processualmente, a busca pela identidade coletiva ganha dimensão ritualística ao invocar performativamente os elefantes velhos como símbolo prostético de proteção ao império individualista dos Jobs. “Protocolo Elefante” demarca a potência de vida na existência em manada, envolvendo também os espectadores e reinventando os sentidos de convivência com um lirismo mítico do comum. Se o pensado e feito em grupo não é apenas um conteúdo a ser consumido, e sim uma prática cotidiana do viver junto, ainda é possível materializar possíveis impensáveis? Curioso o processo do Cena 11 que se propôs ao isolamento para tentar achar de novo o sentido de
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comunidade. No processo de pesquisa para “Protocolo Elefante”, as integrantes do grupo passaram quinze dias isolades umas das outras, em diferentes cidades e até países – interior de Santa Catarina; Cidade do México; uma aldeia Maxakali, Norte de Minas Gerais, e por aí vai. Passado esse período, organizaram o reencontro. Foi o ponto de partida para o transe coletivo, incluindo o público, para aquilo que o espetáculo se tornou. Um aspecto relevante no espetáculo é a relação com outres artistas. Para voltar o olhar para si mesmo, o Cena 11 convidou três artistas da dança para que lhes dissessem quem eram: Michele Moura, Eduardo Fukushima e Wagner Schwartz. A primeira trabalha com a narrativa corporal mínima, em que a dança se realiza na presença do pequeno e o íntimo é explosão do corpo. O segundo potencializa o corpo como ambiente de percurso pelo qual o gesto narra a si mesmo e desdobra a própria presença. O terceiro transita entre o corpo poético construído por uma realidade que escapa às narrativas diretas e sustenta a subjetividade daquele que o decifra. O espetáculo está dividido dessa mesma forma, espelhando o processo criativo, que partiu do resguardo no distanciamento para a força do coletivo dilatado pelo olhar de outres. Até mesmo o sentido dos limites da individualidade física se amplia, com a instauração de tecnologias da que
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não são apenas objetos cênicos ou cenário, mas próteses. No início, usando-se muito o chão, parece as corpas terem dificuldade em se locomoverem no terreno da cena. Aos poucos, conseguem; permanecer em pé, instáveis, enquanto o coletivo se amplia disperso pelo teatro, corredores, cadeiras, laterais, fundos da plateia. A ação ganha todo o espaço; os movimentos, que antes eram guardados em si, ganham agilidade, apoiando-se e sendo ampliados por compridas barras de ferro brilhantes, fazendo barulhos metálicos ao baterem no chão ou umas nas outras. Uma trilha sonora. Uma extensão, que, assim como o gênero, é antes de tudo prostética, ou seja, não se dá senão na materialidade dos corpos. Algo puramente construído e inteiramente orgânico, fazendo referência à expressão de Paul Preciado em “Manifesto Contrassexual”. A quebra da dicotomia metafísica do corpo e da alma, da forma e da matéria, se manifesta nas barras de metal, cuja plasticidade carnal desvela o risco na investigação de transfigurar a identidade do Cena 11. Quando as bailarines começam a rodar em torno do próprio eixo, com a extensão corporal das barras a fazer contrapeso no movimento de rotação, elas quase se trombam umas com as outras, parece que a qualquer momento pode ocorrer um acidente. Tontas de tanto rodar, mas não tombam. Lembram dervixes, pois o transe começa
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a atingir pontos altos não só para quem gira, também ao que observa. A sensação, enquanto público do espetáculo, mesmo pela internet, é a de participar ativamente, tamanha a transformação pela qual as corpas passam. A natureza e o artifício se imiscuem no advento dessas próteses, no ensejo do êxtase e do entusiasmo causados pela fabricação de corpos-elefante. Não é tão fácil distinguir os corpos segundo a normatividade do gênero em “Protocolo Elefante”, ou simplesmente os marcadores binários de gênero é que deixam de fazer sentido, quando o movimento vai além da imitação. O trânsito entre bicho e gente, despido dos corpos sociais que imitam a norma ao distinguir órgãos sexuais de práticas do sexo, alarga a identidade do grupo e recupera a vitalidade e o prazer do permanecer no tempo. A prótese identitária do Elefante é invocada pelo Cena 11, assim como as travestis o fazem quando revertem as injúrias alocadas sobre seus corpos, apropriando como valor aquilo que foi atribuído ao erro. Quando um elefante velhe está para morrer, afasta-se da manada ficando pra trás, isolando-se para morrer sozinhe. Esse rito de descontinuidade, esse canto do desaparecimento e da ausência se constituiu em uma cerimônia de restauração de pertencimento do grupo, que é intensa, e conclama todes que participam do espetáculo a uma presença não amortecida e nada inofensiva.
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Segundo Alejandro Ahmed, diretor do grupo, essas são as condições para se pensar um mundo novo a partir das recentes catástrofes e genocídios políticos, ambientais e sociais quais temos vivido no Brasil. Ele também comenta ser “Protocolo Elefante” sobre continuidade e extinção, sem o lugar apocalíptico da extinção. Peço licença para discordar. O momento final é sim de fim do mundo. Quando a fumaça se espalha pelo espaço e nela se reflete uma luz azul muito forte, de cima para baixo, criando imagem de céu desabando sobre as bailarines, em pé, eretas como nunca, com suas lanças de ferro firmemente apoiadas, paralelas umas às outras e perpendiculares ao chão, lembrando guardiões ou guerreires que sobrevivem a um momento de destruição, sinto um clima de apocalipse, por que não? Mas não o bíblico. Um apocalipse que também é gênese, ambíguo, o fim do mundo que é também o começo de um novo. A última imagem de “Protocolo Elefante” pela primeira vez irrompe uma luz quente; lembra o nascer do Sol. Transcendência e superação da agonia, são palavras surgidas na memória. O isolamento acentuou o pertencimento. A identidade só faz sentido se não for fechada em si – e se for uma estratégia pra abrir os outros também, e criar comunidade, e mobilizar o público na ação que não se delimita só ao palco, estabelecendo-se por delimitações espaço-temporais oblíquas na ocupa-
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ção de todo o edifício teatral. A arquitetura é política, quando redefinida pela estética que reorganiza a prática cênica. Sonoridade e luminosidade, aqui, são agentes ressignificadores desse espaço, ao inverterem aquilo que se espera enquanto aspecto técnico de um espetáculo. A luz determina a dimensão rítmica dos instantes e os separa em particulares acontecimentos; enquanto o som reativa a presença do corpo como se o revelasse ao trazer dele o impacto, a materialidade, o gesto – a afirmação de sua realidade. Há tanta beleza em aprender a aprender de novo. Achar as frestas da pertença em pleno contexto de uberização do trabalho, notadamente nas artes do corpo e da cena. O elefante como mutação prostética, para se proteger da ideologia de empreendedorismo individual que domina a mentalidade e /ou as possibilidades de produção de muita gente hoje em dia. Próteses de proteção, como diz Maria Lucas em artigo recente na Revista Serrote1. Assim como cílios, silicones ou laces. Como giletes ou canivetes. Não é vaidade ou violência. Não é um simulacro, viver é mesmo muito perigoso. Transmigrar de identidade na proteção do viver em grupo. Uma experiência aberta, transformadora e ritual.
1 https://www.revistaserrote.com.br/wp-content/uploads/2020/11/serrote35_36-amostra.pdf 68
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FICHA TÉCNICA Criação, Direção e Coreografia: Alejandro Ahmed. Criação e Performance: Adilso Machado, Aline Blasius, Edú Reis Neto, Hedra Rockenbach, Jussara Belchior, Karin Serafin, Karina Collaço, Kitty Katt, Leticia Lamela, Luana Leite, Marcos Klann, Mariana Romagnani e Natascha Zacheo Direção de trilha, iluminação e Performance: Hedra Rockenbach Assistência de Criação: Mariana Romagnani Direção de Figurino e assistência de direção: Karin Serafin Assistência de ensaio e preparação técnica: Malu Rabelo Produção: Corpo Rastreado Elementos de cena: Roberto Gorgatti Sede e Preparação Técnica: Jurerê Sports Center - Centro FOTOS CRISTIANO PRIM
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Artístico e Esportivo de Jurerê
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CHRISTIANE JATAHY JULIA
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s primeiras cenas de Julia dão ao espectador a certeza de se tratar de uma peça sobre amor. Ou, ainda, sobre relações interraciais, com o obstáculo a mais, o da classe social distinta e, o pior, a relação entre patrão e empregado que a coloca naqueles contextos de romances impossíveis. Mas Julia é sobre a construção de uma narrativa e
suas múltiplas possibilidades em cena. Conceitualmente, é também uma montagem sobre ponto de vista. A beleza plástica do espetáculo capta sem grandes malabarismos os olhos e a mente de quem assiste. O constante deslocamento entre o ver a cena e o estar nela, a diversidade de ângulos refletido no ponto de vista de quem está, em certo momento, com o controle da história suplanta a forma e se impregna na narrativa. Esse efeito é conseguido por Christiane Jatahy quando expõe as estruturas cinematográficas e, com isso, estabelece uma relação ofuscada entre passado e presente, provocando no espectador uma experiência da onisciência impotente. Ou seja, é possível ver, mas não há como agir sobre aquilo que se testemunha. O uso de telas simultâneas cria um fluxo de informações que, propositalmente, confundem o espectador sobre o que é simulação e o que é verdade, numa perspectiva de hiper-realidade, conceito de Jean Baudrillard. O virtual só
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existe a partir do momento em que o real existe. A sedução em observar o outro em todas as suas intimidades estrutura o conectar-se a todo momento. O filme “Show de Truman”, por exemplo, passeia pelo conceito de hiper-realidade e no limite explicita a ideia de simulacro em que há diversas nuances de “realidades” (e aqui as aspas servem como provocação para o que é real e o que é virtual) e deixa no espectador a eterna dúvida: se eu observo, quem, afinal, me observa? Tudo isso fica mais interessante quando nos atemos ao fato do espetáculo ser uma leitura da montagem original de “Senhorita Julia”, de Strindberg, do final do século 19. A realidade trazida em pauta - o mito da democracia racial, conceito não superado em terras brasileiras - é introjetada em uma ficção preexistente. Nesse sentido, impossível não pensar que, além de universal, a questão não é superada em qualquer sociedade que não se pretenda igualitária. Ou seja, no mundo inteiro. O espetáculo foi assistido a partir da mediação de mais uma tela. Trocando em miúdos, é como assistir óperas no cinema. No limite é preciso entender, por mais que a câmera que grava toda a encenação esteja estática, assistir pelo olhar de quem gravou, sendo assim, submetido a uma mediação que torna a experiência mais protegida. A construção da sobreposição de telas é possível pela
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utilização de ferramentas do cinema, que possibilitam colocar o espectador em posição onisciente, acompanhando o desenvolvimento da cena pelas coxias e, ao mesmo tempo, observar seu resultado final enquanto acontece em tela plana. Algumas cenas são gravadas sob o olhar do público. A posição daquele que observa, ao mesmo tempo, os pontos de vistas do protagonista e antagonista. No fundo, essa dualidade é etérea e a mediação só uma questão de escolha da câmera. A relação de dominação é evidenciada pela troca de perspectiva escolhida por aquele que grava e aquele que se deixar exibir ou ocultar. Isso transborda para o deslocamento entre os personagens que provocam igual jogo também na narrativa: o papel de carrasco e humilhado trocado como um jogo de cena, não sendo constitutivo de nenhum personagem e, sim, do conflito explícito naquela relação. “Nós não somos como eles”, diz o homem negro desumanizado. Até quase o final da peça, ele é apenas o homem negro, serviçal, que vive sob a humilhação da aristocracia branca. Uma ideia bastante hierarquizada de castas que não se movem, que jamais se deslocarão. Bem diferente do acontecido no palco em Julia. A frase em negação é também passível de interpretação a partir da ideia de alteração de ponto de vista. Se fizéssemos o exercício, tal e qual é proposto na montagem, de uma tela mostrar o que acontece dentro de um quarto,
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porque a plateia não vê o quarto, mas pode contar com a câmera que o filma, temos na frase a ideia de deslocar dicotomicamente seu significado. “Nós não somos como eles”, porque somos serviçais, negros, pobres e a nós foi dado apenas a incumbência de subserviência, nunca mandar, calar-nos e agradecer. Ou “nós não somos como eles”, porque somos muito melhores, não somos arrogantes ou hipócritas, não nos preocupamos com julgamentos morais pois podemos ser de verdade aquilo que desejamos; sem fingimentos, sem interpretações. Em Julia, a verdade e a interpretação passam a ser um ponto de vista, diante do proposital jogo de interpretação confundido como realidade. O que nele se estabelece como papel a ser interpretado, fingimento, como a contação de uma realidade alheia, e o que está dentro daquele que coloca para fora seu discurso? É por isso que Julia é também sobre teatro. Sobre o fazer teatral. E não é por mostrar a plasticidade conseguida, ao mesclar cinema e teatro, enriquecendo os elementos de cena e aumentando o engajamento da história que está sendo contada. É por escancarar, ao propor o conceito de hiper-realidades (o simulacro da realidade confrontado com a realidade), o deslocamento de pontos de vista e, sobretudo, ao criar um jogo em cena, onde a hipocrisia contida em uma emoção fabricada por um ator quando
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interpretando um personagem. Um personagem de uma história clássica, com carga dramática violenta e que traz elementos extremamente racializados, em um tempo em que o debate identitário se impõe de forma a não ser mais possível retroceder. A dualidade entre verdade e fingimento permeia a montagem e a forma de criar a partir de Strindberg. Qualquer pessoa pode dizer aquelas coisas violentas e racistas. Pode também gritar, gesticular e até agredir sob argumentos machistas. A repetição de cenas em que se desloca a posição de dominante e dominado provam isso. Até mesmo pela abundância de pontos de vista da história, a plateia se ilude com a ideia de ter o controle sobre o que acontece, mas o grande jogo de subverter realidade e ficção faz com que a plateia não saiba quem está dizendo, afinal, a verdade. E, afinal, o que é a verdade? Ou será que estamos a todo momento interpretando papéis sociais impostos?
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FICHA TÉCNICA Baseado no texto “Senhorita Julia” de August Strindberg Concepção, Direção e Adaptação: Christiane Jatay Com: Julia Bernat, Rodrigo dos Santos Participação no Filme: Tatiana Tiburcio Concepção do Cenário: Christiane Jatay e Marcelo Lipiani Direção de Arte e Cenário: Marcelo Lipiani Fotografia e Câmera Filme: David Pacheco Câmera ao Vivo: Paulo Camacho Desenho de luz: Renato Machado e David Pacheco Figurinos: Angele Frós Trilha Sonora: Rodrigo Marçal Produção no Rio de Janeiro: Claudia Marques FOTOS MARCELO LIPIANI
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Tour Manager: Herique Mariano
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CIA BRASILEIRA KRUM
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esmo se você nunca tiver ouvido falar de Hanoch Levin, nos primeiros 15 minutos da montagem de Krum, você saberá ele ter sido influenciado por Tchekhov e Beckett. Talvez, em alguma medida, haja uma estetização da encenação que se transfigura pelos símbolos presentes nas narrativas dos três autores. O vazio
existencial de personagens por vezes desinteressantes que vivem a mediocridade de uma vida provinciana e sem grandes arroubos de emoção, ao mesmo tempo em que idealizam uma vontade de potência ofuscada por completo pela covardia de suas relações consigo mesmo e com o outro. E aqui o uso da vontade de potência é proposital, porque esse aspecto do niilismo é bastante presente na teatralidade proposta pela Companhia Brasileira de Teatro, dirigido por Márcio Abreu. Impossível não aproximar tal enredo de “As três irmãs”, que esperam, numa Moscou idealizada, uma tábua de salvação. É escuro, sombrio e, paradoxalmente, traz desenhos de personagens ridiculamente fantásticos. Os personagens tentam, tentam, mas nunca conseguem se “desfazer dessa carapaça e viver”, como repete exaustivamente Krum. A escolha por um conjunto cênico limpo, de poucos elementos e com marca muita delineada de luz e sombra,
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evidencia o aspecto de investigação dos traços psicológicos dos personagens desdobrados em sequências que fazem a plateia ir do riso ao choro, dando, por vezes, breves e difíceis passadas pela vergonha de si mesmo. Em Krum, até mesmo as propositais ausências são presenças. E identifico a ausência em, pelo menos, dois sentidos - e em ambos é possível encontrar a referência de Tchekhov e Beckett: na cena em que o personagem experimenta essa solidão; na ausência de sentido da busca dos personagens que vai se construindo ao longo do espetáculo. Suas imagens caricaturais os tornam fonte de riso, pelas situações ridículas vivenciadas, mas também de uma autocrítica constante justamente pelo que têm de demasiado humano, a ponto de fazer com que se possa pensar: eu já agi assim? Do homem de caráter duvidoso e sempre insatisfeito, passando pela mãe super protetora, o casal que vive de aparência, até chegar na mulher carente temos uma investigação possível sob a luz da psicanálise. O obsessivo que traz um dilema, ao mesmo tempo ridículo quanto possível; o perverso que inverte o jogo e pode ser, por vezes, cruel; o neurótico que convive com a culpa de nunca conseguir ser alguém de quem se orgulhe. Tudo muito normal. Tanto naquilo que se manifesta quanto no
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que se deseja. No fundo, todos ali desejam aplacar a solidão de suas existências. Nesse aspecto de investigação existencialista tragicômica se aproxima, em muito momentos, dos autores citados no início do texto. Traçando especificamente um paralelo com a narrativa de “Esperando Godot”, em ambos os casos o fim se mostra absolutamente vazio de sentido no momento em que os personagens notam não haver certeza naquilo que se pode esperar. Até porque esse desejo - do que se espera - pode carregar elementos universais, mas tem particularidades: aquilo que nem todo mundo vai conseguir. Chega a doer a subserviência de uma mulher para ter aquele que considera ser “o homem da sua vida”. É forte demais observar uma mulher, mesmo humilhada, não compreender a toxidade da relação, passar por cima e aceitar. Tudo isso para dizer que venceu, que conseguiu cumprir aquilo convencionado pela sociedade por felicidade. Em “Medos privados em lugares públicos”, Alain Resnais traz exatamente o dilema de uma busca incessante pelo amor, como se ele fosse a tal fonte da felicidade. O respeito mútuo e o amor próprio são fundantes para o afeto, no sentido de se importar, acontecer. Tudo isso nos leva a refletir que tipo de afeto estamos construindo nas nossas relações. E esse elemento de reflexão
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torna o espectador cúmplice daquilo que testemunha em cena, por aproximação ou rejeição. A urgência em atender as expectativas dos outros, torna-te um eterno fracassado, pois, ainda que triunfe, a verdade é isso não ser seu, é do outro. É o modo de vida do outro, com seus valores constituídos, introjetado em você. A grande questão é os pressupostos divergirem. Trazemos na origem de nossas vidas alguns elementos inconscientes, mas somos, na maior parte, um resultado do acumulado das experiências quais passamos. E o resultado disso isso é muito individual. Ainda que vivamos no mesmo espaço-tempo. Ainda que seja em uma província no meio do nada e que não inspire grandes ambições. “Krum” nos mostra, portanto, como as convenções podem trazer angústia; a busca, muitas vezes, não o objetivo, e, sim, o caminho; a covardia paralisa e o devir só acontece quando a vontade de potência se manifesta com respeito a si próprio e sem julgamento. E mais importante do que o julgamento do outro, é aquele que a gente faz de si próprio. Já se olhou no espelho, respirou e disse: “Como você está lindx”, hoje? Faça agora, não fique esperando o que nunca vai chegar, porque, durante todo o tempo, esteve dentro de você.
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FICHA TÉCNICA
Cena: Eloy Machado Assistência de produção e
FOTOS NANA MORAES
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Texto: Hanoch Levin
contrarregragem: Liza Machado
Direção: Marcio Abreu
Assistência de iluminação e operação
Elenco: Cris Larin, Danilo Grangheia,
de luz: Lara Cunha, Henrique
Edson Rocha, Grace Passô, Inez Viana,
Linhares, João Gaspary
Ranieri Gonzalez, Renata Sorrah,
Assessoria de Imprensa: Vanessa
Rodrigo Bolzan e Rodrigo Andreolli
Cardoso / Factoria Comunicação
(em alternância), Rodrigo Ferrarini
Assistência Assessoria
Tradução: Giovana Soar
de Imprensa: Pedro Neves
Adaptação: Marcio Abreu e Nadja Naira
Costura: Ticiana Passos
Tradução do hebraico:
e Luciana Falcon
Suely Pfeferman Kagan
Assistente de Figurino: Luciana Falcon
Iluminação: Nadja Naira
Cenotécnico : André Salles
Cenário: Fernando Marés
Estagiário de Cenário: Yuri Wagner
Trilha e efeitos sonoros : Felipe Storino
Operação de som: Felipe
Figurino: Ticiana Passos
Storino, Maurício Chiari
Direção de Movimento: Marcia Rubin
Companhia Brasileira de Teatro
Direção de Produção: Faliny Barros
Produção: José Maria e Giovana Soar
Programação Visual: Fábio Arruda e
Administração: Cássia Damasceno
Rodrigo Bleque – Cubículo
Imagens: Ariel Schvartzman
Interlocução artística: Patrick Pessoa
Andradina Azevedo
Produção Executiva: Isadora Flores
Produção e Realização:
Administração: Cassia Damasceno
Renata Sorrah & companhia
Assistência de direção:
brasileira de teatro
Nadja Naira e Giovana Soar
Patrocínio: Oi e Lei Estadual de
Assistência de Cenografia e Direção de
Incentivo à Cultura do Rio de Janeiro
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CIA DOS À DEUX
IRMÃOS DE SANGUE
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uantas são as línguas universais? Irmãos de Sangue é uma proposta performática, uma história simples e sutil realizada por corpos em movimento. É um espetáculo para qualquer pessoa, de qualquer lugar, porque reúne mais de uma linguagem universal, vai além de um acompanhamento musical e uma coreografia.
Irmãos de Sangue aborda a linguagem universal da família e do amor filial-fraternal. Aborda a linguagem universal dos abraços infinitos, as interseções que vão além dos limites do físico. A linguagem universal de se sentir, um com o outro, e se fundir em um grupo de pertencimento. Sua simplicidade é amiga de sua baixa ambição: a história de três irmãos e sua mãe. Uma viagem simples, sem surpresas, por uma possível vida de um grupo de humanos que compartilham o mesmo sangue. E aquelas coisas que já sabemos acontecerem: os nascimentos, as brincadeiras, os ciúmes, querer possuir todo o amor da mãe, entender que assim não dá certo, ter empatia com o irmão no castigo, brigar um pouco pelos brinquedos, fazer cócegas, receber más notícias prematuras, voltar a brincar, tornar-se uma pessoa de terno, abraçar, morrer. Escrever a partir da virtualidade desse espetáculo é quase uma injustiça, uma mini explosão de raiva por não ter
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podido vê-lo ao vivo. A beleza dos detalhes é evidente, e não teríamos perdido a oportunidade de estar em um mesmo tempo e espaço com os atores. Cada momento desta vida familiar é uma coreografia lúdica distorcida que nos prende e emociona, que diz mais na combinação de todos os elementos em cena, que nos escapam pela tirania do plano. As nuances criadas pela iluminação são nodais na história, são praticamente mais uma dançarina que dá lugar ao jogo livre dos corpos ou com eles flui. E junta à música, armam um conjunto rítmico e harmonioso das linguagens a uma mesma direção e, consequentemente, de sentido. O simbolismo da cenografia é igualmente claro, apesar de termos a tela como intermediária. Somos particularmente atraídos pela “gangorra” como um objeto de jogo, mas também enquanto signo de equilíbrio. É o espaço indiscutível da mãe, talvez mãe solteira, mãe-orquestra, equilíbrio da formação dos filhos e da vida pessoal, malabarista profissional no desafio da maternidade. Os bonecos da mãe mais velha e das choronas dos velórios acrescentam mais um código a este compêndio de linguagens universais, ao qual devemos nos atentar. No movimento físico incessante, esses objetos, que poderiam ser estranhos, são adicionados como extensões do
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próprio corpo, permitem plasticidade e resolução prática de desafios cênicos, tais como a passagem do tempo e a presença de multidões. Mas a superposição de uma linguagem sobre a outra é naturalmente complexa, não poderíamos simplificá-la como um mero artifício físico e cênico. Os bonecos tornam-se materialidade única com os outros de carne e osso, estendendo metaforicamente uma parte do que serão ou estão sendo. A mãe envelhece com o alongamento do tronco e da cabeça, torna-se pura expressão e qualidade de manipulação: é tão bem manipulada que realmente parece ser apenas mais um corpo vivo, tão plástico quanto todos. As choronas ampliam a multidão de atores presentes e, paralelamente, a representação da dor interna pela qual passam os parentes em luto. Do sofá, vemos um trabalho simples e sensível. Quando nos voltamos ao paratexto da obra, uma descrição precisa diz nela as sensações visuais exalarem um mistério delicadamente velado de ternuras surdas e tensões dramáticas, ser um momento suspenso de humanidade. Isso é, talvez, o que não pudemos atravessar pelos nossos corpos de espectadoras. Tínhamos consciência em todos os momentos o quanto nos teria emocionado fazer parte da convivência com os
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atores. Ver pessoalmente e se deixar encantar com aqueles momentos mágicos, os pequenos detalhes do movimento de uma mão em um determinado instante. Aquilo que diz muito mais sobre a história, e que faz da narrativa simples uma experiência única. A impossibilidade da nossa crítica neste contexto não foi problemática pelo dispositivo filmado, mas pelo que não é possível comunicar para além da tela: aquela premissa de um corpo vivo presente e em movimento que desafia o outro corpo vivo em suposta passividade de quem o observa. O que perdemos nessa interação mediada foi, sem dúvida, o que mais nos teria atravessado do trabalho. A experiência do confinamento, da poltrona, da tela, de ser espectador em uma pandemia, modifica o assistido. Como se fosse um ciclo virtuoso de deformações: a peça desafia o ator, e o ator desafiado retorna à obra um sentido atravessado por uma nova realidade, a realidade de ser espectador em uma pandemia. Há uma nova subjetividade em que converge o espectador que fomos e quem estamos sendo neste contexto. E, necessariamente, isso tem uma consequência sobre o objeto qual colocamos o olhar. Então, por um lado, esse desejo ciumento aparece, como um irmão mais velho que finca uma bandeira sobre os pais, a desejar uma maneira de ver o espetáculo que não
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aconteceu. E antes disso, a possibilidade de dizer alguma coisa a partir da falta de sentimento que acreditamos poderia ter estado lá e não esteve. Mas, em certo ponto, de forma espectral, como uma sensação de sentimento, se nos permitem a definição elaborada, aparece. Se reconhecemos esse trabalho poder gerar algo para nós, é porque tem alguma coisa acontecendo. Talvez sejam todas as linguagens universais que o espetáculo traz que nos permite encontrar um sentimento igualmente universal para nós, espectadoras. A esta altura, convém esclarecer, estamos interessados em fugir da ingenuidade de acreditar a linguagem familiar poder ser universal, como se essa experiência fosse a mesma para todxs. Em vez disso, referimo-nos a uma universalidade do sentimento de lar e relações familiares, que pode existir tanto com pessoas com quem temos um laço de sangue, como com pessoas que não. E esse vínculo de amor e familiaridade é o que esse espetáculo representa com clareza e cumplicidade, desdobrado em seus múltiplos signos cênicos. Será que a crítica no sofá pode ser complementada com um novo exercício de imaginação, uma coreografia da memória do que era ser espectador? E então, podemos reconhecer que algo teria nos mobilizado até demais, porque algo está sendo mobilizado a partir daí.
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Sabemos não existir tal passividade quando somos espectadoras, que uma linguagem universal de pensamento e sentimento se abre na poltrona individual. Irmãos de Sangue, com a sua austeridade formal e a sua entrega imaculada de signos, levou-nos ao exercício da memória de ser espectador em um teatro. Quase como se, aquela viagem em família a que ele nos leva, que não é nossa mas da qual podemos nos apropriar facilmente, nos levasse de volta a um caminho que nos é familiar. Aquela viagem em que éramos espectadores, enquanto a proposta cênica nos fez apropriar de uma história familiar.
FICHA TÉCNICA Dramaturgia, Cenário, Coreografia e Direção: Artur Luanda Ribeiro e André Curti Interpretação: Cécile Givernet ou Raquel Iantas, Matias Chebel ou Daniel Leuback, FOTOS RENATO MANGOLIN E XAVIER CANTAT
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André Curti e Artur Luanda Ribeiro
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CIA DOS ATORES INSETOS
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que um gafanhoto falaria a outro? Qual a relação entre as baratas - as únicas que sobreviveriam a uma guerra nuclear - com seres humanos? E o cupim e as formigas? “Insetos”, da Cia. dos Atores, é antes de tudo uma instalação. Os próprios atores colocam seu corpo de maneira performática e assumem fazer parte dessa grande
instalação cênica que traz símbolos importantes para o significado daquilo que se quer representar. Mas, antes e mais importante que tudo isso, uma experiência estética que ora causa estranhamento - insetos falam, ou melhor, raciocinam, afinal? -, ora aproximação pela humanização. E essa desconstrução é característica do trabalho do grupo carioca. A montagem marca os 30 anos da companhia e, sendo uma escolha, é possível entender como um lugar de reflexão da trajetória e da construção particular de uma linguagem, que passou a servir de inspiração a outros grupos mais jovens. Nessa perspectiva, há um prisma de provocação sobre o exercício cênico em confrontação com a realidade vigente. O que, afinal, é importante em uma obra? Refletir com criticidade sobre situações reais lançando mão de uma estética fantasiosa, como acontece em Insetos, é, certamente, uma marca da companhia. Os temas dos 12 quadros espelham claramente a realidade, com referências que, por vezes, podem não
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ser tão explícitas, mas sempre críticas. Nesse sentido, é o que se espera de Jô Bilac, que, seis anos atrás, emprestou seu “Conselho de Classe” à companhia. A cenografia é dotada de um equilíbrio entre objetos e o desenho de luz que também encenam. Os pneus amontoados se assemelham a uma trincheira, onde o caos é explícito e serve de base para os diálogos que ora ironizam ora refletem uma situação sobre a qual não se tem controle total. A pouca luz direcionada na cena em que os cupins preparam as artilharias para destruir as colônias de formigas é tal e qual um porão onde golpistas combinam um revide militar. As diferenças não podem conviver e não é possível um equilíbrio na diversidade. Aqui se evidencia a ideia do contrato social em que um manda e o outro obedece. A crítica ao capitalismo como regente das relações sociais aparece na canção: “O dinheiro é solução. Ter dinheiro é muito bom”, trazendo uma proposital polarização entre o que se diz e a forma com que se diz, já que a música e gestual são festivos, e a conclusão trágica de que o dinheiro compra tudo. Qual o seu preço? No fim das contas, pouco nos diferenciamos, nós, humanos, dos insetos. As estruturas sociais que regem as relações dos seres humanos talvez se repitam entre os animais. Para todos uma única certeza: a de como
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a gente está indo para o caminho errado, como diz o louva-a-deus. E nesse jogo, o bicho mimetiza o homem e vice-versa. É curioso pensar o texto nos trazer uma atmosfera simbólica do “eu já sabia”. Mas ele não faz previsões, tece críticas. O ano era 2018, quando a violência como ferramenta de controle social foi implementada institucionalmente no Rio de Janeiro. Friso a palavra legalista porque o controle paralelo, do tráfico à milícia, ambos com o apoio do Estado, é coisa antiga. A intervenção federal na segurança pública do Rio faz do Estado um laboratório de todo mal. Não que o mal tenha sido criado naquele momento, mas ele, certamente, recebeu chancela e medalha de honra ao mérito. Marielle Franco seria morta por ser resistência e tinha de ser silenciada. Aquele Brasil que se esmagava entre “não fale em crise, trabalhe” e os números crescentes de desemprego, não parecia nada viável. Teve debandada para todos os gostos: da Miami Beach de conversível com “medo do Brasil virar uma Venezuela” aos esquerdopatas com cidadania europeia, mas que só conseguem ficar em Portugal porque geral “lost in translation”. Teve a ultradireita sendo coroada com pompa, circunstância e a revelia do cavalo. O pensamento crítico foi fagocitado por uma massa intoxicada pelo aerosol daquilo que lhe convém. Mesmo
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com muita criatividade, seria difícil prever que chegaríamos onde chegamos. E chegamos. O humor e as constantes ironias da peça convergem para 2020 com perfeição: uma pandemia causada, entre outras coisas, pela sanha do capitalismo gore encampado pelo homem que não respeita ninguém nem nada - nem ser vivo, nem inanimado - e chegou ao óbvio: o esfacelamento completo da desgastada réstia de humanidade. Quem nos espia nessa grande gaiola de Skinner, em que se transformou a humanidade? Quem nos observa e a partir de qual ponto de vista? O mesmo olhar etnocêntrico de nossas lentes ao observar aquilo que é diferente da gente? O diálogo se tornou impossível, quando a tensão do tecido social o esgarçou de maneira irreparável. E o medo é o que dá o tom de todas as nossas relações, sentimento maximizado em um mundo pandêmico. Talvez o historiador Timothy Snyder nos traga algum caminho de compreensão dessa situação quando diz “as mudanças ocorridas na política, na economia e na tecnologia nos últimos anos esvaziaram as ideias de futuro e liberdade. E o resultado foi o enfraquecimento das democracias”. Só há espaço para uma espécie de bicho. Volto à inquietação impregnada em mim: quem nos espia na grande gaiola de Skinner, nesse experimento social
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de sobrevivência a qualquer custo que é a nossa vida? Em 2018 ainda não tinha um político como Bolsonaro presidindo um país. Então, não acho nada difícil imaginar que quem olha pelo buraco da caixa pode ser uma baratona que escapou de uma chinelada e, rindo muito, olha pelo buraco da caixa e ri: “Se foderam. Achei pouco”. O espetáculo caminha para o desconhecido diante de um cenário de destruição. É complexo, diz o besouro, criando empatia com quem o observa de outro ponto de vista. É complexo mesmo. A questão não é ser destemido, mas enfrentar o medo. Os atores caminhando sobre pneus em um cenário úmido e frio parecem navegar a deriva em um barco formado pelo que restou depois de toda a destruição. Começar do zero pode ser, de fato, complicado. Mas é também uma oportunidade de construir uma nova trajetória.
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FICHA TÉCNICA Texto original: Jô Bilac Adaptação: Cia. dos Atores e Rodrigo Portella Direção: Rodrigo Portella Elenco: Cesar Augusto, Marcelo Vale, Marcelo Olinto, Susana Ribeiro, Tairone Vale Cenário: Beli Araújo e Cesar Augusto Figurino: Marcelo Olinto Iluminação: Maneco Quinderé Preparação Corporal: Andrea Jabor Direção Musical: Marcello H. Direção de Produção e administração: Celso Lemos FOTOS ELISA MENDES
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Realização: Cia. do Atores
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CIA HIATO
AMADORES
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ão podemos subestimar o poder dos clichês e nem das fórmulas prontas. Devemos, sim, procurar entender o quê faz com que determinadas narrativas de superação se cristalizem e se repitam continuamente nos filmes, peças, livros, criando, assim, a ilusão de certas histórias serem naturais e outras, estranhas e recrimináveis. “Amadores”, da Cia. Hiato, bebe direto
na fonte dos lugares comuns da indústria cultural e da chamada “cultura de massa”, indo da música “Evidências”, de Chitãozinho e Xororó, ao discurso do Oscar, passando por Beyoncé, Xuxa, Aladin, Cazuza, e o filme Rocky Balboa, de Sylvester Stallone – este, o ponto de partida da pesquisa e base da estrutura dramatúrgica do espetáculo. Além das atrizes e atores do grupo, há muitas outras pessoas em cena, reunidas por meio de um anúncio de jornal que convocou artistas amadores para uma audição. Ao todo, 19 pessoas no palco, com diversas idades, profissões, nacionalidades, gêneros, experiências de vida, e por aí vai. Só essa quantidade de pessoas diferentes entre si já desperta interesse, pois se distancia da individualização e homogeneização que, aos poucos e de novo, quase sempre por motivos econômicos, toma conta do cenário teatral. O grupo radicaliza a exposição das estruturas do teatro, dando a ver a inteireza do palco, assumindo todas as transições e contrarregragens como acontecimentos cênicos, e mais: transformando em cena a leitura do orçamento de
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toda a temporada (no caso da gravação, no SESC Santo André), cada um contando ao público também o que planeja fazer com o cachê. E ainda: relatando as diversas etapas do projeto, desde seu início, com o apoio da Lei de Fomento ao Teatro de São Paulo, compartilhando o caminho de cada atriz e ator até chegar no teatro, naquele dia específico (van, metrô, ônibus ou carro). As dúvidas sobre o motivo de estar em cena são verbalizadas, assim como as hesitações em relação à própria estética do espetáculo, criando pontos de fuga que remetem à reflexão metalinguística – a cargo de um crítico e professor, um dos amadores das artes que integra o elenco. Entre os questionamentos por ele trazidos: qual a necessidade de tantas cenas catárticas, uma em sequência da outra?; o formato repetitivo das cenas, em que alguém conta sua história e canta uma música no final, não se esgota?; como não reproduzir as narrativas de superação do cinema dos Estados Unidos, buscando, no lugar delas, o “pós dramático” (nas palavras dele)? Nessa curta intervenção metateatral, em que o crítico-ator-amador nos dá uma aula, somos levades, pela via racional, a refletir sobre questões pertinentes à estrutura dramatúrgica dos fragmentos de vidas compartilhados em cena, fazendo um paralelo à história de Rocky Balboa, e destacando o fato de, no final do filme, Rocky perder, e que a tradução brasileira diz haver um empate. O que isso revela sobre nossa dificuldade de lidar com o fracasso?
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Essa é uma das retrancas criadas pela direção para distanciar o público da total adesão às narrativas com forte apelo emocional, que chegam a graus profundos de intimidade, criando empatia entre nós, que assistimos, e elas, no palco. Tanto com as chamadas amadoras, quanto com as atrizes e ator da companhia, enquanto revelam memórias que, às vezes, beiram o patético (no sentido de pathos), mas, justamente por isso, têm o poder de criar um canal direto de comunicação. E, por que não, de identificação? A sensação é a necessidade de verbalizar a hesitação estética, por parte do grupo, dar-se como forma de questionar-se se, no fundo, não se acredita mesmo naquilo, e até que ponto essa crença não leva à frustração no mundo de competições e vaidades qual vivemos no circuito teatral profissional - muito por causa da precariedade que cria disputas entre nós. O mais bonito do espetáculo é vermos essas fragilidades e inseguranças, que todes temos, vermos esses sintomas do ego entregues ao público, como um gesto de autoimolação, em nome da potência coletiva do teatro. Por exemplo: o medo de assistir a um espetáculo e, na plateia, contar para alguém “já fui atriz, um dia”. O medo de não conseguir mais trabalhar profissionalmente e se sentir amadora. O medo do esquecimento. De não fazer o personagem principal, ou não conseguir perder a barriga. Isso tudo entremeado a momentos em que se relatam acontecimentos trágicos, como a morte de uma amiga atropelada, repentina-
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mente, em um momento de celebração. Ou, ainda, o discurso que era feito para família, com o controle remoto na mão, simulando o recebimento do Oscar, realizando o sonho da filha e também o da mãe que queria que ela fosse atriz. Uma infinidade de sensações, em um ritmo acelerado que aos poucos vai nos desbaratinando, pois as histórias acessam lugares profundos das subjetividades alheias, muito diferentes entre si, às vezes mais cômicos, às vezes existenciais. E, quando você menos espera, todes começam a dançar “Lua de Cristal” ou “All the Single Ladies”, e o que importa é viver aquela apoteose, todo aquele show feito por pessoas que poderiam ser qualquer uma de nós. Isso anestesia a sensação de impotência e perplexidade ante a momentos conflituosos e traumáticos de tantas vivências em detalhe. Em diversos instantes, evoca-se a infância reproduzindo um ar de ingenuidade às vezes não muito convincente. Contudo, sendo os narradores hábeis, e dominando totalmente o assunto, conseguem sustentar longos monólogos, com um ou outro momento monótono (até nisso a peça parece compreender a vida), quase sempre terminando em uma canção. Muitas, desafinadas, e, algumas, empostadas. Clichês atrás de clichês. Quase todos deliciosos de se assistir, pois afloram da autenticidade de cada pessoa no palco. Você se reconhece nos clichês porque a humanidade está ali posta de modo a confundir o que é técnica e espontâneo, o que é autoficção e o que, por parecer tão absurdo, não pode ser
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verdade (e provavelmente é). As escolhas estéticas dialogam com o teatro documental, por trazer o material pessoal à cena, mas não de forma condescendente, pois o tensionam, borrando o limiar da formulação ficcional sobre a história de vida, a partir de narrativas recorrentes da indústria cultural – que tanto espelham quanto são ressignificadas por elas. Uma das metáforas mais significativas, no mar de narrativas que a Cia. Hiato e seus parceires amadores nos trazem, é a dos pedaços quebrados de uma vida. É assim que se inicia o espetáculo, quando um dos atores amadores compartilha sua história, simbolizada por muitos fragmentos despedaçados, que parecem se juntar e formar um todo, único, no momento em que, pela primeira vez, fuma um cachimbo de crack. A imagem dos pedaços espalhados retorna diversas vezes, ao longo do espetáculo, em diferentes bocas. O homem que faz o depoimento é o primeiro a falar e retorna costurando a dramaturgia dos outros relatos. Chama atenção sua desenvoltura, sendo inevitável se perguntar se ele não é um dos atores da companhia. Qual a diferença dele, considerado um “amador”, para os profissionais? Essa mesma pergunta ocorre quando o bailarino extremamente talentoso faz sua performance, nos momentos quais encena um atendente de telemarketing no cotidiano de seu trabalho. É difícil concluir sobre o limite entre amadorismo e profissionalismo. Um dos pontos que se destaca na construção
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da Cia. Hiato é a diferença entre a estrutura dramatúrgica daqueles considerados amadores em relação aos profissionais. Enquanto estes narram seus receios, sentimentos de fracasso e frustração, aqueles têm, quase todos, narrativas de superação, em que a beleza da perseverança é o que parece possibilitar a vida e sua expressão. Há o contraste das condições materiais de vida de uns em relação aos outros, sendo os profissionais mais favorecidos, expondo seus privilégios, seu lugar de classe e sua branquitude, conscientemente; ao passo que, nos relatos dos amadores, vemos o efeito mais direto da precariedade, falta de trabalho e do sofrimento a eles causado, ainda não sendo eles que mais reclamem disso, e sim os profissionais. Em comum entre todes, como diz a sinopse do espetáculo, é o desejo pela arte revelar o profundo da humanidade em cada um. Esse encontro nos cativa e não acontece só entre eles, mas também com a gente, enquanto assistimos.
FICHA TÉCNICA Uma criação da Cia. Hiato Com Aline Filócomo, Aura Cunha, Chicão Paraizo, Dalva Cardoso, Dom Lino, Fabi de Farias, Fernanda Stefanski, Giovanni Barontini, Leonardo Moreira, Loupan, Luciana Paes, Márcia Nishitani, Maria Amélia Farah, Marisa Bentivegna, Maurício Oliveira , Miguel Caldas, Nairim Bernardo, Nsona Kiaku Arão Isidoro Jorge, Oswaldo Righi, Paula Picarelli, Roberto Alves, Ronaldo FOTOS LÍGIA JARDIM
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de Morais, Rose Sforcin, Thiago Amaral e Yumi Ogino
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CIA OS CRESPOS
ALGUMA COISA A VER COM UMA MISSÃO
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mbora o título traga com “alguma” um jogo de palavras tirando o peso de missão, que, quase sempre, nos remete a algo messiânico, é mesmo a missão d’Os Crespos realizar trabalhos como esse. Além do estilo sugerir um trabalho teatral de intervenção, a missão de qual falam também propõe a intervenção, e, aqui, trago o significado mais drástico da
palavra: o de interpor autoridade, assumir o controle que, na verdade, lhes foi tirado. Não há como falar de “Alguma coisa a ver com uma missão” sem dizer sobre qual o debate é colocado. A desconstrução do mito da democracia racial, em um Brasil de passado escravocrata que nunca terminou, a ideia da abolição não concluída, não é possível com diálogos e concessões. A ruptura é absolutamente urgente e necessária, porque é dela que poderá vir algum tipo de sociedade verdadeiramente antirracista. Daí a ideia do levante, citado em muitas passagens pelos personagens. E, nesse sentido, é inevitável observarmos onde se assenta o conceito norteador da peça. A democracia - a racial, é uma falácia, e a territorial, outra mentira contada para o massacre nas favelas continuar a acontecer -, foi também sustentada pela euforia de anos de governo dito progressista, que surfou em mares calmos e na ideia de
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“paz e amor”, com os dedinhos levantados, e uma mentira de justiça social. A coalizão, base do nosso sistema de governo, autoriza os acertos e conchavos em nome da pacificação; é um caminho completamente inverso ao do levante. A menos que seja por uma coalizão, como inclusive existe, há pouco tempo, unindo os diversos movimentos negros, assim mesmo, no plural, porque as pautas racializadas são inúmeras. Ainda mais quando se coloca a raça no lugar em que tem que estar: no centro do debate. A questão racial não pode ser um “recorte”. Ela precisa ser protagonista. Os ditos progressistas não negros têm dificuldade em compreender a luta de classes não mais contemplar os que desejam a construção de uma sociedade verdadeiramente antirracista. Tudo isso pois a interseccionalidade deixou de ser contexto e virou necessária espinha dorsal para o caminho da transformação social. A quebra do racismo estrutural é só com tapa na cara mesmo. O diálogo não consegue coexistir no levante, pois a ideia de diálogo pressupõe igualdade. Mas o diálogo entre negros e não negros já é, de saída, desigual. E os espaços de formação de opinião atual, a imprensa, mostram-nos isso em números. Apresentadoras negras têm sido colocadas na TV quase que como um troféu da diversidade. Situações como essas só expõem a exceção representada em seus casos diante o todo.
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A internet amplificou as vozes negras, contudo, ela ainda é muito distante de uma ideia unificada de levante, na direção de uma transformação. Mesmo com a aparente democratização de espaços para propagar discursos, a mediação ainda é algo que não se pode evitar. E, nesse jogo, o racismo dá as caras. O espaço de negros e negras é reservado para falar de questões que permeiam a raça, como se estivessem em uma constante condição de resistência e luta. A jornalista, doutora em ciências da comunicação e professora Rosane Borges, em mais de uma oportunidade, em entrevistas para muitos veículos, refutou essa condição justamente por ser esse um lugar onde o outro - indubitavelmente o branco, que está no outro polo de força - quer colocar o negro, sem, contudo, considerar onde o negro quer manifestar seus saberes e sua condição no mundo. Para ela, existe um racismo perverso nesse mecanismo. Por que não ouvir negros médicos, sociólogos, cientistas? Por que uma pessoa só pode falar sobre sua luta? Por que é relegado ao negro o espaço do sofrimento e a tal “história de superação”? “Eu vou para o combate armada com as humilhações que passei na minha vida”, diz, em determinado momento, uma personagem da peça. E se eu quiser o espaço de contemplação, de vitória, de comemoração e não o do sofrimento e abnegação? É aquela história de: “não quero que você diga em meu lugar o que eu tenho que dizer. Eu mesmo proponho tal reflexão”.
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Um trecho em “Terror e miséria no terceiro milênio”, do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, dialoga com esse aspecto da arrogância branca que quer decidir o lugar do negro e, mais ainda, do didatismo repetitivo que anda cansando os não brancos, muitas vezes, usado como chiste em “Alguma coisa a ver com uma missão”, expondo o racismo daquele que nega o racismo. Na montagem do Núcleo, um branco tenta argumentar com um negro que não é racista (mesmo sendo evidentemente racista). É muito comum ouvir do povo negro a frase: “Ando cansado/a de ter que explicar para a branquitude o que é racismo”. E aí que entra o levante: quando a palavra não é mais suficiente, o caminho do rompimento completo se mostra único. Nesse sentido, a ativista feminista, antirracista e intelectual negra Angela Davis tem um pensamento bastante contundente quando o assunto é “o conhecido ódio pelo mundo”, como diria o compositor Baco Exu do Blues. “Tenho problemas com a raiva quando é mal direcionada, mas a raiva, quando é bem direcionada, nos ajuda a progredir. Mulheres negras têm a reputação de serem raivosas e isso é bom”, disse Davis, certa vez, em uma passagem no Brasil. Em Carl Jung, há o conceito de eu me mobilizar para escolher meu destino. “Eu não sou o que me acontece, eu sou o que escolho me tornar”. Há que se exigir de todo
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negro ou negra que ele milite o tempo todo? O próprio ato de acordar e existir já é resistência. A forma de fazê-lo, como acentua Angela Davis, é que vai fazer a diferença. Existir em uma sociedade escravocrata que tem uma dívida histórica com a negritude. Em uma sociedade que não reconhece o privilégio da branquitude e o racismo intrínseco a esse processo. Em uma sociedade que colocou no poder um racista e com pensadores que não admitem os horrores da escravidão e questionam o estupro de mulheres escravizadas como forma de domínio. Sim, negaram a história da qual todos nós deveríamos nos envergonhar, por caírem na falácia racista de sexualizar os corpos negros. Mas há que se ponderar os espaços não poderem estar restritos ao debate racial. O levante é necessário e, para se estabelecer, não há diálogo possível. Sendo assim, nem possibilidade de debate. A quebra é necessária para haver o processo de construção de uma nova lógica narrativa. Negros e negras não precisam só militar pela causa racial. Podem falar sobre as áreas de conhecimento e saber que adquiriram (sim, debaixo de muita luta) ao entrarem em universidades, centros de pesquisa, ao fazerem arte, literatura, e por aí vai. A grande missão é essa: que a cor não seja termômetro para escolha. Que seja marca de luta,
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mas que seja também, simplesmente, a identidade ancestral e motivo de orgulho. O ponto de inflexão, no entanto, é como chegar a esse contexto utópico se tantas coisas precisam ser quebradas antes. Para que um dia haja alguma possibilidade de diálogo, há que se esgarçar o tecido social até que se rompa. O levante é exatamente isso. É a delegacia de Minneapolis incendiada e os dominantes tentando desqualificar o fato: vandalismo. O levante é quando dominados tomam, à força, o lugar do dominante. Não por serem violentos, mas por perceberem que a violência é um instrumento, talvez o único possível, de transformação.
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FICHA TÉCNICA Direção Coletiva: Os Crespos Atores Criadores: Lucélia Sergio, Sidney Santiago Kuanza, Dani Nega, Dani Rocha, Joyce Barbosa e William Simplício Dramaturgia: Allan da Rosa e Os Crespos Direção Musical: Giovani Di Ganzá Músicos: Gisah Silva e Giovani Di ganzá Direção de Arte: Maya Mascarenhas Assistente de direção de arte: Gui Funari Cenotécnico: Wanderley Wagner da Silva Adereços: Cleydson Catarina Iluminador: Edu Luz Contrarregras: Rogério Aparecido e Frederico Peixoto de Azevedo Orientação de criação e assistência FOTOS RONIEL FELIPE
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de direção: Lena Roque
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COLETIVA OCUPAÇÃO
QUANDO QUEBRA QUEIMA
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o começo deste ano, 16 jovens periféricos brasileiros apresentaram o espetáculo Quando quebra, queima nos arredores de Paris, França. A apresentação no festival brasileiro Panorama, em Pantin, é registrada em vídeo e, mais tarde, disponibilizada para a escrita desta crítica. A violência e a organização do movimento que resistiu
à decisão do Governo do Estado de fechar mais de 100 escolas em bairros populares da cidade de São Paulo, em 2015, é transportada, na ocasião, para o outro lado do oceano e para um país, essencialmente, colonizador. Por si só, isso já é o grande ato dessa apresentação. O recurso teatral e estético usado para contar a história de quando o movimento secundarista ocupou escolas dia e noite, tentando impedir que elas fossem fechadas, enfrentando a violência desproporcional da Polícia Militar. Apresentar isso em um país da Europa que, apesar de ter seu próprio histórico importantíssimo de manifestações, tem também o uso da mesma violência para conquista de territórios e no modo como lida com imigrantes. Parte importante de Quando Quebra, Queima, o relato da violência vividas pelos estudantes em 2015 evidencia algo muito próximo das contradições percebidas nas culturas colonizadoras. A descrição minuciosa dos acontecimentos, das bombas de gás, do ser arrastado para
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fora da escola, das humilhações. Os atores resgatam memórias muito frescas de acontecimentos que tinham se dado apenas um ano antes da montagem do espetáculo. Tudo está quente, pulsante. Os fatos são gritados, dançados, cantados. Há também o outro lado, o relato da organização, das assembleias, das decisões de quem vigiaria o portão à noite, de como se cozinha macarrão. É o contar de experiências quase no calor do momento em que elas acontecem. A partir da vontade de fazer esse relato e da presença de atores tão jovens no espetáculo, ele se dá em uma pulsão que acontece do início ao fim. “O Estado veio quente, nós tá fervendo” é um dos gritos de guerra que foram ditos nas manifestações e são reproduzidos em cena. Ressalte-se o fato de que as ações cênicas acontecem no meio da plateia em uma ambientação que lembra as assembleias estudantis. Nada é exatamente organizado. As cenas remetem ao próprio caos que era vivenciado naquele momento e a tentativa de direcionar as vontades e revoltas para um objetivo em comum. No ato de reproduzir essas experiências, entretanto, Quando Quebra, Queima assume uma estrutura dramatúrgica repetitiva e longa. Existe um impulso para contar toda a experiência, em sua absoluta completude, sem deixar nada para trás. Na vida real é assim que queremos falar
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do que nos acontece, de nossas histórias pessoais; todo detalhe é importante. Mas, na construção de uma obra, há a necessidade de foco e edição. E isso é feito para que a dramaturgia se torne mais potente, mais comunicativa. Para que seu efeito de transformação seja ainda maior. A experiência do vídeo também não ajuda a diminuir essa sensação. Uma vez que sequer se está vivendo a cena juntos aos atores, observando o desenrolar da cena, da música, da dança, do canto em tempo real. Mesmo assim, o espetáculo acontece em cima de uma falta de organização que acaba por não evoluir a dramaturgia, mas repeti-la em uma mesma variação de cenas que passam pelo relato da situação, dança e debates com a plateia. Um outro ponto importante é algo compartilhado entre vários espetáculos da cena contemporânea: a tentativa de abarcar uma infinidade de assuntos em uma mesma peça. Em Quando Quebra, Queima essa escolha faz um pouco mais de sentido por refletir uma característica própria da adolescência, a de querer vivenciar tudo ao mesmo tempo. Mesmo assim, enquanto escolha dramatúrgica, esse “caos” acaba por não se aprofundar nos assuntos tratados. Como resultado, a dramaturgia permanece entre contar a situação passada e dizer gritos de guerra. Como se contar uma situação de opressão, por si só, já a tornasse transformadora.
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Essas características, entretanto, não são o que definem Quando Quebra, Queima. Para além das escolhas estéticas e dramatúrgicas feitas para a peça, existe uma força que perpassa toda a cena. Como uma bola de energia que é jogada de um lugar para o outro, os atores falam de si. E o fazem não com sofrimento, mas com uma verborragia que se recusa a esquecer o que quer que seja, que tenta agarrar todos os significados da experiência. “Eu sinto uma coisa que vem de baixo e sobe aos céus. Essa coisa vibra”, diz um dos adolescentes em cena. É um bom resumo do espetáculo, algo que vibra e, a partir desse pulso, tenta dar forma ao que está vivendo, seja como movimento estudantil, seja como peça de teatro. Nesse sentido, o movimento estudantil e a arte vão também passar pela mesma tentativa de controle. Há o relato de mais de 200 policiais cercando uma das escolas ocupadas. 200 policiais armados e equipados contra adolescentes. A imagem é evidente, a necessidade compulsiva de apaziguar, conter. 200 policiais armados e equipados jamais seriam necessários para uma ação em uma escola ocupada por adolescentes. O que valia ali eram os símbolos envolvidos. O da força do Estado e o do imaginário criado pela ação dos
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jovens. Da mesma forma, a arte modifica imaginĂĄrios, ainda que isso nĂŁo seja evidente de cara. Da mesma forma, tenta-se reafirmar sua inutilidade e, contraditoriamente, seu perigo.
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FICHA TÉCNICA Criação e performance: Abraão Santos, Alicia Esteves, Alvim Silva, André Dias Oliveira, Ariane Fachinetto, Beatriz Camelo, Gabriela Fernandes, Heitor de Andrade, Ícaro Pio, Letícia Karen, Lilith Cristina, Marcela Jesus, Matheus Maciel, Mel Oliveira, Pedro Veríssimo. Direção: Martha Kiss Perrone. Som/performance/live: André Dias Oliveira, Heitor de Andrade FOTOS YZABELLA DE OLIVEIRA E DANILO GALVÃO
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Produção: Otávio Bontempo
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COLETIVO LEGÍTIMA DEFESA LEGÍTIMA DEFESA
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civilização europeia é indefensável, decadente. Nenhuma frase melhor do que essa para começar a pensar a intervenção “Legítima Defesa”, do grupo Legítima Defesa, realizada, por duas vezes, no Theatro Municipal e Centro Cultural São Paulo, após eventos da Mostra Internacional de Teatro, em 2016. Já sabemos ser o continente
africano berço de culturas e conhecimentos dos quais a população branca de diversos países – entre eles, o Brasil – fartamente se serve. Alguns exemplos, para iniciar: a constelação familiar, que veio da observação de práticas familiares dos povos Zulu; a meditação, associada à flor de lótus, que em ioruba se diz òsíbàtá (significado: não se submete), tendo íntima ligação com a história de Oxum; e o quilombismo, tecnologia fundamental para combater a atrocidade que foi a escravidão em nosso país.1 Os quilombos antigos e atuais no Brasil foram criados e são liderados por pessoas negras. Mas, tamanha é a potência e efetividade dessa tecnologia social, que seria impossível não influenciar outros agrupamentos de sujeitos marginalizados ou excluídos da esfera social. Digo isso, por acreditar serem os modos coletivos e colaborativos de produção dos teatros de grupo devedores ao povo negro, que desenvolveu estratégias avançadas para resistir e reexistir de modo comunitário e cooperativo em meio a 1
Esses conhecimentos são compartilhados por Kiusam de Oliveira.
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um mundo genocida, excludente e sádico, fundado pela colonialidade européia branca. Nesse contexto, o significado de uma intervenção como Legítima Defesa no Theatro Municipal diz a que veio no próprio título. Além de ocupar um espaço cuja própria arquitetura já traz as marcas das políticas de embranquecimento no Brasil, também é um grito ao público e aos grupos de teatro que valorizam os princípios do coletivismo: reconheçamos nossa prática não vir dos teóricos europeus, quais citamos incansavelmente feito uma ladainha em procissão. É impossível defendê-los. É preciso que sejam vistos criticamente, sem tirar o mérito de todos esses autores, atores e diretores, lembrando sempre que, transpofagicamente, também é possível degluti-los. É urgente e já passou do tempo de afirmar o teatro precisar enegrecer. O teatro precisa lembrar e homenagear as raízes afro-brasileiras (ou amefricanas, nas palavras de Lélia Gonzalez) de seus modos de se organizar, precisa criar meios efetivos de garantir o acesso da população negra às políticas públicas de formação e fomentos às artes. Não há mais como fugir do debate: se foi o próprio Estado o agente de exclusão e extermínio, agora ele precisa reparar os danos, para que exista uma democracia de verdade. E os grupos de teatro, muitos inteiramente formados por pessoas brancas, ainda que não sejam o
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Estado, também não podem mais se esquivar. Nas duas últimas décadas, construímos, por meio da luta política, instrumentos importantes na diversificação do modo de produzir teatro que se consolidaram em políticas públicas propícias ao aprofundamento da pesquisa, e não apenas da produção de mercadorias (sem, obviamente, negá-las, dado o mundo em que vivemos). A essas políticas, e também às escolas públicas de teatro, também cabem as ações afirmativas étnico-raciais. É preciso garantir às artes cênicas e performativas feitas por pessoas negras, que abrem o olhar do teatro a outras perspectivas, e não somente pretensos “universais”, o fortalecimento efetivo. O racismo é estrutural, atinge desde os bebês até os velhos, como não estaria ele presente também no teatro? Quando o coletivo Legítima Defesa amplia os gestos e ressoa a voz para alcançar cada canto do Theatro Municipal, clama-se por “liberdade, respeito, igualdade”, enquanto o sample da música “Capítulo 4, Versículo 3”, dos Racionais MCs, se repete, trazendo dados alarmantes: “A cada 4 pessoas mortas pela polícia, 3 são negras”, que permanecem quase inalterados desde 1997... é de realidade que estamos falando. O verso “meu estilo é pesado e faz tremer o chão”, da mesma música, nos oferece uma chave para compreender a estética do coletivo nessa performance, que pegou
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o público de surpresa após um espetáculo estrangeiro, contrapondo o peso necessário à leveza iludida para assim expor os efeitos do racismo por denegação, típico do Brasil, e sacudir as estruturas do Teatro. Esse contexto acirra ainda mais a provocação à naturalidade dos espectadores brancos sobre a ausência de corpos negros em cena no Theatro Municipal. Foi preciso passar quase cem anos para negres estarem naquele palco sem que somente sucessos comerciais criassem as condições de permissibilidade da sua presença, em efetivações precárias e individualizantes da representatividade negra. A coletividade em “Legítima Defesa” efetiva a luta por representatividade, revolucionando até a estrutura dos processos criativos, pois toda a equipe, nessa ação, era afro-centrada. Conta-se que, antes dessa intervenção, o último artista negro que ali esteve apresentando sua arte, sem que se lhe quisesse tirar lucro indireto pela presença, foi Mário de Andrade, durante a Semana de 22. Só agora existe o terreno para consolidação das propostas Modernistas no Brasil, que há um século foi enunciada quase exclusivamente por artistas de elite, mas almejando a representação de pessoas subalternizadas no país como vozes integrantes das cidades modernas. Como diz a sinopse de “Legítima Defesa”: “a voz é o guia e o objetivo”. De fato, as palavras são ações poderosas a rasgar o espan-
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to do público branco, que era a brutal maioria naquele momento. Uma das propostas da performance, aliás, é contar o número de pessoas negras que ali estavam assistindo ao espetáculo da MIT. Localizar a branquitude enquanto identidade, que também é um outro de alguém, e não apenas a norma que nomeia os outros exóticos à sua convivência. Quem é negro, indígena ou trans conhece isso desde criança. Como dizem os Racionais: “minha palavra vale um tiro eu tenho muita munição” De fato, as palavras são tiros, mas que não violentam pessoalmente, apesar de alguns espectadores parecerem especialmente feridos. As palavras-tiros de “Legítima Defesa” conclamam ao debate público, fazem um raio-x do Brasil. E só vêm depois que o silêncio instaura a percepção sobre a desigualdade, quando as mais de cinquenta performers adentram o espaço, todes com roupas pretas, dividindo-se entre o palco, o corredor e as poltronas do público. É um momento de instauração, simplesmente pela presença das pessoas. A tensão que se cria a partir desse silêncio cria as condições para a munição de textos-denúncias sobre a violência racista em suas diversas modalidades: objetificação sexual, apagamento simbólico, violência física, epistemicídio, etnocídio. Não são apenas informações despejadas, mas narrativas poderosas, em que as palavras têm muitas camadas de significação. A presença da dramaturgia sonora é marcan-
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te e dá liga entre as denúncias, pontuando com o sample de bombas estourando, que, metaforicamente, também são os fatos ali apresentados. Na última frase antes da apoteose final, quando todes sobem ao palco e erguem o punho evocando Panteras Negras, Luz Ribeiro diz: “Se vocês... se... se... vocês querem mesmo que nós mudemos o mundo algum dia, nós ao menos precisamos estar vivos”. A repetição do condicional já carrega em si a camada de narrativa agregada à denúncia e à provocação das palavras. Nesse instante, todes ecoam“permanecer vivos! Vivos!” e se inicia o movimento de ascensão coletiva ao palco, como numa travessia ao revés do Atlântico. Travessia... remetendo a Beatriz Nascimento. A tomada do teatro a nível material e simbólico, ao menos naquele momento. Quando as artistas do Legítima Defesa dizem “isso é realidade, isso não é performance”, não é só força de expressão. É força de vida, é a poesia em seu estado mais pulsante e brutal, de fazer vida e não apenas sobrevida. De 2016 até hoje, aconteceram alguns avanços, e percebemos, nos próprios espetáculos do coletivo, o quanto, e de que formas, essa realidade pode se infiltrar na estética teatral, transformando-a e narrando o grito em cena. Também já vimos a reação de algumas figuras brancas do teatro, que acusam esse fazer artístico de “agressi-
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vo”, “panfletário”, “violento”. Nada mais sintomático da fragilidade branca, que, assim como a cisgênera, quase nunca consegue perceber a beleza da ação de fazer visíveis em cena subjetividades e culturas apagadas da e pela história. A melhor resposta a esse tipo de racismo é o encerramento da performance, quando todes que estavam no palco atravessam novamente o corredor e esperam o público na saída, batendo palmas que são uma profunda invocação de Justiça e Axé. É um momento de arrepiar e de comover, porque, ao mesmo tempo que atesta uma força irrefreável, revela a crueldade camuflada naquele palco e naquele edifício, que não é apenas Theatro Municipal, mas tudo que ele representa. Não há catarse porque o grupo não deixa espaço para a piedade. Mas há algo de sublime na transfiguração possível do terror vivido há séculos neste país e no mundo.
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FICHA TÉCNICA Direção: Eugênio Lima Intervenção Dramatúrgica: Coletivo Legítima Defesa Elenco: Eugênio Lima, Walter Balthazar, Luz Ribeiro, Jhonas Araújo, Tatiana Rodrigues Ribeiro, Fernando Lufer, Luiz Felipe Lucas, Luan Charles, Marcial Macome e Gilberto Costa. Elenco convidado: 50 Aliadxs. Direção de Produção: Iramaia Gongora FOTOS PAT CIVIDANES
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Direção Musical: Eugênio Lima
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CRISTIAN DUARTE
MÉDELEI
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xiste algo muito paradoxal na construção do folclore. Ele é genuinamente local, de raiz identificável, uma ciência do povo, como diria Câmara Cascudo, que carrega simbologias muito específicas. Mas ele é, basicamente, construído sobre estereótipos. Tal provocação não pretende diminuir todo significado do folclore enquanto elemento fundan-
te da construção de identidade, no entanto, enseja, talvez, despertar para o fato de o cliché tornar-se assim por se obrigar a ser popular. Também pode suscitar certa arrogância em tudo que digo nessas primeiras linhas, porque se estabelece de imediato um embate entre o popular e o erudito, como sendo este algo apreciável e aquele depreciável. Lamento dizer, tudo isso, até mesmo a tese despropositada com que abro esse texto, é toda baseada em senso comum e clichê. Não há como falar em “Medelei - Eu sou brasileiro (Etc) e não existo nunca” sem levantar tais pontos. O espetáculo de Cristian Duarte destaca, ironiza e escolhe o caminho da superlativização desses estereótipos naquilo que se espera ser o típico brasileiro. O espectador é capturado pelo sabor do uso do gestual coreografado e absolutamente impregnado de todas essas ironias superlativizadas. Um adequado equilíbrio entre a técnica dos bailarinos e os momentos de absoluto escracho e desconstrução,
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o que, geralmente, é difícil. Existe uma expectativa em cada personagem de que seja o que se espera e, no entanto, isso é feito de forma tão propositadamente plastificada que o inesperado te captura. A negra que samba, o capoeirista, o atleta de um Brasil que valoriza a saúde, o jogador de futebol, o sexo, praia e suor, o axé music. Afinal, somos um povo miscigenado, não é mesmo? Nesse sentido, ele transpõe essa estereotização dos tipos culturais para também subverter o conceito do que é dançar. A dança é, necessariamente, presença, ao passo que não necessariamente precisa ser coreografada. Nesse sentido, a coreografia pode ser encarada como uma colcha de retalhos de gestos ensaiados. É essa a provocação feita por Cristian. A oscilação entre o robotizado e o inesperado traduz com precisão o debate que se impõe. Embora a inspiração seja de algo datado e, portanto, na lógica da temporalidade, traz dois elementos que não apenas atravessam os anos como adquirem novos significados. O estereótipo, esse nocivo elemento de controle de massas, é o mesmo do Império Romano, da Revolução Francesa e de hoje. O atualizado de maneira perversa, e, nesse sentido, assusta Medelei ser tão atual, é o conceito de nacionalismo, que hoje se veste de camisa
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da CBF para construir e levar ao poder um tirano fascista como Jair Bolsonaro. Mas antes, e para além disso, é também o tal ópio de um povo desse tempo, não de 2004, data da propaganda publicitária que serviu de inspiração à obra. É muito atual o nacionalismo de um brasileiro qual se espera que seja, do cidadão de bem, do país do futebol e do samba. É na performance que o espetáculo explora essa condição: de o performer ser a representação de um estereótipo - esse todo desenhado acima - bastante questionável. E ao lançar mão da coreografia como recurso narrativo, Cristian eleva à máxima potência a mensagem que pretende passar. Se há quase 20 anos, esse conceito de nacionalismo se mostrava pobre, justamente por reproduzir clichês, hoje em dia é perverso, pois, adotado do mesmo conceito o estereótipo do país feliz - é o que deu sentido a uma legião de pessoas que não querem pensar, apenas se encaixar no conceito de país feliz inventado um dia ter existido e possível de voltar. O mesmo estereótipo que sedimenta esse ideal de Brasil, além de clichê e muito distanciado do Brasil real, cegou multidões que deixaram de pensar, de refletir, e passaram apenas a buscar o elixir, algo supostamente
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delas tirado. São ambientes como esse os propícios à ascensão de líderes populistas, que lhes entregam exatamente aquilo que precisam para entorpecer o diverso, a singularidade, a possibilidade reflexiva. Nesse sentido, a genialidade da composição cênica de Medelei com o título quase genial de tão óbvio, traz-nos mais. Não existimos, somos um produto daquilo que desejaram que fossemos. Não saia da linha, respeite a tradição, se deu certo até agora, por que questionar? Yes, nós temos bananas. E iremos a bancarrota em um fim de carnaval que se transformará numa marcha fúnebre, em que o coveiro mata para ter quem enterrar. Tem algo mais Brasil 2020, o da camisa da CBF, o patriota, o nacionalista do Deus acima de tudo e só o cheque do Queiroz para Michele acima de todos, mas tá tudo liberado, afinal, somos todos iguais, alegres, dançamos samba, tem carnaval e futebol, a capoeira é patrimônio, o país é cheio de riquezas e talentos… Enquanto isso vamos nos robotizando e engolindo, sem qualquer contestação, esse país todo destruído, mas que tem “um pouquinho de Brasil iaiá” e tá tudo bem, vamos superar tudo isso, já que, agora, pelo menos, acabou a corrupção e podemos ser felizes. Não tem mais Brasil 2020 do que isso.
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FICHA TÉCNICA Concepção e direção: Cristian Duarte Criação e performance: Sheila Arêas, Cristian Duarte, Tarina Quelho, Eros Valério Iluminação: André Boll Produção: Cristian Duarte FOTOS ROGÉRIO ORTIZ
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em companhia
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DEMOLITION INCORPORADA
DANÇA DOENTE
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s corpos frágeis, velhos, dissidentes, doentes, os corpos considerados debilitados, hoje mais do que nunca, são tratados como um problema. Precisam ser resolvidos, finalizados. Precisam sumir do mapa, ou morrer de uma vez, para as ilusões dos corpos saudáveis e da vida social pacificada permanecerem intactas. Castiel Vitorino nos ensi-
na a perceber a falsidade da ideia de cura como não-habitação do sofrimento. Não é possível ignorá-lo. A cura é transmutação. E para haver cura, é preciso observar a doença. Perceber os sintomas. Marcelo Evelin, coreógrafo de “Dança Doente”, afirma que sintoma é uma mudança, “aquela alteração sutil da percepção do teu próprio corpo, da tua própria existência”. O espetáculo, estreado no Kunsten Festival des Arts, de Bruxelas, em 2017, inspira-se na pesquisa de Hijikata Tatsumi, coreógrafo japonês inventor do Butô, e que só ficou conhecido mundialmente após sua morte. Entre outras referências, o nome “Dança Doente” é inspirado no livro “Dançarina Doente” (Yameru Maihime), última obra por ele escrita. Percebendo os corpos dos bailarines no espetáculo, que parecem movidos por forças externas, ecoamos a pergunta: “quem me dança?”. Segundo Nu Abe, o Butô é uma dança de silenciamento interior, de escuta, onde o que mais importa não é dançar, mas ser dançade. No espetáculo da Demolition Incorporada, é também matéria de
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uma sintomatologia molecular – e aqui vale destacar que sintoma é algo que só pode descrito pelo paciente. Convém, ainda, lembrar os múltiplos significados da palavra “paciente”: a pessoa que é atendida por profissionais da saúde; a pessoa que tem paciência; ou aquela que sofre a ação, em expressões da Sintaxe e do Direito, em que o sujeito não pratica a ação do verbo ou de um crime, mas é alvo dela. O Butô, então, é uma dança autenticamente pessoal, dependente de abertura e escuta para muito além de si mesmo, para todos que nos rodeiam, sejam vivos ou mortos, humanos ou não. Evelin busca a dança como acionamento de um estado corporal que leva a um estado de comum. A dança como sintoma – exatamente aquele momento em que o corpo se altera e muda a percepção de si mesmo. A dança não como forma, mas como um processo de transformação do estado corporal, psíquico, emocional, mental. Corpos em transformação constante que, justamente por isso, não se limitam aos parâmetros de corpo generificado, civilizado e, até mesmo, humanizado. Há um mergulho nas trevas, no obscuro, nas profundezas, na pulsão de morte, para reativar a potência de vida, que, segundo o diretor, é muito próxima a um estado absoluto de morte. É importante atentar para o contexto em que surge o Butô: o pós Segunda Guerra Mundial, num país des-
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truído pela bomba atômica. Inspirado nesse contexto, e em diálogo com a coreógrafa Setsuko Yamada, Evelin foi percebendo que o pensado como dança por Hijikata não estava diretamente ligado ao Japão, aos quimonos, a uma estética específica, e, sim, a um corpo infectado pelo mundo, dominado por forças que o desgastam até a ruína. No processo de busca pelo Butô, a Demolition Incorporada percebeu o seu sentido profundo poder estar no Brasil, nas tradições daqui. Não à toa, um dos momentos mais marcantes do espetáculo é quando entra Omolu, o orixá da cura sobre as doenças, coberto com palhas para esconder as cicatrizes de suas chagas. A ligação de Omolu com o mundo dos mortos, em diálogo com o Butô em “Dança Doente”, atenta para um elemento apontado nos Congados e Reinados negros brasileiros pela professora Leda Maria Martins: a temporalidade espiralar. Ao discorrer sobre concepções filosóficas e metafísicas de origem africana, que entrelaçam a fauna, a flora, os elementos físicos, os mortos, os vivos e os que ainda vão nascer, as divindades e a natureza cósmica em um mesmo circuito de significância, Leda Martins nos dá ferramentas para refletir criticamente sobre o corpo que escreve em performances da oralitura, “devestidas de uma cronologia linear”1. E, portanto, em constante transformação, evocando outros significados de tempo, ancestralidade e morte. 1 Leda Maria Martins, “Performances da Oralitura”, Revista letras No 26 – Língua e Literatura: limites e fronteiras – PPGL |UFSM
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Outra aproximação possível em “Dança Doente” é das propostas pós-identitárias da Teoria Queer. Mas só porque no trecho final da peça dois homens se perseguem num duelo de desejo e repulsa? Obviamente que não. O queer, vindo do Norte, importado de um modo condescendente, mecânico e limitado pela colonialidade do saber, pode levar a apropriações elitizadas, como muitas vezes ainda se vê no Brasil. Mas o cuír de “Dança Doente” não se restringe a uma cena. A constante transmutação dos corpos em movimento e dos significados que eles evocam, o mergulho profundo, em espiral, no oculto de si mesmo, naquilo que gera toda revolta – a imersão naquilo que foi ou ainda é negado no ser –, justamente por ser contínuo e não linear, impede a consolidação de uma forma estética fixa. Não há cristalizações de identidades categorizáveis por um pensamento de encenação que as manipula. Mas há narrativa. É o próprio transformar-se continuamente que constrói a linguagem, conforme o conceito de performatividade de gênero apresentado por Judith Butler a partir da expressão de J.L. Austin. Ao encarar a dança como sintoma, Marcelo Evelin busca a patologia de um corpo em movimento, em que a dança se torne viral, contagiosa e pós apocalíptica: “o presságio de morte certa, brandida para reafirmar o poder da vida”. É um outro caminho na lida com a doença, diferente do que muitas mídias e artistas têm tomado para enfrentar o contexto atual de pandemia. Não é a demoniza-
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ção de um vírus, ou da própria doença. Quem age de modo demoníaco e transforma a doença numa forma de genocídio é a própria humanidade. É a falta de políticas públicas, a desinformação e o sucateamento do sistema público de saúde que causam a letalidade, por exemplo, da Covid. Como as ativistas do HIV/AIDS nos ensinam: o vírus não equivale a um pecado ou a um crime, ele é simplesmente mais uma forma de vida. Essa falsa associação foi usada para promover campanhas de ódio contra a comunidade LGBT, desde a década de 80 até hoje, e desmontá-la continua sendo fundamental. Entender que a vida do vírus causa a morte do corpo humano não equivale a se conformar com o descaso e a necropolítica praticados, atualmente, por algumas autoridades. A ciência está aí e precisamos nos valer dela para conseguir atravessar esse período de doença com a maior segurança que conseguirmos. Mas a arte da escuta e do silenciamento interior, como vista em “Dança Doente”, e a convivência próxima aos mortos e também aos que ainda estão por vir pode ampliar nossa sensibilidade e curar lentamente os traumas das perdas que temos sofrido. Não habitar a morte como símbolo não vai nos poupar de vivê-la. O que não podemos é reafirmá-la enquanto norma. Precisamos transmutá-la.
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FICHA TÉCNICA Conceito e coreografia: Marcelo Evelin Criação e interpretação: Andrez Lean Ghizze, Bruno Moreno, Carolina Mendonça, Fabien Marcil, Hitomi Nagasu, Luana Gouveia, Marcelo Evelin, Márcio Nonato, Rosângela Sulidade, Sho Takiguchi Dramaturgia: Carolina Mendonça Música: Sho Takiguchi Luz Thomas Walgrave Espaço: Marcelo Evelin e Thomas Walgrave Direção Técnica: Luana Gouveia Colaboração Artística: Loes Van der Pligt Orientação de Pesquisa: Christine Greiner Colaboração em Figurino: Julio Barga Training em Dança Tradicional Japonesa: Heki Atsushi Fotografia: Maurício Pokemon Voz em off: Ohno Yoshito Direção de produção: Regina Veloso/ Demolition Incorporada + Materiais Diversos Agenciamento e difusão CAMPO/ FOTOS MAURÍCIO POKEMON
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Brasil e Materiais Diversos/exterior
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ELISABETE FINGER MAIKON K. RENATA CARVALHO WAGNER SCHWARTZ DOMÍNIO PÚBLICO
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m 1911, Mona Lisa era roubada do Museu do Louvre. Em 2017, o artista britânico Banksy destrói uma de suas obras mais famosas, em um leilão na cidade de Londres. Em 2017, Renata Carvalho vê sua peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu ser censurada e atacada em várias cidades do Brasil. No mesmo ano, Wagner Schwartz e Eli-
zabete Finger são perseguidos e atacados por conta da participação de uma criança na performance La Bête, de Schwartz. Em 2009, uma turista russa joga uma caneca na Mona Lisa. O vidro que a protegia era à prova de balas. Nada aconteceu. Voltando a 2017, Maikon K é detido pela Polícia Militar sob acusação de ato obsceno ao realizar sua performance o DNA de DAN, em Brasília. Em 1956, um homem joga ácido na pintura mais famosa de Da Vinci, danificando a parte inferior do quadro. Banksy posta uma foto de sua obra destruída no instagram com a legenda “going, going, gone”. Os acontecimentos podem parecer não ter uma relação entre si, sobretudo se compararmos as situações dos artistas brasileiros e estrangeiros. Então, por elencá-los em uma mesma lista, um mesmo sumário de destruições e ataques? Primeiro, porque a história da Mona Lisa foi escolhida por Renata Carvalho, Wagner Schwartz, Elizabete Finger e Maikon K como pano de fundo para abordar as violências sofridas por eles, por conta de seus trabalhos artísticos.
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Os quatro, com trabalhos distintos entre si, viveram em um mesmo ano histórias semelhantes de reações violentas às suas obras e, por conta disso, às suas próprias vidas. A partir dessas situações de interdição, que incluíram censura, ameaças, aprisionamento e até mesmo o questionamento da guarda de uma criança, juntaram-se para realizar um trabalho em comum que, de alguma forma, falasse sobre esses fatos. A escolha mais óbvia, talvez a que esperávamos, para essa abordagem seria a do confronto direito. Ou seja, ir ao ataque desse opressor real ou simbólico, confrontá-lo, discursar sobre ele, odiá-lo publicamente. Marcar a posição de quem foi atropelado pelo rolo compressor de uma ordem antiga e que faz de tudo para garantir a própria sobrevivência, mas, mesmo assim, encontrou alguma força para continuar falando. Essa abordagem é compreensível, e como dito, até mesmo esperada. Como aqueles que se sentem constantemente atropelados, é confortável compartilhar nossa pequena ameaça ao inimigo em comum. Renata, Wagner, Elizabete e Maikon, entretanto, não cumprem essa expectativa. Desviam-se de falar diretamente do assunto encontrando uma metáfora para narrar suas histórias. Discorrem sobre arte, sobre fazer artístico, sobre gênero, sobre desvios e ameaças através da figura da Mona Lisa, a obra mais famosa de Leonardo Da Vinci
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e protagonista de uma longa série de acontecimentos bizarros. Nessa escolha, usam a obra para falar de si mesmos em um formato de quatro palestras individuais, cada uma abordando um aspecto diferente da criação e perpetuação da Mona Lisa. Ou seja, em resposta aos ataques, usam um ícone inquestionável da arte mundial para questionar os acontecimentos vividos por eles. Antes de partir para cada abordagem, contudo, é preciso entender a história da Mona Lisa. Ou melhor, contar como essa obra, cujas dimensões não ultrapassam um metro, foi, ao longo dos anos, também alvos de ataques e ameaças, bem como roubos, manifestos e performances. Ao contrário de seu tamanho real, em Domínio Público a Mona Lisa é gigante, projetada no fundo do palco todo o tempo. Quanto mais se fala sobre ela, mais sua presença se evidencia. Primeiro, é preciso dizer novamente: em 1911, a obra foi roubada do Museu do Louvre. O autor do crime, Vicenzo Peruggia, alegou querer repatriar a Mona Lisa para a Itália. Peruggia foi considerado pela maioria de seus compatriotas como um herói da arte nacional. Mas, a história não para por aí. Só no ano de 1956, a obra sofreu dois ataques: uma pedra e um atentado com ácido. Em 1974, em Toquio, uma deficiente protestando contra a falta de acessibilidade jogou saquinhos de tinta colorida no vidro
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de proteção. Em 2009, uma turista russa arremessou uma caneca contra o vidro blindado. Há ainda a história da mulher que sentou em frente à obra e mostrou sua vagina aos visitantes do museu dizendo “minha vagina, meus direitos de autor”. Ou o húngaro que, driblando seguranças e em uma época ainda sem vidro de proteção, beija a Mona Lisa na boca e sai do local cantando a música “Mona Lisa”. A expressão de comportamentos tão “inusitados” em torno de uma obra são o gancho puxado em Domínio Público para falar sobre arte, censura e violência. Por toda a vida se ouve sobre a “inutilidade” da arte, sua ausência de uma função clara para o funcionamento da sociedade. Em épocas mais conservadoras, a arte é atacada, como é o caso do contexto político no qual essa peça foi realizada. Por outro lado, a arte traz sua mística. Crenças em torno de si que movem a adoração ou a violência. Não importa o que, não se sai ileso do seu contato. Wagner, por exemplo, inicia o espetáculo contando a história de um quadro até então sem importância, mas que, após ser roubado do Louvre por Peruggia ganha fama mundial e se torna a obra mais icônica de todos os tempos. Semelhante a situação que aconteceu com ele, em sua performance La Bête, relativamente desconhecida, cooptada como símbolo de degeneração por movimentos conservadores e amplamente publicizada.
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Renata, por sua vez, traz à tona a censura sofrida ao interpretar Jesus como uma travesti, a partir da dúvida sobre quem serviu de modelo para a criação da Mona Lisa. Se Gioconda, senhora pintada por Da Vinci, como conta a história oficial ou o assistente do pintor, também considerado seu amante, e se isso deveria ser algo relevante à fruição da obra. O sorriso da Mona Lisa é assunto da fala de Maikon. Ao ter sua nudez questionada, mesmo dentro de uma bolha na performance DNA de DAN, o performer relaciona essa repulsa ao funcionamento físico do sorriso, se feliz ou triste, dependendo de como se olha. Da mesma forma, a percepção da nudez, se é agressiva ou inofensiva, se é pública ou não ao estar dentro de um ambiente fechado, é colocada em xeque. Por último, Elisabete aborda a dúvida se Gioconda seria amante de Leonardo Da Vinci e se dessa união teria nascido uma criança. A presença de um infante é igualmente importante em sua história, já que ela foi acusada de estímulo à pedofilia por sua filha tocar o pé de um homem nu, durante a realização de uma performance. É o caso da presença de uma criança em um contexto artístico, mas também pessoal. No espetáculo, Renata Carvalho diz que a obra de arte nos olha. O ataque a ela busca nos livrar desse constran-
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gimento. No caso da Mona Lisa, isso é literal. A pintura nos olha por todos os ângulos com um meio sorriso. É um enigma. É uma manifestação clara da relação do espectador com a obra de arte. Um incômodo que pode virar adoração ou raiva. Tentar desfigurá-la com ácido ou beijá-la são duas faces da mesma moeda. Da mesma forma, os quatro artistas que criaram e atuam nesta peça se tornaram evidências dessa relação. O contexto político é importante também. Não à toa, os acontecimentos se dão em um mesmo ano. Em um momento em que cresce o acirramento político e que um conservadorismo que flerta com o fascismo se mostra às claras, se torna necessário atacar simbolicamente. Não que os atos de violência que ocorreram contra os artistas sejam apenas parte de um plano racional. Ao contrário, o que a arte evoca é também irracional, sombrio. A mensagem é de rejeição ao enigma. Ser olhado de volta pelo abismo que a obra evoca é insuportável; a forma de se defender disso é a violência. Artistas, porém, continuam trabalhando. Não se sabe o motivo. Vicenzo Peruggia, o famoso ladrão da Mona Lisa, alegou ela se parecer com sua esposa, morta alguns anos antes. O grande amor de sua vida. Renata nos fala: ele olha para a pintura e diz “te amo ternamente, completamente, tragicamente”. Ao final do espetáculo, todos saem de cena, menos a Mona Lisa que, incansável, nos olha de volta.
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FICHA TÉCNICA Criação, texto e performance: Elisabete Finger, Maikon K, Renata Carvalho, Wagner Schwartz Colaboração artística: Ana Teixeira Figurino: Karlla Girotto Assistente de figurino: Flávia Lobo Maquiagem: Felipe Ramirez Iluminação e direção técnica: Diego Gonçalves Produção: Corpo Rastreado Fotos: Caroline Moraes Difusão internacional: Something FOTOS HUMBERTO ARAÚJO
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Great / Rui Silveira
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GABRIELA CARNEIRO DA CUNHA
GUERRILHEIRA OU PARA TERRA NÃO HÁ DESAPARECIDOS
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m sua pesquisa, Gabriela Carneiro da Cunha traz à tona algumas histórias propositalmente apagadas pelos podres poderes brasileiros. Nesse país de heróis desconhecidos, as heroínas são ainda mais enterradas sob os botas da covardia e cinismo vendidos como ordem e progresso. “Guerrilheiras ou para a terra não há desaparecidos” resgata a
luta corajosa de dezessete guerrilheiras participantes de frente combatente à Ditadura Militar, na Guerrilha do Araguaia, entre 1972 e 1975. A frente de militantes do partido PCdoB tinha por princípios, na época, organizar comunidades de ativismo e resistência pela região amazônica, até ser atingida por força militar descomunal, deixando mais de sessenta homens e mulheres mortos. Apesar da exposição intensa da pesquisa de documentos, fatos e depoimentos, os materiais não são literalmente, ou obviamente, representados no espetáculo, o que transforma a relação do público com a narrativa algo mais íntimo, construindo lembranças mais reais dos sentimentos e experiências daquelas mulheres. É pelos fragmentos poéticos da dramaturgia de Grace Passô, vozes rasgadas e movimentos contínuos, sob direção de Georgett Fadel, além de imagens projetadas dos lugares vivos e vividos, de Eryk Rocha, que chegamos ao passado desconhecido e que precisa ser ao menos imaginado.
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A partir das diversas camadas criadas no cenário que cobrem corpos e transformam o solo dá-se um paralelo com os tantos desatinos que encobrem um país sem memória. O rio e a terra que se dividem entre filmes e corpos, tons e posicionamentos, representam um lugar desconhecido por nós, que invariavelmente submerge e enterra, ao mesmo tempo que traz à superfície e retorna. Não por acaso, as imagens desse cenário natural são símbolos importantes: se há algo mais perdido do que nossas lutas, são nossas sabedorias ancestrais dos ciclos da natureza. Mulheres que, para sobrevivência coletiva, se colocam em exposição, misturando-se à terra e ao tempo, em sua suposta fragilidade corporal e pouca inclinação para guerrear, dão-nos a noção de não sabermos reconhecer os princípios de uma revolução. O patriarcado teve vários rostos nesses séculos, e, mesmo atirando e deixando ossadas para trás, não mataria o reconhecimento feminino como força resistente. As atrizes Carolina Virguez, Sara Antunes, Daniela Carmona, Mafalda Pequenino, Fernanda Haucke e Gabriela Carneiro da Cunha são capazes, em suas particularidades, de encarnar diversas mulheres não só pela alta capacidade dramática, mas por, de qualquer maneira, serem descendentes de poderes maiores comprovados pelos caminhos da humanidade.
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Por fim, recontar histórias nos confronta com o drama político ao qual estamos estagnados há décadas, o autoritarismo e a incapacidade de compreensão social que levam a um desmantelamento de lembranças históricas e factuais, desfazendo-se, assim, qualquer exemplo de dignidade e comunidade. É um desmonte que só pode ser contido exatamente por esse eixo principal: a arte, a luta e a mulher.
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FICHA TÉCNICA Idealização: Gabriela Carneiro da Cunha Direção: Georgette Fadel Dramaturgia: Grace Passô Elenco: Carolina Virguez, Sara Antunes, Daniela Carmona, Mafalda Pequenino, Fernanda Haucke, Gabriela Carneiro da Cunha. Direção áudio visual: Eryk Rocha Direção musical: Felipe Storino Cenografia: Aurora dos Campos Iluminação: Tomas Ribas Figurinista: Desirée Bastos FOTOS ELISA MENDES
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Produção: Corpo Rastreado
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GRUPO GALPÃO
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s nós do Grupo Galpão” poderia ser uma manchete adequada, com um trocadilho fraco, confesso, mas que caberia muito à montagem, 23ª da companhia teatral mineira. Ela se estabelece sete anos após o saudoso documentarista Eduardo Coutinho rodar “Moscou”, um tributo ao grupo,
que tem em seu DNA a investigação das possibilidades de encenação. Coutinho, aliás, talvez tenha colocado uma semente nos atores do grupo durante o processo gerador do documentário, citado explicitamente em dado momento em “Nós”, com dramaturgia assinada por Márcio Abreu e Eduardo Moreira. Em 2017, ano seguinte à montagem, o Galpão completou 35 anos. “Moscou não existe”, diz um dos personagens, em certo momento. Tem algo de Tchékhov em “Nós”, não como em Moscou, que se busca mostrar o caminho à construção de “As Três Irmãs”, mas no jogo cênico pelo qual se quer entender quem se é experimentando a volatilidade do instante que não permite hesitação. “Moscou não existe” vem como um balde de água fria nas preconcepções sob as quais somos regidos a viver. A negação da existência é, em si, a própria reafirmação do existir. O processo de se estabelecer as identidades das figuras que compõem a cena, durante a feitura da-
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quela que seria a “última sopa”, soa como o encerramento de um ciclo para haver outro começo. Difícil não criar uma analogia possível com a alegoria da última ceia, como um ensaio futurista de um epílogo precoce do grupo que, frise-se, ainda tem muito o que fazer no teatro brasileiro. Seria mais a ideia de um ensaio do fim, em que, na simbologia do “nada será como antes”, algo se quebra, assim como aconteceu com Judas e Jesus Cristo. A aproximação entre a última sopa e a última ceia está exatamente no fato de, em ambas as situações, a ideia de um último instante de comunhão descambou para um rompimento. No caso de Nós, a insistência de que aquela que não se encaixava mais deixasse o local. Fosse embora. Saísse de cena. E, nesse sentido, o sair de cena pode ter interpretações denotativas ou literais: o deixar fisicamente a cena ou o abandonar o ofício ou a presença simbólica e eventuais influências em um grupo. Todos confraternizam, explanam suas angústias e anseios e entram em constantes embates a partir de inflexões que capturam o público, em alguma medida, parte da encenação, característica presente nas montagens do grupo. A proposital linha invisível entre público e privado, realidade e ficção suscita sentimentos que vão da vergonha alheia à empatia, sem esquecer da constante aura de um chiste próprio daqueles que se levam muito a sério, mesmo não o sendo. “O caos faz parte do
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caminho”. Moscou aparece de novo nessa constatação manifestada em cena. Assim estabelece-se o espelhamento da etimologia da palavra “nós”. Se temos, por um lado, embasado pela temática do texto, os literais nós da humanidade, por outro temos os nós enquanto coletividade, bastante evidenciado na coreografia de uma encenação em que caos e ordem digladiam, como em um jogo milimetricamente pensado. A extrapolação do apreço pelas palavras é algo dá o tom da montagem e a faz brilhante. Primeiro, causa estranhamento. A repetição à exaustão pode gerar alguns cenários: o esvaziamento de sentido e a sutileza dos acentos, a partir da intenção colocada no fonema, são dois deles. A repetição como uma escolha estilística pode ser convertida em duas facetas: em Walter Benjamin, produzindo uma estetização do sentido que se quer dar; em Thomas Bernhard, considerando a repetição como ferramenta de tensão e, por consequência, de resistência. Repete-se e, a cada repetição, exagera-se o sentido até que fique menor e, em certa medida, naturalizado, quando confrontado com a cena feita por uma engrenagem de impulsos dos atores e do como se relacionam no palco. Uma extrapolação de Meisner. Aqui me refiro à téc-
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nica de Meisner, desenvolvida por Sanford Meisner, que tem por objetivo o ator se comportar instintivamente em cena. A repetição insistente de palavras esvazia o seu sentido, a tal ponto de não haver mais interpretação, Há presença do ator em cena. No limite, a dualidade entre o que você diz e como você diz. Em “Brinquedo e brincadeira”, Walter Benjamin escrutina o jogo como representação dessa relação de repetição confluindo em uma trajetória que nunca cessa. E nesse jogo, a plateia não apenas é incluída, é colocada como ponto importante da construção da engrenagem, ao desprezo do unicamente contemplativo e partir àquilo sentido coletivamente. Curiosamente, esse jogo cênico que dá chão e, ao mesmo tempo, leveza à encenação, contrapõe-se à temática tão trágica do texto. Violência, intolerância, desumanização; enfim, o mundo como ele é. Os risos são incontidos e inevitáveis. Mas do que a plateia ri? De si própria ao notar a pequenez de sua própria (des)humanidade? A reação do público às palavras, ideias, situações transmutadas em ação demasiadamente violenta é de incredulidade. Instantes antes, estavam a confraternizar e a participar, como cúmplice, daquela loucura. A narrativa crua se quebra quando, a partir do mais absoluto nada, o caos se aplaca, dando lugar a um breve
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silêncio e, então, ao movimento fluído dos instrumentos de uma trupe que se abre em uma cena, onde, aí sim, verdadeiramente confraterniza uma porção de saudades. Todos entoam canções que remontam a nostalgia de um tempo para o qual é importante mirar, mas que talvez não se possa mais voltar. “Nós” também provoca na medida certa, ao convite constante à plateia, de olhar a seus próprios nós. Alguns deles, importante dizer, que paralisam a pessoa diante de uma injustiça, não porque a violência não é reconhecida ou admitida, mas por faltar coragem de reconhecer que, em alguma medida, aquela mesquinhez encontra lugar para ser ocultada e a coragem de alguma ação, no sentido de interromper, não a conseguir superar.
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FICHA TÉCNICA
Imagens escaneadas: Tibério França e Lápis Raro
Elenco: Antonio Edson, Beto Franco / Chico
FOTOS GUTO MUNIZ
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Registro e cobertura audiovisual: Alicate
Pelúcio, Eduardo Moreira, Júlio
Conteúdo Audiovisual
Maciel, Lydia Del Picchia,
Projeto gráfico: Lápis Raro
Paulo André, Teuda Bara
Design web: Laranjo Design – Igor Laranjo
Direção: Marcio Abreu
Direção de produção: Gilma Oliveira
Dramaturgia: Marcio Abreu
Produção executiva: Beatriz Radicchi
e Eduardo Moreira
Produção: Grupo Galpão
Cenografia: Play Arquitetura
Imagens: Gustavo Baxter, Luiz Felipe
– Marcelo Alvarenga
Fernandes e Victor Schwaner
Figurino: Paulo André
Edição: Luiz Felipe Fernandes
Iluminação: Nadja Naira
Produção: Alicate Conteúdo Audiovisual
Trilha e Efeitos Sonoros: Felipe Storino
Gravado em 2016 no Galpão
Assistência de Direção: Martim Dinis
Cine Horto, em Belo Horizonte (MG).
e Simone Ordones
Grupo Galpão Atores
Preparação musical e arranjos vocais/
Antonio Edson - Arildo de Barros - Beto
instrumentais: Ernani Maletta Preparação
Franco - Chico Pelúcio - Eduardo Moreira -
vocal e direção de texto: Babaya
Fernanda Vianna - Inês Peixoto - Júlio Maciel
Colaboração artística:
- Lydia Del Picchia - Paulo André - Simone
Nadja Naira e João Santos
Ordones - Teuda Bara
Assistência de Figurino: Gilma Oliveira
Equipe:
Assistência de Cenografia: Thays Canuto
Gerente Executivo – Fernando Lara
Cenotécnica e construção de objetos:
Coordenadora de Produção – Gilma Oliveira
Joaquim Pereira e Helvécio Izabel Operação
Coordenadora de Comunicação – Bárbara
e assistência de luz: Rodrigo Marçal
Prado Coordenadora Administrativa –
Operação de som: Fábio Santos
Wanilda D’Artagnan Coordenador de
Assistente técnico: William Teles
Planejamento – Vinícius Santos Coordenador
Assistente de produção: Cleo Magalhães
Técnico – Rodrigo Marçal
Confecção de figurino: Brenda Vaz
Produtora Executiva – Beatriz Radicchi
Técnica de Pilates: Waneska Torres
Assistente Financeiro – Cláudio Augusto
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GRUPO MAGILUTH
DINAMARCA
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ma recepção, música alta, a plateia entrando na arena é recebida com sorrisos e taças de champanhe, comemoradas a cada vez que são abertas. A animação das pessoas é plasticamente exagerada, em uma cena que mistura requinte com galhofa. Um homem recita solenemente seus dilemas acompanhado de uns pares de goles de cer-
veja e conclui com um sonoro arroto. É desgraçadamente espirituoso, esse prólogo que se abre para a cena de um encontro entre amigos; algo que, com o desenrolar do diálogo, lembrará bem uma reunião da alta classe, com alguns milionários e políticos cheios de empáfia, podendo facilmente ser chamado por cafona. “O cafona fala alto e se orgulha de ser grosseiro e sem compostura. Acha que pode tudo e esfrega sua tosquice na cara dos outros. Não há ética que caiba a ele. Enganar é ok. Agredir é ok. Gosta de frases de efeito. A cafonice não tem vergonha na cara. O cafona quer ser autoridade, para poder dar carteiradas. Quer vencer, para ver o outro perder. Quer ser convidado, para cuspir no prato”, escreveu a roteirista Fernanda Young, pouco antes de sua morte. Tem um pouco disso tudo em “Dinamarca”, o 9º espetáculo do Grupo Magiluth, companhia pernambucana formada apenas por atores homens, com mais de 15 anos de estrada. Seria possível considerar montagem
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um “Hamlet totalmente escrachado”. Mas isso não daria conta da profundidade de pesquisa e leitura contemporânea de um texto clássico. Os dilemas expostos em Hamlet se mostram atuais — arrisco-me a dizer, sempre serão — por serem o puro suco das relações humanas. Mas há uma inevitável fotografia, em que temos no mais alto cargo do país um presidente que flerta com a milícia e até chefe da polícia federal troca para proteger seu pequeno garoto. A relação das figuras em cena que representariam, em alguma medida, Hamlet e sua mãe, faz corar de vergonha qualquer Édipo por transmutar um pretenso desejo sexual, em proteção tão cega e absurda que é a geradora dos mimados. “Meninos mimados não podem reger a nação”, escreveu o rapper Criolo. E, no entanto, é isso o que temos. Um presidente que se considera um Messias e, portanto, faz o manipulável crer ser o cargo qual ocupa e sua riqueza missão divina. É a ideia explicitada em falas, como a que relata um estupro, de que qualquer homem é capaz de qualquer coisa para manter o poder. De mentir a matar. O sangue que jorra da boca dos convidados desse banquete hipócrita é a tradução literal dos discursos violentos daqueles que detém o poder.
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Sendo parte da Trilogia da Destruição, segundo a própria companhia, em Dinamarca vemos como elemento importado de Hamlet o esfacelamento da ética em nome da manutenção das estruturas de poder e um processo de destruição da humanidade nas relações. Ao confrontar a frase inicial “se a gente repete as coisas, elas acabam morrendo” com o discurso póstumo “eu morri”, momento em que o personagem discorre sobre como as coisas morrem e voltam a acontecer da mesma forma, deparamo-nos com o conceito de “dinastia” trazido à contemporaneidade, como um círculo vicioso de vaidades que retornará a aparecer assim que as pessoas voltarem a existir. Quase como um destino trágico contra o qual não podemos lutar. O discurso final, aliás, microfonado e ecoado, traz, muito além da evidente atmosfera fantasmagórica, a ideia de uma consciência coletiva fatalista de que algumas coisas, de fato, nunca vão mudar. “Dinamarca” é uma alegoria perfeita de como os privilégios apodrecem e inviabilizam qualquer possibilidade de uma justiça social. Das críticas às chamadas “pautas identitárias” (mulheres, negros, população LGBT, esse pessoal dos direitos humanos, sabe?) até a ode à meritocracia, o texto é dança na interação entre os personagens, todos homens, frise-se. Até mesmo os personagens femininos são interpretados por homens, numa construção figurativa, propositalmente andrógina. Ger-
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trudes e Ofélia são histriônicas, mas estão em corpo masculino. A virilidade circunscreve a bolha social demonstrando como o patriarcado é elemento fundante da dominação. Até mesmo quando a rainha tem um arroubo de autoritarismo a feminilidade aparece como histeria. Nada é gratuito em “Dinamarca”. O Hygge! tanto falado durante a montagem poderia ser facilmente substituído por hype e hashtags de alguma blogueira muito famosa que ganha seus milhões exibindo uma vida inalcançável nas redes sociais. O conceito de bolha social permeia a peça do começo ao fim. “Para que essa situação não mude”, diz um dos personagens, encorajado pelos outros. Afinal, reconhecer privilégios é também os considerar fonte da desigualdade de oportunidades que gera uma série de questões, entre elas, o abismo entre ricos e pobres. Os privilégios dos que estão naquela bolha não são reconhecidos como privilégios, mas como merecimento e, portanto, não há qualquer razão para que sejam questionados. São uma matilha pronta para atacar qualquer um que ameace o status quo. Nessa construção relacional de Dinamarca com Hamlet, a plateia, como um cúmplice, mostra-se fundamental para amparar a ideia de impotência diante os fatos narrados.
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Se você aceita aquela taça, então faz parte daquela bolha e está regida por aqueles princípios. Ou, ao aceitar aquela taça, você simplesmente toma consciência de que nunca poderá estar dentro daquela bolha? A forma marcada em que, em mais de um momento da montagem, o descolamento da realidade aparece cria contextos fortes como o do empilhamento de copos, como se fossem corpos de pessoas descartáveis. A ideia de que eu escolho quem merece viver e quem merece morrer. Aqui se assenta uma boa dose de intolerância e arrogância absolutamente necessárias “para que essa situação não mude”. A ironia ao listar os monumentos que permanecerão e em nada contribuem para a reconstrução da humanidade nas relações, e “as garrafas pets e de vidro” como a grande contribuição do homem para a terra, dá-nos a resposta do porquê Hamlet e suas possíveis leituras permanecem necessárias e atuais.
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Ficha Técnica Direção- Pedro Wagner Dramaturgia - Giordano Castro Atores - Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Lucas Torres e Mário Sergio Cabral Desenho De Som - Miguel Mendes e Tomás Brandão (Pachka) Desenho De Luz - Grupo Magiluth Direção De Arte - Guilherme Luigi Fotografia - Bruna Valença E Danilo Galvão Design Gráfico - Guilherme Luigi Técnico - Lucas Torres FOTOS DANILO GALVÃO
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Realização - Grupo Magiluth
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GRUPO XIX DE TEATRO HYSTERIA
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uando um grupo de pessoas é aprisionado num único espaço por imposição do outro, precisamos entender por e a quem serve essa segregação. Para que não se repita. Podemos pensar nos guetos, em que populações eram cerceadas por critérios étnico-raciais, ou de identidade de gênero, em um único bairro ou região, e impedidas
de circular por quaisquer outros espaços. Há uma série de sanções e opressões envolvidas nessa situação, que atendem a demandas econômicas e morais impostas por grupos dominantes. Ou ainda, por exemplo, as cadeias de hoje em dia, na América, que, como diz Angela Davis, cada vez mais se configuram como a continuidade do sistema de escravidão (e, portanto, também com critérios étnico-raciais bem definidos: a população negra). Se formos cavando a história, acharemos referências cruéis: campos de concentração e hospícios, que podem, inclusive, se confundir entre si, como mostra o livro de Daniela Arbex sobre o Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais. A lei e a ciência, com finos e brutais requintes, já foram usadas para justificar crimes contra a vida de muitas pessoas. “Hysteria”, do Grupo XIX, tem sua dramaturgia inspirada na história de mulheres cisgêneras internadas num hospício, com o diagnóstico muito comum na época: histéricas. O vídeo da peça, editado com cenas de diversas apresentações, durante a turnê do grupo por Santa Catarina, em
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2009, e, por a encenação utilizar a luz do sol e a ambientar num edifício histórico diferente em cada cidade, as apresentações têm arquitetura e jogo próprios. Assim, temos perspectivas múltiplas da iluminação e do espaço cênico compondo o todo no material audiovisual. Inclusive, com atrizes diferentes fazendo a mesma personagem. A edição, ao passear por algumas apresentações, mostra diferentes mulheres do público vivenciando as mesmas cenas, trazendo sensação de multiplicidade. Parece que a acusação feita contra as personagens internadas nesse hospício poderia recair sobre qualquer outra mulher: histeria. Esse termo tão abstrato e abrangente, usado para justificar “biologicamente” (hystéra em grego significa útero) a necessidade de “tratamento” às mulheres e, assim, oprimi-las em instituições que, teoricamente, seriam responsáveis por seu acolhimento. Tal raciocínio é transfóbico, pois toma a genitália e os órgãos sexuais como definidores do gênero (o que já está provado, é uma mentira), e utilizando-o, além do mais, para aprisionar e destituir as mulheres cisgêneras de sua subjetividade e desejo. O jogo das atrizes com as mulheres do público, sentadas bem próximas nos bancos e recebidas como se fossem novas pacientes, é altamente interativo, e vai aos poucos incluindo todas no mesmo contexto, com estratégias sutis
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construídas pela dramaturgia ambientada nos anos 1890, assinada por todo o grupo XIX. Até mesmo Nini, a mulher que desempenha o papel de autoridade sobre as outras, parece ser enquadrada nos critérios do que poderia ser entendido como histeria, pois é dito que ela “queria cuidar de um inválido, por não ter filhos”. O discurso falsamente científico de que “a mulher foi feita pra sentir” está presente em cada frase das personagens, muitas delas repetidas de frases que outros disseram pra elas. Assim, aos poucos, são reveladas as causas que as levaram a ser consideradas anormais e internadas naquele lugar. Quase nenhuma dessas causas parece fazer sentido, se pensarmos que elas estão aprisionadas. Uma foi abandonada pela mãe; a outra tem desejo sexual vivo e pulsante, revelando a todas sua necessidade de coito e o desejando-o também às outras. Em uma das cenas, ela diz a todas, em tom de confissão, que “gosta mesmo é dos pretos”, sexualizando os homens negros em sua fala, até o ponto de falar sobre a abolição da escravidão no Brasil pelo prisma do seu desejo sexual. Isso não é causado senão pelos efeitos do racismo anti-negro em nosso país. O foco do espetáculo não é esse, mas não tem como deixar de falar sobre isso, pois essa é uma das cenas mais confessionais, aliás uma das que mais provoca reações no público, quase todo também composto por mulheres brancas.
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A repressão do desejo sexual atravessa também o debate de racialidade, tamanho é o efeito da escravidão no Brasil. Esse assunto é tocado apenas de relance no espetáculo. Está lá, é altamente polêmico, demarca o lugar de fala da branquitude sem necessariamente assumi-lo como crítica, e, no contexto em que ocorre, além disso tudo, é mais um dos motivos para estigmatização dessa mulher como “pervertida sexual”. As outras personagens comentam até sobre uma cirurgia que teria sofrido, e que, mesmo não tendo como imaginar do que se trata objetivamente, parece ser mais uma violência naturalizada sobre essa mulher, que em determinado momento fala sobre “os dedos do doutor, que conhecem uma mulher inteira”, parecendo insinuar abusos do médico sobre a paciente, aumentando ainda mais nossa sensação de repulsa sobre o que se faz contra as internadas. É justamente essa personagem que passa a peça inteira falando sobre seu marido, que em tese está para vir lhe buscar. Ela repete, incessantemente, que sairá de lá naquele mesmo dia, o quê, de início, até acreditamos, para depois já desconfiarmos, ao começar a ganhar ares de ilusão, trazendo uma alta carga de dor para essas repetições, que não são apenas característica dela, também de outras, como a que fala o tempo todo sobre Jesus. Seu deslumbramento pela figura do Cristo é tamanho, que é como se estivesse falando de um noivo; chega a dizer “o cabelo é
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um presente que fica no lugar do véu”, para depois amarrar os cabelos com fitas, arrumando-se para o encontrar. São formas intensas de sentir, canalizadas ou para o marido que está chegado, ou para Jesus, para outra colega internada etc. Todas reprimidas. Os momentos em que elas parecem escapar acontecem quando as mulheres internadas brincam entre si, puxando o público para dentro da cena, criando uma alternância de ritmo no espetáculo - em geral, mais próximo da liturgia ou da sessão de terapia -, mas também com suas irrupções de festejos e brincadeiras, envolvendo nossa atenção até quase esquecermos onde estamos, para em seguida vir a repressão da autoridade. A própria dramaturgia carrega intrinsecamente o fluxo da mente das personagens, mulheres trancafiadas, apartadas do mundo, constantemente interrompidas em sua subjetividade. Ao redor delas e das mulheres espectadoras-participantes, sabemos os homens do público as assistirem. Mas eles não aparecem em quase nenhum momento do vídeo, a não ser no início, como para mostrar, ao público do filme, eles estarem sempre ao redor. E apesar de não serem vistos, influenciam totalmente o jogo da cena. É o olhar deles que enquadra as personagens, suas narrativas e comportamentos, e não só, pois, em Hysteria, tanto as atrizes quanto as mulheres do público fazem
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parte do jogo. Uma presença masculina que se faz pela ausência, que observa, imagina e julga as mulheres, e que é o próprio tema do espetáculo. Um olhar que ainda compartilha muito da visão de mundo do século XIX, e que hoje se materializa em situações tão asfixiantes quanto as dessas personagens, ou ainda mais. A encenação tensiona pontualmente essa herança nefasta, com uma delicadeza imensa.
FICHA TÉCNICA Criação: Grupo XIX de Teatro Elenco : Evelyn Klein, Janaina Leite, Juliana Sanches, Mara Helleno e Tatiana Caltabiano Direção: Luiz Fernando Marques FOTOS EVALDO MOCAZEL
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Produção: Grupo XIX de Teatro
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JUSSARA BELCHIOR
PESO BRUTO
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ossos olhos, mesmo não sendo convidados a olhar um corpo, sempre o invadem sem convite, sem cerimônia. Falta decoro. Sem ao menos conhecer aquele espaço de vida, desde muito cedo, já sabemos e aprendemos como tratar esse corpo, como observá-lo, como preenchê-lo de julgamento, medo, vergonha. Antes que haja essa in-
vasão, Jussara consegue nos fazer esperar pelo convite, aguardar para que ela mesma nos apresente. A versatilidade do corpo bruto, a flexibilidade da carne, as possibilidades dos ossos, membros e estrutura vão nos sugerindo o caminho para conhecer o humano e o poético de uma das imagens mais julgadas pela sociedade dos últimos tempos. É interessante como Jussara escolhe lugares que não costumamos percorrer, é ela quem dá a direção de nossos olhos e quem nos surpreende ao naturalizar uma mulher acima dos cínicos padrões sociais em movimentos ora leves ora desafiadores, sensual e despida, inteiramente entregue a uma exposição que ela escolheu, e não que nós delimitando a partir de nossos preconceitos. O surpreendente e silenciador é mesmo ainda precisar naturalizar algo tão inequivocamente natural. Além de deslocar as ignorâncias provando possibilidades, “Peso Bruto” também atua ao nos presentear sutilmente com a exposição de nossas próprias perversida-
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des. Quando produz imagens ou até mesmo usa recursos musicais para ativar no nosso imaginário os estereótipos endossamos por toda vida, como o corpo gordo sendo lambuzado de violências ou sendo a figura do nosso entretenimento, Jussara vira o jogo e revira nossos olhares apontando-os para nós mesmos, recordando as pequenezas que aprovamos. A visão de uma única noção corporal na dança e a padronização exercida nessa expressão artística são rompidas no espetáculo, definitivamente. Não que tal padronização ainda seja determinante. Ela está mais na imaginação do público do que na própria dança contemporânea. A linguagem tem ampliado a percepção dos corpos não normatizados como um fator para construção de outros dizeres subvertendo positivamente a expectativa do público. Assim, Jussara prova um corpo dançante não ser aquele de formato específico, mas o que incorpora a ideia do movimento. Os movimentos de Jussara carregam ideias transgressoras, potentes e contestadoras. A dançarina ultrapassa diversos limites estimulados pela sociedade em relação ao seu corpo e ao seu gênero e permite, entre suas escolhas, que a vejamos alcançando o erotismo de sua existência, não no sentido pornográfico, mas no que a poeta e pensadora Audre Lorde chama de “capacidade de gozo”.
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Lorde exemplifica essa capacidade como um corpo que se alonga com a música e se abre em resposta, ouvindo atentamente seus ritmos mais profundos, de uma maneira que todos os níveis de percepção também se abrem à experiência teoricamente satisfatória. Diante de nossos olhos, Jussara se satisfaz em sua força vital e nos dá, como única opção, a assistirmos enquanto descobrimos em nós mesmos a possibilidade de outros corpos nos habitarem sem medo e sem pudor.
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FICHA TÉCNICA Criação, produção e dança Jussara Belchior Interlocução - Soraya Portela Dramaturgia - Anderson do Carmo Trilha sonora - Dimitri Camorlinga Figurino - Joana Kretzer Brandenburg Iluminação e Designe Gráfico - Marcos Klann Fotografias - Cassiana dos Reis Lopes Vídeo - Cristiano Prim FOTOS CASSIANA DOS REIS LOPES E ELENIZE DEZGENISKI
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Produção: Corpo Rastreado
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KARIN SERAFIN
ECO
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stando em Buenos Aires, em 2020, fomos convidadas para fazer uma crítica de um espetáculo brasileiro produzido anos atrás. Como se escreve sobre uma performance que não vimos ao vivo? Escrevemos sobre o espetáculo ou sobre o registro desse espetáculo? Se o vídeo seleciona o que nos mostrar, diferentes planos, pontos de vista e cores, não é uma
escritura sobre o espetáculo? E se fosse uma escritura, poderia ser uma reescritura? FarOFFa NO SOFA nos propõe pela primeira vez fazer o exercício de criar uma espécie de palimpsesto de Eco. O eco é uma repetição de algo, mas nunca igual. Não diríamos ser menor, mas diferente. No teatro, um espetáculo nunca é o mesmo; existe repetição, existe mudança. E é isso que esta encenação propõe: os espetáculos anteriores passam novamente pelo corpo de sua intérprete, resultando em algo novo. Desde o início da vídeo-espetáculo de 43 minutos e 45 segundos (numa apresentação presencial nunca poderíamos determinar a hora com esta exatidão), os artistas nos oferecem um olhar diferente sobre as pessoas que lá estiveram naquele dia. Há uma montagem com recortes, uma câmera suspensa e tomadas cinematográficas. Isso confirma não pretenderem que vejamos o espetáculo como se lá estivéssemos, e sim que o façamos a partir dos nossos lugar e tempo.
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Quem dera poder estar em uma sala fechada, com pouca distância entre as pessoas, em um contexto como o atual! Nem Karin Serafin, a intérprete de Eco, nem o público podiam imaginar o que estava por vir e quão valioso é esse ritual de encontro pressuposto às artes performativas. Ela, toda vestida de branco, iluminada e imóvel, enquanto o público entra na sala (remete-nos à performance “A artista está presente”, de Marina Abramovic). Um primeiro plano permite distinguir o movimento mínimo, quase imperceptível, como sendo o início. A sensação de imobilidade transmitida incomoda o espectador - o que sentiriam os que estavam ali? Definitivamente, o mesmo não acontece pelo vídeo: por ser gravado em várias câmeras e com edição entre elas, a montagem possibilita ver a dançarina de diferentes ângulos da sala, transmitindo um dinamismo que torna o silêncio e a imobilidade menos insuportáveis. O movimento acelera em ritmo muito lento, com caminhos interligados durante os primeiros dez minutos, até que, não mais na cadeira, mas no chão, em tela dividida com uma cena aberta e outra fechada, simultaneamente, vemos a mudança para uma coreografia mais rápida, com golpes no piso branco. Observam-se não só cortes de planos verticais e horizontais, também mudanças na cor da filmagem, ora mais cin-
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za ora mais azulada, para, após um movimento intenso no chão, rodeada pelos espectadores, a intérprete se sentar em uma das cadeiras do público e começar a se despir. O quanto muda ao espectador ver uma dançarina se despir e continuar despojada a dança? Como aqueles que estavam tão perto de seu corpo teriam percebido isso? A partir desse ponto, a coreografia ganha mais ritmo e velocidade até a luz ficar bem clara e a cena começar a se desdobrar, ficar embaçada; em seguida, um blackout. Terminou? Voltamos a vislumbrar, através da luz vermelha, o corpo da performer. Se não tivéssemos lido na sinopse Eco ter duas partes, talvez pensássemos ser apenas uma continuação. Todavia essa obra é composta por dois solos independentes dirigidos por Alejandro Ahmed e Renato Turnes, que se encontram e unem pelo corpo da intérprete: Karin Serafin: bailarina com trinta anos de experiência que, com Ahmed, faz parte do Grupo Cena 11, desde a sua fundação, participando de todos os trabalhos realizados pela Companhia. Por sua vez, com Turnes iniciou suas pesquisas como intérprete criativa e desenvolveram vários trabalhos. A partir das definições da palavra eco como reminiscência, algo que perdura e repercute, cada diretor desenvolveu uma investigação independente com seus próprios materiais e histórias, e com Serafin como intérprete que dá cor-
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po àquele trabalho. O percurso dos artistas como grupo está presente: ao ver Eco podemos identificar os vestígios de anos de vida, memórias e espetáculos passados. Quando o corpo de Serafin é iluminado outra vez, uma nova poética e estética pode ser identificada. Da luz fria passamos a observar uma quente com outra textura e ao corpo nu se somam elementos como bola de espelhos, corrente de diamantes que percorre a pele da bailarina e um teclado utilizado pela performer para produzir sons aos quais ela põe voz, uma voz que gera um eco sutil. A performer efetivamente tem uma voz própria e primeiro a mostra com seu corpo para depois mostrá-la literalmente. A história do eco tem um significado literal e vem da mitologia grega. Parece que a bela Eco era uma ninfa de cuja boca saíram as palavras mais bonitas já ditas e isso irritou Hera, com medo de seu marido Zeus pudesse cortejar Eco. Quando isso realmente aconteceu, Hera castigou Eco removendo sua voz e a obrigando a repetir a última palavra dita pela pessoa com quem estaria conversando. O interessante sobre este Eco de Serafin, Ahmed e Turnes é, pela repetição e autoexploração da trajetória do próprio corpo, conseguirem criar uma obra inédita. É no final que a tela começa a ser preenchida com uma digitação de palavras translúcidas em inglês. Continuamos a
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ver a intérprete, mas há letras em seu corpo. O escrito com o corpo é sobrescrito em prosa. Neste momento culminante, o conceito de palimpsesto suscitado pelo próprio grupo na sinopse se torna evidente. Não um palimpsesto de “pergaminho e tinta, e sim de carne e pixel” (por causa das telas que carregamos em nossos bolsos). A mulher despojada de tudo escreve sobre memórias e traça um caminho para um novo lugar. “E se o que está por vir é a ruína, se o que está por vir apenas permite que você pense, como chegamos aqui?” Gostaríamos de saber se este texto foi escrito em 2018 ou 2020 para este festival online. Tem muito a ver com o que sentimos durante a pandemia de Covid-19, que gera empatia e desespero ao mesmo tempo. O que sabemos ao ver este espetáculo é o corpo ir com a memória, do auto-reconhecimento à frente com a necessidade de continuar, independentemente do que venha, mesmo durante uma pandemia, e que, embora esta resenha seja apenas um eco ou um Palimpsesto é, ainda, um testemunho único que enviamos do nosso lugar e do nosso tempo: nosso olhar sobre Eco, de Buenos Aires, em 2020.
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FICHA TÉCNICA Coreografia e interpretação: Karin Serafin Direção: Alejandro Ahmed e Renato Turnes Desenho de luz: Alejandro Ahmed e Renato Turnes Figurino: Karin Serafin Acessórios para microfone e corpo: Maurício Magagnin Técnico de som: Eduardo Serafin Vídeo: Direção Audiovisual: João R. Peralta e Thiago R. Passos Operação de Câmera: João R. Peralta, T hiago R. Passos e Vivian Badofzsky Edição de Vídeo: Thiago R. Passos Edição de Som: João R. Peralta FOTOS CRISTIANO PRIM
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Gráficos: João R. Peralta
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LIA RODRIGUES
ENCARNADO
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ue palavra ambígua, essa, encarnado. Pode significar alguém estar vivo e, ao morrer, seu espírito desencarnar. Uma compreensão própria do Espiritismo, mas não somente. Também pode ser a vinda de uma entidade a este mundo, através do corpo físico de uma pessoa. Pode ser uma cor que lembra a carne, vermelha, uma palavra que
também remete ao sangue; ou ao vermelho do Boi Garantido, no Festival de Parintins, na Amazônia. Também já ouvi seu uso para se referir à relação de atrizes e atores com personagens com as quais atuam. Por aí vai. A sinopse do espetáculo “Encarnado”, da Lia Rodrigues Companhia de Dança, além de todas essas, ainda faz referência à frase bíblica “e o Verbo se fez carne e habitou entre nós”. O que me leva às perguntas: quais Verbos têm sido feito carne entre nós, em nós? Quem os enuncia? A tensão constante dos corpos, essa sensação de estar prestes a explodir, de estar dura, de fissura, ou, em contraponto, a complacência, o corpo viscoso que se arrasta esvaído de forças, entregue, esgotado – são imagens representativas de um momento de crise e confinamento, tal como o que estamos vivendo. Agora, em limites alarmantes. Tendo estreado em 2005, “Encarnado” dialoga com essas questões, por meio de movimentos ambíguos, corporali-
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dades que carregam em si diversas leituras. Polissemias. Por isso, uma das principais características da encenação é a multiplicidade de interpretações possíveis. A iluminação sem cores, seca, cria a sensação de crueza, combinada ao figurino, que lembra roupas de comuns e confortáveis. Aparentemente, uma tentativa de neutralidade. A ambiência inicial é de sala de ensaio, onde a coletividade fala mais alto em danças circulares e existe ludicidade nas relações. Mas, ao decorrer do espetáculo, os corpos, todos jovens, quando individuados, evidenciam a violência que contém – ou que os contêm. Aos poucos, percebe-se a nudez ser o principal figurino. Em cenas nas quais os corpos se amontoam e dão sustentação uns aos outros, em fino equilíbrio, cedendo aos poucos. Em cenas ásperas, nas quais os corpos se atritam, às vezes até sem se tocarem, parecem causar amargor e sufocamento uns aos outros – com raros momentos de suspensão, quando escorrem sobre os bailarinos líquidos que lembram secreções, vermelhas e brancas. Essas, também um importante signo da visualidade, provocam interpretações ambíguas sobre o sentido das relações entre aqueles corpos, e deles com eles próprios. Tais imagens diferenciam-se dos momentos de coletividade e circularidade, e o espetáculo caminha para a individualização das ações, que perdem seu aspecto lúdico e ganham presenças mais alegóricas: violência, dominação
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e sofrimento; dificultando distinguir se a dor é de seres humanos ou espíritos, fantasmas, entidades. Que verbo é esse que se faz carne desse jeito, em formas físicas dilacerantes? O que insinua o líquido vermelho escorrendo pelas costas ou o entre as pernas? A reencenação de cenas violentas da vida, repetidas no palco, parece querer purgá-las no espaço cênico, mas, sendo reproduções, provocam outra vez angústia, agonia. A multiplicidade de leituras possíveis em cada uma das imagens faz-nos perceber a dor estar também nos olhos de quem lê – se não ela, suas cicatrizes. A cena em que um bailarino tenta se comunicar por meio da fala e as únicas palavras que conseguem sair de sua boca são nomes de pintores europeus leva ao limite a tensão entre desejo e possibilidade, trazendo o choque entre as vozes existentes em nossa história. Podemos pensar na afirmação de Gloria Anzaldúa sobre a cultura mexicana, em paralelo com a nossa: a cultura branca europeia luta com a cultura brasileira, e ambas lutam com a cultura indígena, dentro dos bailarinos, da coreógrafa, dos artistas. Dentro de nós. A necessidade de expressão se conflitua até com a gramática, a das palavras e a dos corpos. O provocativo virtuosismo dos bailarinos se desmancha em mãos e pés que se largam no espaço, deixando os movimentos em suspensão. As trajetórias percorridas por elas e eles mudam de direção o tempo todo, encarnando a desorienta-
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ção imposta por séculos de colonização que deixaram, atrás de si, um rastro encarnado. Rastro esse no qual ainda estamos imersos, e que comparece explicitamente no espetáculo de Lia Rodrigues. São cenas de opressão materializadas no corpo de quem atua, esfacelando-se ritualmente em público, criando relações desiguais de gênero, ao ponto de alguém presa dentro de um plástico se debater e sufocar sem ninguém para tirá-la dali. Aí lembramos: ufa, é só uma peça – mas sabendo que, quando sairmos à rua, é capaz que nos deparemos ou vivamos situações como aquela. Uma imagem com alto grau de estetização, e que, mesmo assim, soa realista, tamanha é a violência de nosso mundo patriarcal e misógino. Só não é mais realista porque os corpos que dançam em “Encarnado”, mesmo nus, são todos cisgêneros. Curioso notar a cisgeneridade ser ainda mais exposta diante os corpos nus. Ao final, ficamos com a crueldade das perguntas que se fazem física no espetáculo: quais verbos encarnam a dança?, e quem eles submetem? Quando, quinze anos após a estreia, assistimos novamente ao espetáculo, é possível notar princípios de reflexão filosófica sobre a colonialidade do ser na história dos corpos, incluindo o gênero, que ganha a amplitude do debate sobre formação da identidade nacional no último trabalho de Lia Rodrigues, “Fúria”. Mas, em relação a este, “Encarnado” é bastante diferente, pois não há, ain-
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da, pelo menos não conscientemente, o desmanche das identidades, nem a crítica assumida em narrativa. E há, ainda, uma concepção binária de gênero, indícios do desejo de transgressão, mas nada comparado à potência das identidades deslizantes de “Fúria”, que, ainda sim, ao narrar coletivamente a História a contrapelo, constroem uma crítica política. Os verbos que se fazem carne, e a carne que é legitimada como digna de dança, ainda são muito circunscritos a uma realidade branca e cisgênera que cria hierarquias de dominação de raça, classe e gênero. Quinze anos atrás, ainda mais, e isso passa a ser visível quando assimilamos os corpos excluídos – os chamados outros corpos –, ainda que pela percepção de suas ausências em cena. “Encarnado” prioriza o debate sobre a opressão de gênero, revelando frestas de uma concepção que se pretende interseccional, mas que ainda busca o cerne dos verbos necessários para se encarnar nos corpos em aliança.
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FICHA TÉCNICA Direção e Criação: Lia Rodrigues Dramaturgia: Silvia Soter Criado e interpretado por: Amália Lima, Micheline Torres, Jamil Cardoso, Amália Lima, Ana Paula Kamozaki, Allyson Amaral, Gustavo Barros, Celina Portella, Leo Nabuco, Giovana Targino, Leonardo Nunes Luz: Milton Giglio Produção/Assessoria de imprensa: Claudia Oliveira Co-produção: Centre National de la Danse Paris, Festival d’Automne - Paris, La Ferme du Buisson - Noisiel Scène Nationale de Marne-la-Vallée, Maison de la Danse - Lyon/ França; Tanzquartier e IDEE - programa Culture 2000 da União Européia - Viena/ Áustria. Participação da Région Rhône-Alpes no programa do Réseau des Villes - França e Casa das Culturas - Berlin/Alemanha Apoio Cultural: Espaço SESC - Rio de Janeiro A Companhia Assistente de coreografia : Amália Lima Preparação Corporal: Amália Lima, João Saldanha , Marcela Levi, Felipe Koury, Paulo Marques, Sylvia Alcantara Secretária: Glória Laureano Produção e Difusão Internacional: Thérèse Barbanel - Les Artscéniques FOTOS SAMMI LANDWEER
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Assistente: Colette de Turville
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ORIGINAL BOMBER CREW TRETA
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escuro. E sufocante. O som chega antes, o movimento depois. Não demora muito a identificar alguns deles. Skate raspando no chão. Skate que se move com ligeireza no chão. O chão é áspero, não o skate ou quem está sobre ele, mas a superfície a ser friccionada. Tem o movimento de quem assiste e de quem assiste quem assiste. E essa é
a inescapável constatação que nos primeiros minutos de espetáculo se evidencia. Os tempos de pandemia que impuseram uma série de restrições, entre elas não se aglomerar, e, sendo assim, não ir ao teatro, impactam bastante a experiência de tReta. Não seria honesto eu dizer que esse espetáculo se faz com a plateia, porque não se trata disso. Não é porque uma plateia se move dentro de uma cena, a partir da proposta de um local de intervenção espacial, muito mais que um palco, que a plateia faz o espetáculo. Mas é preciso considerar o fato de o público não estar estático, mover-se ao sabor das cenas conduzido pela luz e som, fazendo dele uma montagem que se perde, se não contemplada ao vivo. A câmera que filma a cena para ser exibida posteriormente a uma pessoa sentada em um sofá - no caso, eu -, encerrada naquele espaço e tempo por um vírus apavorante, faz mais do que uma mediação: interfere diretamente na experiência, pois falha na tentativa de captar o que é ser um daqueles olhos e corpos atentos que ca-
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minham ao sabor do movimento dos bailarinos. Que se assusta com o barulho de skate, aqui, acolá. Talvez nem queira isso. E diante de tal dificuldade, passo, então, a aguçar outros sentidos àquela cena. É escuro. Sufocante a ponto de sentir, feito um nó na boca do estômago. Com alguma dificuldade, identifico corpos contorcidos, em uma dança incômoda, assim como o som que identificaria em canção dodecafônica. Tudo é movimento e gera som. Tem tornozeleira eletrônica e rostos, não apenas pela escuridão, mas por obstáculos que propositalmente os deixam ocultos. Tem pano e tem capacete. O anonimato está intrínseco no pixo, contudo é demasiado humano querer ter sua hora da estrela. Só não sai da reta. Se for sair, olha para os dois lados na próxima manobra. Tem liberdade e tem prisão nessa dicotomia do viver solto e junto. O estar junto por necessidade e o estar sozinho para manter a humanidade. Essa dualidade aparece no jogo coreográfico que expressa literalmente a animalização no amontoar-se e a recuperação da individualidade no se separar. Os elementos do hip hop, todos muito evidentes, são um caminho estético fundamental à construção simbólica do espetáculo. É uma dança de rua inscrita debaixo de um teto e repleta de mediações. Mas, ainda assim, é uma dança de rua que tem na liberdade de movimentos o tom necessário para a performance ser fluída.
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Desumanização é o que eles querem. O sistema que aprisiona, persegue, mata. A vida é treta, mano; eu diria, em São Paulo. No Piauí certamente são outros quinhentos. Mas que o papo é reto e não faz curva para quem vive na rua, isso é compreendido em qualquer lugar e idioma. Nesse sentido, a dança, e por extensão a música, enquanto linguagem, traz a identificação universal diante do tema proposto. É aqui onde se assenta a referência do trabalho de Marcelo Evelin sobre o movimento e constante contato dos corpos serem a validação de um viés poético para um tema tão duro. Não dá para sair da reta, porque os cães estão à espreita e sirenes sempre prontas a perseguir, assustar, dar um enquadro, torná-lo a imagem e semelhança daquele animal que estava a latir. E isso, em alemão, português ou chinês é um sentimento plenamente identificável. Desumanizar. Sem face, na multidão, sem ouvir e sem ser ouvido. São grunhidos, latidos e sirenes. O pregador vem lhe dar a salvação, mas, para isso, você tem de se encaixar, tem que escutar e nada dizer, entender a palavra que está sendo dita, mesmo que não ecoe nem nessa nem em outra língua dentro de você, dentro daquilo que você ainda acessa dentro de você como humano. Tem alguma luz, mas ela também sufoca. Ela foca, mas não
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ilumina. Tem uma coisa que perpassa a desumanização em estar só e junto, e do privado e do público. Sou capturada pela ideia de se é “indivíduo” temos, ao menos, a garantia de ser humano. Mas até o momento em que você será moldado, no público ou no privado. Atitude. Porque é assim que a polícia prefere te encontrar na rua e te dar um tiro na nuca. Matilha. Quando se une, se amorfa. Vira massa de manobra. Fica tudo igual. O sistema quer assim. Todo mundo regido por uma ordem que pode vir da boca de um pastor louco, de um pai autoritário ou do Estado. “Você está entendendo?”, ecoa. A sensação de mal-estar, nó no estômago, coração na boca por entender, se sozinho, não é autêntico, é presa. Se junto, é comandado, é programado. É angústia, porque o pixo, que é autêntica manifestação, será sempre silenciado pelos cães que ladram, pela sirene insistente, pelo pregador que grita, pelo tiro. Existe uma desumanização em não permitir a individualidade, em desejar a massa de manobra: é mais fácil controlar do que alguns poucos e loucos. Nesse sentido, o efeito inicial de estar sufocada exatamente por não ser suficientemente claro - a imagem, a mensagem - transforma-se em uma experiência, no mínimo, curiosa sobre
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as formas de contemplar nesses ditos novos tempos. Os tempos em que o distanciamento impede uma imersão profunda. Traçando um paralelo com um dos temas latentes da obra, a repressão ao diferente é feita no escuro mesmo, na calada da noite. O que se mostra diferente se manifesta como empecilho ao controle social imposto pelo Estado. Pela sirene, pelo pregador, pelo tiro. Não seria loucura supor, para quem, como eu, assistiu de um sofá, a partir de uma série de mediações, incluindo a da câmera que o filmou: a experiência é quase uma metalinguagem. A poesia se estabelece quando o real é escancarado de tal forma que se torna surreal. O que, afinal, está sendo observado? Quem está sendo observado? O aproximar-se e distanciar-se intrínseco ao jogo proposto também se manifesta nesse simbolismo que nos coloca diante de um dilema: a identificação vai acontecer, não há como escapar, a dúvida é se por aproximação ou por distanciamento.
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FICHA TÉCNICA Concepção: Allexandre Santos e Cesar Costa Direção: Allexandre Santos Criação e performance: Allexandre Santos, Cesar Costa, Javé Montuchô, Malcom Jefferson, Maurício Pokemon, Phillip Marinho Concepção musical: César Costa e Javé Montuchô Coordenação técnica e Desenho de luz: Javé Montuchô Assistência administrativa: Humilde Alves Direção de Produção: Regina Veloso/ CAMPO Arte Contemporânea Agradecimentos: Cleydinha, Neném, Fedó, Jell, Pangu, Pangulim, WG, Gui Fontineles e Marcelo Evelin. Obra criada em residências de pesquisa e criação na Casa de Hip Hop (jul 2017, out 2018), Espaço Balde(mai 2018) e CAMPO Arte Contemporânea FOTOS MAURÍCIO POKEMON
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(ago 2017 e jul 2018) – Teresina/Piauí.
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RENATA CARVALHO
MANIFESTO TRANSPOFÁGICO
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ós vemos uma mulher sem cabeça. Seios de fora, uma calcinha bege cobre seu sexo. Na projeção, a palavra TRAVESTI aparece de tempos em tempos. Como uma lembrança. Ou um aviso. Renata Carvalho fala de seu próprio corpo como quem fala de um estranho. Um corpo que “sempre chega antes, como um outdoor”. Se o corpo de Renata fala
por si, enquanto espectadores também somos constantemente lembrados sobre o que se trata Manifesto Transpofágico. Não só pelo título ou pela dramaturgia. Mas, pela palavra: TRAVESTI. A Antropofagia é o que comumente se conhece por Canibalismo, o ato de comer, incorporando a si mesmo, uma ou mais partes de um ser humano. Renata fala: “de certa forma, eu fiquei grávida de mim mesma, eu me pari”. Esse parto às avessas, no qual novas partes são incorporadas (engolidas) àquele corpo, é minuciosamente descrito. O cabelo permitido a crescer; o silicone industrial, injetado em um processo longo, perigoso e doloroso; o dinheiro juntado para colocar os seios, expostos durante todo o espetáculo e que sedimentaram para o mundo o fato de a atriz ser uma mulher. “O que Deus não dá, a farmácia vende”. Renata é Frankenstein de si mesma. Não como uma deformidade, mas como a invenção de um corpo novo. Se Deus não deu,
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Renata construiu, “comendo uma ou várias partes de um ser humano”. Ela é criadora e criatura, e é dela a decisão sobre cada detalhe daquele corpo, construindo também uma nova possibilidade de sujeito. Mas isso não é exatamente romântico. O uso do silicone industrial, por exemplo, marca uma época em que era necessário ter formas voluptuosas cada vez mais semelhantes ao dito feminino. Não que essa mesma exigência não seja feita a mulheres-cis; isso é outra história. Para colocar bunda e quadris, Renata passou não só por um processo doloroso, com injeções que podiam, eventualmente, atingir uma veia, precisou passar 30 dias deitada de bruços para o produto solidificar em seu corpo no formato certo. Isso sem falar na pressão subjetiva, no medo de não ser reconhecida como mulher, no fato de jamais usar cabelo curto, boné ou a cor azul. Uma defesa diária, constante e exaustiva dessa identidade de gênero. As pressões sobre o corpo não-binário podem ter mudado um pouco ao longo dos anos com o avanço do Movimento Trans e as diversas expressões de gênero que foram se colocando a olhos vistos. No entanto, a história contada em Manifesto Transpofágico vai muito além. Por uma narrativa em que fala de si mesma e da história da travestilidade no Brasil, a atriz atravessa contextos
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políticos diversos para contar sobre pessoas que sempre estiveram à margem. Não apenas à margem. Há algo mais do que isso. Há também uma mística, um fetiche em torno da travesti e, por meio de diversos fatos históricos, o espetáculo apresenta esse “nó”. Rapidamente se passa pelo que, talvez, seja a frase mais impactante e o melhor resumo de Manifesto Transpofágico. Uma manchete: “Homem esquarteja travesti e leva o coração para casa”. Na notícia real, Caio Santos de Oliveira diz: “Ele era um demônio, eu arranquei o coração dele”, para depois admitir ter feito sexo com ela, pouco antes do assassinato. Atente-se para o fato de que ele levou o coração para casa, enrolou-o num pano e o manteve no guarda-roupa até a polícia descobrir o crime. O Brasil lidera o ranking mundial de assassinato de travestis e transexuais, mas também é o país que mais acessa pornôs do gênero. O fato leva a uma análise psicológica básica: você rejeita o que deseja. Não falo aqui só de sexo. É importante desvendar o fetiche pelo qual esta sociedade lê o corpo de pessoas trans. Roberta Close, por exemplo, considerada a mulher (!) mais bonita do Brasil, chegou a posar para a Playboy. Rogéria, Lea T, entre outras que figuraram na mídia e no imaginário brasileiro, mesmo nos anos mais duro da Ditadura Mili-
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tar. A grande massa de travestis prostitutas no Brasil e no mundo. Uma hipersexualização que atinge o corpo de todas as mulheres, mas, no caso das pessoas trans, ganha camadas mais profundas de atração e rejeição. Matar a travesti e levar seu coração para casa são, portanto, duas faces da mesma moeda. Apesar de apresentar inúmeros casos de violência físicas e emocionais, algumas autoinfligidas, Manifesto Transpofágico não traz um tom de acusação. Ainda vestida apenas com uma calcinha, Renata convida a plateia para uma conversa. Perguntas coisas como: você já passou o Natal com uma travesti? Você tem amigas travestis? Namoraria uma travesti? etc. As respostas, em geral, são negativas. A peça é um convite para olharmos nossa própria transfobia. Não do jeito óbvio “tenho uma amiga travesti”. Não importa apenas quem são nossos amigos e se pessoas trans estão em nossos círculos sociais. Isso é uma questão relevante, claro. Mas, trata-se também do imaginário. Vi Manifesto Transpofágico em casa, por vídeo, de certa forma, distanciada das resistências que o conteúdo do espetáculo e o corpo de Renata poderiam trazer à tona em mim (não que elas não existam, mesmo por vídeo). Tive espaço para pensar na minha própria transfobia. E me perguntei coisas como: por que esse corpo me causa
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tanta resistência? Por que sinto necessidade de defender minha própria “mulheridade”? Em que lugar do meu imaginário habita a rejeição à transexualidade? Nada disso é uma autocondenação, e sim autoinvestigação. Uma ação possível às mudanças subjetivas tão necessárias para mudanças reais.
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FICHA TÉCNICA Dramaturgia e atuação: Renata Carvalho Direção: Luiz Fernando Marques Iluminação: Wagner Antônio Vídeo Arte:: Cecília lucchesi Adaptação de luz e operação: Juliana Augusta Produção: Corpo Rastreado FOTOS NEREU JR
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Co-produção: MITsp e Risco Festival.
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SÓ HOMENS CIA DE DANÇA
TRINDADE A DRAG, O CAVALO E O XAILE
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tríplice imagem da donzela-mãe-anciã é representada em várias mitologias ao redor do mundo. Para os gregos, por exemplo, existia Hécate, cuja imagem era associada às três fases visíveis da Lua - crescente, cheia e minguante. O número três era representado ainda pelas Moiras, irmãs cuja função era tecer o fio da vida e determinar o destino de deuses e humanos.
Os dois exemplos são apenas alguns dos vários que podem ser encontrados para associar o número três ao feminino. O espetáculo de dança Trindade, portanto, não escolhe seu nome (nem o número de atuantes) à toa. De alguma forma e por algum motivo, compartilhamos essas representações no que Carl Jung chamaria de Inconsciente Coletivo - uma camada da psique constituída por materiais que foram herdados e que seriam comuns a todos os seres humanos. A tríade feminina nas mitologias é um bom exemplo do funcionamento desse conceito. Posto tudo isso, é preciso dizer ser essa a primeira impressão de Trindade. A tríplice deusa, três mulheres, imagem tão evocada nos círculos do sagrado feminino, o nascimento da Vênus representada em três homens (?), pessoas não-binárias (?), mulheres trans (?) caminhando lentamente com longos cabelos e pênis escondido. É, sem dúvida, uma imagem bonita. Um hiperfeminino evocado não por meio da extrema sexualização, mas da sa-
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cralidade. O que vemos é uma ode, uma reverência à uma determinada visão de feminino. Aquela que hoje costumamos associar com as palavras ancestralidade, sabedoria ou, novamente, sagrado feminino. Antes de continuar, preciso dizer: sou uma mulher cis. E é esse o ponto de vista a partir do qual escrevo essa resenha. Não como uma forma de antagonismo (ou, talvez sim, vai entender em que meandros passeia a nossa subjetividade), mas como alguém que, para o bem ou mal, experimenta as mais diversas facetas do que é “ser mulher”, ao longo de mais de trinta anos de vida. Isso incluindo movimentos que vão desde a rejeição ao feminino até um “abraçar” essa dita ancestralidade, sororidade, ciclo menstrual, uivar pra lua etc. Assisti Trindade da minha casa, pelo computador, sentada na cama sozinha e variando entre sensações de achar as imagens encantadoras e ficar realmente intrigada com a busca proposta. E digo busca porque é isso que me parece. Uma intensa, incansável, sedenta busca pelo feminino realizada por meio de várias imagens-ações que remetem a essa “faceta”, “energia” ou “gênero”, como queiramos chamar. São diversas dessas imagens-ações que posso citar aqui. Os longos cabelos e a imagem inicial, facilmente associável
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à pintura O Nascimento de Vênus, de Botticelli. Os cabelos, aliás, são uma parte importante do espetáculo. Perucas negras que ultrapassam as nádegas dos dançarinos e que são uma escolha estética tão relevante quanto o ato de esconder o pênis entre as pernas, criando para si uma vagina, por si só já remetendo a um “andar feminino”. Os cabelos servem ora como cobertor, ora como travesseiro, ora como demonstração de cuidado, quando duas das figuras trançam os cabelos da outra, que chora dublando um dramático fado português. O cuidado e acolhimento também está posto. Assim como a dor, o choro, o exagero. Também o transe, a bruxaria, o ritual, o envolvimento dos próprios corpos em xales, o círculo. O espetáculo termina em uma roda de expurgo remetendo a labor, espera, resiliência, mas também a descontrole e histeria. Para, por fim, arrematar com um banho, usando o elemento da água, das emoções, promovendo uma catarse para as figuras em cena e para o público. Há em Trindade um excesso de feminino, de feminilidade, de tudo que possa ser associado a esse gênero. É um resgate, quase uma obsessão, uma experimentação de todos os elementos. É possível ver a necessidade de fazer, de como aqueles corpos anseiam por uma experiência que, talvez por ser negada na vida cotidiana, é realizada no palco. Como uma corrida ou um ato de “gastar”,
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de fazer tudo que é possível enquanto é tempo. No palco, vive-se a fantasia do feminino. Como disse antes, só é possível me relacionar com este material a partir do fato de ser uma mulher-cis. E, por isso, de uma perspectiva muito pessoal, o sentimento é dúbio. Por um lado, a empatia pela necessidade de fazer as pazes, de abocanhar e tomar para si o que não é dado facilmente aos “meninos”. O que inclui a possibilidade de chorar, de dramatizar, de enlouquecer, de cuidar e ser cuidado. Essa empatia também leva em consideração o fato de não ser por me identificar com meu sexo de nascimento que estou totalmente resolvida com o ser-mulher. Ao contrário, eu (e minha mãe, tias, amigas etc.) ainda preciso fazer meu próprio caminho de apaziguamento e apropriação disso. Por outro lado, não consigo não achar ingênua a busca proposta em Trindade. Olho e percebo a reconstrução de algo que é da ordem da brincadeira, do experimento, mas que não se aprofunda nas complexidades do feminino. E sinto isso, provavelmente, por ter passado a vida diante das manifestações da feminilidade. E há nisso um abismo muito maior do que o contido na representação do belo, do terno ou mesmo na explosão, no ato histérico. Trindade nos oferece imagens muito bonitas. E a compreensão de um desejo e de uma inquietação genuínas. Mas,
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também deixa a questão: será isso o suficiente? Talvez precisemos ampliar essa discussão para além da simples performatização do feminino.
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FICHA TÉCNICA Direção, Concepção e Coreografia: Samuel Alvís Bailarinos: Adriano Abreu, Jose Nascimento e Samuela Alvís Figurino: Adriano Abreu Cenário e Luz: Jose Nascimento e Samuel Alvís Técnico de luz e som: FOTOS GELSON CATATAU
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Felipe Rodrigues
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TEATRO DA VERTIGEM BR33
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uando o teatro acontece ao ar livre, num espaço urbano e não-convencional, é difícil assistir à versão online, pois, à princípio, é inevitável a sensação de defasagem na percepção das cenas. No caso do espetáculo BR-3, ainda mais; pois a ocupação do rio Tietê como espaço teatral propõe, no mínimo, uma experiência radical.
Porque não conseguimos sentir o fedor que sobe dos resíduos e dejetos despejados lá; e não conseguimos ter a experiência de deslocamento da embarcação enquanto percorre o rio; e não temos a magnitude da arquitetura das pontes, fundamentais para a encenação. Mas, mesmo assim, a edição do espetáculo gravado, com uma logística também enormemente complexa, consegue nos dar a dimensão da experiência de espectador|viajante em trânsito por um rio mítico – já evocado desde Macunaíma, de Mário de Andrade – e, aos poucos, vamos mergulhando na narrativa fluvial criada pelo Teatro da Vertigem. O espetáculo se passa em uma das paisagens mais emblemáticas da cidade de São Paulo, mas não se debruça só sobre questões locais. Busca-se compreender um sentido de identidade nacional pelos temas que a dramaturgia toca, personagens construídos e espaços fictícios que ela cria, sobrepostos à arquitetura urbana. E no próprio processo criativo, uma vez ter a pesquisa de campo perpassado três territórios
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bem distantes geograficamente: Brasilândia, em São Paulo, Brasília, no Distrito Federal, e Brasiléia, no Acre – a proximidade, como dá para perceber, vem pelo som das palavras: todas contendo a palavra Brasil. A significação dessa proximidade transpassa a coincidência proposital no plano do som, mergulha no do sentido e mistura um no outro. Mergulho este que não se furta a observar os detritos de nosso país, fundado em uma ideia de progresso que gera literal e metaforicamente muita sujeira. Os rios mortos, com toda a poluição reservada a eles, denunciam a falência de um projeto de nação, explicitada por BR-3 na saga de uma família que, em três gerações, sofre com impedimentos e violências. Através de uma busca permeada por assassinatos e sumiços, começando em Brasília, passando por uma favela em São Paulo, e terminando no Acre, a trajetória dessa família, cuja tragédia se conclui na Amazônia, expressa o limite do reconhecimento de Brasil e os problemas nacionais que hoje chegam a limites alarmantes. Por exemplo, as queimadas. Todo esse raciocínio, associando uma família ao projeto de Brasil, tem um quê de alegórico, e não é à toa. Ele está assinalado na dramaturgia, ainda que a encenação não o reforce, exceto quando se trata das seitas esotéricas e grupos religiosos. O pensamento urbanístico de Brasília, anunciado em áudio sampleado pelo texto de BR-3, em que
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Lúcio Costa fala sobre “a incorporação efetiva do bucólico ao monumental’, “o automóvel se incorporando com naturalidade à vida familiar cotidiana”, reforça o paralelo entre as ideias de país desenvolvido e de família como base da vida social. Justamente, o enredo que acompanhamos é o da tragédia de uma família, que, aliás, não consegue se adequar ao modelo patriarcal presumido. A morte do pai é o início da saga. A partir desse acontecimento fundacional, em que vemos a construção de uma cidade se sobrepor à vida de Jovelina, começamos a acompanhar sua trajetória e de seus filhos, e para, junto a ela, percorrer a história de um país, não só de uma família. A monumentalidade das pontes é incorporada ao espetáculo metaforizando a modernidade do Brasil idealizado pela burguesia progressista que, em suas ideias desenvolvimentistas, ignorava (ou não) uma contradição básica: para essas ideias se materializarem, alguém teria que trabalhar, e o custo desse trabalho, para quem o faz, muitas vezes é a própria vida. De fato, não há nenhuma vaga esperança de bucolismo a quem depende única e exclusivamente da venda de sua força de trabalho. E, se há, é vendida com truques falsamente encantatórios por alguém que sabe muito bem a quais interesses precisa atender: alienar as pessoas de sua própria realidade – os chamados vendilhões do templo, que atravessam as vidas de Jovelina, Jonas, Helienay, Douglas e Patrícia.
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Ainda no trecho inicial da dramaturgia, correspondente ao ano de 1959, alguém diz para Jovelina: “enquanto uns constroem uma cidade, os outros inventam uma religião”. São as duas linhas mestras que guiam o texto – o confronto com o progresso e com a religião. Em Brasília, há a seita religiosa comandada por Zulema Murici, que se torna Tia Selma, e ensina Jovelina a mudar de nome e nunca mais revelar o de batismo, como num juramento oracular. A personagem é apresentada, inicialmente em frente a imagens de um Faraó e uma Iemanjá branca, dentro de uma estrela vermelha, remetendo a um sincretismo confuso e perigoso que beira a apropriação, e que é típico de tantos locais místicos vistos por aí. Mas nem sempre o dado de realidade basta para justificar a representação. Em Brasilândia, percebe-se a influência do discurso cristão na favela onde Jovelina passa a residir, envolvendo-se com o tráfico. É esse o ponto de vista a partir do qual acessamos a narrativa, pois a narradora de BR-3, acompanhando os espectadores todo o tempo, é Evangelista, com forte inspiração da oratória neopentecostal. É ela quem convida o público a entrar no barco e apresenta o letreiro em luz fluorescente (lembrando um puteiro, pois os limites entre moralismo e promiscuidade são tênues no Brasil): “Jesus é mais alvo do que a neve”. Essa frase provoca uma reflexão crítica sobre a apropriação histórica da figura de Jesus e os usos manipulatórios dela pela elite brasileira, repercuti-
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do em todos os territórios pelos quais os personagens de BR-3 transitam. Permeada pela mesma branquitude, mas sem o tom crítico, é a visão sobre o barqueiro indígena (“índio filho de branco”, como diz o texto), que, como Caronte, conduz as personagens brancas para lugares misteriosos, em momentos decisivos na trajetória de cada uma delas. É ele o responsável por apresentar o chá de cipó para Jonas, que depois irá fundar uma religião inspirada em ritos indígenas, em uma comunidade da Amazônia profunda, divisa do Brasil com a Bolívia. Os diálogos da navegação trazem consistência à linguagem teatral, pois, neles, sensação física e arco narrativo se coadunam. Douglas, o menino que passa a peça inteira procurando Jonas, seu pai, recebe de Evangelista a notícia de seu paradeiro. Aí se inicia a terceira jornada da família, pois, em paralelo, há a narrativa de Patrícia, sua irmã, que também parte em busca de seu pai. O caminho até Brasiléia é permeado por indagações ao mesmo tempo filosóficas e geográficas, exemplares de alguém que não percebe seus laços de pertença com a região de fronteira: onde começa e onde termina o país? – é o que se pergunta. É lá que o conflito central do enredo chega ao seu ápice, quando o filho enfim encontra o pai, ainda que sem sabê-lo, pois, além de estar com um saco na cabeça impedindo-o de ver, não conhece o rosto do pai, que, além disso, também mudara de nome. Todas as personagens usam máscaras
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nesse momento, criando um jogo de despistamentos e disfarces somado às luzes, música e dança – um dos únicos momentos em que a cena acontece dentro do barco onde o público é transportado – estabelecendo um transe, confundindo nossa percepção e bagunçando o reconhecimento (anagnorisis) ocorrido entre pai e filho. É uma dramaturgia intrincada, espelhada na estrutura da tragédia clássica à luz do Brasil. A busca do filho pelo pai parece ser também uma busca pela pátria, vista através das lentes pessimistas de BR-3. No fim das contas, é só o pai quem reconhece o filho, e não o contrário. Logo após o filho é morto e sua irmã também. A saga termina em desgraça. O que alivia um pouco o tom negativista é a cena final: em que a narradora solta os cabelos, despe-se das roupas tradicionalmente associadas ao moralismo cristão dizendo “aqui houve um rio, houve uma cidade, houve um país – isso tudo é o que resta”, parecendo, assim, anunciar outro mundo possível. O nome do espetáculo, BR-3, nos remete a uma estrada, que é o próprio rio, e também o caminho ao coração dessa abstração chamada Brasil, que tantas lástimas nos proporciona. Talvez a expectativa fosse muito alta em relação à pátria, para que todo esse sentimento de espanto, frustração e desengano emergisse da água podre para a superfície. Uma decepção monumental com o país, numa encenação lendária que levou os artistas a imergirem na sujeira, na po-
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luição e no desprezo reservada desde sempre às pessoas subalternizadas nesta terra, entre elas as amazônidas. A imagem da sombra de Jonas, quando abre os braços em cruz como o Cristo, revela ângulos retos que dialogam diretamente com as linhas da arquitetura modernista, e também da marginal Tietê, com suas pontes e monumentos, recortados pelo vídeo mapping evocando o Congresso Nacional. A sobreposição da fé, da política e da arquitetura, na ocupação ousada do espaço público em BR-3, estabelece uma crítica política radical, contestando a base positivista de nossa República e escancarando toda a violência, apagamento histórico e manipulação da fé promovida pelas elites. O espetáculo é também uma denúncia, pela perspectiva restrita, ainda que válida, da branquitude paulistana que tenta compreender os caminhos da opressão no Brasil. Hoje, já é possível ter um entendimento mais profundo, desde dentro, ao lermos as peças de Rudinei Borges, os textos de Paloma Franca Amorim ou, ainda, livros, como A Queda do Céu, de Davi Kopenawa e Bruce Albert, entre outros. Isso não diminui o valor do espetáculo, pois ele não se restringe somente a isso. Contudo, agora, é necessário entendê-lo no contexto do fortalecimento da reflexão sobre a Amazônia pela perspectiva de quem nela vive e dela veio, considerando aí tanto a floresta quanto as cidades, com toda a diversidade de populações que as habitam, há tempos, e que o restante do Brasil mal conhece.
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FICHA TÉCNICA
Desenho de som: Kako Guirado - Usina Sonora
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Dramaturgia: Bernardo Carvalho
Músicos ao Vivo:
Atores: Bruna Lessa - Patrícia, Pernas, Fiel da
Amílcar Ferraz Farina (live eletronics e
Tia Selma, Bruno Batista - Edimilson, Pernas,
cavaquinho)
crente da Igreja dos Mortos, Cão e Seringueiro
Gabriel Levi (acordeão) -2006
Cácia Goulart - Evangelista e Rainha Mariana
Músicos Gravados:
Daniela Carmona - Helienay Fiel da Tia Selma,
Alessandra Grani (voz), Marília De Santis (voz
Mulher do Senador e Seringueiro
canção de ninar), Marcus Siqueira (violão,
Denise de Almeida - Sereia, Pernas, Sombra
guitarra, teclado e samplers), Ricardo Campello
de Vanda e Seringueiro, Ivan Kraut - Galego,
(didijeridoo), Thiago Cury (teclados e samplers)
Pernas, Gladiador, Cão, Oséias,
Coordenação Teórica e Dramaturgismo:
Vendedor de Poeira, Seringueiro e Senador
Sílvia Fernandes e Ivan Delmanto
(2005-2006), Luciana Schwinden - Zulema
Assistente de Direção Musical
Muricy/Tia Selma , Mulher de Jonas e
e Sonoplastia: Amílcar Ferraz Farina
Seringueiro, Marília De Santis - Jovelina/
Captação de Áudios: Thiago Cury (Brasilândia
Vanda, Princesa, Funcionário de Pedro Biló e
Brasília e Brasiléia, Centro de SP e Cantareira)
Seringueiro, Roberto Audio - Jonas
Operador de Som: Jayson Rocha (2006) e
Rodolfo Arantes - Douglas, Escriturário, Cão
Rafael Silvestrini (ensaios abertos)
e Fiel da Tia Selma, Sérgio Siviero - Dono dos
Auxiliar de Operação de Som: Daniel Lima
Cães, Sérgio Pardal - Barqueiro, Pedro Biló e
Técnico de som: Alessandro Gratão
Leal, Vanderlei Bernardino - Galego, Pernas,
Assistentes de Direção de cena: Carol Pinzan e
Gladiador, Cão, Oséias, Vendedor de Poeira,
Suzana Aragão (2006), Zan Martins (2007)
Seringueiro e Senador (2007)
Preparação Corporal:
Telma Vieira (voz off) - Tia Selma
Cuca Bolaffi (máscara neutra)
Assistente de Direção: Eliana Monteiro
Daniela Biancardi e
Desenho de luz: Guilherme Bonfanti
Luciana Viacava (análise
Direção de Arte e Cenário:
do movimento e jogo da máscara)
Márcio Medina
Inês Aranha (preparação do ator)
Figurinos e Adereços: Marina Reis
Canto: Laércio Resende
Criação e Direção Musical:
Concepção e Direção Geral:
Thiago Cury e Marcus Siqueira
Antônio Araújo
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TEATRO OFICINA UZYNA UZONA
HAMLET
C
omo encenar a morte para fazer a vida mais pulsante? Quando as desgraças correm uma no pé da outra, como cavar a poesia no meio delas, por maior que seja a tragédia? É possível fazer do teatro uma armadilha para revelar os truques dos poderosos? É possível transformar o maior vulto do cânone colonial no puro creme do milho
verde? Atenção! Não é de qualquer peça que estamos falando. É “Hamlet”, de Shakespeare. Ou, na montagem do Teatro Oficina, de 1993, “Ham-Let” – um presunto deixado à devoração da trupe faminta. Para digerir esse texto, ambientado na Dinamarca e escrito na Inglaterra da Rainha Elizabeth (por volta de 1600), o Oficina precisou descolonizá-lo, quando ainda não se falava muito nesse termo. Na gravação da peça ao vivo, em 2001, os momentos de maior verticalidade são os que abrem janelas de reflexões sobre o próprio teatro, metonimicamente, aludindo à tradição europeísta e também à estranheza de suas formas em terras tropicais. E isso quase sem alterar a estrutura do texto original. Com as contradições do Modernismo, descendente direto de Oswald de Andrade, falando do subalterno sem conviver horizontalmente com ele, louvando a urbanidade sem considerar a pobreza que ela gerou no Brasil, e sem esconder nenhuma delas, pelo contrário: tensionan-
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do-as até o limite. Um testemunho cênico de como destroçar e deglutir um clássico, tomando a Antropofagia por procedimento metodológico, e não como uma estética específica. O maior valor desse espetáculo é a ressignificação antropofágica de estilos até então engessados no Teatro brasileiro, inspirado pelo movimento contínuo do texto a força da palavra que se move entre a canção, o encantamento e a tragédia; e também pelo edifício singular projetado por Lina Bardi. Os bancos e cadeiras não pretendem acolher confortavelmente o público, que, aliás, não são entendidos enquanto espectadores, mas sim atuantes. Assim também é a câmera, que percorre todo o espaço como mais uma das atuadoras. A qualidade cênica de “Ham-let” é avessa ao comodismo e à reticência. A ideia é que as pessoas sejam convidadas a um exercício de travessia por diversos pontos de vista durante o espetáculo, locomovendo-se pelo espaço, habitando-o e ocupando-o. Não é à toa que a passarela do teatro é chamada de PISTA, onde os atuantes podem alçar voo. Até o teto se abre. Mas o fosso também, escancarando os subterrâneos. A morte, força pulsante nesse texto, ganha ainda mais relevo na encenação de Zé Celso. Logo no início, já vemos o enterro do Rei Hamlet, encarnado pelo encenador ele
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mesmo, que orquestra o próprio sepultamento1 – sabemos uma parte do teatro precisar morrer para todes renascermos conjuntamente da crise. Cada aparição do Fantasma desse Rei vem acompanhada por ritmos indígenas ao fundo, ecoando a frase devorada do inglês: “tupi or not tupi?”, em vez de “to be or not to be?”. Um jogo linguístico que expressa a crise da colonialidade na formação canônica do diretor há décadas, já consciente da falência do mundo instaurado pela colonização desde sempre. Entre tantas atrocidades, uma das consequências que ela nos deixou é cultura elitizada do teatro, incluindo desde as referências teóricas e dramatúrgicas até os corpos que, de fato, teriam direito de ocupar a cena na condição de seres humanos. A história das artes cênicas reconhecidas enquanto arte faz parte do extermínio simbólico que foi imposto sobre os diversos povos originários no Brasil. O Teatro Oficina se apropria de uma dramaturgia estrangeira para refletir sobre questões tão nossas, latentes desde José de Anchieta, eclodindo, nos últimos anos, em mobilizações ativas das pessoas excluídas historicamente do teatro. “Tupi or not tupi?”, ainda é uma pergunta necessária? Quando “Ham-let” estreia, existe uma potência histórica em reencontrar Zé Celso na figura do rei morto, após toda a repressão perpetrada 1 Junto a outro ator, negro, que, no início, parece encarnar o Rei Hamlet também, para, depois, ser só Zé Celso quem ressurge como Fantasma.
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pela Ditadura, momento traumático da modernização de processos coloniais em nosso país. É como se ele fosse o passado trágico do teatro brasileiro, edificado sobre cemitérios de povos originários, e Hamlet, a vingança antropofágica da cultura sobre todas as instâncias de poder que a formatam segundo interesses específicos, que não são nem os dos artistas, nem o da maioria da população. Tupi or not tupi? Ainda temos dúvidas quanto a isso? Ainda nos perguntamos se é possível afirmar as vidas indígenas e a herança que nosso país lhes deve. Tristes tempos, que ainda vivemos, em que as mortes de Hamlet ainda parecem dizer algo sobre as nossas. Quantos talentos não foram sacrificados pelo genocídio e pela censura? É o que as insinuações da encenação parecem nos convidar a refletir. Quanta gente não ficou de fora da História e da Cultura, fora de qualquer possibilidade que não fosse a morte? E quem ficou vivo para contar a história? Quem ficou faltando? No final do relato escrito por Zé Celso à exibição do espetáculo no FarOFFa, descrevendo a linha de ações da peça, está: “Neste breve Relato faltam, entre muitas outras, as Ações de Ham-let com Fortimbrás Príncipe de um Reino Vizinho em constante Luta com a Dinamarca, País Podre de Ham-let”. Entre essas muitas outras ações ausentes estão algumas que é preciso
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destacar: a cena da trupe, quando Denise Assunção e Zé Celso interpretam Rei e Rainha na peça escrita por Hamlet para flagrar a culpa do Rei – parece dizer algo mais sobre os dias de hoje assumir os papéis de rainha e rei de um tempo mítico-ritual para desmascarar rainhas e reis decadentes da realidade. A música brasileira é fundamental na compreensão desta e de outras cenas, pois a canção se faz um mover-se entre palavras, pela qual afirma-se uma poética do corpo vivo. Um tremor essencial. Há também a famosa cena dos coveiros, na qual Denise Assunção e Paschoal da Conceição dão um baile, recriando um dos momentos mais emblemáticos do teatro: a cena do crânio em mãos. Nesse momento, revela-se em sua máxima potência o substrato revolucionário que dificilmente as montagens de Shakespeare conseguem trazer em ação, e não só em discurso. A palavra como gesto que sustenta nela a ação sempre em espera, característica de Hamlet em Shakespeare, é reconfigurada nessa montagem. Aqui, a ação supera o discurso e o torna exigência de uma presença que se faz ativa, assim como a dinâmica arquitetônica do espaço. A urgência da implosão de estruturas teatrais antigas, fixas, morosas, remete a um estado de ser já manifesto por Glauber Rocha em “Uma Estética da Fome”, de
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1965. É fato que há instantes da peça, quando alguns atores – parecidos fisicamente entre si – confundem-nos sobre as intenções guardadas por debaixo de palavrórios cumpridos, elétricos, mas de difícil apreensão. Essas escolhas refletem o arbítrio pessoal do encenador na configuração do elenco. O espetáculo do Oficina parece tão clássico, contudo, é sobre exploração e genocídio, é sobre a derrocada de nosso mundo – a referência ao personagem Ham, de “Fim de Jogo”, de Beckett, no título “Ham-let”, já diz. Há entre nós um fantasma deixado pela Ditadura e pela colonialidade, autoritário, daninho, incapacitado de se mover por força própria. “Ham” também significa presunto, e nenhuma ambiguidade é à toa no Oficina, ainda mais se considerarmos o deboche transgressor e cuir de Zé Celso. Há entre nós um defunto vivo, totalitário e contagioso, que depende de subjugar os outros para manter o mínimo de sua sobrevida. Ele estava no meio da sala na década de 90. E ainda está. A única diferença é estar um só pouco mais cordial. “Ham-let” o localiza e encena sua destruição. Para compreender esse espetáculo, que não se apropria do universo simbólico das culturas perseguidas no Brasil, tanto quanto depois vimos em outros espetáculos do grupo, é preciso observar como ele toma a cultura europeia e a revira do avesso. Aqui, não há, como em outros teatros, esse lugar de obediência e sacrali-
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zação do dominante, mas sim uma ode à irreverência (que alguns chamariam de canastrice) e ao pensamento tático – o que, aliás, tem muito mais a ver com o texto. Hamlet precisa calcular suas atitudes, se propondo a métodos que os nobres veem como loucura. Isso é agir com estratégia: ainda que a ação pareça em suspenso, ela acontece no subterrâneo, mesmo invisível ela pulsa nas vísceras-combustíveis para o cálculo da mente expandida - o corpo físico e cósmico por inteiro. Por isso “Ham-let” também é uma peça sobre o fazer político de artistas cerceades. Mais de cinco horas de um acontecimento que aproveita de uma forma requintada e eufórica esse espólio de guerra: a dramaturgia shakespeariana. O bom, apesar da duração, que enfastia a ansiedade de determinadas almas, é ,desde 2001, o grupo já pensar a linguagem do vídeo dentro do espetáculo, o que nos dá agora a possibilidade de assistir uma gravação de qualidade inacreditável para a época em que foi feita.
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FICHA TÉCNICA direção: tadeu jungle & elaine cesar
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luciana domschke, leticia coura,
e wagner granco
flávio rocha, fernando coimbra,
coro de luz: aline santini, vanessa
sylvia prado, alessandro silva
poitena, allan milani, feu andrade
direção de imagem: hugo prata
e marcelo gazotti
operador de som: paula ribeiro
direção de fotografia: carlos ebert
participação especial: renée gumiel
sonoplastia: zero freitas
montagem: talles martins, caio
piano e teclado: ana paula cordeiro
fioravante almeida
cobra, josé celso martinez corrêa
bateria e percussão: deco
preparação corporal: renée gumiel
assist. de direção: milton de oliveira
guitarra e violão: pablo casella
direção vocal para dvd:
decupagem: camila mota
baixo: fabio effori
lucia helena gayotto
fernando coimbra
música e direção musical:
preparação vocal para dvd:
produção executiva: paulo schmidt
péricles cavalcanti
alessandra zalaf
maria clara fernandez
massacração da primavera:
preparação coreografia:
equipe prod. executiva: fabio zavala,
zé miguel wisnik e 4 estações
claudio gonçalves
cristina fantato, romulo errico
trilha sonora: jose celso
preparação de circo: verônica
coord. de produção: tais caetano
martinez corrêa
tamaoki, jailton carneiro e denise wal
direção de produção:
video: fernando coimbra, tommy
cenotécnico: franklin araújo
wellington silva ‘pingo’
pietra e mauricio shirakawa
1º assistente de direção de arte:
produção: luiz antonio armesto
direção de arte e cenário:
ricardo costa
assist. de produção:
helio eichbauer
2º assistente de direção de arte:
rodrigo de souza
direção de arte para dvd:
maira ramos
A peça:
cristiane cortilio
maquiador: fabio rodrigues
autor: william shakespeare
figurinos: caio da rocha
projeto gráfico: arthur lescher
direção: josé celso martinez corrêa
figurinos e objetos: denise assunção
horácio sei e marcia pastore
tradução: nelson de sá
rosencrantz, hécuba, 1º atriz, coveiro
revisão do texto: alfredo tambeiro,
josé celso martinez corrêa
iluminação: cibele forjaz
flavio rocha e vadim nikitin
marcelo drummond
diretora de cena: elisete jeremias
assistentes de produção: roberta
elenco:
camareira: cida melo
koyama, iris cavalcante
marcelo drummond, zé celso, denise
e daniela maximo
produção executiva:
assunção, pascoal da conceição,
operador de vídeo:
henrique mariano
gisela marques, walney costa, vadim
mauricio shirakwa
direção de produção:
nikitin, fernando alves pinto, adão
operador de luz ricardo morañez
marcelo drummond
filho, fransérgio araújo, camila mota
técnicos de luz: sidnei sergio rosa
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VANESSA NUNES
NEBULOSA
“A cada cem metros o mundo se transforma”
O
Bolaño, 2666
espetáculo começa junto a um princípio de incerteza: existe um público acumulado que não vemos, aí, diante a imagem qual vemos? Ou seja, somos parte de um todo ou somos jogados diante de algo que cada uma tem de elaborar trabalhando individualmente?
Como espectadores, assim como a câmera que registra, estamos de frente observando uma sala com uma única mulher esperando em um canto. Sem perceber, a escolha de para onde olhar é limitada por aquela câmera. Isso, em suma, nos transforma em observadores cúmplices daquele corpo em espera. A única coisa que vemos é isso. Ela está e estamos nós, porém ela não nos vê, nunca rompe a distância desse artificio. No entanto o que acontece vem das profundezas da intimidade. Há algo no olhar imposto por esse registro que configura uma posição: o de ser-
mos alheias. É uma posição estritamente espectadora e desconfortável reforçada por não encontrarmos os olhos de outros espectadores no mesmo espaço da sala. Não podemos fazer nada por aquela que está ali. Ou melhor: o que fazemos é alguma coisa, só não é suficiente para construir uma comunidade, se organizar. Apenas olhamos à dor dos outros, o sofrimento, a resistência como espectadoras que somos. E isso também nos transforma em captoras. Observar à distância - produto de não fazer parte de um público, mas de ser um grupo de indivíduos
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que cumpre o papel de público - produz um duplo efeito de cumplicidade. Olhar para algo íntimo e privado dá o poder de decidir: ficar quieta no futuro, ou fazer. Diríamos: um segredo aberto. E, como tal, coloca-nos no lugar de questionar quem mais sabe dele. O bom das performances e da dança performática é, além das milhares de possibilidades e estilos, possuírem uma linguagem particular. Os movimentos, o ritmo, as expressões, a troca do corpo com o espaço - sem o uso da palavra -, o efeito de choque, despertam identidades adormecidas, sentimentos latentes, reflexões inconclusivas. Propõem outra lógica de leitura e outras leituras. E aí a mágica acontece. Nesse caso, somos lembradas o corpo ser um instrumento político de luta, além de ser sempre um instrumento de resistência. Talvez vê-lo - quase obrigadas, já que se afastarmos os olhos do lugar nos encontraríamos com o fora de campo, ou seja, o vazio – desafie-nos tanto que nos ressoe com algo estrutural. Talvez ver isso nos remeta simbolicamente para outro lugar: o lugar de quem não quer ver de fora, mas sim agregar forças à resistência, participar da luta. O lugar de quem se questiona sobre a universalidade dos direitos e seu paradoxo, pois convive com os limites de aplicação aos corpos que não possuem privilégios - concedidos por origem, por cor, por classe, por imposições de gênero.
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Durante quarenta minutos, a performer Vanessa Nunes desliza no pequeno espaço que lhe é imposto de fora. Um refletor de luz artificial é apontado para ela, mostrando todo o seu corpo modificado pelas formas do calor. Às vezes, pode-se ver o reflexo de uma janela, como se um pouco de luz natural fosse filtrada nesse tipo de célula. O deslocamento no breve lugar é significativo pois, se pensarmos nos grandes movimentos de imigração que nos representam como territórios latino-americanos, o que a obra fala é, em suma, a dialética entre adaptação e resistência ao espaço. Querer as coisas diferentes é um desejo genuíno e a mobilização para isso, como premissa para a mudança, é um direito. O deslocamento, o corpo, os movimentos amargos adquiridos, à medida em que o trabalho avança, e a imposição do olhar remetem a uma ideia de cativeiro. E aqui nos perguntamos por quê. A primeira resposta é, mais do que um argumento conclusivo, um indício de onde vem. Já dizia a música de Elza Soares (com letra de Marcelo Yuca e Seu Jorge): “a carne mais barata do mercado / é a minha carne negra/ que vai de graça pro presídio / e pra debaixo do plástico / que vai direto pro subemprego / e pros hospitais psiquiátricos (...) que fez e faz história / segurando esse país no braço”. Há um universo histórico e identitário que ressoa e revive diante da atual conjuntura brasileira. É sabido a violência institucional
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e policial atacar a carne negra. E se você é uma mulher feminista, negra, bissexual e filha da favela, isso te mata. É sabido a liderança atual ser assassina, não só pela negação de um planejamento sanitário para seu povo, de acordo com a situação mundial qual vivemos, mas pelas ideias misóginas, xenófobas, classistas e racistas que a caracterizam. Obviamente, todas estas questões são eco da proposta da “Nebulosa”, que, depois de mostrar uma imagem em movimento, convoca-nos a pensar a importância da nossa própria história cultural e familiar, na descendência, no deixado como vestígios da nossa existência, do nosso percurso, do que ganhamos à custa da luta, do que nos tiram contra a vontade. Como argentinos, sabemos nosso país ter sido formado pelos golpes genocidas do presépio latino-americano e promoção da imigração seletiva. Negar essa origem é o início do racismo que caracteriza este território. Por isso, este trabalho também nos desafia na hora de escrever. Como dissidentes e mulheres latino-americanas, como parte dos processos cíclicos de nosso continente, numa época em que há sucessos e avanços - como o fim da constituição pinochetista - e também reaparecem a direita mais conservadora -como a firmeza de Trump nos Estados Unidos -, estamos em condições de dizer ser este tipo de trabalho necessário, sua mensagem não ser regional, mas transversal a todo o solo latino-americano.
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Nebulosa é o resultado do trabalho colaborativo entre a performer Vanessa Nunes e o artista visual Arthur Doomer iniciado em 2017. O registo não mostra o público presente e essa ausência nos faz pensar em algumas coisas: no distanciamento entre a proposta e a sua concretização, na ressignificação do que foi filmado por ser a única possibilidade de assistir à obra, pois estamos a dois dias de carro do centro do Brasil, por enquanto; nos sentidos liberados pelo corpo em movimento, possivelmente em cativeiro, e passados por uma lente que é, por sua vez, um recorte. Implica não poder ver mais nada no espaço do espetáculo. Implica ser espectadora, sempre cúmplice da protagonista e às vezes cúmplice do carrasco - o que nos obriga a fazer um movimento de escolha. Seja como for, Nebulosa leva-nos a perguntar muitas coisas e a reafirmar outras, sobretudo, o que somos e o que valemos, em um mundo abalado, onde, atualmente, exige uma revisão urgente das suas práticas e valores estagnados e cheios de pó.
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FICHA TÉCNICA Performance: Vanessa Nunes Criação Compartilhada: Arthur Doomer e Vanessa Nunes Produção: Arthur Doomer / Escuro FOTOS CAIO BRUNO E ADAEZE NINWEZE
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Fotografia: Adaeze Aninweze
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WAGNER SCHWARTZ
TRANSOBJETO
“I
f you hold a stone/Hold it in your hand/You feel the weight/You’ll never be late/To understand”. Na música “If you hold a stone”, Caetano Veloso repete, durante seis minutos, esses versos. “Se você segura uma pedra/Segure-a na sua mão/Sinta o peso/Você nunca se atrasará para entender”. Ao longo da música, ouvimos a in-
terferência de “Marinheiro só” em vozes femininas. O músico propõe uma contemplação. Há algo para entender, não é possível dizer o quê, mas há algo para entender. Para isso, é preciso apenas estar parado com a pedra na mão e sentir seu peso. A música lembra um processo meditativo, no qual, através do silêncio, atinge-se um nível mais profundo de compreensão. Alguns estudos apontam, inclusive, a modificação de estruturas e funções cerebrais na Meditação. A tal compreensão se dá por meio do desligamento do pensamento - ou da tentativa de, já que “parar de pensar” é impossível. A contemplação consiste em deixar os pensamentos passarem, irem embora, sem se apegar a nenhum deles. Existe, nisso, a intenção de “desligar” a racionalidade, de acessar o conhecimento através de outras vias, ativando e observando o que chamamos de intuição. Wagner Schwartz inicia Transobjeto segurando uma pedra. Em seu site, a sinopse do espetáculo consiste em
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“Um homem-placa entra em cena, fica nu, vira bicho, artista e modelo, canta, bebe, dança e fuma um cigarro”. “Homem-placa” é uma referência a seu primeiro figurino, uma reprodução das placas de propagandas vestidas por pessoas na rua, porém feita de palha, lembrando uma esteira de dormir. Em sua mão, a pedra já não parece contemplativa. Ou parece isso também. É difícil decidir se o artista irá atirar a pedra ou apenas segurá-la (até entendê-la). O conteúdo político é inegável. Ainda mais quando, em determinado momento, soa no espetáculo a frase “Incorporo a revolta”, escrita em um dos Parangolés de Hélio Oiticica. Mesmo assim, a música de Caetano toca, deixando a dúvida se a ação cresce para dentro ou para fora. Além de Oiticica, Wagner também traz para o espetáculo a referência de Lygia Clarck com seu Objeto Relacional. O conceito era usado pela artista para produzir experiências corporais por meio de objetos. Em Transobjeto - a julgar pelo seu nome - os objetos cênicos também são essenciais à proposta, criando no espetáculo um híbrido entre teatro, artes visuais e dança. No tocante à dança, uma das imagens mais emblemáticas e duradouras do espetáculo é o momento em que Schwartz enfia a cabeça entre as pernas, criando uma es-
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pécie de animal. Mais uma vez, uma imagem que parece negar o pensamento, a racionalidade, fazendo o convite para uma abertura de sentidos. A cabeça é cortada, o que resta? A relação de uma experiência sensorial promovida pelo artista, por exemplo, no encontro com diversas frutas tropicais dispostas no palco. O “transobjeto”, por sua vez, é um termo criado por Hélio Oiticica para designar novos objetos criados com materiais pré-existentes. Trata-se da incorporação de um objeto do mundo cotidiano na criação de um outro, no caso, a obra de arte. Mas, para além disso, Oiticica se refere a essas criações como um ato de situar o objeto fora de seu uso comum e incorporá-lo a uma ideia. Aquilo que antes poderia ser utilitário, passa a fazer parte da gênese da obra. Dessa forma, ele adquire um caráter transcendental: “participa de uma ideia universal (a obra) sem perder seu caráter anterior”. O espetáculo faz uma leitura desses conceitos incorporados ao corpo, ao ato da dança. Wagner também se utiliza de objetos no espetáculo. Alguns deles, parecem não fazer qualquer sentido e nem fazer parte do todo: pedra, frutas, guarda-chuva, um vestido vermelho. Contudo, é no misto entre relação com esses materiais e com seu próprio corpo que Transobjeto - a peça - adquire significado. Percebe-se também uma tentativa de relação com o
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Brasil. Seja nas frutas tropicais, seja na música final, uma referência direta ao movimento da Tropicália. As referências para leitura são várias, bem como as imagens criadas por Wagner com o próprio corpo. Uma mistura de conceitos cujo mote são os objetos. Seja nas ideias criadas por Clarck ou Oiticica, é a relação com eles colocados em embate com o corpo que conduz a experiência proposta no espetáculo. Trata-se, portanto, de um experimentar. Dos objetos, do corpo físico e de ambos juntos. Essa experimentação, por sua vez, cria imagens, cuja construção não parece passar por uma narrativa linear. Não é possível, no espetáculo, se apegar a uma “história” ou linha dramatúrgica. Não se pode fazer nada além de se desapegar dessa “muleta”. Não há nada para se apegar, aliás. Voltamos, aqui, à ideia da Meditação. Em sua música, Caetano sugere que alguém segure uma pedra em suas mãos, sinta seu peso, segure-a por tempo o suficiente para entender. O mesmo é proposto por Wagner em Transobjeto. Que os espectadores fiquem ali tempo o suficiente - e dispostos o suficiente - para entender. O que exatamente, não importa. Mas, alguma coisa pode ser compreendida. No processo meditativo, desliga-se o lado mais racional
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do cérebro, aquele ligado à nossa sobrevivência. Aquele que faz questão de entender e avaliar todas as possibilidades, que não admite o vazio, a falta de lógica. O que resta saber, em relação à Transobjeto, é se é possível meditar com uma pedra na mão.
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FICHA TÉCNICA Concepção e performance: Wagner Schwartz Direção técnica, iluminação: (2004) Alexandre Molina, (2014) Diego Gonçalves Objetos: Caroliny Pereira, Fauster Martins, Ciro Schu Remontagem (2014): Ana Teixeira, Cláudia Müller Produção: Gabriela Gonçalves/ Núcleo Corpo Rastreado Realizado com subsídio do Rumos Itaú Cultural Dança 2003/2004 (São Paulo/SP) FOTOS GIL GROSSI
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Palco de Arte (Uberlândia/MG)
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ANNA MAGALHÃES É graduada em Licenciatura em Letras pela UNESP São José do Rio Preto, cidade onde reside. Artista multimídia, suas produções passam pela escrita, arte visual e performance. Atua em ações literárias, publicações, workshops e palestras. Foi cronista do jornal Diário da Região entre 2014 e 2019, desde 2015 participa do coletivo poético Pretas PalaBRas, em 2017 fez parte da publicação “Baiacu”, editada pelos cartunistas Laerte e Angeli, em 2019 integrou o time de críticos do Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto (FIT) e a partir de 2020 iniciou como instrutora do curso de Literatura dos Núcleos de Artes e Cultura de Rio Preto.
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AVE TERRENA Aprendeu a fazer teatro vendo as peças nas sedes dos grupos no início do milênio, perdendo o último metrô pra voltar pra casa e virando as noites no centro de São Paulo. Poeta desde que aprendeu a ler o mundo e os textos, encontrou no fascínio pelas palavras um modo de resistir às violências do cotidiano, reexistindo nele e, assim, desafiando-o. Alguém que atravessa as diversas perspectivas oferecidas pela arte, escrevendo, atuando, dirigindo, e, agora, refletindo sobre as peças. Professora há dois anos da Escola Livre de Teatro de Santo André, têm voltado suas pesquisas para a performatividade da cena e para Memória em suas facetas da Transcestralidade, da Presença e da Pertença. Integrante dos grupos LABTD e Queda para o Alto. Valoriza o prazer da convivência e o fervo, gosta da coletividade e acredita em seu poder transformador. Os momentos em que mais se inspira é quando está correndo na rua.
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FLORENCIA D’ANTONIO Estudou letras. É professora do ensino médio e dá oficinas literárias no contexto do isolamento. É também produtora de eventos culturais. É inclassificável, exagerada e barroca, gosta da intertextualidade, o flash, mesclar o elegante com o informal. Se entedia fácil. Para elas, as biografias são difíceis.
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GUADA GOLD Aprendiz de alguns idiomas, canta, toca violão, pratica yoga e treina o movimento corporal consciente. Foi uma das selecionadas por dois anos consecutivos do Programa de Jovens Jornalistas do Teatro Nacional Argentino - Teatro Cervantes. Entra em cena ou se senta pra escrever resenhas? É parte do elenco ou faz entrevistas? Na verdade, ela ainda não sabe de que lado da sala pertence. Se formou na Escola Osvaldo Pugliesi com Orientação em Meios de Comunicação e graças a essa instituição pública quando sai do teatro se senta a escrever e às vezes se pergunta como seria dirigir. Atualmente estuda Encenação na EMAD.
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JULIETA ZETA Destinada ao teatro por antroponímia (espera que com um final menos trágico). Formanda em Artes (UBA - Universidade de Buenos Aires). Estudou atuação e direção de atores com Augusto Fernandes, Alberto Segado e Beatriz Spelzini. Improvisou no HB Studio de Nova Iorque. Trabalhou na Pol-ka. Não se define por um lado da cortina, tem experiência como atriz, diretora, produtora, gestora e espectadora. É astróloga, ama viajar e prefere gatos a cachorros.
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LAURA PETRACCA Graduada e Professora em Artes Combinadas (UBA). É do oeste - onde está “el agite” - por isso se acostumou a viajar para se aproximar do teatro como espectadora e estudante de atuação. Fã da internet, da rádio, dos gatos e da boa comida. Diria que seu grande prazer culposo são os musicais, mas não sente nada de culpa em relação a isso.
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MARIA TERESA CRUZ Também conhecida por Tetê, tem 35 anos, é formada em jornalismo e apaixonada por teatro e artes plásticas. Empresta sua voz para ler notícias e fazer comerciais e institucionais. Tem apreço pelas palavras mas tem gostado mais do gesto do que do verbo. Colaboradora desde sempre e quando possível da revista Antropositivo e uma das 18 jornalistas da América Latina escolhidas para o estudar novas narrativas possíveis em um mundo pós pandemia pela Cosecha Roja e revista Anfíbia, da Argentina.
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RAMILLA SOUZA É formada em Comunicação Social, além de ser escritora e atriz. Nascida em Natal/RN, reside em São Paulo a sete anos, período no qual tem se dedicado principalmente ao teatro. Escreve desde a adolescência, sem nunca ter parado de explorar a linguagem em suas várias vertentes. É atriz, dramaturga, dramaturgista e assistente de direção de diversos trabalhos na cena paulistana.
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VICTORIA CASAURANG Chegou no teatro pela vontade de conhecer os caras que via na televisão. Essa mesma curiosidade a levou a muitas coisas. É formada em Jornalismo, locutora e faz um mestrado em Crítica e Difusão das Artes (UNA). Gosta de contar histórias na câmera, no microfone e de escrever, especialmente depois de ver um espetáculo de teatro. Gosta do papel de espectadora e, fanática de Buenos Aires tenta convencer a todos que é a melhor cidade.
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