Antro Positivo_Especial VERBO 2018

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14a mostra de performance arte

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verbo caderno especial_


crítica dentro verbo 14ª edição de 03 a 07 de

julho de 2018

_direção artística marcos gallon _seleção de projetos ana teixeira & marcos gallon _seleção de artistas mexicanos rodrigo campuzano samantha moreira

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editores _ruy filho [texto]

_patrícia cividanes [foto + arte]

realização

agradecimentos eduardo brandão eliana finkelstein gabriel zimbardi galeria vermelho jan fjeld

antro positivo é uma publicação digital, com acesso livre, voltada às reflexões sobre artes da cena e pensamento contemporâneo. www.antropositivo.com.br

para comentar, sugerir pautas, reclamar, colaborar, alertar algum erro ou apenas enviar um devaneio: antropositivo@gmail.com aqui anonimato não tem vez. quem tem voz, tem também nome e é sempre bem-vindo

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ENTRE O DISCURSO E O CONVITE D

ezesseis anos atrás, surgia em São Paulo a Galeria Vermelho. Trazia consigo uma geração jovem de artistas, alguns do ambiente universitário, e tam-

bém nomes consolidados, além dos advindos das salas e laboratórios artísticos que Eduardo Brandão promovia na Escola Terceiro Andar. O belo e simples projeto arquitetônico de Paulo Mendes da Rocha e José Armênio de Brito incrustou a galeria entre prédios tendo por companhias próximas a Rua da Consolação e avenidas Paulista, Doutor Arnaldo, Rebouças, Angélica, dentre tantos outros ícones

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históricos da malha urbana paulistana. Estamos na Minas Gerais. São Paulo tem esse humor em confundir os distraídos. Carrego comigo a especificidade desse dia, ou desses, pois serão vários. Circularão aqui ex-professores, colegas de sala de aula, amigos, conhecidos distantes, desconhecidos, artistas diversos. Bom, já de início, portanto, contrario aos que acusam enfaticamente qualquer envolvimento do crítico com o material em observação. Sendo cada escolha inerente aos anseios e desejos de quem as faz, então o crítico não deve isentar-se ao escolher seus assuntos. Minha ação é reorganizar o contexto ao qual me inseri, década depois das já longínquas aulas na faculdade de artes plásticas, chegando ao presente como crítico de teatro e dança para falar sobre produções de performances mais próprias (e não só) das artes visuais. Esse gesto implica em uma provocação que confronte certas expectativas colocando-me em estado de risco fundamental ao propósito: o quanto é viável aproximar o olhar a uma linguagem por meio da compreensão de outras? Defini, e com isso exponho o que o leitor encontrará aqui, permanecer por quatro dias na Galeria - duração do acontecimento, a Verbo -, escrevendo sobre o que vier, perpassando as criações a partir de minha própria transformação emocional, física e cognitiva. Uma escrita que surge pela insistência da presença consciente de ser impossível estar na totalidade dos instantes. Também por isso, retomo o começo, recrio-o, pois é preciso primeiro chegarmos à Vermelho para termos um início. Finjamos estar à caminho daqui. Pausa: à minha frente, passa uma pia completa em alumínio conduzida por dois homens vestidos integralmente de preto; nada é dito, não sou notado, e o átrio externo permanece vazio por alguns minutos mais. Não há nada que explique o fato, só ele mesmo em sua naturalidade. E eu pensando que, nesse instante, preparo-me para as performances que virão. Talvez volte a essa imagem adiante. Talvez não.

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Como disse, preciso chegar à Galeria, antes de tudo.

Um dia essa informação escapará: hoje, nesse 2018, acontece a Copa do Mundo na Rússia. O Brasil, como era de se esperar, em parte se revolta com a seleção, como se o futebol fosse culpado pelo caos ao qual fomos conduzidos nos últimos anos, misturando os assuntos sem preocupar-se com o mínimo de coerência; outros, por sua vez, alienam-se apaixonadamente, como se uma bola pudesse resolver o insolúvel. Tenho inveja do segundo grupo. Está frio, e as pessoas chegam lentamente envoltas e acomodadas em seus casacos, xales e alguns poucos cachecóis. Eu trouxe o meu e tem sido útil. As ruas próximas buzinam, mesmo não havendo motivos relevantes, mas é Copa e isso basta. Entramos, Patrícia e eu, encontramos Eliana Finkelstein e Eduardo Brandão, diretores da Galeria Vermelho; falamos rapidamente disso e daquilo, e sigo à sala aonde algumas palestras performances acontecerão. Acontecem, na verdade. Elas lá, eu aqui (eu sei, deveria estar lá), no entanto, os assentos e corredor ocupados refletem um ótimo início da Verbo. Quando uma palestra lota?, pergunto. É uma palestra performance, responde Marcos Gallon, diretor artístico da Verbo. De fato. Rimos. E, exatamente por isso, é preciso observá-la em seus ambos ângulos. Na sala escura, tendo projeções como ambientes, os palestrantes parecem ler. Minha visão é mínima

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e inviável. Decido permanecer um pouco apenas escutando. Volto-me a esse processo de tempos em tempos. As palestras trazem uma qualidade singular ao evento por suas capacidades de agirem como dispositivos à exposições performativas de ideias. Todavia, ao menos ao ouvido, ainda se estruturam por retóricas consolidadas por uma suposta formalização acadêmica, em que o fluxo de pensamento habita a perspectiva de uma conclusão apontada desde o início e que, pelo percurso, será defendida. Teses, portanto. Acompanhadas por imagens, a palavra sobrepõe-se ao imagético tanto quanto é em simpósios ou os TEDs tão em voga. As imagens, por fim, estão ali para comprovar ou, ao menos, exemplificar a tese defendida sem que estabeleçam sobreposições, desvios, ampliações ou contrapontos. Se, por um lado, o interessante está na abordagem do coletivo Depois do Fim da Arte aos recortes apresentados: Corpo, Trabalho, Arquitetura e Coisa; por outro,

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o viés performativo se esvazia diante ao formalismo. Quanto pode a performance ser apenas o dizer algo a alguém não precisa ser questionado, está confirmado por inúmeras experiências de artistas extremamente diversos nas artes cênicas e visuais. Todavia, a performance, diferentemente do dramático, implica ao observador ampliar sua presença com igual relevância ao acontecimento. Uma reflexão, por si, pode ser acessada, lida, absorvida de muitas maneiras. A performance palestra, enquanto linguagem, não deve ser plausível em nenhuma outra possibilidade que não a de seu instante. Para tanto, é preciso o modo de operação da apresentação exigir do ouvinte sua presentificação enquanto parte do todo, ainda que silencioso e não literalmente participativo. Do contrário, uma palestra será apenas uma fala; diferente de uma palestra performance e seu querer performativizar (e não performatizar) o ouvinte. É preciso mudar a estrutura para lhe provocar nova intencionalidade, é verdade, todavia, nem sempre manter o formalismo significa necessariamente errático, não se trata disso. Mas como lidar com o acomodamento do ouvinte que, uma vez lhe dito se tratar de uma palestra, a ela se coloca distanciado? Por que uma palestra é sempre alguém para alguém? E haveria como ser diferente? Por que uma palestra é sempre algo a alguém? E por que esse algo é quase sempre descritivo e analítico? A lógica de estruturar a retórica implica em suprir da própria ação a experiência performativa; ao tempo em que, as abordagens, mesmo quando mais inesperadas, aprisionam-se sistematicamente a ela levando as falas a parecerem apenas resumos, explicações, traduções, apresentações, revelações, definições, defesas. A sala lotada convida à escuta e, como eu, outros permanecem próximos à entrada dedicados a ouvir. Olho ao redor e percebo o quando qualquer performatividade pretendida ali não está explicitada. Afinal, ouvir sem precisar assistir é sinal do quanto a ação se bastou pelo intelectual. É a menção da expressão “material pornográfico”, já iniciando

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a segunda fala, que move uma dezena de curiosos a querer entrar, seja como for. E conseguem. Enquanto o palestrante discorre sobre o uso da pornografização do sujeito pelos diversos artifícios contemporâneos como meio de manipulá-lo e submetê-lo, o interesse imediato pelo convívio com tais imagens explicita o contraponto de ser apenas isso mesmo o que alguns querem ali. Provavelmente, o palestrante não saberá disso, dificilmente terá tido a oportunidade de ver o movimento que suas primeiras palavras produziram. De fora, a performance que pretende ser a exposição da pornografização parece ter sua lógica invertida pelas pessoas que performatizam seus interesses por mais corpos, nus, sexos, erotismos e pornografias. A realidade acaba por validar os argumentos e importância da palestra ocorrer, enquanto, paralelamente, nega sua intenção e relevância sem o menor pudor.

Está muito mais frio agora. Algumas pessoas mais e o átrio passa a ser ocupado. Na pausa para tentar encontrar respostas às perguntas que eu me fiz, sem consegui-las, lembro que deveria ter trazido minha garrafa de café. Teremos outro dia com palestras performances, quem sabe, até lá, as respostas surgirão, penso. De certo modo, ouvir, presenciar as palestras modifica o sujeito por seu deslocamento mais ao analítico do que simbólico. É nesse estado, então, excitados intelectualmente, que as pessoas voltam ao convívio pela Galeria e à espera das próximas ações.

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Até a mulher negra gritar: “A cada 11 minutos, uma mulher é estuprada no Brasil”. Surge de repente. O silêncio consequente ao susto de como a informação se dá e ao seu conteúdo é inequivocamente imediato, parece mesmo ser necessário para dar conta da complexidade no berro. A alteração da ambiência acomodada em que estávamos produz um efeito interessante. Muitos ali traziam consigo a excitação intelectual das palestras, estão mais sensíveis ao exercício da reflexão. Contudo, dura quase um minuto, e as pessoas voltam às suas conversas, sorrisos, abraços e bebidas. Será esse o tempo de indignação social quando

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uma mulher explode sua revolta por ter sido abusada e estuprada? Se a ideia era surpreender, seria preciso se ater ao fato da performance (cujo intento se realiza melhor aos desavisados, é evidente) estar anunciada de muitas maneiras: site, Instagram, programa impresso, intitulada e descrita na janela, esclarecendo não ser tão casual quanto Dora Longo Bahia provavelmente pretendia. Havia os que aguardavam o grito, havia câmeras e fotógrafos posicionados para registrar o instante e que praticamente denunciavam quem gritaria aos mais atentos, havia conhecidos da performer. Havia, por conseguinte, uma expectativa pela recepção e não pela ação, nesse primeiro momento. O grito veio no exato instante previsto pelo cronograma oficial. A hora era aquela. Estar nomeado ou não na programação, enfim, significaria definir qual a real radicalidade se pretende com o gesto. Para se chegar ao inesperado, ao enigmático, seria fundamental

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a performance não existir oficial. Para não existir, seria necessário os artistas abrirem mão da memória de sua participação no evento. Abrir mão de registrar-se significaria desprodutificar a ação em definitivo, ou, de modo mais direto, desprodutificar a mulher negra como uso a um instante. Em uma complexidade léxica mais absurda, seria performatizar a performance na potência de seu próprio argumento. Dora fingir não saber o que acontecia foi mesmo divertido, quando muitos ali sabiam, pois estavam informados, e alguns olhavam à artista, e não à performer, durante o grito. Inclusive eu. A performance Maria da Penha insistia, ao seu modo, no uso da racionalidade do espectador, querendo-lhe a percepção das tantas camadas existentes em uma única informação. Só saímos pela primeira vez do racional rumo ao simbólico com a próxima performance: Ritos Estructurales. Ao apenas trazer o andar sobre um chão construído geometricamente com carvão, cimento e cal, Emanuel Tovar inverte a urgência do pensamento objetivo para o de convivência, abrindo espaço para uma narrativa sobre si e a estrutura onde está. Andar deixa de ser um gesto, torna-se o mecanismo de destruição e recriação das partes contaminadas em materialidade, arquitetura, rigor e ordem. É sua referência aos Cadernos sobre pintura do artista mexicano Clemente Orozco, Não se espera que os pós subam e tomem a sala e a tridimensionalidade que ampliara a pintura, agora vê por sua própria qualidade

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material levada à ambiência. Tosses, risos, pessoas saindo às pressas, incomodadas, pessoas disfarçando o incômodo. A questão surgida é o quanto os presentes se inquietam ao terem a ordem cômoda do início desfeita, uma vez que a instauração e recriação da nova requer seu desconforto. Investigar a relação escultórica com os materiais por meio de sua presença estabelece um jogo particular aos movimentos por variações de direções, vértices, retrações e pausas. Assim, Emanuel faz do corpo do performer Alexandre Magno, a quarta matéria em recriação. Somos contaminados pelo exterior e distraídos. Outros gritos ocorrem, eles virão de onze em onze minutos. E é evidente: cada vez menos provocam silêncios. Os presentes se acostumaram rápido demais com a mulher gritando. A ideia de repetir o grito diminui o seu impacto a cada vez, logo se sabe se tratar de uma performance. Pergunto-me o que aconteceria se tivesse sido apenas único e a atriz simplesmente se retirasse sem não mais voltar? Será que estariam os que a presenciaram conversando sobre algo inesperado e não sobre uma performance? Isso também dependeria dos artistas desistirem de seus reconhecimentos, afinal, seriam poucos os que presenciariam. Optou-se pelo evento e não pelo acontecimento e, na tentativa de ser real, revelou-se somente um esbouço. Emanuel, por não insistir em provocar a própria realidade, ao contrário, apenas a assumindo como dada e inerente, acaba conquistando mais curiosidade sobre quem e qual corpo é esse em ação. São maneiras de lidar com os contextos: uma disputa pelo o quanto o corpo precisa no contemporâneo ser ainda literal para ser real, o quanto a realidade ainda precisa ser organizada por códigos de realidade para ser compreendida. Em Maria da Penha, Dora expande a realidade sobre ela mesma e acaba por teatralizá-la, o que leva a perde-la quase de imediato. Em Ritos Estructurales, Emanuel disponibiliza a presença e, por não induzi-la, conquista a concretude própria do presente. A sobreposição entre as duas performances problematiza, então, nada ser mais real ao Real do que o próprio Presente enquanto

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De volta... O chão que se deforma, o movimento que se desconfigura, o corpo que se reinventa. A equação determina o movimento contínuo que só pode ser compreendido narrativo se atribuído a ele sua condição poética. Sistematicamente os registros são reinventados pelos passos de Alexandre, um sobreposto ao outro, nessa espécie de arqueologia inversa, pela qual o performer acresce historicidade e não o desvelamento. Aos poucos, as pessoas na sala se retiram e, no esvaziamento, a presença insistente do performer o reafirma como narrativa do próprio gesto. Ao sair, Alexandre permanece por suas memórias físicas. É quando, por conseguinte, os 43 estudantes sequestrados e mortos em Ayotzinapa, no México, citados na descrição do trabalho e representados também pela quantidade de ações empreendidas, aparecem com mais veemência. Tudo na sala é sua história e também a deles, todos os restos são seus desdobramentos, todas as contaminações são seus vocabulários e tentativas de recuperá-los. Decido permanecer um pouco mais, aguardando o esvaziamento pleno, o pós fotografias, pós conversas, para então encontra-los na solidão de uma geometria movida rumo às ausências. Conversamos assim, eu, ele, eles, um sem ele com eles. Conversamos em silêncio por alguns minutos.

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Ao deixar a sala, já era tempo de subir à seguinte. Um novo trabalho começaria em breve, no primeiro andar. Guilherme Peters nos recebe amarrado no pau-de-arara, em uma alusão inevitável e direta ao que de mais rápido associamos à Ditadura Militar de 64, enquanto o monitor suspenso sequencializa imagens que incluem um pronunciamento de Temer, outros políticos, acontecimentos recentes, figuras diversas da cena política nacional, imprensa televisiva, tudo acompanhado pelo som rouco impessoal que dita ao performer dominado palavras de ordem e de comportamento. A violência volta a ser representada de forma direta, portanto. Reafirma sua condição permanente ao nosso imaginário por ser escolha de tantos artistas e curadorias. Representá-la e vivenciá-la busca expurgar publicamente suas formas por ser sobretudo denuncia. Mas, para tanto, ainda muitas outras precisarão existir. O homem em tortura durante a performance Safeword, cujo corpo lentamente esgota em reação e sustentação, dialoga com o massacre de imagens ofertadas pelo televisor. No entanto, o realismo pretendido é desconexo com a proteção que uma peça íntima traz ao corpo. Nem nu, nem vestido, a cueca escolhida neutra caracteriza o limite de exposição a que Guilherme está disposto a enfrentar. A violência não lhe agride tanto quando expor sua própria intimidade. Talvez por isso, inconscientemente, ele se solta, adquire força para fugir. O paradigma dessa construção instiga o quanto também a performance é sobretudo cênica. Teatro e Performance são instâncias distintas em seus propósitos, mas que se confundem especialmente pela necessidade cada vez maior do contexto para se definirem. Importa definir? Não e sim. Quando se solta dos cavaletes, ainda amarrado e controlado, o que se liberta não é o corpo, é a vontade de um outro. Reagir assume a posição direta sobre aquilo que lhe atinge. Ao objetivar sua posição sobre e reação ganha o performer mais qualidade de artificialização, mas não necessariamente

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no aspecto de sua identidade, e sim daquele homem desenhado e que não sabemos se próprio ou circunstancial. Confundem-se, portanto, os personagens real e ficcional no entorno que persiste em nos recordar o contexto ser sobretudo performativo. Por faltar o agente e já o encontrarmos na condição descrita logo ao primeiro olhar, adentramos no andamento do acontecimento, ou seja, de uma narrativa em movimento. Outros gritos, ainda da primeira performance, mesmo distantes chegam ao primeiro andar. A sensação acumulativa deixa de acontecer apenas por suas sobreposições e adquirem inesperada complementaridade Aquela que grita parece figurar outro espaço de tortura, outro alguém, nessa espécie de subterrâneo invisível que expande o espaço real aonde estamos. Assim comentam os que chegaram para assistir apenas a Safeword, enquanto descem as escadas. E ela?, perguntam. E a mulher? A performance assume um estado cênico narrativo ainda maior ao ter um duplo que a espelha, portanto. Se ainda não estiver convencido da teatralidade da cena, o espectador recebe um último gesto: Guilherme, livre, pronto à fuga que seja, tem tempo de ir ao monitor para desliga-lo. É o gesto definidor do teatro mais clássico: concluir. E como em um espetáculo, surgem os aplausos, mas não é perceptível se pela disposição do artista ao se colocar ali ou conduzidos pela sensação da narrativa chegar ao fim.

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Se tirado o fato de estarmos em uma Galeria, Safeword precisaria ser observado exatamente pela qualidade de sua dramaturgia. E é ela, a estrutura narrativa, o aspecto mais problemático ao pretendido. A televisão é desligada, liberta-se e a vida segue, diz-nos a ação. Ingênuo, até certo ponto, o argumento acumula códigos um tanto literais, como se a própria cena não fosse suficiente para dar conta do confronto físico e psicológico que a imagem central ergueu. Explicar porque ele ali está, explicar como confrontar seu inimigo, explicar o que querem dele tão objetivamente diminui o grau de interesse do aprisionamento, pois leva o espectador a se interessar mais pelo final do que pelo instante. Até onde isso irá é diferente de até onde ele iria; o primeiro diz respeito ao personagem; o segundo ao performer. E se a violência maior seria não representar a violência mas assimilá-la, então o como se expor volta a ser fundamental ao todo. Não é incomum ao teatro ser radical, por isso não há motivos para não aceita-lo como tal. Tanto quanto não é incomum a performance não se perceber apenas desdobramento do teatro. O dilema está mesmo no quanto o teatro que se quer performance é capaz de superar seus próprios labirintos.

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Esgotado, a noite termina. Últimos comentários entre amigos, últimos goles, despedidas. E a percepção de ter sido o simbólico, dentre tantos discursos politizados nas obras dessa primeira noite, o mais profundamente capaz de me transmutar a um estado de contemplação e reflexão. O discurso, por sua própria característica, cansa-se de ser discursivo aos ouvidos, enquanto o simbólico permite a ousadia de superar as ideias exatamente por nos convidar a participar de sua criação. Sigamos. É apenas o início. Até amanhã. ___________________________________ ____________________________ ______ ___________________________________ ______________________ _____________ ___________________________________ _______________ ____________________ ___________________________________ ________ ___________________________ ___________________________________ _ __________________________________ _____________________________ ______

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Entre pontas, apontar e apontamentos N

a mesma sala de cinema da noite de abertura, agora descobrindo-a preenchida por sofás ao invés de cadeiras ou poltronas, o ambiente convidativo ao conforto e, por conseguinte, à contem-

plação reinicia a programação com um trabalho que promete densidade. O tema, dentre outros inevitavelmente tangenciais: penitenciárias femininas. Maior aproximação, portanto, a algo que a sociedade quer ignorar existir. E não apenas ela. Quantos nessa sala já visitaram algum presídio em atividade? Surpreendo-me: diversos. São em maioria educadores-artistas que realizam projetos próprios. Eu, nunca. Estive em um, por um dia; fui assistir ao Teatro da Vertigem. Existe no encarceramento de alguém, seja por quais motivos forem,

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algo de horrível que me espanta - tanto por preferirmos a isso, quanto pela necessidade de por vezes precisarmos disso -, de (e não sei nomear de outra maneira senão por) desumano. Falar sobre, parece-me, jogar-se a um abismo de pensamentos e dores. Imagino, então, conviver com, e elaborar nele as qualidades de um percurso e ação artísticos. Atrás da mesa, como convém formalmente às palestras – é curioso a insistência pelas formas que agregam às palavras contextos imediatamente didáticos –, as artistas expõem as condições para falarem sobre o Sistema. Aceita-se que se fale, desde que não se fale; ninguém de dentro pode falar sobre com quem está fora; e outras aberrações mais que, pego de surpresa, não fui ágil para copiar. O Sistema, em sua totalidade, não está apenas em um presídio, é verdade, e sim em tudo e todos. Mas é pela estética de um prédio destinado ao aprisionamento, o quanto nele se afirma pelo simbólico por sua mera existência, que o Sistema assume uma de suas representações mais explícitas, oficiais, ameaçadoras e violentas. As falas são leituras estruturadas na qualidade de pequenas crônicas, e são boas de ouvir, com seus pontos de vistas, seus protagonistas, suas prosódias, suas características de escritas. Isso é já melhor do que as da primeira noite, pois confere pessoalidade e criação de modo mais provocativo. Nas diferenças entre as que se seguem, enquanto ao fundo o vídeo coleciona instantes diversos sobre poderes, política, cotidianos de presídios, de selas, prisioneiros e policiais, treinamentos e notícias, no tempo estendido da explanação, o vídeo se esgota e necessita resistir em looping. É possível esquecê-lo com certa facilidade não por lhe faltar proposição, mas por parecerem reconhecíveis demais as imagens. Quais, se não frequento presídios? São elas as mesmas ou aparentemente próximas às representações oferecidas por noticiários. De certo modo, a apropriação, esse pegar de um lugar para usar pra si, tem vencido a autoria em muitas palestras-performances como recurso de agilidade, e não apenas na Verbo. O que aconteceu com as palestras

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em que as falas eram originais tanto quanto as imagens produzidas para contemplá-las, ambas feitas o conjunto de projeto único? As artistas continuam as descrições e narrações ora pessoais, ora terceiras; às histórias não importam as autorias, mas importa-lhes ser diferenciadas se próprias e não. A mensagem de desumanização do Sistema em seus agentes e o acúmulo de crônicas intensifica a percepção ao que se quer provocar. Contudo, elas estão aqui e nós. O quanto essa segurança reduz o projeto ao denuncismo dependerá da modificação de cada um frente ao dito. Ainda assim, existe uma realidade exposta e coexiste outra, a nossa, sem grandes abalos durante a noite, e certamen-

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te não mais presente nos próximos dias. Lembro-me, certa vez, de Eduardo Brandão, ainda na sala de aula, nos encontros que duravam para além do horário oficial da faculdade, dizer ao grupo ao redor da mesa: a representação da realidade nunca será maior do que a própria realidade. Em Ponto Cego ou Os Estilhaços Alojados entre a Virilha e o Pescoço, a sensação é exatamente essa: ao expor o real, a ação inquieta, todavia não parece determinante ao porvir. Então como pode a arte superar o próprio paradoxo qual provoca? Ou, ainda, ao se tornar discurso e esté-

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tica não estará a realidade diminuída, uma vez que sua reconstrução, a partir de certos interesses, limita-se a uma experienciação pessoal que depende de uma intimidade com o objeto impossível de ser transferida? Cabe a arte tentar e, ao insistir, ser suficiente em seu papel de ativação de novas percepções e consciências? Novamente, não há respostas fáceis, apenas perguntas complexas aqui. Quando a terceira mulher ocupa a mesa, ainda imaginada integrante do Grupo Trecho, o depoimento pessoaliza a inquietude sobre o viver diante do limite inevitável de sua manipulação. Por preencher-se por figuras de linguagens, a pessoalidade se propõe um apelo ao outro escondido. Ela não quer escapar, como parece dizer. Quer encontrar meios de resolver o viver e, para tanto, é preciso olhar ao mundo e solucioná-lo por meio de outras lógicas. E quem discordará disso? Tudo é ainda mais profundo, quando se sabe ter sido a artista-palestrante uma das detentas convidadas a participar do livro. O resolver é, ao seu modo, a questão que une as duas partes. Resolver a desumanização das penitenciárias; o mundo que leva o humano a sucumbir ao seu pior. Resolver é também eliminar as diferenças que implicam, inevitavelmente, em confrontamentos e reações. Há na solução certa equalização pela busca de um viver comum apaziguado, o que é ótimo, e quieto, o que é péssimo. Faz sentido, quando nos aponta a urgência frente à desumanização exposta e escondida em lugares como esse; o argumento, a necessidade de ampliarmos uma consciência humanista pessoal, torna seu reconhecimento a própria justificativa. Mesmo assim, quando levado tal querer ao funcionamento do Sistema, paradoxalmente nada pode lhe ser mais útil. Se não interessa àqueles que usufruem da capitalização do outro, certamente interessa aos poderes que sustentam quaisquer que sejam as formas de poder. Então qual a

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saída, se resolver (de modo geral) é apaziguar a participatividade aferindo-lhe um suposto pertencimento conduzido? Talvez o importante, ao olharmos o todo, seja pensarmos o quanto nele é de quem o observa. Afinal, quando a culpa é de alguém, quem é aquele que determina ou revela o culpado? Por ser o dilema tão intricado, a palestra performance explode sua necessidade, pois atinge de imediato as certezas e comodidades, ainda que inevitavelmente se dilua na próxima cerveja. É preciso acreditar no inconsciente para perceber e torcer por sua duração. Então abre-se para perguntas. Esse instante em que as questões podem ser resolvidas, as dúvidas podem ser resolvidas, o convívio com as emoções podem ser aliviadas ou resolvidas, as distâncias podem ser resolvidas, as empatias podem ser resolvidas, as culpas podem ser momentaneamente resolvidas. Melhor seria permitir a solidão ser a agressão silenciosa sobre cada um. A explicação, o sorriso, a aceitação, o perdoar, o entender podem se deformar em algumas outras faces do incontrolável sistema de dominação qual se quer reagir. Antes de seguir à próxima performance, pego o livro que generosamente distribuíram. Cheio de dúvidas, que seja, inquieto e provocado, certa é ser gigante a vontade de devorá-lo. Essa palestra sim se performatizou em mim. Na sala de baixo, já tomada por espectadores, Ana Pi apresenta seu solo. Algo entre dança e performance, ou ainda, performatizar a dança. Ela gira, move-se, dança, articular ritmos e partes, respira e ouve – e apenas ela ouve, não nós - e constrói nisso seu ritual de personificação reagindo à própria ancestralidade, contudo sem se limitar a ela, representando-a enquanto perspectiva de outra possibilidade de existir. Existir a ela ou a nós? Ana é negra, e isso é fundamental e belo. Por chamar Coroa, desloca o espectador direcionando-o aos seus objetivos. Quase sempre há problemas ao objetivar informações

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ao público, pois ao fazê-lo diminui-se a potência da experienciação. No entanto, ao apontar o contexto pelo qual a dança deve ser compreendida, Ana não simplifica, ao contrário, exige ainda mais disponibilidade. Isso sobretudo por sermos em grande maioria brancos. E o que sabe o branco sobre a negritude? E o quanto é capaz de saber sendo branco? Ali, dançando, dançante, insistindo por horas, paralela a outras ações que acontecem na Galeria, a negritude se impõe estado ritualístico e se projeta ao mundo de maneira definitiva. Por isso são tantas as informações a cada gesto, movimento, rodopio, olhar, que Coroa é praticamente impossível ser descrita. Ana Pi precisa ser vivenciada e não somente assistida. Cinco minutos ou trinta, de fato não dão conta de sua complexidade. Foi o possível, porém. Ao menos nesse primeiro instante. Preciso voltar ao átrio externo onde ocorrerá a próxima performance. Só então percebo: permaneci ali sem me lembrar de escrever. O coroamento de Ana Pi me hipnotizou. Acomodado, tentando dar conta de rascunhar o mínimo dos pensamentos. Sigo assim, enquanto o público se acumula novamente ao meu redor. Percebo que, para alguns, não há surpresa ter alguém escrevendo aqui, ainda que estranheza exista. Por cima do meu ombro, a garota tenta ler e acompanhar essas reflexões. Dou-lhe sutilmente

um pouco mais de espaço. Fique à vontade. Você

leu isso? Contado um minuto, não veio resposta. Acredito que sim. Até agora, não se estabeleceu

um diálogo, entretanto. E isso, você leu? Talvez, não tenho mais certeza. Há muita gente agora e o

menor gesto dela em direção à minha tela não é tão fácil perceber. Quer falar sobre o que escrevi? Nada. Quer escrever? Ela sai de perto sem pressa levando um sorriso divertido.

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Sentido Inverso, de Lia Chaia, começa. É simples e eficiente como normalmente são suas propostas. Em algum momento, já estivemos na mesa sala na faculdade. Ela se tornou a artista visual reconhecida, eu, estou aqui escrevendo sobre. Lia sempre foi assim: essa capacidade em ir ao conceito de maneira precisa, sem espetacularização, sem perder a qualidade em resultar surpreendente. Suas escolhas dão a sensação de encontrarmos, enfim, as ideias possíveis, disponíveis, diante de qualquer um, mas que, por algum motivo desconhecido, ela é quem as encontra e não os demais. É também isso que a faz uma artista tão peculiar e inquieta, cujas obras mesclam em partes iguais provocação e gentileza ao observador. Por mais que tragam discursos complexos, a maneira pela qual os realiza opta em ser esteticamente convidativos. Nessa performance, igual a outras suas, é somente uma ação repetida e insistente, acumulando-se e transmutando seu argumento a cada momento. Escrever sobre seu trabalho, por conseguinte, precisaria agregar a capacidade de ralentar os instantes para permitir aos devaneios se aprofundarem até esgotarem superados pelos próximos. Ela e Júlia Rocha tornam as portas-paredes móveis de vidro, que separam interior e átrio, suporte à ação. A ideia de um Site Specif condiz com a efemeridade da linguagem da Performance em sua capacidade de acontecimento. Mesmo que possível de repetição, estar o gesto determinado a um contexto e espaço agrega urgência e invasão. Afinal, será destruído em breve. E, para além de ser arte efêmera, trata-se, ao fim, de um gesto efêmero diluído pelo próprio cotidiano requerendo normalidade. Completamente distinto, pois, quando o efêmero é a materialidade que se reconhece residual ao ser desapropriado de sua intenção.

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Se importa o gesto, falar dele é necessário por partir dele tudo mais. As performers estão ali, intercalando os movimentos dado às imensas portas, horizontalmente, de um lado a outro, acompanhando-as por dentro e fora enquanto empurram, trocando-as de lugares e direções, e não necessariamente com iguais velocidades. Nos extremos, quase sempre, desenham setas.

. Pretas, brancas. Por serem vazadas, per-

mitem ao olhar permear o interior e exterior com maior simultaneidade, visto definirem os espaços ao tempo em que flutuam entre eles. Antes de serem direções, ainda, são a própria materialização do dentre, do vão, do vácuo, delimitando margens pela capacidade de atribuírem o tênue fio que não é parte de nenhum dos lados. Uma a uma surgem as setas desenhadas e o deslocamento sobrepõe a sequência aleatória até se valer uma multidão. Se setas têm por premissa apontarem para algo, Lia ergue com eficiência outro vocabulário de representação ao contemporâneo para traduzir o simultâneo, confuso, fugidio, impositivo, insistente, múltiplo, adverso, contraditório que se tornou o indefinido algo, ou melhor, o alvo. Em que ponto nos situamos nesse jogo de improviso e exigências das setas, dos direcionamentos? O quanto, em algum momento, apontam, apontaram, apontarão para nós, em acusações ou referências? Por deslocarem as portas, ora as setas direcionam seus vetores para os quais são movidos, para, imediatamente após, estarem na contramão. É como se não importasse a direção, sendo inevitável o processo transitório e nulo do seguir. Então por que apontar? Por que insistir? Assim como as setas desaparecerão, pois serão limpas logo mais, em horas ou dias, tanto faz apontar a algo que não sobreviverá frente a si mesmo no momento seguinte.

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Confesso, esse é o copo meio vazio. Há o cheio, fique tranquilo. A possibilidade do observador ler as setas na qualidade de dispositivos tão plurais e amplos que as possibilidades se revertam em alguma capacidade de saída ou solução. Sendo muitas, alguma há de responder. É preciso decifrar qual delas, qual o “o quê”, para onde, para quem, o algo específico perdido e imprescindível. Por esse ângulo, Lia tem a generosidade de atribuir ao contexto tamanho excesso de direções que não se pode condená-la por nenhuma espécie de manipulação. O observador está livre para escolher e até mesmo encontrar outras não identificadas. As desenhadas sobre os vidros são sobretudo as reconhecidas pelas artistas, mas nunca as únicas ou últimas. Certeza mesmo é ser preciso seguir adiante, seja ao que e para onde for. Por isso, Sentido Inverso possui a qualidade de ser politicamente mais amplo que algumas das ações excessivamente ilustrativas que vêm sendo colocadas no contexto da performance e das artes cênicas. Não determina seu argumento político, sugere-o, e, ao ser percebido, é radicalmente mais a inquietação de quem o percebera, de quem observa a política pela instância de dúvida ao presente do que pela presentificação do discurso. Dessa maneira, não é

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preciso concordar ou discordar, tomar uma posição à Lia. Não cabe julgá-la se tida por política. Mas perceber o quão nessa impossibilidade resulta outra qualificação de sujeito político: um alguém disponível ao estímulo e não às respostas. Sensibilizar, então, é seu grande gesto de provocação a uma espécie de dialética da insurgência. Claro, é possível acessar o resultado em seu estado estável também. Ao menos por um tempo. Após a conclusão, as portas estacionadas esperam os olhares. É quando podem ser encontrar as setas em seu contexto também estético, na especificidade de cada traço, sugerindo alguma identidade, pessoalidade, humor, tradução. Feita como a obra de uma multidão, portanto, imagino se o visitante que percorrerá a Galeria nos próximos dias não imaginará ter sido a ação pelo convite a quem ali estava, sem saber serem apenas duas as artistas. Não importa ao trabalho o reconhecimento do processo, e sim a capacidade de induzir leituras. As setas de Lia, por fim, estabelecem por diversas estratégias trajetos abertos ao pensamento. Das ações artísticas que muito me interessam, confesso, as não conclusivas são bem atraem. Ao sair à próxima performance, penso: Lia e sua especial facilidade em ir ao ponto certo das coisas.


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Antes de subir as escadas, após pedir permissão para encontrar um canto em que caibamos eu e o notebook, antecipando o público que já percebo será grande, parei outra vez para assistir Ana Pi. Ela continuava. Seguia em sua dança como quem iniciava a ação naquele segundo. Inteira, íntegra, preenchendo-a com a gestualidade e um vocabulário corporal inesgotável. Alguns assistiam e por lá preferiram permanecer. Eu os entendo, já fui hipnotizado por sua sedução horas atrás. A diferença, agora, é que havia um sorriso mais evidente, lábios em transe, voltados para si. Ana parece ter conquistado outra dela nessa mais de uma hora. E parece ser mais profundamente ainda mais ela mesma. Há algo de mágico em seu ritual de coroação: a mitificação de sua presença.

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Sento e me acomodo, não há pressa ao início. Ou tudo é o próprio início: a calma, um tanto de suposta timidez, ou ansiedade talvez, um certo tom de vai você, começa aí. Poderia ser um problema ao ritmo empregado pelas ações da noite anterior e dessa, mas não é. Trouxe naturalidade e despojamento, e logo a audiência estava espalhada pelo primeiro andar e tranquila ao que quer que fosse ocorrer. Da minha parte, já esgotado, permaneço estimulado. É provável ser este o trabalho mais próximo ao teatro, e isso me inquieta. Qual a perspectiva dada ao teatral no contexto de um festival de performance?

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Fake News começa narrando a si mesmo, autorreferente, estruturando a sequências de acontecimentos desde a formação do Etcetera & Internacional Errorista até agora. É preciso falar sobre muito para explicar as confusões da ação pública na Argentina que mobilizou sites, jornais, telejornais locais, mídias nacionais e estrangeiras construindo a crença de que seriam os artistas outros: erroristas, e esses: provocadores de uma rebelião para levar à queda do Presidente Macri. A ironia ganhava as páginas e noticiários compreendida pelos tons da verdade que não possuía, de algo que sequer pretendera na origem. O Errorismo, conceito até então performativo, passou a adjetivar um modo de realização das coisas propositado a fins políticos e certo fazer equivocado dos gestores. Nada conseguiu paralisar essa transmutação. É por essa história absurda e própria do nosso tempo, com sua velocidade cega, que o conceito de Fake News é destrinchado e apresentado ao público. Segue, então, a teatralidade ao exercício de ser uma palestra auto-documental, unindo duas linguagens tão presentes nas produções recentes. Acerta, por isso, ao ser partícipe da cena contemporânea. Cansa por ser exatamente isso, o que se espera encontrar da tal mesma cena. De certo modo, a plateia não está incomodada. Possivelmente por ser um público mais específico ao universo das artes visuais cujo convívio se dê tão pouco ao universo do teatro. É curioso notar o quanto tais procedimentos dramatúrgicos (documental e palestra) parece a esses ousadia ou, até mesmo, novidade. O grande interesse naquilo trazido pelo Etcetera está mesmo na assertividade com que invadiu os imaginários sociocultural e político infiltrando perspectivas e deslocamento também sobre a organização de suas estruturas. O discurso sobre, a aula, a documentação é de longe menos instigante e respira apenas pelo humor esgotado rapidamente, sobretudo quando convida (e exige) participação do público para continuar seu projeto formativo. Aí está o paradoxo a ser discutido, então: sendo o melhor a capacidade de criar contextos e por eles subverter a ordem,

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por que trazê-los se não para provocarem ruído? Por que limitá-los a uma demonstração de suas capacidades? Por que subprodutificá-los a uma porção menor deles próprios, enquanto artistas e ativistas? Por que eu estou aqui assistindo-os, se poderia saber dessa história por e-mail, site, jornal, livro, amigo ou vizinho? Seria mais radical se viessem nos provocar, interferir, deformar, ao contrário de dizer o quanto eles podem, sem nada experimentarmos dessa capacidade. Fico assistindo os atores, performers, artistas gostando de serem eles mesmos mais do que serem os agentes de ações. E isso é muito pouco. É cansativa essa performatização de si mesmo. E, para quem frequentemente está em uma sala de teatro ou tem a possibilidade de frequentar festivais por aí, é demasiadamente mais do mesmo. Em Fake News foi entregue ao público da galeria o que de mais próximo o mercado teatral tem exposto como produto do momento, mas sem ter nessa fórmula do perecível quaisquer outras qualidades que superassem as contribuições de Rimini Protokoll ou Wunderbaum (pra nos limitarmos a companhias que frequentam o Brasil com mais rotina) espalhadas por aí - ao meu ver, já em excesso de apropriações e usos: discurso, inclusão do espectador, participatividade, narrativa elaborada por perguntas, discussão aberta, resposta organizada em forma de itens, didatismo irônico, temas do momento, certezas, reeducação do outro pelo esclarecimento. Fake News carrega o dilema de induzir sua estratégia interpretar o espectador como inquestionavelmente alguém alienado, despreparado, desavisado, no mínimo desatento, implicando ao trabalho, mesmo quando sem interesse em sê-lo, cores pretenciosas demais. Há um teatro possível à performance. Fake News é uma possibilidade de encontra-lo, sim, e está longe de ser um trabalho fraco, mas seu formato, infelizmente, é também o mais óbvio dentre outros que por aí circulam. Por serem os performers ou atores caricaturais no gesto professoral, o trabalho ainda exige disposição do espectador em aceita-lo, pois poucas são as possibilidades de sedução restantes.

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As artes visuais possuem igual dificuldade em olhar o cênico que este a elas. É comum, ainda, galerias e museus tratarem o teatro pelo que mais equivocado lhe tem sido atribuído desde sempre: a capacidade em ser comunicativo, informativo e moral. É exatamente a perspectiva do teatro ser um serviço de alerta ou esclarecimento que tornou a subproduto ideológico, pelo qual importa mais o argumento do que sua configuração estética e técnica. Todavia, dificilmente esses mesmos espaços da arte contemporânea topariam expor obras sem acabamento ou nem tão bem realizadas só por habitarem ótimos conceitos. Enquanto as artes visuais, mesmo pela performance, olha-se diante do mercado também por sua qualidade de existir produto, o teatro, principalmente por ele, não se quer assim. O teatro deve ter uma função. Em Fake News ocorre um desvio paradoxal que reafirma exatamente isso: seus produtos são a própria ideologia e as melhores formas e estratagemas confirmadas pelo mercado qual condena. Deixo a sala de cima um tanto cansado de ver o teatro ou a teatralidade ser tratada de maneira tão previsível; parece estar novamente nos dias mais comuns dos festivais menos inventivos. Após pular os muros da escola, é mesmo difícil voltar a sentar em salas de aulas, mas é grande ainda o desejo do teatro ou pelo teatral ensinar o outro, o que é profundamente um desperdício de poética, linguagem e criação. Disposto a ir e finalizar o dia, sendo Fake News a última performance anunciada na programação, é pelo canto do olhar que avisto Ana Pi dançando. Olho-a novamente. Um pouco mais. Mais. Volto ao interior da sala. E agora estou aqui, acomodado diante desse corpo negro que expande para além das descrições. A mulher insiste. A cor insiste. Ao redor, outros, como eu, respiram no seu compasso. Não sei se perceberam, o transe é coletivo. Assistimos ao coroamento da performer como se assistíssemos a uma saída de orixá. Uma orixá ainda a ser descoberta no panteão do terreiro-arte. Só fui ao presídio uma única vez, como escrevi no início, hoje, todavia aos terreiros muitas. E se todos

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pudessem passar pela experiência de ver surgir, nascer, coroar, existir de um orixá no salão talvez compreendessem melhor, sem qualquer necessidade de explicação literal ideológica ou moral, o quão a humanidade grita por sua existência ao mundo para além da própria humanização programática que os Sistemas impuseram. A biopolítica que permeia a atmosfera de um terreiro ainda será descrita um dia por algum filósofo de respeito. Por hora, Ana Pi serve magistralmente para surpreender os desavisados e transeuntes nos espaços artísticos e não só culturais provocando-lhes um profundo encontro com a ancestralidade que terá um dia em sua formação e raiz também esse estranho e complexo presente. Então, enfim, sigo. Muita coisa para um dia. Muitas e articuladas em um roteiro preciso à experienciação dos conceitos, expandindo-os e transbordando um ao outro. Enquanto Lia fez meu pensamento liberar seus direcionamentos e me provocou a duvidar de mim mesmo, Ana me preenche pela quietude que fora vê-la surgir. Um dia forte que agora requer silêncio e um tanto de solidão. Até amanhã. _______________________________________________ ________________ _______________________________ ________________________________ _______________ _______________________________________________ _ ______________________________________________ _________________ ______________________________ _________________________________ ______________ _______________________________________________ __ _____________________________________________

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ENTRE O PERGUNTAR E O RESPONDIDO V

oltar à Galeria Vermelho, agora já se tem como um hábito. Os mesmos ponto de saída, percurso e local de chegada talvez sejam os responsáveis para isso.

Alguns rostos se repetem, conversas parecem continuar, e a sensação de compartilhamento, ao vivenciarmos por tanto tempo a mesma atmosfera, estabelece um convívio discreto, que é, em essência, mais a sugestão performativa dele próprio do que real. Afinal, ainda que estejamos aqui, continuamos desconhecidos e anônimos uns aos outros, em sua maioria, mesmo com os olhares se percebendo. É fácil identificar quem aca-

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bou de vir, quem está em sua primeira visita. Este observa com especial curiosidade ao redor, em uma explícito disfarce de não parecer perdido. O estranhamento, talvez nem mesmo ele saiba, dá-se pela subjetividade do tom supostamente uníssono entre os recorrentes. Nas diferenças de cada um, rapidamente nos adequamos em como nos comportar, mover, assistir, reagir ao cotidiano da Verbo. Regras inventadas ou sistemas para autopreservação, o fato é que bastaram dois dias para certa equalização ocorrer produzindo seu universo. No primeiro dia, a sensação era de especial independência, dadas as distâncias tão latentes e explícitas. O quanto o espaço provocou essa espécie de padronização àqueles circulantes diz muito sobre a distância que os espaços de artes erguem ao outro lado da calçada. Não por querer, é óbvio. Ou nem sempre. Mas ao expor o desconhecimento do outro sobre sua possibilidade de inclusão. É como se algo lhe dissesse: não sendo assim, não venha. Ainda que os letreiros exploram suas luzes convidando-os a entrar. Como a Arte, então, pode validar novas qualidades de aproximação? Como os espaços de arte podem ser profundamente convidativos, mesmo quando sinceramente disponíveis? Como os artistas podem interessar a quem os desconhecem? Como as criações artísticas podem sugerir melhor convivência? Como os frequentadores de galerias, museus, salas de espetáculos podem agir sem o convívio determinar a estrutura de um gueto? As perguntas são muitas. Surgem uma a uma, enquanto alguns não se interessam por haver aqui, no meio da Galeria, um cara com o computador aberto. Eu, por tudo isso dito, sou parte desse instante. Talvez não no primeiro momento. Contudo, estamos no terceiro dia. Alguns já saltam minhas pernas esticadas no chão, enquanto as uso para apoiar a máquina. Outros, sentam ao lado e diretamente perguntam: você escreve crítica? Portanto, leem-me durante a escrita. Somos partes concomitantes por vivenciarmos o mesmo: a Galeria Vermelho, esse território comum. E aqui, provavelmente apenas aqui, compartilhamos de igual condição.

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A sequência de performances começa do lado de fora, ao contrário dos dias anteriores. Aguardar no pátio, deixa a todos mais a vontade, a atmosfera mais acolhedora ao que virá. Descontraídos, não há pressa do público que se organiza com um pouco menos de urgência. Quando começa Jogo de Questões, Patrícia Araújo e Valentina D’Avenia aparecem vestidas apenas de vermelho, instaurando de imediato a nova qualidade ao lugar; algo próprio de um contexto que se quer performativo. Sentam em lados opostos na pequena mesa, as pessoas se aproximam, elas se olham. Há um tempo de dúvida sobre tudo, pois se percebe ser o começo o gesto de preparação do início, pois a performance não se restringe a afirmação suas presenças. É mais. Quer o diálogo entre elas apenas por interrogações. Logo nos primeiros minutos, revela-se: algumas interrogações são quase curiosidades sutis ou provocações pessoais para dinamizar o jogo; outras adquirem a capacidade de existirem maiores. Parece um procedimento simples, só que não é apenas pelo dito que a conversa continua. É preciso estar atento ao depois e antes das perguntas. No intercalar entre uma e outra, surgem duas qualidades: o íntimo e o filosófico. Os disparadores são sobretudos palavras, claro, e a capacidade em atribuir desvios ao deslocamento das próximas perguntas. Todavia, as livre associação e espontaneidade dos desvios, ora conduzem a um estado seguro que modifica a perspectiva da pergunta anterior, ora aproxima ao mais particular. Na

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dialética entre espaços de escuta, olhares, silêncios reflexivos, a disputa reafirma a qualidade da perma-


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nência e não apenas da vitória. Talvez essa seja a intenção fundamental: atribuir a permanência como sistema lógico plausível apenas pela palavra. Por isso, Jogo de Questões revela a dificuldade do indivíduo quando perguntas e palavras são desviadas para invalidar quaisquer argumentos. Por que no Brasil não existe capa de edredom? Aos poucos, surge a diferença de estratégias. Patrícia assimila algumas perguntas feito um golpe e, para justificar seu desvio, muitas vezes traz questões mais distantes abrindo com elas novos pontos à conversa. Valentina reage com a qualidade de quem se defende do desvio, e por isso atua com maior velocidade. Paul Zumthor, certa vez, escreveu sobre a performatividade na leitura; o quanto que, ao segurarmos um livro, por exemplo, este modifica a composição e estrutura corporal para servir ao gesto de ler, e nesse reinventar-se performativamente o próprio conteúdo lido é alterado, pois sua experienciação passa a ser singular daquele corpo, estado e instante. Você tem porteiro no seu prédio? No entanto, ouvir não é o mesmo que ler. Ao ler, o sujeito traz pra si o conteúdo da informação; ao ouvir, tem ele dado pelas interpretação, intencionalidade e subjetividade de quem diz. Ainda assim, o estado de permanecer ativo ao ouvir se impõe por serem perguntas e por não virem as respostas. A neutralidade é fundamental para o ouvinte não receber a sequência de questionamento por algum tipo de direcionamento. Desse modo, o ouvinte existe próprio, tanto quanto o leitor de Zumthor, e pelo reconhecimento da interrogação reinventa-se e, assim, recriar a própria indagação. São as perguntas mais genéricas e íntimas as mais próprias para esse movimento ao espectador. Quando mais diretas, limitadas a um sim ou não, ou meramente um talvez ou tanto faz, esvaziam a participatividade e o público parece escapar do diálogo e não mais pertencê-

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-lo. Importa, então, principalmente o inesperado. É por ele que o corpo é ativado. Mas como conquistar às palavras o inesperado, se estão catalogadas aos sentimentos, emoções, julgamentos e contradições? Você também acha cafona usar verde e amarelo agora? As cornetas anunciam não uma interrupção de uma performance por outra, e sim novamente sua sobreposição. As palavras agora assumem complexidades maiores, pois estão divididas em atenção com imagens concretas: o surgimento dos pequenos estandartes, das figuras que ritualizam o treinamento de um ordem. Trata-se de Marcha, Orden y Progresso, do mexicano Gabinete Homo Extraterrestre, replicando com certa caricatura o costume escolar de escolta da bandeira oficial nessa espécie de treinamento ao patriotismo doutrinado. A cena é rápida e simples: algumas pessoas, melancias capacetes, a bandeira negra, a marcha meio desengonçada, a música típica militarista. Eu, no entanto, escolho ficar com as meninas. Todo jogo contem a ideia da morte, dizem os peformers mascarados do outro lado. Elas repetem em forma de pergunta, enquanto a fanfarra impõe-se definitiva antes da retirada, todavia afasta-se sem determinar um profundo ruído transformador. Parte do público que assistia ao manifesto retorna. Por terem permanecido sentadas, Patrícia e Valentina seguem o diálogo como se nada houvesse mudado; as perguntas recuperam o estado de presença e a

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performance continua por um pouco mais. Eu, antes de seguir à próxima atração, tendo em vista Jogo de Questões não ter um tempo anunciado, saio inquietando-me sobre o que estabelecerá a última pergunta ser mesmo última? Apenas as performers poderão dizer. Ou, quem sabe, nem mesmo elas. Se houver tempo e chance, talvez faça-lhes esse pergunta. De fora, parece que, ainda que inesgotáveis as questões, a interrupção há de vir após perder sentido perguntar, seja o que for. A fala, assim, deixa de justificar sua presença e torna alternativa única o silenciamento simbólico que é também não mais permanecerem. Restam a mesa, os copos, a garrafa d’água, suas cadeiras como vestígios. Restam as interrogações de cada um e a urgência, quando e se percebidas, de serem ditas, artifícios que são à materialização das próprias realidades. Recordo-me da primeira noite, especificamente da sensação ao final de Ritos Estructurales: outra vez, a ausência é mais performativa do que a imposição da presença.

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Não há tempo para me debruçar sobre isso. Essa é uma das dificuldades da Crítica Dentro, ter de seguir, ainda que o pensamento insista em pausar. Preciso chegar ao primeiro andar antes que lote. A sala vazia permite o primeiro respiro entre na programação de hoje. Tempo o suficiente aos arranjos preparatórios e suas finalizações, para que o pensamento distancie-se da anterior um pouco e aceite perder. E com o público ocupando o entorno disponível, a sala se transmuta em um ambiente de espetáculo. A mulher executa pequenos e leves gesto, seu corpo vestido por um tecido negro pelo qual não se quer exatamente vestir. Música. O homem. Um casal típico. Dançam o ininterrupto dos toques de um ao outro em seu estado mais delicado de reconhecimento e aceitação.

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Até se tornar agressivo e infringir a dominação masculina. Bajo la Carne, Infinito é uma ação somente física, contrapondo-se radicalmente a anterior. Por ser corpo, instiga ser a ação mais literal sobre aquilo que dramatiza: uma bolsa preenchida com penas ocupa o lugar da gravidez que se desfaz ou conclui em pleno embate. A intensidade pretendida exagera em sua figuração deixando pouco espaço às interpretações durante o percurso em que o masculino dominante - com sua calça e camisa negras, sua capa negra que lhe confere estranheza - luta com o feminino desnudo, desprotegido, fragilizado e limitado às meias cor da pele, as peças íntimas. Se a mulher reage pela dança e o provoca, os corpos limitam-se a serem descrições pela mais próxima tradição de como representa-los. É pouco, já que o corpo na história da arte comprovou maior disponibilidade para assumir e assimilar tantas outras qualidades narrativas e de significados. Por que representar, então, o casal de maneira tão literal? Qual Dança propõe sua dança? A fragilidade da cena existe também pela compreensão simplista do que venha a ser a objetificação do corpo, de alguém, de algo, de alguém quando tornado algo, do algo submetido a alguém. Cabe dizer mais um pouco: a dança contemporânea há muito superou os vocabulários gestuais que se destinam a simbolizar sentimentos ou estados pela esfera de sua ilustração e sugestão abrindo espaço a outro entendimento do corpo em sua capacidade de ser proposição estético-narrativa, pelo qual, muitas vezes, nada sequer lhe é atribuído, apenas sua própria presença. Martín Soto Climent parece desconhecer isso e o apresentado na Galeria Vermelho conduz o espectador de volta ao início da dança moderna, já perto de um século, pelo estereótipo de ser a dança o bailar narrativo entre personagens. Deixo a andar superior com a sensação de assistir um exercício ingênuo de sala de aula, daqueles que não me surpreenderiam nem mesmo quando no papel de professor.

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Sigo de volta ao térreo, então, esperançoso de superar. Ainda há uma performance para essa noite. A sala está cheia ao seu limite, em semicírculo e é visível, dado o silêncio espontâneo, haver alguma expectativa. Nenhuma outra performance, até aqui, havia conquistado esse estado de maneira tão profunda. São 7 mulheres e apenas um pequeno tablado no centro com um foco o suficiente para Elegy. As vozes líricas, uma a uma, são apresentadas assim que, individualmente, as cantoras sobem sobre o pequeno palco. Não são substituições, pois não se trata de esperar o esgotamento de cada para reativar o canto pela próxima; são um único lamento estendendo-se entre as nuances das diversas tessituras e não precisam ser identificadas para exporem suas individualidades. O percurso, ao reiniciarem a fila, e de novo e de novo..., nos convida a tentar imaginar quantas são as vozes que se revelam, a cada uma surgida, dada a condição de ser sempre outra a que chega? Quantas vozes são cada voz, para além daquela que canta e serve a ser o outro? Quantas são as vozes que assistem emudecidas os lamentos ao entorno, assim como estamos agora? O ininterrupto cria o contexto trágico ao lamento. Ainda que seja sobre um, uma, aquele, aquela - a cada apresentação, Gabrielle Goliath dedica sua elegia, a construção melancólica de seu poema, LGBT ou mulher negra, atacado, violentado, morto - é também sobre a condição de imposição e destruição ao outro, seja como for, pela violência ou inviabilização, negação ou reação. O lamento, por ser também um estado narrativo, desde sempre esteve presente nos contextos cênicos, ora servindo de comentário ao trágico Antigo, ora ampliando a tragicidade em paralelo ao projeto moderno, desde o Romantismo. Por conseguinte, não se trata apenas de estetizar o discurso denunciativo. A performance vai mais profundamente em direção ao inconsciente de quem a presencia reativando a perspectiva

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do Trágico e sua inevitabilidade ao definido por humano. O quanto cada um suporta conviver com o Trágico, nesse estado de latência e permanência, sem que nada sugira alguma possibilidade de transformação e interrupção, revela a distância assumida por proteção a esses acontecimentos e nossas responsabilidades. Na tragédia, não há como o indivíduo determinar a si outro fim, pois não lhe cabe construir os aparatos de reinvenção. Dessa maneira, ainda que a performance deseje efetivar outras compreensões sobre os corpos dissidentes, o que por definição seria perceber-se central ao acontecimento, portanto plausível de revisão e outro fim, dramático e não trágico, acaba revelando o Trágico exatamente no existir humano e sua incontrolável capacidade de destruição das diferenças. Ao ser sobre alguém, Elegy é também sobre a urgência de percebermos na sociedade atual a descrição precisa do que sempre fora. Ontem eram outros, amanhã será novos. Ainda assim, nesses outros estavam incluídos os dos de agora. E nada parece conduzir à consciência ao ponto de os de agora não permanecerem juntos aos de amanhã. Há um horror em ser humano, quando ao Humano é definido como é correto este ser. A elegia, tal como proposta pelos Gregos, diferenciava-se do coro por ser apresentado solitariamente. Seus cantos assumiram a proposição dos cantos fúnebres, dentre outras abordagens, e institui a melancolia diante da ausência incorrigível. E por uma hora,

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nessa espécie de canto único, em que as sutilezas das diferentes vozes parecem a própria melodia, o excesso do lamento cala a sala pelo sublime. Há uma emoção que não se esconde mais nos rostos daqueles que permanecem e assistem, uma de cada vez, as mulheres se retirarem de cena. Até ficar apenas uma. Até ela ser subitamente interrompida como se lhe faltasse o ar, a voz, o espírito, a vida. É o impacto inesperado trazido pelo corte que dimensiona a condição hipnótica que estávamos. Ao sair, o silêncio é a representação mais assustadora em exposição. Se do lado de fora, as pessoas continuaram suas conversas; os que deixam a galeria aproximam-se mais lentamente, calados, íntimos. A palavra pode parecer um exagero aos que não viveram a experiência, ainda assim, talvez seja a única capaz de traduzir: arrebatador. Termina dessa maneira, a terceira noite. No impacto do inesperado, sem que nada possa apaziguar o sentido. Foi um dia longo que começou com perguntas e seguiu incluindo outras até o final labirinticamente. Resta dormir, ou tentar, e reiniciar um dia mais. Até amanhã, então. _____________________________________________ __________________ __________________________ _____________________________________ _______ _____________________________________________ ___________ _________________________________ ______________________________ ______________

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entre corpos e vozes O

pátio está tomado de pessoas. É difícil encontrar lugar para me acomodar e escrever, o que modifica a dinâmica relacional com as performances a

partir da escrita. Se confortável, esta surge a partir de certas qualidades, se não..., veremos. De certo modo, isso é um ótimo motivador à ação por devolver-lhe um pouco de instabilidade e imprevisibilidade, pois, não há dúvidas, sendo esse o quarto dia, estabeleci mecanismos e recursos de segurança ao fazer, o que verdadeiramente não me interessa que exista. Olho ao redor e, como grande parte das pessoas não reconheço

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de imediato, as sensações da noite anterior se invertem: quem são, por que agora, o que esperam? Mesmo que a arte não consiga responder os paradigmas de como se articular com o público, dessa vez, o programa das performances parece mais atraente a guetos diversos tornando os presentes variados. Enquanto busco um canto que caibam eu e computador sem que atrapalhemos artistas e os demais, percebo-me novidade a muitos. Olham-me sem compreender se faço parte ou não. A vontade é lhes explicar: obviamente que não. No entanto, o quanto ter alguém escrevendo em tempo real em um festival de performance é inevitavelmente performativo e plausível? Retomo, então, a condição contextual que estarmos em uma galeria de arte contemporânea emprega a quaisquer acontecimentos. Talvez o mais saudável seja acreditarem ser eu uma ação paralela em convívio com as demais, dessa maneira logo me esquecerão sem obrigações de me decifrarem, afinal, com diversas ocorrendo simultaneamente a recusa ou esquecimento limita-se a preferi me dedicar a outra. Por um instante imagino-me salvo e solitário em meu trabalho mesmo com um ou outro olhar insistente sobre a minha tela. Pelo microfone, elas convidam o público a se mexer, incluem-se e avisam: agora esse corpo é cinema, um lugar aonde não estão... mesmo. A ênfase dada implica em estabelecer a condição definitiva e indiscutível desses corpos. A projeção toma fachada externa da galeria. Quando é que a sociedade vai entender que existem mulheres de pênis e homens sem?, questionam sem rodeios. O filme traz a observação de seus corpos quando públicos, o documentário registra as artistas se arrumando, enfeitando, personalizando seus corpos não apenas para serem materiais de cena, mas para existirem enquanto estruturas radicalmente reais. Assim, a praça se torna palco dessa espécie de documentário sobre aquilo tratado por invisível e que não é apenas de quem está nesse desaparecimento, pois é anterior à identidade: seus corpos, a própria condição material de suas realidades, antecede pela imagem que provocam quem quer que nela exista. Em resumo, são elas algo e

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não alguém, e é exatamente pela substituição da identidade pelo imagético que os julgamentos se aplicam de modo tão opressor. É mais fácil julgar, desconsiderar, destruir algo e não alguém. O público assiste, compartilha, aproxima-se e se inclui pelo canto e palma aos quais são convidados. O filme passa a ser a exterioridade de um corpo simbolicamente plural que inclui o quão diversa é a plateia. A rua da tela é também o pátio em que estamos. Mas lá, existe como manifesto; aqui, perdura como linguagem. É na complexidade de uma sociedade que divide manifestações e linguagens que o Mexa chacoalha os ângulos de suas observações. Se elas se assistem, impondo com isso a meta-existência narrativa, nós a assistimos pela primeira vez, segunda ou pouco mais, a dependendo do otimismo projetado por quem ler essa resenha. O ônibus circula e as câmeras mostram o convite à repetição de frases de “des”ordem, “des”organização. Microfone em mãos, depoimentos, o público presente repetindo, aplausos, risos. E segue, assim, em filme e acontecimento como a mesma coisa. Pausa: No restaurante elegante, de chefe famoso e rosto televisivo, um casal termina seu jantar. Sai

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pela escada que acessa o átrio aonde estamos, aonde elas estão. Visivelmente incomodados pela multidão, respiram fundo e se olham. Em silêncio, degrau após degrau deixam o espaço. Logo não os vejo mais. Devem estar tranquilos agora, em suas proteções, aliviados no interior do carro, distantes. Mexer, então, é um convite para se mover em di-

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reção à participatividade. O canto, a dança, o ritmo, as falas, o verbo, o corpo, a proximidade, o outro. Mas é também o artifício para superar: o pertencimento, o mesmo, o junto, o sorriso, o gesto, a proximidade, o outro, o corpo. O casal que saíra visivelmente prefere devolver pelo não. Talvez nem mesmo a elas ou aos demais, mas a si mesmos. Escolhem ir e não moverem suas seguranças, seus valores, seus estados. Estáveis, por fim, nada mexem e continuam limitados a existirem iguais. Não os conheço. Fossem meus amigos, diria-lhes: acabaram de perder uma ótima oportunidade em serem muito mais do que apenas eles próprios. Como, por fim, é possível expandir o pertencimento se o silêncio e a ausência ainda se configuram recursos de anulação aos convites? No âmbito da performance, os que aqui estão vieram por um querer supostamente genuíno, por conseguinte, desde antes do início, abertos ao encontro e ao que este propõe produzir de aproximação e ampliação. De certo modo, o ambiente da arte protege o coletivo ao adequar o convívio ao discurso, enquanto a rua exige da rua sua ininterrupta adequação. A troca do vetor determinante argumenta a crueldade sobre quem é submetido a algo, seja julgamento, conceito, pré-conceito, preconceito, olhar, um sair de perto, um fingir não ver, um medo inexplicável, uma diferença imposta. Diz muito sobre a doença da sociopatia que se instalou no contemporâneo sem disfarces. Nova pausa: Um novo casal deixa o restaurante. Sorriem olhando a multidão. Do jeito que consegue, o garçom explica ser esse um evento de arte, o espaço é uma galeria. Olham-se sem pressa, ela sorri primeiro. Ele devolve o sorriso. Nada dizem, apenas descem ao átrio. Não somem como o primeiro casal, ao contrário, ficam e se abraçam ao som cantado de Me ne quitte pas, enquanto descobrem os corpos, elas, eles, elxs. Mexer, então, significa acessar, apresentar, existir ao outro e deixar que pela possibilidade da convivência com o desconhecido este possa ser sedutor apenas por ser igual, apenas alguém. O casal,

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sem saber de nada, reativa a cada uma das performers a qualidade de suas identidades e não somente a imagem de seus corpos. No meu pequeno esconderijo, no andar superior, próximo a entrada do restaurante, eis que ela surge também cantando, nessa espécie de cena tão própria dos cabarés, desde os intelectualizados franceses e alemães, undergrounds americanos, submundos latinos. Estou em sua cena, em seu espaço sem saber. Exatamente como sempre é. Ela não pede licença, apenas continua enquanto a fumaça me encobre quase que mero outro elemento cenográfico. Saio e a assisto existir a meio metro de seu corpo. O que é assustador para alguns, não foi. À minha frente, existia um alguém que era outra e era também uma artista. Coabitava ambas, em personagem e persona, sem ser possível distinguir as partes. E não importa separar, salvo o interesse por destituir sua verdade para destruí-la. Não se tratou de uma permissão minha para seu número, mas da aceitação de seu momento como mais importante a todos. Ela, agora, é infinitamente mais necessária do eu. E me sinto bem em assisti-la acontecer e existir assim. A dignidade com que ela realiza sua performance me ensina o quanto pode ser construído em mim de novos valores. Por um instante, lembro-me da experiência ao assistir Guilherme Peters, e o quanto não identificar se ele mesmo ou personagem estariam no pau-de-arara incomodava-me pela ausência de um radicalismo ainda maior, restringindo a performance ao cênico. Agora, não reconhecer um ou outro é especialmente performativo, pois paradoxalmente aproxima e distancia indivíduo e ficção de maneira fundante a uma terceira qualidade na exibição de sua presença. Se não há nome dado a essa terceira, que seja, então, o mais próximo ao entendimento do Trans (em maiúsculo), em sua capacidade de agregar o trânsito entre, a transformação de um a outro, o ‘além de’ identificado aos dicionários cuja soma não espera exclusão das partes. O Trans, por fim, é a performatividade da

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identidade por meio de uma dobra sobre ela mesma. Há um duplo estado de existência que implica explodir o binário (e portanto o manique-


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ísmo que vai da religião à ideologia política) apenas por comprovar ser possível existir nas brechas sem que para tanto seja necessário ser outra coisa que não humano. Ser trans é, por si, um gesto performativo de expansão desse tal humano. O último instante é um quadro: eles, elas, eles-elas, elas-eles, elxs ocupam o vão na arquitetura trazidos ao primeiro plano pela luz branca da Galeria. Como a exposição de corpos, o Mexa se realinha para desenhar uma exposição viva de existências. Nos últimos anos, a arte percebeu a importância de reativar outras possibilidades de presenças e, desde então, surgiram dilemas institucionais e sociais. Por terem se apresentados por meio de pequenos relatos pessoais, o mais inquieto é mesmo esse epílogo. Nele estão expostas pessoas e histórias, narrativas e momentos. Se, para xs performers o interior da Vermelho serve de palco ao aplauso, aos de fora, a Galeria reafirma a condição dos corpos por suas qualidades narrativas e artísticas. Ignorá-los seria destituir a qualidade de suas presenças bastarem à performatividade, algo que, até mesmo em algumas poucas ações apresentadas nos dias anteriores, parece não ter sido tão objetivamente resolvido, como já disse. Por outro lado, para elxs, a partir de seu ângulo de observação do instante, somos nós, o público, aqueles no interior do quadro emoldurado. Gostaria de perguntar-lhes o que isso lhes revela... Mas não há tempo. É preciso correr, a próxima performance começa em segundos.

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>> Um a um, a sala no térreo é ocupada pelo público. A próxima performance, Rastreando, de Bianca Turner, aguarda-nos com um quadro negro pintado na parede ao fundo. Luzes apagadas, projetor acesso. Sala cheia. Silêncio. É imediato o quanto as pessoas assimilam que uma projeção, mesmo quando não acesa, requer contemplação, atenção. Estranhamente, espetáculos, por mais que sejam presenciais, e por isso deveriam exigir melhor disponibilidade do público ao encontro, não convidam à mesma postura. Infelizmente. O que ela está fazendo?, pergunta a criança de quem só ouço a voz. As imagens projetadas são registros diversos da história brasileira, de políticos, culturais, acima de tudo estruturais, do quanto o pensar reacionário efetivamente se instaurou no cotidiano, desde a escravidão até a ditadura em uma espécie de relato biográfico do caos. Bianca não observa as imagens, o que seria demasiadamente simples como gesto, mas retira delas aquilo que, pelo registro, expões mais explicitamente seus argumentos. Para tanto, desenha no quadro negro sobre as projeções acumulando palavras, instantes, objetos, personagens, tendo o raspar do giz microfonado, o que sugere maior urgência ao movimento de revelação, congelamento, escolha, acumulação. Pela escrita silenciosa desse giz verborrágico, a artista ergue o arcabouço simbólico que não escapa de sua crueza. A história volta ao Presente, ao invés de ser reapresentada enquanto passado, e a lousa, que tanto nos

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significa, desde sempre, objeto ao uso educativo, agora nos educa ao terror de nossos acontecimentos e escolhas. E talvez seja ele, e

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apenas por ele, o quadro negro, o grande reinvento aos próprios desejos se quisermos mesmo outra perspectiva de futuro. Educar tornou-se há muito um subproduto da Educação já limitada a ser um sub-serviço burguês. Sabemos bem, ainda que apenas pelas informações mais básicas, o quanto as salas de aula fracassam em seus objetivos mais ordinários. A lousa de Bianca serve como outra proposição ao conhecimento: não requer a lógica cartesiana, não implica em conhecer por meio de estruturas classificatórias e falsas hegemonias, não necessita de vocabulários programáticos externos ao conhecimento comum, não identifica e prejulga conclusões, não implica em exercitar mecanismos baratos e ilusórios de assimilações, não produtifica o objetivo como necessidade única de conquista. No quadro final, após dezenas de imagens projetadas e registradas, o que se tem é o movimento do conhecimento histórico em direção à subjetividade dos acontecimentos e seus esconderijos agregando verborragia ao quão aberto pode ser o sistema interpretativo a quem pode acompanhar sua escrita. Imagine uma sala de aula, então, em que o conhecimento se amplie ao que é conduzido pelo viver, dia-a-dia, minuto a minuto, instante a instante, acontecimento a acontecimento. De quem seria o conhecimento? E o que seria mesmo o conhecimento? Rastreando, mesmo sendo um gesto de procura e de identificações ao tempo, rastreia no público sua capacidade em ir além das interpretações simplistas, convidando-o a se exercitar participante da narrativa. Dessa maneira, o dilema da improbabilidade da comunicação - que problematiza a capacidade de compreendermos por completo o sentido dado por uma informação, frente a singularidade inevitável do funcionamento cognitivo entre as pessoas, que torna qualquer informação subjetiva por si -, é exposto

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como resolução estética às tentativas de dogmatizar a informação e o próprio conhecimento. Não compreender, enquanto aspecto de leitura objetiva, significa superar o específico abrindo o campo do simbólico a quaisquer que sejam as possibilidades interpretativas. Palavras são elas mesmas e também tentativas de libertação dos discursos oficiais; imagens são rascunhos de silêncios ou da ausência de palavras e, ainda assim, universos próprios ao surgimento de sentidos maiores e íntimos. Riscos, sombras, espaços, ritmos.... Tudo sobre o quadro é o próprio quadro. Não são indissociáveis. Na parede, ao tempo em que o público deixa a sala e as vozes retomam o ambiente para si, a instalação aumenta a vontade de cumplicidade e nos convida a mergulhar em seu infinito. O tempo que permaneço olhando o quadro, como um estudante anárquico disposto a incendiar a escola, me leva a esquecer: há ainda outra performance.

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Corro. Subo ao primeiro andar. Já assistira Monstra, de ELISABETE FINGER e MANUELA EICHNER. Tenho pra mim, Elisabete como uma das mais inquietas e interessantes artistas brasileiras. Decido não entrar na sala completamente ocupada e dar espaço aos que ainda não viram o espetáculo. O primeiro instante: as mulheres subindo a escada, trazendo as plantas e... quer saber?, aonde posso ficar?, pergunto. Indicam-me o lugar, abro o computador e basta um minuto assistindo-as para me recordar porque no ano passado listei com um dos melhores trabalhos. Como escrever novamente? Isso sempre me tortura, ainda que sejam realmente poucos os espetáculos que me coloco a essa disposição. Bom, tentemos algo, penso, afinal, é um evento de performance e esse é o último escrito. Que tal um devaneio descritivo, livre e um tanto quanto fraco e imaturamente poético deixando a escrita surgir antes do pensamento crítico?

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O feminino em seu estado natural, como um estado ao natural. Primeiro toque no prato, primeira troca de poses. Os pés vermelhos, até então juntos aos chão e seguros, agora dividem-se também com o ar. As plantas deixam de ser somente parte presente para se valerem extensões. Segundo toque no prato, nova pose. O rádio liga, traz consigo a sonoridade de uma transmissão antiga. O rádio implica no reinventar o passado ao nosso imaginário. As plantas ganham cumplicidade aos corpos e trocam qualidades de toques entre suas peles. Terceiro toque no prato. Novo instante. O rádio não mais está ligado, o som agora são dos próprios pés, corpos, o contato com o chão. E juntam-se também as mandíbulas. O movimento delas pelo espaço da sala preenche o ambiente com o aroma de ervas. Muda-se assim a percepção e reconhecimento da ambiência, mais do que do ambiente. Quarto toque. A sexualidade explode feito um instinto. Plantas e corpos se confrontam à produção de prazeres que não são somente o gozo, mas radicalmente um pulso animalesco de vida. Quinto toque. Dançam. Rodopios sutis e gentis carregam as plantas nessa espécie de bailar cúmplice, enquanto o radio retorna. O ritualístico agora é a instituição do ‘gesto de ter’ ser o corpo, o próprio epicentro de sua transformação. A interrupção não vem pelo prato, e surpreende por ser inesperada, não anunciada. E elas retornam ao uníssono trazendo o riso na condição de ser ele também a reverberação sobre o próprio percurso até aqui. Sexto. Por retornar o prato, o anterior sugere-se um parênteses, e o riso a qua-

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lidade de sua desproteção. Movem-se umas sobre as outras inscrevendo no espaço um trajeto com as plantas possível de ser realizado apenas em conjunto. Ao redor e sobre elas, pedaços de folhas e raízes definem os corpos a partir de outras possibilidades. A planta maior é trazida solitariamente por todas. E é no respirar juntas que nasce o próximo movimento. Ou próximos. Dois estados: duas delas dançam como em luta com espadas; três permanecem coreograficamente em movimentos mais lentos e não menos narrativos. Entre os corpos humanizados e animalizados, existe a naturalidade do feminino como mediação. Oitavo. São as plantas quem dançam, então, conduzidas coreograficamente pelas performers entre percursos individuais e partituras e repetições; em seus contatos para produção de sons, enquanto pelos corpos os ruídos se valem pelas atitudes mais do que pelos gestos. A dança se transmuta ao tribal até ser novamente civilizatória, da sugestão do primitivo ao primitivo representado por Matisse. E assim permanece, como em exposição aos olhos externos que, pela primeira vez, podem ser reconhecidos. Do corpo artístico, do feminino representado, surge o estado vivo da presença pela urina, com a naturalidade que é haver ali um corpo. Por fim, as vozes aparecem ativando definitivamente a identidade às mulheres. O canto sobreposto constituído por frases específicas que remetem ao início da vida e da própria perspectiva da natureza agrega outra qualidade

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de presença. E cresce em volume e liberdade, cresce em libertação. Avança até ser manifesto. No estado de repouso se antecede o Nono toque no prato, a identidade registra o sujeito de cada performer. Não há mais apenas a dança, mas quem dança, e os olhos e estados físicos explicitam as individualidades ainda mais. Voltam ao conjunto, reencontram-se. As vozes são onomatopeias que traduzem os ares presos nos interiores formando uma melodia específica que readéqua a presença ao seu estado coreográfico. O prazer se reinventa sexual, é preciso do corpo da outra para instituir o duplo, e a insistência na respiração fólica atribui ainda mais organicidade ao contato e movimento. Até se fetichizar. Um último toque no prato, décimo, se não me atrapalhei na contagem, inicia o procedimento de recolher pedaços das plantas, das estruturas, sobras, rascunhos, registros, como se reunissem de volta ou recriassem as partes a novas qualidades e possibilidades de inícios, enquanto o rádio retorna e insiste. Saem pelo lado oposto. Fica a historiografia de suas presenças. O ar guarda a mistura entre planta e corpo, entre natureza e feminino, entre ação e mulher, entre pele e proximidade, entre destruir pela construção e construir pela destruição, entre performers extremamente talentosas e o prazer de assistí-las. Os aplausos são fortes e talvez os mais fortes desses quatro dias.

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O último dia na Galeria Vermelho, meu último também em que posso acompanhar a programação é fácil de resumir: a Verbo 2018 realizou realmente uma edição especial ao fugir do presente, das urgências, das questões, enquanto, paralelamente, sobre abrir dezenas de possibilidades para se repensar a performance diante de suas inúmeras qualidades de apresentação e acontecimento. Após mais de uma década, o festival ainda se comprova inquieto, estimulado, provocativo, divertido, sério e sobretudo à arte. Uma lista e tanto para justificar seus próximos dez anos. De minha parte, hora de dormir. E deixar que o dia de amanhã resolva o labirinto e as intersecções de tantos trabalhos. _________________________________________________ ______________ ___________________________________ ____________________________ _____________________ __________________________________________ _______ _________________________________________________ _______ __________________________________________ _____________________ ____________________________ ___________________________________ _____________ _________________________________________________ _ ________________________________________________ _______________ __________________________________ _____________________________ ____________________

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