Caderno Especial ANTRO POSITIVO MITsp 2016

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especial

2016


especial antro+ MITsp

editorials E

ste caderno é especial por muitos fatores. Iniciamos novas formas de provocar reflexões críticas, abrimos espaços para interessados em experimentar escre-

ver, afinamos nossos verbos, oficializamos o

editor

ruy filho projeto gráfico

patrícia cividanes

Coletivo Diálogos. E, para além de tudo isso,

capa

dialogar com os espetáculos torna as coi-

Still Life, de Dimitris Papaioannou

sas ainda mais fundantes e provocativas.

foto de Julian Mommert

Também aqui você encontrará a III Crítica Performativa, com apoio da MITsp e Itaú Cultural. Tudo indica que a soma dessas reflexões será uma novidade e não para nós, mas aos interessados por teatro. Então, boa viagem a todos. fotos: patrícia cividanes


lsumário 08 10 86 96 126

prólogo ato 1 críticas ato 2 experimentos em Crítica ato 3 intervenção e fotografia sobre a mitsp


f ace+twitter+instagram+periscope nos enco ntre també m no

quem expediente

www.antropositivo.com.br

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editores

Ruy Filho Patrícia Cividanes

ANTRO POSITIVO éumapublicaçãoquadrimestral, com acesso virtual e livre, voltada às discussões sobre teatro e política cultural. Para comentar, sugerir pautas, reclamar, colaborar, alertar algum erro ou apenas enviar um devaneio:

antropositivo@gmail.com aqui anonimato não tem vez. quem tem voz, tem também nome e é sempre bem-vindo


agradecimentos

colaboradores

m r e s e n h i s ta s a n t r o d i á lo g o s

Adair Gass

a n a carolina mar inho

Antonio Araújo

claucio and r é

Carminha Gongora

leandro nune s

Carolina Dias Afonso

maria teresa cr u z ruy filho

Daniele Valério Gabi Golçalves Guilherme Marques Henrique Carsalade

c o n ta m i n a ç õ e s

Januario Santis

Ramilla Souza

Marcia Marques

Maíra d o Na scim e nto

Marina Ludemman

Marcio tito

Natália Machiaveli Priscila Moraes Silvia Fernandes

traduções

valmir mar tins




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prรณlogo


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Brasil explode no exato momento em que inicio esse caderno. Pela televisão assistimos um ex-presidente ser conduzido pela polícia para prestar depoimentos. O povo começa a tomar as ruas e pequenos confrontos se formam. O presidente da Câmara foi formalmente acusado de corrupção e avançam as investigações, fecha o cerco sobre ele. Outras dezenas de políticos correm

para todos os lados em busca de botes de salvação inexistentes. Dezenas de empresários já ocupam celas como criminosos. Todos apontam para todos, ninguém mais consegue dormir em paz. Nem mesmo a presidente. E parece mesmo que, enfim, o Brasil começa a se aproximar do século XXI. O Brasil explodiu também ontem na sala do Auditório, no Ibirapuera. Uma explosão igualmente fundamental ao futuro. Ontem começou a III MITsp. O teatro se manifesta em suas duas possibilidades, arte e metáfora. Palco e política. E é impossível desassociá-las nesse momento. Ambas, cada qual ao seu modo, deverão e precisam modificar o amanhã. Mas esse caderno se volta apenas a uma, ao teatro real. Nada é mais urgente que experienciarmos agora possibilidades de invenção do real e da realidade. E ter uma mostra de teatro internacional, com tantos países envolvidos, da Europa à Africa, tantas culturas distintas, é um acontecimento e tanto. Descobrir e pensar o mundo pelos outros olhos, por outros ângulos, por outros argumentos. E estar junto à MITsp é o presente certo. Esqueçamos as ruas e as pancadarias e ofensas por um instante. Assumamos a ágora teatral como espaço ao diálogo, ainda que conflituoso. O teatro se valida pela possibilidade de nos levar à experiência de ações e pensamentos sem a necessidade de errarmos na concretude do cotidiano irremediável. O teatro serve à reinvenção do homem e da sociedade. E é essa a maior urgência, nossa maior necessidade. Então junte-se, venha. Novamente a Antro Positivo participa e se envolve ao máximo na tentativa de espalhar e ampliar as experiências possíveis trazidas nos dez espetáculos de 2016. Um olho no artista, outro nas ruas. Como verdadeiramente deve e precisa ser.

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especial antro+ MITsp


resenhas críticas A convite da organização, a revista Antro Positivo participa de mais uma edição da MITsp - Mostra Internacional de Teatro de São Paulo. O Ato I consiste em resenhas críticas assinadas pelo Antro Diálogos, coletivo de críticos sob o olhar de por Ruy Filho, escritas durante a mostra e no calor dela. Entre 3 e 13 de marços de 2016, este caderno será atualizado com as produções dos textos em tempo real.


especial antro+ MITsp

cin dere la foto Cici Olsson

joĂŤl pommerat



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Não há esperança mágica: ou você foge ou finge suportar

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s pássaros pararam de bater nas paredes de vidro e por isso deixaram de cair mortos, mas o barulho do choque permanece. Ele soa aqui dentro ora como a música infantil que me alerta sobre a lembrança obsessiva que não pode escapar, ora como um silêncio revelador e não sei se quero enfrentá-lo. O que aconteceria a nós se fosse essa a Cinderela apresentada a nossa infância? Atrás de mim, uma criança sentada assistia atentamente. Como essa história operará em seu imaginário? O que lhe acontecerá de distinto por se deparar com histórias menos polarizadas? Não consigo esquecer a menina atrás de mim, porque a menina dentro de mim se põe em movimento e quer conversar. A cada cinco minutos ela me causa um incômodo no estômago, ela receia ser esquecida e essa é a sua estratégia para me manter alerta. Não a ignoro porque gosto da tarefa que ela me concedeu. Lembrar dela é, em certa medida, esquecer de mim. E isso me conforta. Me distancia de alguns pensamentos. Enquanto mantenho o meu corpo ocupado, seja as mãos arrancando as

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cutículas das unhas, seja o meu estômago chacoalhando, desvio o foco. É Cinderela quem instrui. Manter o corpo em ação é fugir do abismo que o pensamento pode lhe destinar. Por isso se mantém a maior e infindável parcela das pessoas em trabalhos braçais – para afastá-las do perigo iminente que o ócio e a inquietação causam. E essa repetição que sua lembrança me ocorre legitima a minha existência. Não preciso ser responsável pela minha continuidade, é a ação a que me destinaram que me mantém viva – ela é a minha obsessão. É isso. E se um dia ela vier a me incomodar, pedirei a Deus, à fada madrinha ou às forças obscuras que me ajudem. Mas é ai que Pommerat nos emerge para a superfície seca e fedida à cigarro. Não há salvação ou realização mágica. Estou só nesse jogo entre a menina atrás de mim e a menina dentro de mim. E não há escapatória, senão enfrentar as duas e admitir que não sou nenhuma delas. Não se pode iludir as crianças com a ideia de esperança mágica, já que como nos lembra Pierre Bourdieu, “a esperança mágica é a mira do futuro próprio daqueles que não têm futuro”. Talvez a menina tenha entendido desde o início o que sua mãe lhe disse no leito da morte, talvez só tenha escolhido não entender enquanto não juntava a força necessária para se admitir o vazio que habita dentro dela. E esse

vazio é bem mais cinzento que as cores que insistem em impor na infância. É por isso que Cinderela é também o depositário das cinzas de cigarro, seja do pai ou da fada madrinha. Além dos jogos de palavras, cinzeiro é uma imagem possível para a menina que recolhe os cadáveres dos pássaros e dos cigarros. E, quando não houver mais cigarros nem cadáveres para serem recolhidos, restará apenas ela e as suas lembranças. Restará o barulho dos pássaros se chocando nas paredes de vidro, o cheiro das cinzas esquecidas no cinzeiro e a sensação de que a menina ainda está atrás e dentro de mim. Mas, agora, é Cinderela quem produz a fumaça. Agora, é ela quem decide fumar.

por ana carolina marinho

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Put you on my shoes...

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vida só é inadequada porque nós existimos. Fôrmas são criadas o tempo todo pra (de) limitar a existência. A grande maioria dos mitos de criação do mundo consiste em dar nomes, formas ou uma casca estética qualquer que contenha uma essência ou capacidade mínima de servir no papel de terceirizado administrativo de seu criador. Cria-se tudo, exceto a liberdade, que ao contrário, é inimiga da criação, ainda mais, sua arqui-inimiga. Como oposição, a liberdade se articula como sujeito que ameaça o processo de criação. A liberdade é antagonista porque criar é se opor, criar é opor-se ao tudo absoluto. O ato criativo tem como natureza instaurar nadas. Ele preenche de essência, como o ar, pequenas bolhas, aquelas de sabão mesmo. Essas bolhas mantêm suas películas naturalmente vulneráveis em interface com à realidade. Assim, como carros-bomba, o destino dessas bolhas é estourar, já que não são livres. Seus criadores projetam-nas para atingir alvos espalhados por esse mundo de tudo absoluto. Ah, como o mundo é cheio de tubo absoluto! Bem, quando elas atingem o alvo e estouram, no dia em que a criação rompe o casulo e cai no

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mundo, nesse dia, senhores, o tudo deixa de ser absoluto e passa a ser relativo. Ora, nada disso é novidade, porque não se cria de hoje. E tampouco essa absolutez do tempo presente. Quanto a ele, tal qual um organismo, conhecer os seus sintomas permite diagnosticar sua causa. Se o tempo está contaminado, é preciso fortalecer suas frentes. Creio aí não a função, mas a natureza consequencial da criação. Minúsculas bolhas de anticorpos injetadas pra curar a chaga do presente. … ou veja as minhas bolhas Pronto, agora vamos largar tudo e só ficar com os sapatos. O exercício é tentar caber neles. Joël Pommerat promove um grande exame com esse objetivo em seu Cinderella. Ele desafia seus personagens a entrar nos calçados, aprender a caminhar metidos neles e a pisar o mundo social sem derrubar nada ou parecer imbecil. O que ele não avisa é que colocou uma pedra pontuda em cada pé de sapato. Uma pedra chamada inadequação. Para muitos de nós é uma situação impraticável mas também um tanto inevitável. Existir exige paciência e habilidade ao manobrar a pedra de um lado para o outro no pé dolorido. Muitas vezes, o relatório de viver inclui atestar qual lado do pé dói menos. A inadequação da


menina, do pai, da fada madrinha, das filhas e do rei. O espetáculo é um desfile desajeitado no qual todos alternam e giram pedras agudas por baixo de suas palmilhas. Se dói, eles não anunciam. Bem, nós também não costumamos avisar. A regra, então, é isolar os olhares para longe de si, ainda que para isso seja preciso chamar a atenção. Os arquétipos de Pommerat se aquecem para entregar toda a natureza que os compõe, mas não entregam. O sapato apertado dá espaço à mediocridade. A inadequação afeta a realeza, afeta a convivência e afeta o futuro. Todos integram um time conscientemente descomposto e mergulhado no absurdo. Sandra peca socialmente só porque antes pecou contra si mesma. A dor da perda ensurdeceu sua razão e criou ao redor de si um casulo, o que não significa garantia de metamorfose. Na casa da madrasta, esse escudo insensível que envolve a garota é testado. Nem os gritos de ordem nem qualquer passarinho desavisado são capazes de atravessar a camada grossa que isenta a menina do real. Ela segue imune, até que surge um convite à imaginação, impetrado pela fada madrinha. Aqui, o diálogo imita um despertar, diante de todo sob controle, e surge uma esperança por transformação. Mas logo a magia da fada se revela inócua e sem saída. O casulo endurece um pouco mais. Por fim, uma balada

que é mais interessante do lado de fora produz aquele som grave que encontra ressonância dentro do tórax. A ausência real do rei ocupa a pista de dança. Se a vida medíocre de Sandra é resultado de um erro de empatia, o rei sofre o mesmo. Mas diferente dela, ele não teve chance e segue expondo de maneira passiva as bolhas que afetam o seu existir. Não há casulos ao redor dele. Sua inadequação é a bandeira de sua condição. Ele é transparentemente tenebroso como as paredes da casa onde Sandra mora. Assim, durante Cinderella, Pommerat reúne ar para soprar uma bolha. Ela chega a surgir, se solta e flutua. Do lado de cá, também surge uma bolha, no meu pé. Cada uma de um jeito, ambas são doloridas e igualmente imunes ao tudo absoluto do meu sapato.

por leandro nunes

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Crescer é mover o mundo ou sobre a Cinderela que sonha

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uando eu era criança, um grande pássaro veio me buscar na cama para darmos um passeio pela noite. Foi neste dia que eu toquei as estrelas. Quando eu era criança, existia uma árvore que falava comigo no quintal da minha avó. Nós conversávamos por horas sobre a forma como o dia se tornava noite e tornava a virar dia na manhã seguinte. Quando eu era criança, eu subi uma escada até o céu e comi algumas nuvens. Elas tinham um gosto doce. Nada disso, claro, aconteceu de verdade. Quando eu era criança, eu estive sozinha. E quando se é uma criança solitária, é preciso que a gente preencha os buracos do tempo com imaginação. Porque, neste momento, a realidade não nos cabe, a realidade é um dado que não nos interessa. É assim que Sandra, a Cinderela de Pommerat, escapa ao real impossível de aceitar da morte da mãe. Recriando sua presença constantemente, através de uma obstinada promessa de nunca parar de pensar nela. Antes disso, ela cria um mundo particular, onde a conexão com o real e

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com os outros é sacrificada em prol de que a mãe “continue viva”. Ou ainda, que Sandra nunca precise, de fato, aceitar que ela morreu. Muito cedo, a menina entende que não é tão fácil assim falar e ser ouvido. Me pergunto se a fada madrinha não é também tão somente outro fruto da imaginação de Sandra. Uma fada que corresponde à sua personalidade irritante e difícil, mas que neste conto, não serve para transformar a Cinderela numa princesa. A fada aqui é tão confusa quanto sua própria afilhada e sua função, na verdade, é a de empurrá-la em direção ao mundo real. Um real que se materializa na forma do baile, do encontro não-planejado com o príncipe e no primeiro contato verdadeiro com uma pessoa desde que a mãe morreu. Talvez, ao se deparar com uma realidade tão parecida com a sua (o príncipe também órfão de mãe), Sandra tenha conseguido se desconectar um pouco de si mesma. Mais uma vez, ela não é salva. Nem pelo homem, nem pelo casamento, nem pela promessa de uma vida mais fácil. Talvez, a única coisa que funcione como a salvação de Sandra seja sua capacidade de entender que é chegada a hora de crescer. É preciso deixar pra trás o mundo inventado da sua imaginação. Sim, a mãe está morta. Sabê-lo, de verdade, é aceitar que a vida continua. E

que não existe culpa nenhuma em que seja assim. Crescer é mover o mundo, o próprio mundo. E, assim como falar e ser ouvida, também não é simples. Ao invés de abóboras, vestidos e ratos, é esta a transformação que muda a vida da Cinderela. Se eu tivesse que dizer algo para ela, seria que crescer é a melhor coisa que pode acontecer na vida de uma criança solitária. Mas, aqui já “não sei se falo de mim ou de outra pessoa. Minha memória está cansada”.

por Ramilla Souza

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A culpa como revelação do cumum

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lgum dia você poderá perder o controle que mantém de sua culpa. Poderá sentir culpa por coisas pelas quais nunca sentiu antes. Um mau estar súbito e retroativo. Cada partícula da culpa encontrando o corpo denso. Vestir-se ao acordar não será mais vestir um inocente. Cinderela entrou na culpa que pertence à todos. O receptor fraternalmente tira a culpa do emissor e planta em si. Colocado em situação você consegue identificar o interruptor entre sentir ou não sentir? Foi livre para navegar sem que alguma coisa atingisse seus compromissos em cheio, suas certezas, seus horários, você apagou o sentido da culpa para não perder tempo. Nem todos conseguem ser assim. Na dimensão seguinte e em maior velocidade, corria também o tempo em que você voltaria do coma, formigamento será o presságio de que logo você não suportará mais o tempo presente. Agiu com fraqueza porque entendeu que ser fraco poderia facilitar as coisas, entregou sua vontade para outros juízes porque seguir sem questionar pareceu uma opção confortável. Acordou e a boca seca apontou falha no sistema. Cada dia gozado no amargo, as coisas duráveis que você deixou

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que o valor se perdesse ainda com pouco tempo de uso. A pressa com que você apressou processos que pediam curta contemplação. Noites em que você aplicou métodos de outras áreas em momentos onde um ser implorava para escutar apenas a sua voz humana. A culpa armadeira de botes contra a paz, sua culpa é mediar o que não carecia outro mediador se não boa vontade e espírito. As coisas ruins que escreveu para exercitar a vaidade, as pessoas ingênuas que seduziu para ampliar a piada, as exposições que você autorizou na vida de outrém, nada disto abalou sua ideologia de ser pedra, nem mesmo quando ignorou o amor que seus iguais lutavam para recuperar, preservar ou fazer nascer - todas as vezes você passa como luz pela fechadura larga. Angustiada e imperceptível. O mundo ruía e você foi pai e mãe da ação de ficar parado, ninguém sabia mais o que te dizer, você estava definitivamente louca, intransigente e ríspida. Cega feroz tomando a forma do primeiro inimigo da comunicação. Para sentir verdadeira culpa não é preciso equipamentos. Traga sangue ao coração. Talvez ainda exista algo capaz de me fazer sentir as coisas que me acontecem. E para matar a culpa é preciso usar do mesmo método que absolve também o emissor, neste caso - será preciso viajar no tempo. por Marcio tito



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still life foto Nysos Vasilopoulos

dimitris papaioannou



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A natureza poética do existir ao mundo

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m homem, e depois o Homem como alguém. O sublime, fortemente poético em suas sugestões, estetizando o que se revelará ser céu, ser mar, superando a condição de ser também uma estrutura cenográfica. O espetáculo Still Life, do artista grego Dimitris Papaioannou, é um tanto cena, dança, performance, artes visuais e poesia silenciosa que se utiliza das imagens contrastadas entre corpo e ambiência. Pensar exatamente quais corpo e ambiência é fundamental, portanto. Buscar definir o espetáculo, além de desnecessário, seria reduzir o impacto da experiência oferecida. Há nele a dança, a partir da compreensão do gesto e narratividade do corpo, a expressão do indivíduo pela dimensão material do corpo em si. Também artes visuais, dimensionada pela forte presença da construção de imagens. Exatamente pela contaminação do corpo feito imagem plástica e da matéria como corpo cênico, a performatividade é evidente. Deixemo-lo, então, ser apenas um acontecimento, o que já é muito, dada a potência das escolhas. A obra criada por Dimitris propõe outra espécie de diálogo com o espectador, mais subjetivo e menos conclusivo. Está aí sua maior complexidade. Ao representar homem e mundo, o espetáculo provoca diversas urgentes discussões. Só é possível pensarmos no homem como alguém, e não algo, se compreendido como

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deslocado daquilo tipo por Natureza. Não negando a naturalidade humana, esse homem diz respeito ao ser traduzido e individualizado, ou seja, o pertencente e construído por sua história, costumes, escolhas. Em resumo, o homem se desloca da natureza ao traduzir por si a própria ideia de cultura. Etimologicamente, Cultura vem de cultivo, sua origem está mesmo condicionada à Natureza, por isso ainda a confusão. Em um segundo instante, outros sentidos se colocaram ao termo, como produzir, trabalhar, cuidar; e o Homem passou a lidar com o sentido de cultivar diretamente a algo em seus entendimentos de proteção, relacionamento e habitação, até expandí-lo ao outro, gerando a necessidade de espaços comuns, físicos e simbólicos. Todavia, as relações exigem regras para que efetivem e estabeleçam o comum, e ao acúmulo delas surgiu o que denominou-se por civilidade. Assim, a Cultura existe ao redor e em nós, ao tempo em que afirma o Eu e disciplina a estética do Eu, submetida que está às inevitáveis ordens e morais. O Homem, ou melhor, o humano representado em Still Life, a partir do mito de Sísifo, do escritor e filósofo Albert Camus, sucumbe aos limites de sua condição cultural, da existência confinada ao exercício contínuo da ação repetitiva, cuja finalidade justifica apenas o próprio existir e nada mais. Um círculo ininterrupto de ação e reação, desprovido de transformações ao ser. Em cena, homens e mulheres retratam a modernidade desse aprisionamento produtivo ao gesto, enquanto sobre eles a Natureza se for-


The poetic nature of existing to the world

A

man, then the Man as someone. The sublime, highly poetic in its suggestions, aestheticizing what will be proven to be the sky, the sea, surpassing the condition of also being a scenic structure. Still Life, from Greek artist Dimitris Papaioannou, is somewhat scene, dance, performance, visual arts and silent poetry that use the contrasting images of body and ambience. Thinking exactly what body and ambience is therefore essential. Trying to define the show, beyond unnecessary, reduces the impact of the offered experience. There is dancing in it, from the understanding of the gesture and the narrative of the body, the expression of the individual through material dimension itself. There are also visual arts, dimensioned by the strong presence of image building. It is exactly through the body contamination made into plastic image and matter as a scenic body where performativity is evident. Let it then be just an event, which is already a lot, given the power of the choices. The work created by Dimitris proposes another kind of dialogue with the viewer, more subjective and less conclusive. This is then its greater complexity. Representing the man and the world, the show brings in several urgent matters. One can only think of the man as someone, not as something, if understood as displaced by

nature. Not denying the human nature, this man is yet to be translated and individualized, that is, owned and built by her/his history, customs, and choices. In short, the man moves away from nature when translating the very idea of ​​culture. Etymologically the word culture comes from cultivation; its origin is even subjected to Nature, thus the ongoing confusion. On second thought, other senses are engaged to the term, like producing, working, caring; and the Man started to deal with the sense of cultivating directly to something in their understanding of protection, relationship and housing, until expanding it to the other one, creating the need for common, physical and symbolic spaces. However, relations require rules that enforce and establish the common ground, and the accumulation of them erupted as what we call civility. This way, culture exists around us and in us, and at the same time in which it affirms the Self and disciplines the Self, it is subjected to the inevitable orders and morals. The man, or rather the human represented in Still Life, coming from the myth of Sisyphus, from the writer and philosopher Albert Camus, succumbs to the limits of his cultural condition, the confined existence to the continuous exercise of repetitive action, whose aim justifies only his own existence and nothing else. An uninterrupted circle of action and reaction, devoid of transformations of the being. On stage, men and women portray the modernity of this productive imprisonment in the gesture while

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especial antro+ MITsp

ma em fumaça contida por um imenso plástico. O céu, e depois o mar, possuem suas próprias narrativas, levando ao homem um existir ainda menor. Nessa separação, a Natureza se coloca amoral, impositiva, sem coerência externa a ela e não necessita de aceitação, pois não possui desejo de tradução algum. Sua construção é mutável e se reformula constantemente como artifício de sobrevivência. O efeito poético é radical. Provoca ao espectador deslocamentos cognitivo e memorial. Todos carregamos representações de céu e mar, mas a versão oferecida por Dimitris, ao não se querer exageradamente literal, acaba por ampliar o reconhecimento pelas sensações ao visível e não por descrições, levando a um encontro mais profundo, particular e verdadeiro. O homem em cena reconhece primeiro o próprio corpo, enquanto esse se reafirma sistematicamente, distorce e reinventa. E, assim como o gesto ininterrupto do mito de Camus, que ao empurrar uma rocha ao topo da montanha a vê rolar novamente para a base, necessitando recomeçar o trabalho, o corpo sempre retorna à sua forma original, em uma espécie de limite e aprisionamento. Ganham vozes, quando os performer arrancam fitas dos chãos, cujos ruídos se acumulando e sobrepondo deixam de ser sons, sugerem o surgimento de um dialeto comum e particular. Até terminarem civilizadamente sentados ao redor de uma mesa absorvendo a própria natureza naquilo que ela é capaz de ser dominada e repetida, o alimento inevitável ao existir e sobreviver humano. Retorna-se, pois, ao início dessa reflexão, quando a Cultura, portanto o convívio, a civilização, surgia como desdobramento etimológico da definição de Natureza. O homem, ao buscar cada vez mais sua independência, cujo processo racionalista acabou por tornar o pró-

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prio corpo um ambiente teórico sobre o ser, acaba sempre por reafirmar a Natureza como princípio para se explicar. Dimistris Papaioannou elabora em Still Life um complexo jogo sobre o mundo e o existir nele, a partir da presença humana. Imagens fortes, inesperadas, aparentemente simples e que escondem complexidades técnicas realmente impressionantes. Belo e urgente, o espetáculo surpreende pela facilidade com que silencia o espectador, em uma entrega que só pode ser compreendida como um retorno ao mais profundo de si mesmo. É curioso assistir o público levantar e se aglomerar ao redor da mesa, aonde os atores estiveram, para devorar os restos deixados. Enquanto saboreiam as azeitonas, penso o quanto ainda pode ser dito ao espetáculo sobre a falência dessa civilidade contemporânea que recusa a Natureza no e do Homem e pragmatiza a Cultura por distorções e dominações políticas, econômicas e sociais. Os acontecimentos na Grécia contemporânea vão desde o colapso financeiro que assola a Europa ao surgimento de milhares de migrantes pelas ruas e cantos das cidades. Existe nisso um dilema sobre o futuro, em que os locais miram o amanhã desiludidos, enquanto os recém chegados olham-no com esperança. De todo modo, ambos os grupos descritos coexistem em Still Life, como citações possíveis às leituras inevitáveis frente à história recente. Ao primeiro, a condição física, real, simbolizada também naquele apoiado entre a escada e corpo do outro , sem que essa resolva verdadeiramente a situação; também aquele que, igualmente em uma escada de pedras construída degrau por degrau, se vê aprisionado pela ausência de estrutura capaz de suportar o andar. São esses indivíduos impossibilitados de seguir ou alcançar o cosmo em movimento aci-


on them Nature is formed in smoke contained by a huge plastic. The sky and then the sea have their own narratives, leading the Man to an even smaller existence. In this separation, Nature arises amoral, imposing, without external coherence to itself and not in need of acceptance because it has no desire for any translation. Its construction is changing and constantly reshaping as survival artifice. The poetic effect is radical. It causes the viewer memory and cognitive shifts. All of us carry along representations of the sky and sea, but the version offered by Dimitris, not presented overly literal, ultimately increases the recognition through the sensations of the visible and not by descriptions, leading to a deeper encounter, both private and true. The man on stage first recognizes his own body, as it reaffirms itself systematically, distorting and reinventing. And as the uninterrupted gesture of the Camus myth, that of pushing a rock up the mountain only to see it roll back to the base, requiring the restarting of the work, the body always returning to its original shape in a kind of limit and imprisonment. Voices come up when the performers tear the tapes from the floor, whose noises pile up and overlap, now no longer sounds, suggesting the emergence of a common and private dialect. Until they finish civilly sitting around a table, absorbing the very own nature in what it is able to be mastered and repeated, the inevitable food to the human living and survival. It returns therefore to the beginning of this thinking, when Culture, then the living, the civilization, emerged as an etymological unfolding for the definition of Nature. Man, in seeking ever more his/her independence, whose rationalist process ended up making the body itself a theoretical

environment about the being, always ends by reaffirming Nature as a principle to explain. Dimitris Papaioannou elaborates on Still Life a complex game about the world and the existing in it, from the perspective of the human presence. Strong images, unexpected, seemingly simple and which hide really impressive technical complexities. Beautiful and urgent, the show surprises by the easiness with which makes the viewer mute, in such a delving that can only be understood as a return to the depths of her/himself. It is curious to watch the audience rise up and crowd around the table, where the actors were, to pig out on the remains left. While tasting the olives, I think how much can still be said to the show on the failure of this contemporary civility that refuses to Nature in and from Man and pragmatizes Culture by distortions and political, economic and social dominations. The events in contemporary Greece range from the financial meltdown that plagues Europe to the outbreak of thousands of migrants through the streets and corners of the city. There is in this a dilemma about the future, where the local people aim at the tomorrow disillusioned, while newcomers look to the future with hope. In any case, both groups described coexist in Still Life, as possible quotes to the inevitable readings in the face of recent history. At first, the physical, real condition symbolized in the scene when an actor supports the other one between the ladder and the other’s body, and the ladder doesn’t solve the situation; also in another one in which an actor, on a stone staircase built step by step, sees himself trapped by the lack of structure capable of supporting the floor. These are individuals unable to follow or achieve the cosmos in the movement above their heads. Characters of a time when

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especial antro+ MITsp

ma em fumaça contida por um imenso plástico. O céu, e depois o mar, possuem suas próprias narrativas, levando ao homem um existir ainda menor. Nessa separação, a Natureza se coloca amoral, impositiva, sem coerência externa a ela e não necessita de aceitação, pois não possui desejo de tradução algum. Sua construção é mutável e se reformula constantemente como artifício de sobrevivência. O efeito poético é radical. Provoca ao espectador deslocamentos cognitivo e memorial. Todos carregamos representações de céu e mar, mas a versão oferecida por Dimitris, ao não se querer exageradamente literal, acaba por ampliar o reconhecimento pelas sensações ao visível e não por descrições, levando a um encontro mais profundo, particular e verdadeiro. O homem em cena reconhece primeiro o próprio corpo, enquanto esse se reafirma sistematicamente, distorce e reinventa. E, assim como o gesto ininterrupto do mito de Camus, que ao empurrar uma rocha ao topo da montanha a vê rolar novamente para a base, necessitando recomeçar o trabalho, o corpo sempre retorna à sua forma original, em uma espécie de limite e aprisionamento. Ganham vozes, quando os performer arrancam fitas dos chãos, cujos ruídos se acumulando e sobrepondo deixam de ser sons, sugerem o surgimento de um dialeto comum e particular. Até terminarem civilizadamente sentados ao redor de uma mesa absorvendo a própria natureza naquilo que ela é capaz de ser dominada e repetida, o alimento inevitável ao existir e sobreviver humano. Retorna-se, pois, ao início dessa reflexão, quando a Cultura, portanto o convívio, a civilização, surgia como desdobramento etimológico da definição de Natureza. O homem, ao buscar cada vez mais sua independência, cujo processo racionalista acabou por tornar o pró-

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prio corpo um ambiente teórico sobre o ser, acaba sempre por reafirmar a Natureza como princípio para se explicar. Dimistris Papaioannou elabora em Still Life um complexo jogo sobre o mundo e o existir nele, a partir da presença humana. Imagens fortes, inesperadas, aparentemente simples e que escondem complexidades técnicas realmente impressionantes. Belo e urgente, o espetáculo surpreende pela facilidade com que silencia o espectador, em uma entrega que só pode ser compreendida como um retorno ao mais profundo de si mesmo. É curioso assistir o público levantar e se aglomerar ao redor da mesa, aonde os atores estiveram, para devorar os restos deixados. Enquanto saboreiam as azeitonas, penso o quanto ainda pode ser dito ao espetáculo sobre a falência dessa civilidade contemporânea que recusa a Natureza no e do Homem e pragmatiza a Cultura por distorções e dominações políticas, econômicas e sociais. Os acontecimentos na Grécia contemporânea vão desde o colapso financeiro que assola a Europa ao surgimento de milhares de migrantes pelas ruas e cantos das cidades. Existe nisso um dilema sobre o futuro, em que os locais miram o amanhã desiludidos, enquanto os recém chegados olham-no com esperança. De todo modo, ambos os grupos descritos coexistem em Still Life, como citações possíveis às leituras inevitáveis frente à história recente. Ao primeiro, a condição física, real, simbolizada também naquele apoiado entre a escada e corpo do outro , sem que essa resolva verdadeiramente a situação; também aquele que, igualmente em uma escada de pedras construída degrau por degrau, se vê aprisionado pela ausência de estrutura capaz de suportar o andar. São esses indivíduos impossibilitados de seguir ou alcançar o cosmo em movimento aci


on them Nature is formed in smoke contained by a huge plastic. The sky and then the sea have their own narratives, leading the Man to an even smaller existence. In this separation, Nature arises amoral, imposing, without external coherence to itself and not in need of acceptance because it has no desire for any translation. Its construction is changing and constantly reshaping as survival artifice. The poetic effect is radical. It causes the viewer memory and cognitive shifts. All of us carry along representations of the sky and sea, but the version offered by Dimitris, not presented overly literal, ultimately increases the recognition through the sensations of the visible and not by descriptions, leading to a deeper encounter, both private and true. The man on stage first recognizes his own body, as it reaffirms itself systematically, distorting and reinventing. And as the uninterrupted gesture of the Camus myth, that of pushing a rock up the mountain only to see it roll back to the base, requiring the restarting of the work, the body always returning to its original shape in a kind of limit and imprisonment. Voices come up when the performers tear the tapes from the floor, whose noises pile up and overlap, now no longer sounds, suggesting the emergence of a common and private dialect. Until they finish civilly sitting around a table, absorbing the very own nature in what it is able to be mastered and repeated, the inevitable food to the human living and survival. It returns therefore to the beginning of this thinking, when Culture, then the living, the civilization, emerged as an etymological unfolding for the definition of Nature. Man, in seeking ever more his/her independence, whose rationalist process ended up making the body itself a theoretical

environment about the being, always ends by reaffirming Nature as a principle to explain. Dimitris Papaioannou elaborates on Still Life a complex game about the world and the existing in it, from the perspective of the human presence. Strong images, unexpected, seemingly simple and which hide really impressive technical complexities. Beautiful and urgent, the show surprises by the easiness with which makes the viewer mute, in such a delving that can only be understood as a return to the depths of her/himself. It is curious to watch the audience rise up and crowd around the table, where the actors were, to pig out on the remains left. While tasting the olives, I think how much can still be said to the show on the failure of this contemporary civility that refuses to Nature in and from Man and pragmatizes Culture by distortions and political, economic and social dominations. The events in contemporary Greece range from the financial meltdown that plagues Europe to the outbreak of thousands of migrants through the streets and corners of the city. There is in this a dilemma about the future, where the local people aim at the tomorrow disillusioned, while newcomers look to the future with hope. In any case, both groups described coexist in Still Life, as possible quotes to the inevitable readings in the face of recent history. At first, the physical, real condition symbolized in the scene when an actor supports the other one between the ladder and the other’s body, and the ladder doesn’t solve the situation; also in another one in which an actor, on a stone staircase built step by step, sees himself trapped by the lack of structure capable of supporting the floor. These are individuals unable to follow or achieve the cosmos in the movement above their heads. Characters of a time when

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especial antro+ MITsp

ma de suas cabeças. Personagens de um tempo em que o esforço nada significa frente à dimensão de infinitude. Existe nisso uma percepção clássica trágica do indivíduo submetido ao imperativo das vontades externas, talvez deuses, talvez a natureza. Ao segundo, diferentemente, por exemplo, Dimitris constrói a metáfora da cooperação e integração do grupo que, ao se assumir conjunto ou sociedade, faz-se capaz de conduzir, equilibrando em suas cabeças, a mesa posta. Dividir a mesa e deixar surgir entre os performer um corpo único, social, cultural, indivíduo ao instinto humano de pertencimento comunitário. Ao se valer da dicotomia entre desilusão e esperança, Dimistris traduz, sem a prepotência de precisar ser definitivo, o Homem como espaço físico, aonde, pelo corpo, Natureza e Cultura se potencializam ainda mais, em contante recomeço à tentativa de uma terceira possibilidade. Não é tão fácil encontrar a narrativa de sustentação ao espetáculo, pelo simples fato de não existir, se procurada nos modelos habituais. Não se trata também, porém, de quadros sequenciais, mas da organização de experiências específicas, se não calculadas ao mesmo esperadas, pelas quais, ao acúmulo provocar-se no espectador sensações inomináveis e totalmente singulares. Seja na sugestão de esculturas clássicas e os princípios norteadores do Belo, seja na força imponderável da Natureza, do vento, a deformar e reapresentar o corpo, o fato é a terceira possibilidade de compreensão do homem está na intersecção possível de uma presença naturalmente cultural e culturalmente natural. Ou seja, plenamente alguém e algo. Still Life, expressão usada na pintura para designar a Natureza Morta, estilo voltado à representação de objetos, frutas, flores, sem a presença humana, se traduzida significa-

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rá também Vida Ainda. No espetáculo, a representação do humano e da natureza lida simultaneamente com ambas as possibilidades, tornando-se nem tão determinante qualquer definição, o que é por si sempre mais interessante. Revela o ser como frágil objeto ao todo, ao cosmos; tanto quanto a natureza em seu estado de resistência ao Homem. O que pode sugerir uma leitura cosmogônica igualmente se faz apocalíptica. Início e fim como sendo um o deslocamento do outro, continuado, mítico, feito Sísifo. Resta descobrir, para além do provocado pelo espetáculo, em que lugar desse movimento encontra-se o homem, a humanidade, e o quanto lhe é possível se mover nessas condições, mesmo que quaisquer movimentos sejam inevitavelmente encerrados em si mesmos. As inquietações de Still Life parecem mesmo se desdobrarem em sensações igualmente sem fim. Dimitris Papaioannou constrói uma obra original, sem aproximações excessivamente diretas com outros criadores contemporâneos. A originalidade de suas imagens e escolhas confrontam um mercado de apropriações, cópias e citações óbvias estabelecido e dominante na cena contemporânea, revelando Dimitris como um dos grandes artistas criadores, e não apenas realizadores, da atualidade. Sem que para tanto precise instruir, preparar, explicar o espectador o seu vocabulário simbólico, Dimitris potencializa a experiência ao descobrimento complementar, pelo qual o espectador é tanto quanto criador dos significados e responsável, sobretudo, aos entendimentos finais. Nessa permissão ao outro, ganha a dimensão poética da obra. Certamente o instrumento mais ausente, ainda que urgente, ao sobreviver presente da natureza e do homem. Still Life promete e oferece uma experiência radicalmente poética, particular e especial.


effort means nothing against the dimension of infinitude. There is in this a classic tragic perception of the individual subjected to the requirement of external wills, maybe gods, maybe nature. To the second one, differently, for example, Dimitris builds the metaphor of cooperation and integration of the group that, when recognized as a flock or society, is able to guide, balancing on their heads, the table set. Dividing the table and letting appear among the performers a single, social, cultural body, individual to the human instinct of community belonging. To make use of the dichotomy between disillusionment and hope, Dimitris translates, without the arrogance of the need of being definitive, the Man as a physical space, where, through the body, Nature and Culture leverage themselves even more, in constant restart of the attempt of a third possibility. It is not so easy to find the foundational narrative that supports the show, for the simple fact that it does not exist, if it is sought in the usual ways. These are not, however, sequential frames, but the organization of specific experiences, if not calculated or even expected, by which, to the buildup provoke in the viewer some nameless and totally unique sensations. Be them the suggestion of classical sculptures and the guiding principles of the beauty, be them in the imponderable forces of Nature, the wind, deforming and re-presenting the body, the fact is that the third possibility of understanding the Man lies in the possible intersection of a naturally cultural and culturally natural presence. That is, fully someone and something. Still Life, expression used in painting to designate a “dead nature”, a style focused on the representation of objects, fruits, flowers, without the human presence, and if translated to Portuguese, it can also mean “There Is Life Yet”. In

the show, the representation of the human nature is read simultaneously with both possibilities, becoming not so decisive in any setting, which is more and more interesting. The show reveals the being as a fragile object in the whole, to the cosmos; as well as Nature in its resistance to the human condition. What may suggest a cosmogony reading also becomes apocalyptic. Start and end as a displacement one from the other, continuing, mythical, made as Sisyphus. It remains to discover, beyond what is caused by the show, where is this place in which movement the Man is found, her/his humanity, and how much is it possible to move through these conditions, even if any movements are inevitably detained in themselves. The concerns of Still Life even seem to unfold in endless sensations. Dimitris Papaioannou builds an original work without excessively direct approaches with other contemporary creators. The originality of his images and choices confront an appropriations market, obvious copies and quotations established and dominant in the contemporary scene, revealing Dimitris as one of the great creative artists, not just a maker of nowadays. Without much need to teach, prepare and explain the viewer his symbolic vocabulary, Dimitris enhances the experience to some further discovery, by which the viewer is a creator of meanings and is responsible, above all, to reach final understandings. Allowing the other to this, the poetic dimension of the work reaches its point. Certainly the most absent instrument, even urgent, when surviving present to the Nature and the Man. Still Life promises and offers a radically poetic, private and special experience. por Ruy Filho

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Sobre as pedras e a capacidade de inventar o céu

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ntre o homem e deus há o céu. E quando deus está morto, sobra apenas o homem e um horizonte infinito e misterioso. Empilham-se, então, blocos de pedra que, como escadas, servem pra deixar a terra firme e transportar-nos para longe da condição humana. Mas os blocos são insuficientes. E o homem apenas se depara com o homem (que se depara com outro homem que se depara com outro homem que se depara consigo mesmo, num contínuo circuito de pés, pernas, mãos, braços, calças, mangas de camisas, gravatas...). Trabalhar e subir aos céus em escadas sem qualquer estabilidade, eis o risco que corremos diariamente. E a concretude da pedra nos evidencia: somos humanos. Falíveis. E as pedras não se cansam de rolar ladeira abaixo. Em Still Life, de Dimitris Pappaioannou, o homem se

depara com sua própria condição. Repetir, trabalhar. Cavar o chão, cultivar. A encenação, absolutamente imagética e cheia de possibilidades de leitura nos remete ao mito de Sísifo, de Albert Camus. A coreografia, a escolha dos materiais, tudo parece evocar a concretude de uma existência sem finalidade mas que sobrevive – e é bela! Para Camus, o mais importante é que no momento da queda, a pedra nos abre a possibilidade da reflexão. Continuar é uma escolha. E escolher continuar a carregar pedras é um potencial estado de revolta, é a exaltação da liberdade, a possibilidade da paixão. Em Still Life é possível tocar o céu com o arado do trabalho. Unir o mundo concreto e o abstrato. Hades e Paraíso. Futucar o centro do universo, integrar o que foi cindido. É possível criar um céu. É possível tentar ser deus, sendo apenas um homem.

por Maíra do Nascimento

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“E

pifania” pode ser o instante em que o céu e sua mágica estão mais próximos ao chão da Terra e ao efêmero dos mortais, de forma que o ser humano tocado por este desalinho entre o possível e o impossível vê-se diante da expressão suprema do mistério superior. O cosmo, nesta dimensão, atua como feitor dos homens e mulheres, que neste caso estão submetidos ao ciclo de tarefas arquitetadas por esta força estranha que controla e colore (de cinzas) os dias e as horas. Sentir o céu, este céu passível de ser tocado pelo corpo, é também ridicularizar todas as coisas que envolvem a sobrevivência da espécie, comer , comer em grupo, trabalhar, trabalhar em grupo, ser debulhado em um acidente, ser esmagado por um muro ou deixar que alguma tarefa escorra entre os dedos, são apenas exemplos do que o sopro dos astros é capaz de fazer com o impreciso nexo da vida humana e sua cambaleante busca por significado. Nenhum ateu ocidental deixa de pensar sobre Deus e os possíveis diálogos advindos deste encontro folclórico - Filosófico!

Durante o espetáculo construí meu álibi para a humanidade. Quando Deus caísse de pau em todos nós devido às repetidas tragédias que somos viciados em reproduzir. E este Deus, ora justo e ora arrogante, me pressionava a dizer mais em nossa defesa, e eu estava travado no mesmo argumento-álibi: Os bailarinos existem, o teatro existe, leve em consideração, Deus Cruel! Talvez Still Life seja este ponto de constrangimento entre os deuses que especulamos a existência e os mortais que seguem revelando que em seu íntimo todos os trabalhos e todas as angústias se parecem, seja o bilionário estado-unidense cheirando pó branco nos seios da prostituta ucraniana, seja uma eslovena contando estrelas ao lado de sua filha médium. Somos aquele ser pré-histórico que idealizou a existência de um ser etéreo responsável pelo sol, pela chuva e pelos frutos da colheita. Pergunto qual seria a fundamental diferença, se é que há, entre melar o dedo na lama e tentar representar as cenas da vida nas paredes de uma caverna e treinar corpo e mente para recriar ações que significarão coisas no ar. De qual matéria somos quando fincamos o ballet nas paredes do Teatro? Quando fincamos algo nas paredes do vento... por Marcio tito

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agora algumas das matérias publicadas em nossas edições poderão ser lidas também em inglês www.antropositivo.com.br


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revolting music neo muyanga

crédito não informado

Inventário das canções de protesto que libertaram a África do Sul, de Neo Muyanga



especial antro+ MITsp

Por um inventário de canções insurgentes

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ão tinha ideia que o encontro seria tão profundo e sutil. Quando anunciada a palavra “protesto” em seu título, não imaginava que a experiência seria insurgente. Preciso dizer da distância que essas duas palavras se apresentam pra mim ainda que habitem o mesmo universo semântico. “Protestar” como esse comprometer-se publicamente, em certa medida, tem o sentido desgastado pelo excesso de discurso e de polaridades. O protesto convoca a construção dos lados. E é ai que a palavra “insurgir” me parece ainda mais forte para dizer sobre o ato de opor-se, indagar-se e revoltar-se. O prefixo “in” adensa esse movimento para dentro e revela que não existem lados, mas profundidades. O mergulho é sempre dentro de si. Pois bem, digo isso, porque chamaria o espetáculo de Inventário das canções insurgentes que libertaram a África do Sul. O espetáculo é de um ordem do sensível que ultrapassa as argumentações, o que se adensa com a escolha de Neo Muyanga em não traduzir as letras das músicas. Essa escolha distancia a reflexão do plano das estratégias argumentativas e não vejo outra possibilidade senão falar sobre aquilo que me assalta à pele e às vísceras, sobre

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aquilo que surge dentro de mim em contato com aquela melodia, com aquela presença e com aquela voz. Diz respeito ao que a música em sua inesgotável fecundidade é capaz de fazer brotar, insurgir dentro e fora de mim. As canções de Muyanga não são traduzidas para o domínio apolíneo, elas escapam - ao menos àquele público que não compreende as línguas cantadas - das fronteiras dos significados. E isso gera um profundo arrebatamento. Nos conduz a um mergulho em nós, distante do conjunto de códigos que a tradução poderia nos destinar. Cabe a nós atribuir as nossas próprias imagens e referências à música que ouvimos. Muyanga é sábio nisso. Talvez se soubéssemos tudo o que se é cantado, nossa experiência se reduzisse em um jogo de palavras e sentidos. Mas não, ela se alarga ao convocar a imaginação a dar uma forma a este amontoado de espíritos cujas vozes nos falam, a esse universo invisível e encarná-lo em símbolos e sensações análogas. O manifesto está na música, na melodia, nas vozes e não no texto. O protesto é a resistência das canções. Enquanto reduzimos os protestos às suas argumentações e justificativas, ao texto e ao falado, retiramos a força que a experiência dionisíaca nos provoca. E é essa força que é capaz de se sentir em todos os corpos. É essa força que é insurgente e revolucionária.

por ana carolina marinho

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Os Ecos e As Vozes de Um Negro em Protesto

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inha ligação com o gospel veio do rock. Fosse com U2 em Still Haven’t Found What I’m Looking For, com Dream Theater em The Spirit Carries On ou mesmo na homenagem de Heart a Led Zeppelin no Stairway to Heaven que o próprio Obama ao vivo viu, a vibração que A VOZ, negra, acrescenta, e miraculosamente só ela, sempre me tesou os pêlos. — Sendo tanto, de onde vinha, vem, virá esse poder? Técnica e imediatamente diria ser por causa da caixa ressonadora, os ossos, a musculatura, como se diz ser dos atletas negros a vantagem olímpica, e ao meu branco travesseiro eu poderia me juntar em invejada, mas confortada, e conformada, paz. Não é o que acontece, inquieto que estou. O gospel, hoje soube novamente, veio do lamento. Da tentativa de religar (-se-nos) que enraíza quando sincera a religião. Houve brancos em terno preto que proibiram pretos em terno branco, pois para aqueles é perigo de revolta que estes se reúnam, ainda que em clamor ao Onipresente pedindo igualdade, justiça, amor. Profundo grito harmônico de um povo pelo que

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se foi, sentido em cada órgão e no deles o maior, e nunca a sós, tal forma que uma canção-protesto não se canta, em geral, a sós. Assim sendo, aguço mais o ouvido à voz de Neo: não por dom, só dom, do negro ali eu devo e devo estar. No Rio, ao lado de náuseos lixos boiantes, um Museu do Futuro foi erguido no solo que, in memorian, engaveta o negreiro Passado, e diante disso dentro aqui não cala A VOZ: do lamento quero ouvir, abrir-me, empatizar, branco sendo eu. Mas Neo Muyanga avisa: “só o Brasil pra me desconstruir.” Pois a canção de muitos negros vai ali se dar num só. Uma voz a voz de muitos, voz de todos, em protesto pelo que em riste e tristemente temos que, ainda e ainda e ainda nos lembrar. Primeiro vem o negro tocando um piano, aspas, branco: “pra ver se em Euro se ouve?”, rio do meu gosto amador dessas teclas civilizadas e alvinegras. Neo presentifica uma mescla de canções e diversas línguas que eu, sabedor somente de minhas nativa e colonas, complemento no reino da imaginação. Estarrecido fico ouvindo a voz do negro, sempre ainda a surpreender potente, ouvindo duma só goela goelas mais que nem se contam. Depois vêm acompanhadas de guitarra três canções, de amor no meio preenchidas. Com pegada pop, o que


noto, anoto, volto a ouvir e ao fim checo. No texto do programa, numa feliz somatória ao texto do espetáculo, diz-se de Muyanga fazer das love songs um tom de ironia. — A priori não a percebo, visto que não sei a língua. Mas, lendo o programa, lembro que de fato o pop não poupa: por trás dos nhonhonhós cafunescos violados no barzinho chega a dar asco notar como se se apropriam das vozes e lamentos e os empastelam num novo hit veranesco, reduzindo o discurso centenário a uns acordes rosa-pólo. — Mas, como disse, não o sei de cara, pois não o leio, dada a língua. O programa, fazendo esta ponte, resolve a confusão na qual estive com o som do nome e a diferença que dele ter podemos: Revolt in Music ou Revolting Music? Entendi, agora, o motivo de ser a segunda, e acrescento infamemente: poprotest, acordes em menor dó. Por fim, uma canção só no gogó, ou gogós, pois Neo constrói progressivamente, e quase que brincando com seus simples recursos eletrônicos, uma sobreposição de vozes, dele e distintas, que nos faz lembrar corais dos negros gospel que no rock tantas vezes me atravessaram. Neo Muyanga nos traz muitas vozes, ou A VOZ negra, que preciso ouvir de novo. Não mais em áudios de museu ou solos rock’n’roll, muito menos nas fofinhas “mais pedidas” de uma rádio, pois, numa canção

de protesto, quantas vozes cabem numa só voz negra? Aquelas que citei lá em cima têm todas um viés de espiritualidade, muitos artistas já sacando a qual local nos levam tais gogós. É sempre tempo de lembrar o que se fez pra não fazer de novo; não é a direção que de imediato parece estarmos indo como mundo, o que faz de trabalhos como Revolting Music, quando refletidos, necessários.

por claucio andré

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especial antro+ MITsp

ça ira foto elisabeth carecchio

joĂŤl pommerat



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A Poética da Retórica e O Modelo Democrático

U

ma vez participei de uma assembleia na universidade e os alunos do instituto de artes ao qual eu era filiado debatiam sobre aderir ou não à greve dos funcionários. Um espesso tempo foi dedicado ao que vemos em qualquer Câmara, Senado ou reunião de condomínio: pauta do dia, direito de fala, direito de resposta, questões pessoais à frente das coletivas, perspectivas inocentes, insultos diretos ou indiretos, perspectivas alienadas, sarcasmo, perspectivas de má fé, ironia, perspectivas rancorosas, ranço, questões de ordem, pedido de suspensão, distorção de conceitos, falas intermináveis que pareciam ter como objetivo máximo adiar a decisão para o dia seguinte, goelas, réplicas, tréplicas, a mo-ro-si-da-de, falas retomando assuntos já encerrados, desvios de assunto, conflitos de interesse excludentes, escuta quase nula, violência verbal ou física, ganho no grito, ovações vazias (ganho no grito) e tudo o que se tem direito. — O decorrer da greve se deu de tal forma que ficou a dúvida se a participação dos alunos teve efeito real, quer na assembleia, quer na greve. Ou seja, tal qual nas Câmaras, Senados ou reuniões de condomínio,

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salvo exceções, no ar pairou a sensação de que muita panela foi batida e pouca canja feita. Essa prática da retórica eterna é a forma central de Ça Ira. Passada quase toda como numa assembleia, estendendo à plateia o espaço de encenação tanto pela iluminação quanto pelo corpo do elenco disposto pelos corredores, durante as quatro horas e meia o público é afogado com discursos e mais discursos de políticos, nobres e cidadãos debatendo, quase nunca amistosamente, sobre o caminho que a nação deve percorrer diante de uma crise. Como na vida real da arena política, o debate não acaba e não tem perspectiva de fim, uma vez que posições antagônicas não caminham para solução e, pior que isso, parecem ter em suas respectivas raízes a impossibilidade de conciliação. Mas, diferentemente da vida real, o público acompanha o debate ansioso pelo desdobrar do conflito, mesmo sabendo, historicamente, o final da coisa — uma vez que Ça Ira tem na sua estrutura dramática os acontecimentos na França do final do sec. XVIII. O espetáculo consegue esse feito não só pelo basear-se em fatos reais de 1789: ele é assustadoramente análogo, enquanto estrutura de debate, ouço dizer, a qualquer assembleia de 2016 que tenhamos notícia, seja ela em Brasília, Berlim ou no prédio do seu condomínio. Talvez Ça Ira seja francês demais para o Brasil? Talvez


textocêntrico? Talvez. Eu acredito que ele precisa sê-lo. Pois a retórica ironicamente assumiu a ágora a ponto de a ação, como na tragédia grega clássica, situar-se também fora de cena, restando à arena a não-ação. Se é baseado nos frutos da Revolução Francesa em que estruturamos nosso modelo de participação popular na política, está bastante claro que a democracia, hoje inevitavelmente associada à demagogia, chegou a um esgotamento, e que isso só não chega a ser mais trágico que o fato de a civilização ainda não ter decidido testar um modus operandi substituto à altura; ou, melhor, que funcione em escala mundial. Se é que isso é possível. Ça Ira também aponta outras questões para além do modelo político, uma vez que valores humanos estão inevitavelmente presentes nas relações conflituosas. Um exemplo menos claro é a urgência de o ser humano voltar sua atenção a valores como a tolerância, o que será difícil de realizar se tivermos como norte e parâmetro absoluto o materialismo científico, econômico e político, que, grosso modo, tudo tem separado e nada tem juntado. Outra perspectiva é acerca da ação do indivíduo na sociedade: quando deixamos para nossos representantes (?) debater os interesses (?²) da população (?³), é como se assumíssemos um sebastianismo às avessas, pois projeta ou confia num dado político, ou políti-

co dado, a solução ou solvência dos problemas. É como em 100% São Paulo, também do III MITsp: ninguém quer manter as coisas como estão, mas a participação política se resume a redes sociais, voto e panelas, “arenas” anônimas e cômodas. Ao final do espetáculo, saio abismado, pois vejo que o patético espetáculo democrático tornou-se espetáculo artístico, e, a retórica, poética da retórica. Mas, ao contrário de em Ça Ira, nós não sabemos quando esse bate-boca vai acabar, pois, de fato, abismados estamos enquanto condição. A direção de Pommerat reforça uma convicção que, reconheço, é mais fácil dizer que falar: que a saída, ou no mínimo o princípio de uma evolução democrática e humana, para que não recorramos às zumbilicais ideias monárquicas, dogmáticas ou autoritaristas, é investigar a transformação do indivíduo a partir de si mesmo em uma reflexão ética e propositiva a seu meio. Uma possível tradução disso é não esperar da instituição, seja ela qual natureza for, o primeiro passo da mudança nas relações de convívio. Gentileza e bom senso, por exemplo, não precisam virar lei. Não é ideia nova e nem cabe aqui desdobrar o pensamento. Não temos que retificar nossa roda, e sim botar nossa roda na reta. por claucio andré

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Entre ternos e fomes

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s homens de terno, as câmaras, as reuniões populares, os arremedos partidários, as crises, os homens que defendem as câmaras, que defendem as reuniões populares e os arremedos partidários e que por fim defendem as crises - Todos se parecem. Há uma perversidade global simetricamente intrínseca na escala íntima, Reis são monarcas perante seus povos assim como são monarcas perante suas esposas, que por sua vez são apenas esposas de seus Reis e não - Rainhas de seus povos. Reis são monarcas perante a morte e perante matar também, mas são crianças em pânico perante qualquer possibilidade de «Morte ao Rei».

O mundo, da forma como foi construído pelos interesses multilaterais, quadriláteros, ambivalentes, ou resumindo - Pessoais - tornou-se de uma «complexidade insuportável», como aponta umas das falas contidas no primeiro bloco da encenação. A gente se pergunta, ao notar os sistemas que regem as decisões - Quantos políticos são necessários para que uma única criança não morra de fome? Ainda que já soubéssemos, e que a peça reponha este já revelado, por quê é tão difícil aceitarmos que os políticos não caem do céu, qual cegueira não permite que o povo note que seus representantes migram da plateia para o foco? Grita o poeta Cazuza : Que tempo mais vagabundo Este agora que escolheram Pra a gente viver!

por Marcio tito

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100 %SP foto tim mitchell

rimini protokoll



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Forjando a si mesmo

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stamos diante de um amontoado abstrato do que seria São Paulo. Você se sente representado? É inevitável a admiração em encontrar no palco do Teatro Municipal uma diversidade de histórias e rostos que costumam não ser os detentores do privilégio de subir ao palco para serem ouvidos e vistos. E quando eles são o enredo, as histórias são contadas por outras vozes. Diante de nós, vemos 100 pessoas protagonizarem as suas vidas e escolhas. Ali, são eles os artesãos e cabe a eles construir a própria versão de sua vida, construir a imagem que eles querem de si. Compactuamos todos nesse jogo de fingir a realidade. Nos julgamos. Nos condenamos. Impossível não aproximar essa experiência ao trabalho do diretor catalão Roger Bernat em “Pendiente de Voto”. Em ambos se constrói um sistema capaz de ser o mediador das situações. Ele revela todas as contradições nossas e as dele mesmo, um sistema bidirecional, que funciona tanto para manipular as escolhas quanto para vigiar os votantes e puni-los quando acharmos conveniente. É assim que acontece com quem votou nulo na eleição passada. Como punição, permanecem sem ter o direito de resposta em algumas das perguntas. Qual

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a implicação social de um voto nulo? No que ele alcança como protesto e inquietação? Em que ponto ele se esgota em sua utopia? Existe, porém, uma dificuldade em manter o rigor das perguntas e a excitação dos participantes. O sistema se esgota em 30 minutos, aproximadamente. Assisti à última das apresentações do espetáculo e suspeito que tenha sido a mais representada. Depois dos ensaios e das apresentações, impossível não se forjar uma articulação sobre si. O espontâneo e genuíno torna-se espetacular. E em certa medida, talvez seja essa espetacularização inevitável de fugir que esgote o método e o torne cansativo. Diante de uma câmera e em cima de palco, não há como exigir naturalidade. Mas além de todas as implicações que a presença daquelas pessoas geram de estranheza, curiosidade e espanto, que ideia de cidade queremos construir? Em certa medida, é preciso compreender que existem dois lugares possíveis: aquilo que é São Paulo e aquilo que eu quero que ela aparente ser. Ambas são assustadoras e controversas. Inevitavelmente, nos dois territórios o taxista permanece - e faz questão de que assim o seja - construindo a mesma imagem sobre si. E essa todo mundo sabe bem qual é.

por ana carolina marinho

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especial antro+ MITsp

99% interessante, mas aquele 1% banal

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uando meu amigo geógrafo perguntou interessado sobre o espetáculo, e tentei sintetizar a sinopse dizendo ser uma “performance demográfica” ou um “IBGE cênico”. Funcionou: ele foi assistir. E embora tenha achado interessante, “diferente”, não se sentiu totalmente representado, percebendo algumas derrapadas da condução. Meu amigo geógrafo não costuma ir ao teatro, mas suas impressões refletem bem as minhas. Agora que assisti ao 100% Sampa, modificaria a síntese acima incluindo o “quase”. Ainda que os integrantes no palco afirmem que são cem que “representam” onze milhões, sabemos que isso não o pode ser. E tudo bem!, pois o experimento pode simplesmente ser o que é: experimental. O espaço de ação no palco é circular; num telão acima vemos projetado a imagem que uma câmera capta de cima; portanto temos a movimentação e distribuição dos participantes, como num gráfico vivo a estatística que responde às perguntas feitas ao microfone. A movimentação lembra um caleidoscópio, porque pergunta a pergunta vemos alguns participantes de lados ideologicamente opostos se misturarem em grupos de minoria,

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e depois voltarem a se misturar com outros diferentes, o que, muitas vezes, nos revela surpresas, como as coincidências de Crash, ganhador do Oscar. É um acerto acidental do experimento, mas, a essa altura (na metade do espetáculo), o público já marcou algumas figuras, passando a acompanhar personagens, não o grupo. Isso, inclusive, torna-se pretexto para outro recurso interessante da performance. Para evitar constrangimentos com familiares presentes na plateia, em certo momento apagam-se as luzes e os participantes respondem anonimamente acendendo suas lanternas. Obviamente há uma comoção, uma vez que algumas das perguntas são sobre aborto, estupro e violência doméstica, e os índices, embora infelizmente sem surpresa, são elevados. Por outro lado, os diretores perdem uma grande chance de perguntar o oposto: “quem já estuprou, quem já bateu, quem já negou paternidade?”. Outro acerto de 100% é o momento em que cada um representa em gestos a sua atividade comum de acordo com a hora do dia: o que você está fazendo às 14h? Às 15h? Às 16h? E assim vai até fechar o ciclo. O resultado disso é uma síntese épica de uma jornada coletiva, um corpo vivo de uma cidade que de fato não pára. Voltando ao “quase”, justifico o termo porque a proposta toma alguns passos, chega a alguns caminhos interessantes, mas não desdobra as questões mais intrigantes que surgiram das respostas dos partici-


pantes. Portanto, “quase” reflete a sensação de que, quando a coisa ficou boa, o experimento não ousou, preferindo a espetacularização estatística do cotidiano, da ideologia e da opinião. Uma dessas questões foi a da morte. Fiquei de boca aberta quando uma boa fatia dos participantes revelaram ter “medo do futuro”, incluindo aí crianças com a vida toda pela frente. Ou quando cerca de vinte pessoas disseram que já “pensaram em suicídio”, e, pasmo novamente, adolescentes na lista. Ou quando foi dada a linha do tempo da morte (“quem acha que não vai mais estar aqui em 10 anos? E em 20? E em 30?”), percebendo, não na maioria, mas em uma parte bastante considerável de sujeitos, um pessimismo geral. — Um garoto de 8 anos se recusava a entrar para o grupo mesmo quando a pergunta já estava na casa dos 120 anos. Ufa! Precisava desse alívio cômico. — E, no entanto, metade dos participantes desejam que a ciência desenvolva técnicas para aumentar a longevidade. Com tanto pessimismo, adiantaria alguma coisa? O experimento, somada à recepção do público, tende a um sensacionalismo, manchete de obviedades, como numa arena de Facebook onde se dão likes, que, no caso, são ovações. Me parece óbvio que ninguém queira “deixar as coisas como estão”, ou que acreditem que “a mídia não fala a verdade sobre a corrupção”, mas não se pergunta “quem de fato está tomando uma atitude

em ação na vida real?”, ainda que o resultado corresse o risco da distorção. Tomando exemplo de outro campo de comportamento, me parece sintomático que relacionamento e sexo tenham aparecido com tanta frequência, e com tamanha banalidade: “Quem aqui ainda não transou esse ano? Quem está apaixonado? Quem está procurando um amor?” — E, embora já tenha dito que 100% São Paulo é mais figurativo que representativo, não é de se refletir que muitas palmas tenham sido dedicadas a quem se apresentou dizendo gostar de sexo (não diga, amigo!), mas um silêncio constrangedor tenha concluído a apresentação pessoal do senhor que sintetizou seu propósito de vida como “estudar sempre, para ajudar pessoas a serem melhores”? 100% São Paulo não é nem quantitativa, nem qualitativa. Um experimento muito interessante enquanto configuração espacial, e também por ser emblemático e revelador do público de teatro paulistano. Mas peca pela falta de ousadia, uma vez que tem em si apontamentos que gerariam interessantes desdobramentos e cruzamentos. Se queremos falar de representatividade, talvez tenhamos que olhar para a quantidade de negros da plateia (16, em mil lugares), coisa que a intervenção que aconteceu em seguida pôde bem escancarar. Mas isso fica para a próxima resenha. por claucio andré

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especial antro+ MITsp

Da categorização impositiva

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ransformar as estatísticas, que são – em um primeiro olhar – baseadas da frieza dos números, em construção do discurso de um tempo é uma tarefa ingrata. Ao estabelecer como premissa o raciocínio cartesiano e na mesma medida estender a compreensão para além do que se vê e daquilo que se pretende como resposta, as idiossincrasias se desenham em um universo colorido que roda, que muda, que está em movimento. Porque ninguém é 100%. Em 100% São Paulo é isso que acontece. A companhia Rimini Protokoll assume o risco em duas frentes. Primeiramente por se debruçar sobre a tecnicidade do tema, admitir que sempre existiu a necessidade de categorizar e ao mesmo tempo se firmar na urgência de quebrarmos as fronteiras que se tornaram abismos, quando a diversidade ocupa o mesmo espaço-tempo. E depois – e também por isso - trabalhar obrigatoriamente com gente comum, gente da rua. Não estou aqui dizendo que atores são pessoas ungidas ou diferenciadas. Mas assinalo o trabalho com não-atores, porque ele representa na mesma proporção aquilo que poderia dar mais errado e aquilo que mais deu certo. Não vejo como uma proposta de linguagem. Vejo como uma experiência cênica. As pessoas estão expostas e (se) mostram, mas será que mostram tudo?

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A importância em categorizar coincide com o surgimento da humanidade. Desde que o homem passou a se relacionar com seu semelhante, criou nomes para chamar um ao outro e assim passou a se arranjar em grupos hierárquicos, sem entrar no mérito das relações de dominação, mas em uma primeira análise prática, por mera organização. Em um mundo com tantos matizes e tantas camadas de significados, pensar chegar a representatividade de uma sociedade a partir de censos, pesquisas e dados acabará por ser incompleta. George Lakoff, na Teoria dos Protótipos, já provou que não é possível encontrar um conjunto de traços exatamente comuns a todos os membros de uma categoria e que, embora seja possível, postas as dificuldades de assemelhar-se por completo, estabelecer graus de aproximação entre os indivíduos a partir de tipos. Os equívocos do insensível censo são reproduzidos há décadas, justamente porque existe o amparo dos números. E isso é evidenciado de maneira gráfica – só que não são gráficos de colunas, de pizza ou com curvas de Gauss – no espetáculo. São gráficos humanos que ficam claramente visíveis para a plateia. A cada pergunta o grupo vai se desenhando cada vez mais heterogêneo. Se agrupam. Se reconhecem. Se dissolvem. Se abstém. Sim ou não. Concordo ou discordo. Preto ou branco. Há um muro que separa o grupo antes espalhado ou num círculo, justamente para marcar as individuali-


dades que encontram eco. É um muro invisível, mas que separa como num decreto dois lados. “Escolha”, é a ordem a cada pergunta. Como numa procissão os agrupamentos são feitos. Alguns persistem nos mesmos locais. Há alguns tipos que chamam mais a atenção. O tal ponto fora da curva de Gauss. Ou seria esse o maior representante daquilo que é verdadeiro mas que muitos tentam maquiar? A pergunta é polêmica e a resposta vem no silêncio - ou no caso proposto da montagem, na estaticidade. A partir de agora não restam dúvidas: as pessoas não escolhem apenas cada um dos grupos, mas escolhem o que querem ou não mostrar diante da plateia. Mostrar para o outro e ter o julgamento do outro. Na prática, a alteridade não se manifesta e os que estão expostos sabem muito bem disso. As luzes se apagam e a liberdade de se posicionar sem o julgamento do outro é mais do que evidenciada, é triste. Ela se mostra em pontos de luz. Aborto, violência sexual, racismo. A realidade se mostra parcialmente em pontos de luz e sombras. E a indubitável constatação de que estivesse Platão vivo diria que temos ainda que explorar os recônditos dessa caverna chamada hipocrisia para chegarmos ao ofuscamento necessário que trará a luz da evolução de pensamento. por Maria Teresa Cruz

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especial antro+ MITsp

São Paulo é a cidade dos sonhos sem recheio

U

ma mulher conta uma história no microfone. Há anos atrás, sua filha caiu no vão entre o trem e a plataforma no metrô de São Paulo. Eu levanto os olhos do papel em que estava escrevendo e penso que esta frase, “o vão entre o trem e a plataforma”, é algo genuinamente paulistano mesmo. Este é o começo da encenação “100% São Paulo” e a história do metrô, uma das 100 que passaram pelo palco. Um professor de fotografia, certa vez, disse que preferia fotografar um amigo do que uma grande manifestação. Para ele, a foto da manifestação é só mais uma, enquanto o amigo não, o amigo diz respeito a ele. Eu que nunca fui entrevistada pelo IBGE, entendo que estatística é só aquilo que não nos toca o coração. É estatística, pra mim, o taxista que fala da “indústria da multa em São Paulo”, mas me interessam as gêmeas de cabelo cacheado e volumoso que acompanham a mãe. É estatística, os torcedores do Palmeiras, mas não as histórias de imigração. Não é estatística, as mulheres que declararam terem sido violentadas quando, numa espécie de votação secreta, várias luzes anônimas se acendem para responder a pergunta:

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[[ contaminação ]]

Alguém aqui já foi estuprado? Talvez, nunca seja estatística quando poderia ser você. A estatística que mais me surpreende, entretanto, é o fato de que a maior parte dos participantes declararem ter nascido em São Paulo. É óbvio que seja assim, claro, mas é que eu não conheço quase ninguém que tenha nascido aqui. Para mim, esta ainda é a cidade dos fluxos migratórios que não é a origem de ninguém. Reitero para mim mesma: as estatísticas não querem dizer nada mesmo. Da população que aumentou 30 vezes mais desde que o Teatro Municipal (local onde acontecia a encenação) foi inaugurado, eu e os meus somos só mais uns. Mais algumas histórias de migração que engordam os números dos que são atraídos por esta cidade. Quantas pessoas se mudaram do Nordeste para São Paulo em 2013? Não responderam esta pergunta no palco. Em fevereiro deste ano, eu cheguei para fazer parte dos 11 milhões de pessoas que vivem aqui. 11 milhões e só algumas me interessam. Olhando deste ângulo, parece uma loucura ter migrado. Mas, não podemos fugir da localização econômica de São Paulo. Ser a cidade mais rica do país tem seu preço e é primordial para torna-la quem é. Nos deslocamos sempre em busca de algo e somos puxados pelo ímã de

uma vida mais agradável? Interessante? Fácil? O poeta Emerson Alcalde diz que “São Paulo é a cidade dos sonhos sem recheio”. Em um momento, parte dos 100 declara que preferia que este fosse um estado independente do resto do Brasil. A aridez dessa informação (e dessa ilusão de grandeza) me lembra que às vezes os sonhos são secos por dentro mesmo. Confesso ter vaiado todos eles.

por Ramilla Souza

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especial antro+ MITsp

SP 100%

I

r ao teatro foi abrir as páginas do jornal e ver no papel notícias em movimento. Como um organismo na lente do microscópio, as notícias se agrupavam e outrora abriam clareiras que nos faziam acessar uma dinâmica forma de participar do mundo. Pautar, análisar e recortar foram os verbos que naturalmente compuseram o DNA da cena e deram público imagens que tornaram habitual (por duas horas) sentir amor fraterno pelas diferenças dos desconhecidos. Nunca estamos prontos para sermos fotografados, nunca é o momento ideal para tirarmos os sapatos, todo corte poderia ter esperado ao menos um dia para rasgar a pele da gente e há sempre alguma atividade imprescindível que depende exclusivamente daquilo que não temos no momento. Estarmos fragmemetadamente presentes, talvez seja estratégia eficaz para adentrarmos o juízo do outro. O desconforto entre seres humanos e suas tarefas, é mais que o simples desencontro do raciocínio com o mundo prático, representa também o real motivo de estarmos aqui em um diálogo do texto com a cena e da cena com a cidade. A experiência de São Paulo 100% sugere, a um só tempo, um tratado sobre a praticidade das formas e suas

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utilidades narrativas, como também metodologia para o olhar autoreflexivo do espectador. A cena desemboca com elegância em um trabalho que produz a paradoxal sensação de sermos co-autores de nossos cotidianos e também sermos o cenário orgânico para as histórias que acontecem ao nosso redor. O espetáculo usou sua força para tornar cada um dos presentes um autônomo buscador de detalhes - como fossemos eficientes buscadores online que trocaram sua codificação binária por um espelho com luz frontal capaz de revelar a epiderme da cidade e a textura de nossas formas de convívio. Cada vez que procurássemos o avesso da cena, dar-se-ia-se consigo historicamente nu diante dos processos de longa duração, aqui, o raro exemplo de uma estrutura que se move a partir das respostas que produz e não, como é costume do teatro, através das perguntas que relativiza. Aos olhos deste que buscou cercar os significados da encenação, São Paulo 100% rompe a menopausa forçada que arte e cidade hoje experienciam. E o sangue escorrido desta menstruação atrasada revela a ancestral fertilidade que ainda há nos povos e nas diferenças que organizadas insurgem contra a segregação que a vida fragmentada nos induz a seguir como fosse algo natural da vida compartilhada.

SP 100 % revela as perversas especialidades da atual globalização capitalista das sociedades, avança na tecnologia cênica e social, repõe a função ancestral do Teatro e coloca em cheque todas as encenações ao seu redor. Um trabalho fundamental para seguirmos na reconquista da humanidade dos seres humanos que foram forjados na insensibilidade das mídias que atendem não aos interesses da igualdade, mas sim ao lucro sem progresso e ao progresso desencontrado da evolução dos povos.

por marcio tito

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especial antro+ MITsp

an old monk foto kurt van der elst

josse de pauw



especial antro+ MITsp

A mulher no espelho segura um relógio entre os dedos

Q

uem é a mulher no espelho que me assombra com um relógio entre os dedos? Ela surge cada vez que me pego desprevenida e por descuido amanso as pálpebras. Ela está sempre diante de mim. Sinto o vento que o seu corpo provoca quando se aproxima. Finjo que a suporto enquanto tento fugir. Ela finge que ainda pode dançar. Quantos anos ela deve ter? Toda vez que planejo uma fuga ela reaparece. Mas cada vez que corro para atravessar as duas margens de um fosso profundo, me dou conta, durante o pulo, com os pés ainda em vôo livre, que ainda estou correndo. Ei, menina, eles lhe fazem morrer enquanto lhe deixam viver. Não importa a sua vida, apenas que você permaneça vivo. É disso que eles todos se alimentam. É com isso que eles lucram: trombose, útero ou incontinência. E como resistir a isso? Como não cessar o ritmo de dentro de mim que já soa distante? A mulher no espelho continua ali. Aceita, menina, você abriga os silêncios, é você quem os conduz. Mas quan-

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tos anos tem essa menina? Vinte? Vinte e cinco? E quantos anos tem essa mulher no espelho? Que movimento é esse que as suas pernas fazem? Ela me aterroriza, mas sinto o seu desejo em apenas se aproximar. Sinto que o seu rosto é uma película construída pelo meu medo. Que rosto existe por baixo desse? Enquanto tento compreender porque essa mulher me persegue, me dou conta que sou eu quem, diante de tamanho arrebatamento, me entrego ao ritmo da respiração que tenta engolir o choro. O tempo, esse danado, é implacável mesmo. Diante de mim a mulher no espelho dança em um palco e me convoca pra existir ali. Nesse palco, a música entra em ressonância com o sangue que segue dentro de mim. Ah, a música é a voz desses espíritos inquietos que habitam os espelhos. E o espelho é esse lugar inabitável de nós mesmos, abriga o abismo de um jogo de sombras e projeções, diante das narrativas espelhadas é que vemos o mundo e que evitamos confrontá-lo. É preciso admitir: a mulher no espelho sou eu em meu devaneio sobre o futuro. Sou eu diante do tempo avassalador que deixa as suas marcas em cada linha do meu rosto e das minhas mãos. Sou eu entre o resultado de um exame de sangue e o almoço do dia seguinte. Sou eu tentando vencer o relógio. Sou

eu receando deixar de ser eu com o passar dos segundos. Agora compreendo a força que ela move em mim. Agora sou eu quem dança no descompasso dos soluços. Sou eu quem encara a mulher no espelho. E ela, a velha monja, parte deixando as lembranças de seus rastros ao meu lado. A mulher segura o relógio porque sonha em um dia ser mortal, ela me olha admirada com o meu espanto diante da minha finitude. Ela embala a minha inquietação com um piano. Eu nunca estive só. E garanto: seguirei contigo.

por ana carolina marinho

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especial antro+ MITsp

teatro de narradores

foto Ivson Miranda/ItaĂş Cultural

cidade vodu



especial antro+ MITsp

C

Descolonizar o conceito onsiderando que a montagem fala sobre a recolonização de um país que já havia passado pelo processo de exploração europeia, que viveu a histórica revolução dos escravos, conquistado a liberdade tardia depois de décadas do regime totalitário dos Duvalier e, como se não fosse o suficiente, foi vítima da intempérie da natureza. Considerando que há seis anos, o Haiti foi devastado por um terremoto, mas antes do fenômeno climático, o país já tinha sido absolutamente jogado à miséria pelo ditador Baby Doc, presidente do país caribenho, depois de herdar o poder do pai. E aqui vale um aparte: um país que no processo de colonização francesa, seguindo a tradição criminosa das américas, foi escravocrata, decepando as origens dos povos africanos que compuseram a população haitiana, ficou submetido às atrocidades de um regime totalitário que matou mais de 30 mil haitianos e, agora, vive submetido à ONU, que interveio no local após o terremoto que matou outros mais de 300 mil habitantes. Algo como empurrar do precipício o suicida hesitante. Um país que já vinha de uma história frágil e que nunca mais conseguiu se reconstruir. Em relatos de amigos que estiveram em Porto Príncipe após o tremor de terra, a cidade virou um grande cemitério, com corpos empilhados que de-

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moraram a receber a dignidade de uma cova – ainda que rasa –, dando o direito de parentes de enterrar seus mortos. Aliás, a importância dos rituais é apropriadamente trabalhada na peça. Quem esteve no Haiti recentemente diz que o cheiro putrefato, o cheiro de morte, é o perfume das ruas. Os sobreviventes acabaram em uma condição subumana de extrema pobreza. Há uma história contada por quem vai visitar o país de que os habitantes, sem suprimentos para alimentação mínima necessária, criaram uma bolacha que é feita de terra. Acredite, você que almoçou aquela comida preferida ou jantou em um restaurante bacana hoje, essa é a base alimentar das refeições. Considerando que os que não suportaram a ideia de tentar, em vão, reconstruir a terra natal, acabaram migrando para outros locais. Milhares vêm ao Brasil. Aqui enfrentam toda uma gama de dificuldades. “Brasil, esse país racista”, dizem os haitianos na peça. Brasil, um país que teve também na origem a cultura escravista, que ganha sobrevida até hoje pela elite dominante, que, sim, é racista. E no Brasil tem fome também. Como no Haiti. Mas tem possibilidade e tem solidariedade. Por isso, mesmo que à revelia de muitos, os haitianos têm vindo e encontrado guetos de sanidade nas grandes cidades, de gente que entende que eles não vêm porque exatamente desejam, se planejaram. Eles vêm em fuga. Eles vêm fugindo da miséria, ainda que miseráveis se encontrem, ao menos por um tempo, por


passarem por um processo de colonização em terra estrangeira. Um dos principais traços da identidade de um povo é a língua. O idioma faz com que você consiga estabelecer comunicação com o outro, que você compreenda e seja compreendido. É a terceira colonização histórica: a primeira, da origem, quando deixaram de falar como seus antepassados africanos, e tiveram que aprender o francês. E a segunda e terceira, simultâneas, quando tropas do exército brasileiro dominam o país, ao mesmo tempo em que muitos precisaram buscar abrigo em países próximos que, com raras exceções, não tem no francês o idioma oficial. Mas não penso que seja obrigatório tratar da ancestralidade para contar essa história. Sim, a revolução haitiana foi o levante dos escravos contra os exploradores, que teve sucesso. Libertaram o Haiti. Libertaram mesmo? Essa carga não é apenas limitadora como castradora do universo infinito existente na referida questão. No momento em que vivemos a maior crise migratória mundial da história, é mais que importante, é fundamental tratar do tema. Não houve equívoco no conceito, mas nas escolhas. O povo haitiano sempre teve que lidar com a morte. Tornar palatável a morte como personagem pode ser uma experiência enriquecedora, mas será que a via do escárnio é a mais adequada para contar essa história? Ou ainda, o criticismo cínico é a única forma de se vingar da exploração histórica dos povos africanos?

A potência de uma história – e dessa em particular – se dá pelo grau de afetação. Nesse sentido não se pode falar em compaixão, porque é preciso ter passado pela sanha dos coiotes ou ter perdido a família inteira no terremoto para ter uma compreensão completa do discurso. Mas se afetar no sentido de incomodar. A segunda parte da peça cumpre tão bem e de maneira tão violenta esse papel, que toca de maneira indelével na mínima sensibilidade do espectador para a causa. As projeções de colagens de filmes e relatos nas paredes da degradada – mas em processo de reconstrução, tal como o Haiti – Vila itororó é de uma violência tão necessária para descontruir qualquer ideia sobre a história do país caribenho. O que o exército brasileiro – ou parte dele – está fazendo lá é exposto em forma de denúncia na peça. É tão inacreditável e revolta. Fere. Transpassa. E essa força da revolta – a mesma da história que libertou o país dos colonizadores – acaba se perdendo. Como queria ter visto a personagem, que emerge da escuridão, como um zumbi, de metralhadora na mão e cantando uma música da Xuxa, metralhar a plateia. A ultraviolência necessária para descontruir paradigmas e deslocar o óbvio se perdeu na tentativa de criar um conceito crítico. Nesse caso, a crítica reside na própria exposição nua e crua dos fatos, porque a realidade já é suficientemente irônica. por maria teresa cruz

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especial antro+ MITsp

foto patrĂ­cia cividanes

a tragĂŠdia latinoamericana felipe hirsch



especial antro+ MITsp

O

Qual é o gênero desse teatro pelo qual temos passado? carnaval brasileiro é desses pelo qual o sonegador se fantasia de paladino contra a corrupção, em que jogadores de lixo no chão se fantasiam de defensores do país, em que as mais diversas cores da contradição se misturam para o desfile de uma grande retalhada verde-amarela ou vermelha, tudo por um país melhor, por um país livre da sujeira, por um país digno de bardas poesias. O carnaval brasileiro é leve, mas gosta de bancar o pesado; é divertido, mas gosta de bancar o sério; quer a liberdade, mas ama o sequestrador de Estocolmo; é político, mas mal formado. Tais peculiaridades brasileiras fazem parte de um quadro maior chamado América Latina, em cuja fundação cultural permeia um mito complexo, de diversas faces, difícil de ser mostrado, portanto abordável, numa obra de arte, somente por meio de suas próprias e diferentes faces, atualizadas aqui e ali no cotidiano, nos noticiários e no próprio ethos continental. No espetáculo, ao tratar da América Latina sob uma perspectiva política, trabalha-se também em quadros; quadros que buscam mostrar, ao meu ver, ‘fotografias’ curatoriais que representem as relações humanas deste grupo de países.

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Cada quadro foi escrito por um autor latinoamericano, e cada um carrega em si uma tonalidade própria. Em geral, as tragédias são mais doces, sutis, em que quase (quase) se deixa escapar a simbologia da cena em relação ao continente; e as comédias são mais ácidas, viscerais, dessas em que se ri de desespero: bem-vindos, imperadores da república. Vemos, por exemplo, uma cena em que pode-se ler uma crítica à banalização de “causas” em virtude de uma espetacularização televisiva a la Pânico, que vende como cerveja em sexta-feira de crise; ou nela mesma ler a relativização do resultado social conquistado pelos movimentos que defendem a cemporcentização afirmativa. Na cena, um produtor descreve a esquete televisiva em que um cego deverá vestir camisas “100% alguma coisa” num ambiente que seja, em teoria e em ironia, “0% aquela coisa” — como, por exemplos que abrangem todos os humores, “100% churrasco gaúcho” numa convenção vegana em Belo Horizonte, “100% PCC” na sede do Comando Vermelho e “100% Black Power” no Teatro Municipal — este último em referência a “Em Legítima Defesa” ocorrido no dia 7. Outro momento emblemático é a cena da tradução. Um francês (embaixador?) discursa e é traduzido para o português e espanhol. Em termos gerais, os tradutores se colocam em desconfortável posição, uma vez que precisam revelar a crença do gringo, que revela, em sua postura colonizadora, acreditar que exista


uma inferioridade cultural nas manifestações artísticas latinoamericanas; manifestações essas que no entanto podem, sim, servir, diz o francês com suposta generosidade, para dar um colorido local para a forma oficial de discurso. Em outra, vemos o relato em monólogo de Pero Vaz de Caminha percorrendo extasiado as virtudes dessa terra tão boa, tão fértil, tão propícia para enriquecimento a custo pouco ou a custo alheio. Referencialmente, o PVC cita fatos de vários séculos de exploração das terras para interesses externos, fossem eles Portugal, Inglaterra, políticos ou multinacionais. Esta, como muitas outras cenas, possuem valor por si só, arrancando aplausos do público que tem orgasmos com as performances individuais, com as musicais ou com as que mais se aproximam da situação política atual: bem-vindos, imperadores da república! Enquanto o relato de PVC acontece, os enormes blocos de isopor são redesordenados. Estes blocos são o principal elemento cenográfico do espetáculo, e sua participação oscila entre simbologia acertada e formalismo estético. Simbologia acertada, pois remetem-nos a tijolos estéreis, frágeis, nunca finais; ao mesmo tempo que cênicos, pois são leves e permitem serem usados como escada, plataforma, casa, parede etc. Formalismo estético, pois não são poucas as vezes em que o jogo de tira-põe-tira-põe não desenvolve novas poéticas, dando a impressão de que a con-

trarregragem obriga a direção a escolhas de ordem logística para driblar o elefante branco com que se tem de lidar no palco. Completando a visualidade, as cortinas são extraídas, revelando a crueza do espaço cênico e suas estruturas de maquinário, além de uma iluminação também crua. A concepção de Felipe Hirsh e os Ultralíricos não mostram as cores, mas o preto e branco; não mostram os ritmos, mas uma dissonância; não uma afirmação política, mas um resultado lúdico e irônico sobre as indagações de artistas que não querem deixar o momento passar. Não aceita tratar a América Latina com o simplismo de um “colorido local”, uma vez que assume o oposto disso, tampouco pretende abarcar toda a complexidade de uma cultura que tem em si figuras carnavalescas, tiradas da realidade, mas dignas de figurar nas comédias e tragédias desta ágora cada vez mais enevoada.

por claucio andré

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especial antro+ MITsp

Não rolou uma lágrima pra socorrer

U

m grande cubo de isopor se desmancha em frente ao espectador. A solidez das fronteiras conhecidas se reparte em reterritorialização. A América Latina é recortada, repartida, expropriada de quem por lá já fazia morada. Estudar a história deste Novo Mundo é descortinar uma genealogia do extermínio. Que segue de forma mais ou menos metafórica até os dias de hoje. Como blocos de isopor que se reagrupam e se desagregam, a constituição da América Latina foi violenta e ambivalente. Uma interminável construção e desconstrução. O ponto de partida do espetáculo, um conjunto de textos latino-americanos que conta com autores da Argentina, Brasil, México, Chile e Cuba, é um panorama nada óbvio do que se compreende como latino América. Os textos, em sua maioria desconhecidos por grande parte do público, acabam por remeter, indiretamente, à ambivalência dos processos históricos da nossa constituição centro e sul-americana. São cruéis e líricos, violentos e cômicos, em igual medida. E não tem a pretensão de exaurir a discussão – apenas escancará-la ao público. A Trágedia é assim uma peça que não se pretende um manifesto político.

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[[ contaminação ]]

Nesse sentido, Felipe Hirsch é um diretor extremamente hábil na arte de subverter clichês. Toda a expectativa estereotipada que por ventura pudesse ser gerada pelo tema latino América é logo abalada. Figurinos sóbrios, luz fria, cenário com oitenta cubos de isopor industrial parecem revestir a encenação de uma lógica outra, calcada em elementos não estereotipados do imaginário comum de quando se pretende falar de Brasil e/ou de América Latina. A música, elemento que acabou se constituindo como fundante no decorrer do processo de criação do espetáculo, é um ponto forte da peça. Magistralmente assinada por Artur de Faria, a música, seja como paisagem sonora, seja como elemento principal da cena, dá colorido e nuance à montagem. No prólogo, configura-se um cabaré estranhado e atonal denominado “Tropicana”, em que o público formado por ilustres facínoras é “acolhido” e “saudado”. Do Padre Anchieta ao Bolsonaro, todos parecem caber nesse teatro de horrores. Os nomes, escolhidos em meio aos 515 anos de História do Brasil pós-chegada dos portugueses, traçam de maneira iconoclasta e corajosa (sem perder o humor acentuado pela escolha no registro de interpretação dos atores) um painel do horror que atravessa parte da história do Brasil. É absolutamente atual. E assim a montagem segue, sendo impossível não encon-

trar pontes com o hoje. “Agora que me livrei da tirania dos injustos, quem me salvará da tirania dos justos?”, repete à exaustão a Epígrafe. Impossível não pensar no Brasil, atual, marcado pela cisão entre supostas direita e esquerda que nos apresentam diariamente o exercício de entender, conceituar – e concretizar - o termo justiça. Correndo em paralelo com um Poder Judiciário que vê seu poder de polícia engordar e que cria, com o apoio de parte da mídia, líderes políticos, que pouco a pouco se personalizam, se tornam maior que seus cargos públicos e se revestem de um manto da moralidade, baluartes do justo. No Brasil atual a Tragédia nos ajuda a olhar pro momento em que vivemos. Afinal, se nos livrarmos da tirania dos injustos, quem nos livrará da tirania dos (ditos) justos? Como disse Chico, “do medo criou-se o trágico, no rosto pintou-se o pálido, e não rolou uma lágrima, nem uma lástima para socorrer”. Na rosa-dos-ventos que guiou o Velho Mundo ao Novo Mundo, se iniciou nossa hybris trágica latino-americana que continuamos a construir e a desconstruir. Ontem e hoje. E, talvez, amanhã.

por Maíra do Nascimento

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especial antro+ MITsp

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SEM DESCULPAS, LATINO AMÉRICA

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cíclica. Mas, ela não sabe, América Latina não é cruz, duas retas dispostas no ar. América Latina é fragmento. Neste mesmo 2016, assisto A Tragédia Latino Americana, de Felipe Hirsh. Descubro que América Latina é, ainda, um cego batendo punheta pra foda de travesti. Um produtor aproveitador. Um humor óbvio e agressivo. Uma declaração de amor. Um pescador macumbeiro que namora uma evangélica. Uma mãe violentada que mata o próprio filho. A Tragédia não nos explica, não procura soluções e também não pede desculpas. Não há nenhuma possibilidade de conserto para a América Latina. Para isto, teríamos antes que ser peça que se encaixa, quebra-cabeça. Não somos. Somos pedaços soltos, fragmentos. E desta forma é, também, construído o espetáculo. Um retrato pouco fiel do que não poderia ser retratado de maneira fidedigna. Iemanjá, deusa dos brasileiros, nos ajuda a falar.

foto patrícia cividanes

O

cenário é o interior do Acre, fronteira com o Peru. Uma senhora, missionaria evangélica, auto-intitulada profeta, cabelos brancos e uma inusitada mistura de espanhol com português conta sobre seu trabalho de catequização entre o norte do Brasil e o Peru. Seu maior orgulho, do qual ela fala sem pudores, é ter fundado uma Igreja dentro de uma tribo de índios. O ano é 2016. Padre Anchieta, estivesse vivo, se orgulharia da continuidade de seu trabalho. Há muito, a América Latina foi colonizada. Até hoje, ainda tenta-se consertá-la. Pois esse, me parece, ser a legenda dada a esta terra. A América Latina nasceu quebrada, errada, cheia de índios. Eternamente, estamos em falta com o nosso atraso e devemos gratidão aos nossos algozes. Devemos muito aqueles que tentaram nos alcançar o progresso. A missionária, mais de 500 anos depois, ainda tenta consertar índios, essa criação que continua errada em sua própria existência. Tenta ainda não ser quem é, mais europeia que indígena, mais linha reta e menos

por Ramilla Souza



especial antro+ MITsp

a carga crĂŠdito nĂŁo informado

faustin linyekula



especial antro+ MITsp

disursos também dançam

O

quanto nossas origens reverberam em nós, o quanto sobram e permanecem, e por permanecerem o quanto reconhecemos de nós mesmos nessa relação? São perguntas aparentemente impossíveis de responder, pois há nelas tamanha subjetividade que as variantes se revelam infinitas e incompletas. Apenas ao próprio indivíduo algo se aponta como definitivo, e traduzi-lo em palavras é tanto quanto limitado aos sentidos que possuem. Por isso, o corpo surge para além do complemento. É ele a dimensão mais radical à transcrição das subjetividades, sem impor-lhes conclusões indiscutíveis, mas possibilitando ao olhar de quem a ele assiste representar um diálogo aberto e circular. Tudo isso está em A Carga, de Fautin Linyekula, de modo surpreendentemente simples, delicado e profundo. Inicia explicando, e quase se impondo tal limite, ser ele apenas um contador de histórias. Por tal ação, tem viajado o mundo levando as narrativas de seu povo, sua tribo, sua cultura, seu passado e presente. O

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lugar em si, sua terra natal, o Congo, intercala guerra e peste. Ainda se morre de peste, conta. Todavia, o artista está aqui para dançar. E nisso há um argumento mais profundo que conduz o entendimento da ação de contar histórias como sendo um artifício para algo mais profundo. Não se trata apenas de expor as narrativas de seu povo. É preciso falar sobre as origens para que elas permaneçam naquele que as conta. A fala, então, assume no espetáculo a característica de aproximação do artista com as diversas narrativas de um mundo em constante mutação. Trata-se de salvar não o passado, mas a si mesmo, a partir do entendimento de ser a memória fundamental à construção da persona. A palavra, o contar algo, as histórias escolhidas e oferecidas revelam mais profundamente aquele que conta, já que a experiência de encontro com a territorialidade e cultura permanece inevitavelmente apenas rascunhada e inacessível. Faustin precisa do corpo, e por isso dança. Dança exatamente pela compreensão de serem as palavras incompletas. Dança como meio de reconstruir a memória materialmente, provocando sua presença e construção visualmente. O exercício de recuperar o corpo ancestral, no caso do espetáculo pelos movimentos de danças proibidas, já não mais dançadas, luta por salvar


o passado e salvar-se ao futuro. Nessa intersecção de tempos, o corpo presentifica o artista em sua dimensão de linguagem pura e não apenas como suporte à coreografias ou metáforas. O simbolismo da dança se esvazia da obviedade atribuída às tradições, e, ainda que abarque exatamente isso, surge como potência do homem, do ser, do indivíduo. Poderia ser essa a resposta do artista, então. Contar a história como reencontro com as origens, dançar como tentativa de pelo corpo recuperar e reter a memória, sensações e lembranças. Todavia, Faustin se pergunta se de fato é capaz de dançar. Não se trata das qualidades dos gestos e movimentos, mas do quanto conseguirá efetivar a recuperação de sua história. O corpo que viaja o mundo acumula experiências de culturas e contextos diversos, contamina-se sem escolha e proteção, e nessa sedimentação outro indivíduo é formado. Não há como escapar a isso. Ao se perguntar sobre sua capacidade, então, o artista indaga sobre o quanto em si ainda é congolês e pertencente às próprias histórias que narra. Ele tenta, repete, e parece não se satisfazer ou assumir em certo tom de saudade àquilo que pouco a pouco nubla e se desvia da memória. Um microfone virado ao livro, um computador rodando fotos de Congo. O artista deixa a cena e nos entre-

ga a imagem e o silêncio como últimas possibilidades do retorno, do reencontro, da permanência. Elas pouco dizem ao espectador. Mas são belas de olhar, ainda assim. É como se Faustin construísse em nós uma memória de algo nunca vivido ou imaginado. A cada imagem surgida, somos acometidos por nossas próprias lembranças que ressurgem e completam, combinam as originais. O movimento exige mesmo o silêncio. E, ao final, ao reacender das luzes, a sensação de que rever o artista é como encontrar uma parte nossa. Faustin consegue delicadamente construir no espectador um pouco dele mesmo. E com isso, nos contagia com o Congo. Se contar uma história é trazer algo a alguém pela palavra, a dança extremamente técnica, simbólica e emotiva comprova a potência do corpo ser discurso. E funciona radicalmente bem.

por ruy filho

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especial antro+ MITsp

krzysztof warlikowski

foto stefan okolowicz

(a) polĂ´nia



especial antro+ MITsp

Compreender (A)polônia: um último trabalho ao homem

U

ma humilde introdução. Quando tinha vinte anos tentei ler Ulisses, do James Joyce. Eu parei no quarto capítulo, exausto, soterrado, como um sedentário que senta o baço latejar na costela ainda no quarto minuto de corrida — tamanha é a exigência intelectual que a obra faz de seu leitor. Que eu tenha percebido, foi que, naquelas camadas de referências aos monumentos literários, naquele palimpsesto de jogos de palavras, existe uma tentativa hercúlea de buscar o homem acima de qualquer localidade. Já na primeira vez que vi um filme de David Lynch, também não foi indigesto. Camadas e mais camadas de simbologia, algumas sem raiz narrativa, o que despista o olhar; mas, que eu tenha percebido, existe um movimento de purificação (quisera dizer catártico), em especial quando há música associada à cena, quando se pega por um emocional que não sabemos o que é, senão que é bizarro e lindo. Assistir (A)polônia trouxe de volta essas impressões estéticas, e por diversas razões. Primeiro, por trazer uma percepção artística em referências simbólicas a mitologias como a de Orestes, Agamenon, Clitemnes-

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tra, Apolo, Hércules e Alceste. Segundo, por apresentar esses mitos também em camadas sobrepostas, associando-os à História (Holocausto) e o presente (ainda o Homem). Por fim, por exigir uma alta capacidade intelectual e referencial de quem assiste, restando, a quem não a tiver — meu caso — a absorver a obra por exaustão, como ocorreu na cena em que há acompanhamento de uma triste música ao vivo, a experiência do bizarro e lindo lynchiano. Krzysztof Warlikowski atualiza as mitologias em situações em que são identificadas tanto ações cotidianas (salão de beleza, enterro, jantar) quanto ações históricas (em especial fatos acontecidos na II Guerra Mundial). Aqui, todos aqueles nomes míticos sintetizam a dimensão trágica da existência humana, e nos leva a trazer Agamenon, por exemplo, por meio do Holocausto, até nós, em processo de autoquestionamento moral. Warlikowski nos pergunta sutil e insistentemente: e se você ou eu estivesse ali? É uma peça “de colagem” (aspas, pois uso o termo livremente), que passa, na primeira parte, por cenas em que mito a mito se desmistifica a compreensão daqueles personagens e seus significados, para, na segunda e final parte, apontar os vetores das cordas que vão fechar as pontas deste difícil espetáculo.


Questiono a direção do polonês, que tem inúmeros recursos ao palco, de luz a multimídia, mas que muitas vezes causa mais ruído que construção, mais efeito que linguagem. O uso de câmeras e projeções, por exemplo, em poucas vezes é discurso poético ou mais que estilo; quando não um recurso que salva o ator que, na falta da expressividade corporal, tem no superclose a salvaguarda emocional do quadro. E o percurso sonoro também carece de musicalidade; efeito que a língua polonesa não ajuda a construir, sejamos justos. O diretor não parece muito preocupado em direcionar o olhar do espectador; pessoas sentadas lado viram coisas diferentes, deixaram passar coisas diferentes. Mas isso não chega a ser uma questão comprometedora, no entanto, uma vez que a memória do Holocausto, para alguns, poderia ser um infame ruído na nossa compreensão humana. Explico: assim como espectadores não viram o estupro, há pessoas que preferem não enxergar a tortura dos regimes militares. Mas desconheço saber o quanto esse ruído, na concepção de (A)polônia, foi proposital. De qualquer forma, é um espetáculo de quem, como fazem os poloneses, alemães e judeus, visita e revisita o tema sem descanso, e constrói e descontrói, e discursa, corta e cola (e talvez minha impressão de Ulisses

não esteja de todo ingênua); enfim, pensa a questão, buscar compreendê-la sob uma óptica mais transcendente, abrangente, incômoda, sem satisfazer-se a uma resposta final. Lembrando, inclusive, que a visita aos campos de concentração de Auschwitz, na Polônia, são parte de uma grade curricular de ensino obrigatório na Europa. Talvez para não deixar a lição morrer em tempos de novos ódios; talvez por reconhecer a crueldade humana em si mesmo, e utilizar-se da poética, no caso, teatral, para expurgar esses males. A III MITsp esteve repleta desses temas. Porque, afinal, como no encerramento de (A)polônia, todos vamos nos reencontrar num hall intimista, parado o tempo, onde uma banda vai cantar o amor e a vitória, enquanto todos os mortos, mãos visíveis ou invisíveis, vítimas visíveis ou invisíveis, vão se olhar além da cor, gênero e raça e compreender Pedro, o Vermelho, o elo perdido e o que precisa ser feito de nós para não mais haver holocaustos.

por claucio andré

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especial antro+ MITsp


experiências em crítica Como concluir, se é que cabe ainda a uma crítica concluir algo sobre um espetáculo, quando este se apresenta em processo, meio do caminho, instante de descobertas e desconfianças? Pensando o quanto é inútil antecipar os julgamentos e leituras, a ANTRO POSITIVO propõe uma nova metodologia de proximação crítica, que sirva ao contexto em suas possibilidades sem ser determinista. Assistir ao espetáculo e devolver aos aritstas uma sequência de perguntas surgidas pelos estímulos do trabalho e daquilo que poderia existir e não está. Mais uma vez, a revista se propõe pensar a crítica como um instrumento plural e dialógico.


especial antro+ MITsp


Processos abertos, ensaios de espetáculos, estudos de cenas, dentre outras possibilidades, surgem como vias de acesso às pesquisas e criações de diversas maneiras, e podem ser trazidas ao público e crítico para a ampliação da própria percepção e de diálogos. A revista Antro Positivo se perguntou, então, sobre como participar criticamente quando o que se apresenta não é o final. Assim, iniciamos aqui uma nova maneira de se relacionar com artistas e criadores, pela qual nos propomos a observar e trazer perguntas que possam auxiliar a verticalizar as pesquisas em andamento.


especial antro+ MITsp

laboratรณrio

รณ foto haroldo saboia

christian duarte



especial antro+ MITsp

Como construir um escuro tão vibrante e profundo?

C

omo aqueles corpos sensibilizam o meu corpo? Como eles me convocam a existir naquele espaço? O que acontece dentro de mim que me destina à margem ou ao centro? Como aquela repetição me convoca a estar presente? Como eu me compadeço com cada gota que pinga pelos fios de cabelo? Quanta força há naqueles olhares? Quantas coisas aconteciam aqui dentro quando os olhos se cruzavam? Quantos mundos habitaram aquele mundo? Rolando, os corpos moviam quais ventos? Se nós não estivéssemos ali, quais obstáculos aqueles corpos enfrentariam? O choque gera o que em mim e neles? Eu evito, desejo ou manipulo o choque? O que me acontece que no começo eu escapo e depois eu desejo que o outro se aproxime? O que acontece em nós que quando eles começam a se aproximar com mais velocidade e impacto, desejamos fugir? O que o impacto gera? O que há naquele chão que está invisível aos meus olhos? Quais os rastros que os dois deixam? Quais os obstáculos que eles enfrentam? E se houvesse um tanto de baldes? E se eu também tivesse que escolher entre permanecer

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[[ crítica participativa ]]

e encontrar ou fugir e escapar das águas espalhadas pelos choques com os baldes? O que mantém aqueles corpos em movimento? O que os paralisa? Se aqueles corpos em movimento não se olham, como conseguem inundar os olhos de quem os observam? Como eles conseguem ser tão inteiros apesar do desgaste? O que eles escondem de nós que parece ser revelado quando se esparramam pelos nossos corpos? Por que aqueles dois corpos em movimento estão se prateando? O que está prestes a acontecer? Para onde aquilo se desenrolará? Antes de nós, aqueles corpos já rolaram por onde? Quantas vezes? Porque só com o tempo me dei conta que o chão estava cheio de pontos pratas? O que me faz não enxergar o que está diante de mim? Por que as janelas estão vibrando? O que acontece ali dentro que altera o espaço por completo? Como Orfeu e Eurídice habitam aqueles corpos? Eles estão ali? O que os faz sair do chão? O que os faz parar de rolar? Como eles fazer nascer em mim esse cumplicidades antes desconhecida? Quais os corpos que no impacto com aqueles dois que rolavam modificaram o trajeto? Quais os corpos que no impacto com aqueles dois que rolavam modificaram as velocidades? Quais os corpos que no impacto com aqueles dois que rolavam paralisaram-nos? Como o som consegue construir esse

espaço de cumplicidade? Quem segura as duas pontas daquele fio teso? Quando ele cai, por quanto tempo permanece o seu rastro no espaço? Enfim, parados e se olhando, por quê a distância ainda existe entre os dois? O que tenciona aquele fio? Quando as luzes se apagam, o que o som nos diz surrando aos nossos ouvidos? O fim pode ser o reinício? Por que não havia me dado conta antes da cidade que existe através das janelas? Por quantas horas eu permaneceria ali, parada, olhando pro lado de fora? Por quantas horas eu permaneceria ali, parada, tendo certeza que aquele espaço estava repleto de fantasmas experimentando o mesmo gosto de vida que eu? Quando as experiências são profundas e simples, elas se distanciam da espetacularização? Os aplausos são garantia de alguma coisa? Como pode aquele silêncio ser tão profundo e vibrante?

por ana carolina marinho

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especial antro+ MITsp

crĂ­tica performativa


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ça

resenhistas

ruy filho ana carolina marinho intervenções gráficas

patrícia cividanes 11.03.2016 - Itaú Cultural/SP antro+_95


especial antro+ MITsp


intervenção e fotografia Escrever uma crítica na frente de todos? Abrir o processo da escrita e da construção do pensamento crítico é o desafio proposto pela ação Crítica Performativa. A revista Antro Positivo constrói mais uma vez durante a MITsp um espaço para uma escrita dialógica sobre o espetáculo Ça ira, de Joël Pommerat, através de conversas e participações de convidados durante o período de oito horas ininterruptas, em tempo real e abertas a todos. O público poderá observar, ler, sugerir, interferir e participar. Uma busca conjunta pelo desenho de uma nova possibilidade de crítica.


especial antro+ MITsp


em legĂ­tima defesa theatro municipal de sp 07.03.2016 fotos de

PatrĂ­cia Cividanes

(direitos reservados)


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especial antro+ MITsp

AS DESTRUIÇÕES TAMBÉM PODEM SALVAR O HUMANO

O

papel de um crítico é comumente entendido como olhar para as coisas por um viés racional, analítico, comparativo, histórico. Tenho imensas dúvidas sobre isso. Ainda que seja. Olhei racionalmente ao meu lado, pensei, voltei a mim e ao mundo. Os negros que ocuparam o palco e corredores do Teatro Municipal de São Paulo levaram quase um século para entrarem e se manifestarem a partir de seus desejos e urgências, e não como convidados permitidos. Depois de Mario de Andrade, durante a semana de 22, nunca mais. Até hoje. A história inicia um novo parágrafo ao brasileiro. Estamos todos dividindo o palco principal. Só que a merda é que tudo acaba. Será? Depende de quem você é. Depende de quanto você é capaz de entender o humano. Depende de tantas coisas que chega a ser impossível suportar as perguntas, as dores, os silêncios. Se a importância da arte é de provocar uma desestabilização ao ser, hoje à arte atingiu o mais profundo em mim, e eu talvez tenha, enfim, o sublime em seu estado mais cruel de realidade e poética. Realidade de corpos que sucumbem limitados à crueldade idealizada e imposta do entendimento artificial da cor. Poética, pois são pessoas, vidas, pulsões, realidades invisibilizadas pelos interesses desumanos de alguns que não são poucos. Hoje, algo se destruiu em mim e foi incrivelmente maravilhoso.

por ruy filho

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especial antro+ MITsp

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especial antro+ MITsp

O ataque enquanto legítima defesa

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o dia 4 de março a intervenção poético-política “Em Legítima Defesa” aconteceu no Centro Cultural São Paulo após a estreia do espetáculo sulafricano Revolting Music; no dia 11, no Itaú Cultural, após o congolês A Carga; e emblematicamente no 7, após o alemão-paulistano 100% São Paulo, no Teatro Municipal bastante cheio. É emblemático porque há mais de noventa anos um negro não se manifestava naquele palco; não estamos contando, claro, os negros convidados para apresentar para elite branca, como Miles Davis, que, por sinal, deu as costas quando percebeu a “omogeneidade” de seu público. Mas “Em Legítima Defesa”, dirigido por Eugênio Lima, também foi emblemático por causa de seu contexto. A terceira edição da MIT sofreu, a poucas semanas da estreia, cortes violentos de verba. Entre os cortes, o polêmico Exhibit B, no qual atores negros são colocados num zoológico humano para mostrar o que de repugnante já foi feito a outras raças; e sob as asas da lei. Exhibit B, do diretor sul-africano (branco) Brett Bailey, sofreu protestos de manifestantes em diversas partes do mundo, quando não cancelamentos de exibição, a des-

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peito de artistas negros toparem participar desta exposição cruel com propósito bastante claro e consciente. Os atores que subiram ao palco do Teatro Municipal, no Itaú Cultural e no CCSP foram os selecionados para participar de Exhibit B. Soavam os rumores este havia sido cancelado por pressão de movimentos extremistas negros, e que “Em Legítima Defesa” tinha sido uma compensação aos artistas escolhidos, pois assim os atores poderiam manifestar sua versão dos fatos em relação à barrada exposição. Mas o grupo, conforme conversa que fiz com um dos artistas, desmentem: “Em Legítima Defesa” surgiu por convite da organização, e os participantes é quem decidiram o teor do discurso que iria ser exposto nos locais. Que inicialmente seria só no CCSP; a muito custo conseguiram autorização para macular o TM. A intervenção acontece logo após o término do espetáculo receptivo; vinte a cinquenta performers negros, vestidos tudo de preto, preenchem o máximo possível dos corredores antes que dê tempo dos primeiros da plateia irem embora. Um a um, passando microfone de mão em mão, o grupo recita trechos de músicas, narrativas tiradas de fatos reais e noticiários, além de expor situações e reflexões sobre a condição de ser negro num país que diz não ser racista.


Há momentos bastante tocantes, como quando um dos atores compartilha: “Sabe qual a maior batalha do negro? Ser chamado pelo próprio nome”, e disso lista uma série de apelidos e ofensas, como “macaco”. Ou quando sintetiza-se os dois maiores problemas que o Brasil não superou em sua história: a questão colonial e o proletariado. Ou ainda quando uma das atrizes reproduz o comum discurso: se você é negra pobre, tem que ser 2x melhor que o outro pra chegar no mesmo lugar. No entanto, existem também duas questões incômodas que são notadas em outros momentos da intervenção: o tom irônico ou sarcástico, e a abordagem no grito. Este me incomoda porque pergunto se será melhor atingir a consciência do público pela estrutura poética e retórica do discurso, ou se dá para compensar com o volume do áudio. Já a primeira preocupa mais, pois sarcasmo e ironia, se usados indiscriminadamente (não tenho intenção de trocadilho aqui), mais do que agridem: desencorajam, segregam, violentam. “Oras, mas os negros sempre foram violentados!” Concordo. Mas se a intenção é vingar-se (e tenho certeza que, no fundo, não é isso que eles querem), onde está a evolução humana? Ou Tarantino é só narrativa? É algo que vale a pena prestar atenção, principalmente porque há brancos que se

querem saber mais, querem ouvir mais do negro, e não só para amenizar seu sofrimento. Embora não tenha dados, sente-se um desejo de fraternização para com os irmãos que carregam o estigma simplesmente por ter mais melanina. Há quem queira conhecer mais da perspectiva de quem sofre genocídio por meio da cultura. Como nunca percebi a baixíssima porcentagem de negros no teatro? Como nunca pensei na questão do apelido, mesmo o aparentemente inofensivo? Ou seja, a intervenção me toca, me faz perceber uma série de fatos que até antes eu via banalmente. Mas ao mesmo tempo que encoraja esta percepção ativa, desencoraja pelo teor, em certos trechos, bastante agressivo e destoante. O que é uma pena, pois tem ali dentro uma bomba bem mais potente. De qualquer forma, é excitante ver que movimentos como este estejam pipocando por vários cantos. Parafraseando o que se ouve em “Em Legítima Defesa”, aquelas vozes despertaram e não querem voltar pro sono. Resta saber se essa luta é uma marcha em diálogo, ou se devo, branco, ver apenas da plateia.

por claucio andré

antro+_115


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você entra para o nosso mailling e recebe um email com um link para baixar a edição ATUAL. A revista é liberara para download sempre depois da primeira quiNzena de lançamento.


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artista não vive de vento

fotos

patrícia cividanes

apoio

instituto capobianco

Fernanda D’Umbra


cachê atrasado. edital cancelado. Patrocinador desinteressado. estrutura sucateada. espaço inexistente. mídia superficial.

Marta Soares

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diálogos p e n s a m e n t o

c r í t i c o


cobertura de festivais, processos criativos O coletivo nasceu em 2010 para oferecer um olhar específico: responder aos experimentos apresentados nas Satyrianas. Desde então, formatos de escritas críticas foram inventados, como a cobertura em tempo real, imediatamente após o espetáculo; as conversas em formato de bate-papo pelo facebook; a ação Crítica Performativa, escrita publicamente, durante muitas horas, sobre um único espetaculo. Em 2015, o Antro Dialogos - Pensamentos Críticos esteve presente em muitos dos principais acontecimentos teatrais e espaços de reflexão, ampliando a participação em festivais, espetáculos, processos criativos e encontros reflexivos: Puzzle D, MITsp, Festival Internacional SESC de Circo, Poa em

Cena, Performance em Encontro, Fronteiras do Pensamento, IC 9, Bienal SESC de Dança, Banalidades do Mal, Tempo Festival, FIAC Bahia, Satyrianas 2015, Perform6 [Quem?!], Virada Cultural, A Tragedia Latino-americana e A Comédia Latino-americana. E em 2016 chegarão mais novidades por aí!

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m at é ria s i nt e r nac io n a i s exclu

capa especial 2 anos

caPa especial 2 anos

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ruy filho

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O corpo como tempo. O tempo corporificado. A dança como encontro com as possibilidades de se existir aos dois

A face de um teatro do presente, pelo encontro com a manifestação real

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A imagem precisa de uma palavra escondida em renúncia ao óbvio

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O inventor de um jeito novo de nos reconhecermos humanos

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siva s. atrav e ssand o f ronteira s.

Win Vandekeybus

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valkeapää Sobre a vida, o deixar viver, a morte, o terror e as piores possibilidades de construção de uma suposta ordem por fotos

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O teatro, a ópera, o cinema e o querer contar histórias

O corpo em risco. O movimento em desejo. A dança como artifício de encontro com o outro pelo belo

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O corpo em risco. O movimento em desejo. A dança como artifício de encontro com o outro pelo belo por

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O teatro como forma pura de expressão de uma alma jovem e já eternizada por fotos sp

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algumas destas matérias podem serem lidas em inglês clicando aqui

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obre a mi

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Idealização e direção artística: ANTONIO ARAÚJO Idealização e direção-geral de produção: GUILHERME MARQUES Relações internacionais: JENIA KOLESNIKOVA E JOÃO PASSOS Relações institucionais: RAFAEL STEINHAUSER Relações públicas: CARMINHA GONGORA / HENRIQUE CARSALADE Coordenação da assessoria de comunicação: MÁRCIA MARQUES / CANAL ABERTO Curadoria dos Olhares Críticos: SÍLVIA FERNANDES E FERNANDO MENCARELLI Curadoria de Ações Pedagógicas: MARIA FERNANDA VOMERO Coordenação dos Eixos Reflexivo e Pedagógico NATÁLIA MACHIAVELI Coordenação do Cabaré | Ponto de Encontro: CÁSSIA ANDRADE Coordenação executiva de produção: RACHEL BRUMANA Coordenação técnica: ANDRÉ BOLL Coordenação de logística: LEONARDO DEVITTO Coordenação financeira: PATRICIA PEREZ Coordenação de cenografia: PATRICIA RABBAT Produção executiva: CLÁUDIA BURBULHAN E CÁSSIA ANDRADE Secretaria: FERNANDO RUIZ Projeto gráfico: PATRÍCIA CIVIDANES Pré-produção: PATRICIA LOPES (executiva); ANDRÉ LUCENA (técnica); ALBA ROQUE (financeiro); GABI GONÇALVES (coordenação executiva de produção)


2016

rĂŠgua principal

a antro positivo ĂŠ parceira oficial da mitsp


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saia já do foco a luz do celular na plateia te coloca em cena. respeite o público e o artista. De s l i g ue .

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por

Nathalia Timberg

por

AntĂ´nio Fagundes

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especial

MITsp

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