POLÔNIA - caderno especial Antro Positivo

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polĂ´nia caderno especial

2016 I 2017


... atravessar o oceano que nos separa

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antro+ especial polĂ´nia


e trazer na bagagem a instigante cena polonesa

especial polĂ´nia antro+

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março + outubro + novembro + dezembro 2016

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antro+ especial polĂ´nia


são paulo + cracóvia + varsóvia Ruy Filho e Patrícia Cividanes viajaram a convite do Instituto Adam Mickiewicz

especial polônia antro+

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quem? editores

Ruy Filho [texto] Patrícia Cividanes [arte] resenhistas

realização

Ana Carolina Marinho Claucio André Fernando Pivotto Maria Teresa Cruz agradecimentos

ANTRO POSITIVO é uma publicação digital, com acesso livre, voltada às discussões sobre teatro, arte e política cultural. 6

antro+ especial polônia

Dorota Kwinta Karolina Małaczek Marysia Mirecka Sesc SP Festival Música Estranha MITsp Para comentar, sugerir pautas, reclamar, colaborar, alertar algum erro ou apenas enviar um devaneio:

antropositivo@gmail.com aqui anonimato não tem vez. quem tem voz, tem também nome e é sempre bem-vindo


editorial

A

os poucos fomos percebendo a presença da Polônia no Brasil. Não por qualquer falha, ao contrário. A delicada aproximação se fez sem imposição, sem agressividade mercadológica, estabelecendo

contatos mais duradouros e respeitosos com os artistas e públicos locais. Durante o ano, era comum a participação de espetáculos poloneses em importantes festivais e nas programações das instituições. E e em diversos cantos do país. Foi assim que a cena polonesa construiu um primeiro panorama do que lá tem sido realizado. Pesquisas estéticas, abordagens, escolhas, artistas... Foi essa multiplicidade de expressões que nos motivou a buscar conhecer mais. Convidada pelo Cultura.pl, a Antro Positivo acompanhou em Cracóvia o Boska Komesdia, importante festival nacional com os principais criadores da atualidade e também de sua cena jovem. Seguimos adiante, e em Varsóvia iniciamos uma série de entrevistas com artistas e pesquisadores que não terminarão tão cedo. Isso é fundamental para o entendimento desse caderno. Ele será construído durante o passar do ano. Uma a uma, novas conversas e entrevistas serão acrescentadas, de modo a termos um quadro amplo e plural do teatro polonês contemporâneo. Diretores, dramaturgos, compositores, coreógrafos, intelectuais, críticos. Serão muitos. E, pelo que pudemos conhecer e acompanhar mais de perto, ainda assim serão poucos. A Polônia vive um momento complexo política e socialmente, e isso se traduz também na sua arte, produzindo criações ainda mais singulares e urgentes. A Polônia segue para outros países, outras aventuras. Contudo, o Brasil permanecerá conectado, continuará a aproximação iniciada antes mesmo de 2016, através da extensão do nosso olhar. É nossa maneira de agradecer ao Instituto Adam Mickiewicz (IAM), a todas as pessoas que nos acompanharam e ajudaram, e não deixar que as distâncias voltem a ser continentais entre nós. Permaneceremos próximos. O que sempre é maravilhoso. especial polônia antro+

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sumário Resenhas Críticas

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mostra internacional de sp

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entrevistas diário de imagens

semana do teatro polonês . sp boska komedia . cracóvia varsóvia


O

Instituto Adam Mickiewicz (IAM), atuando sob a sua marca emblemática Culture.pl, é uma instituição cultural nacional polonesa cuja missão

é promover a Polônia e a cultura polonesa através da participação do intercâmbio cultural internacional. Até agora, foram organizados eventos mostrando o melhor do teatro, design, artes visuais, música e cinema da Polônia em 67 países, alcançando mais de 50 milhões de espectadores. Em 2015, o IAM colaborou com o Sesc São Paulo na realização da exposição Máquina Tadeusz Kantor – a maior e a mais completa exposição da obra teatral e visual do artista jamais realizada fora da Polônia. Em 2016, o IAM realizou o programa de apresentação da cultura polonesa no Brasil, em grande parte dedicado às artes cênicas. Aconteceram várias apresentações de peças de teatro e dança em colaboração com festivais (MIT SP, Vivadança em Salvador da Bahia, Tempo_Festival no Rio de Janeiro) e com o Sesc Belenzinho em São Paulo, debates, palestras, oficinas, residências artísticas e duas coproduções polono-brasileiras: Yanka Rudzka. Semente de Joanna Lesnierowska e Janusz Orlik na área de dança e Wiosna de Leo Moreira na área de teatro.

Instituto Adam Mickiewicz especial polônia antro+

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resenhas crĂ­ t i c as mostra internacional de teatro de sp



Nowy Teatr

direção Krzysztof Warlikowski

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por cláucio andré

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U

ma humilde introdução. Quando tinha vinte anos tentei ler Ulisses, do James Joyce. Eu parei no quarto capítulo, exausto, soterrado, como um sedentário que sente

o baço latejar na costela ainda no quarto minuto de corrida — tamanha é a exigência intelectual que a obra faz de seu leitor. Que eu tenha percebido, foi que, naquelas camadas de referências aos monumentos literários, naquele palimpsesto de jogos de palavras, existe uma tentativa hercúlea de buscar o homem acima de qualquer localidade. Já na primeira vez que vi um filme de David Lynch, também foi indigesto. Camadas e mais camadas de simbologia, algumas sem raiz narrativa, o que despista o olhar. Mas, que eu tenha percebido, existe um movimento de purificação (quisera dizer catártico) em especial quando há música associada à cena, quando se pega por um gancho emocional incógnito, bizarro e lindo. Assistir (A)polônia trouxe de volta essas impressões estéticas. Primeiro, por trazer uma percepção artística em referências simbólicas a mitologias como a de Orestes, Agamenon, Clitemnestra, Apolo, Hércules e Alceste. Segundo, por apresentar esses mitos também em camadas sobrepostas, associando-os à História (Holocausto) e o presente (ainda o Homem). Por fim, por exigir uma alta capacidade intelectual e referencial de quem assiste, restando, a quem não a tiver por completo (meu caso) o absorver a obra por exaustão — como ocorreu na cena acompanhada por uma triste música ao vivo, a experiência daquele bizarro e lindo lynchiano. Krzysztof Warlikowski atualiza as mitologias em situações em que são identificadas tanto ações cotidianas (salão de

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beleza, enterro, jantar) quanto ações históricas (em especial fatos acontecidos na II Guerra Mundial). Todos aqueles nomes míticos sintetizam a dimensão trágica da existência humana, e nos leva a trazer Agamenon, por exemplo, por meio do Holocausto, até nós, em processo de autoquestionamento moral. Warlikowski nos pergunta sutil e insistentemente: e se você ou eu estivesse ali? É uma peça “de colagem” (aspas, pois uso o termo livremente), que passa, na primeira parte, por cenas em que mito a mito se desmi(s)tifica a compreensão daqueles personagens e seus significados, para, na segunda parte, apontar os vetores das cordas que vão fechar as pontas deste difícil espetáculo. A direção, com inúmeros meios como iluminação e multimídia acontecendo ao mesmo tempo, parece utilizar o ruído como recurso de construção ou, como suponho, da não-construção — e aqui o jogo de palavras, “ruído”, parece me servir. A concepção com focos múltiplos provavelmente previu que parte do público não perceberia certos acontecimentos; a cena do estupro, por exemplo, ali no cantinho. Para cada elemento levado ao palco, esteja ele sobreposto ou não, tentei identificar uma justificativa coerente com a linguagem do todo. Trabalho hercúleo, não? Então em alguns casos, até onde foi minha leitura, me pareceu que certos recursos estavam ali pelo efeito da grandeza, menos que de uma linguagem. Em especial no uso de projeções, cada vez mais investigadas no teatro, e que, pelo seu destaque no palco, acaba roubando de um lado e eximindo de outro, em especial a expressividade dos atores. A projeção tem causado isso mesmo: quais as novas exigências desse ator multimídia carne-e-osso? Mas talvez alguns aspectos daquela espetacularidade seja apenas efeito, sim, e intencional. A memória do Holocausto, para alguns, poderia ser um infame ruído na nossa compreensão humana. Assim como espectadores não viram a cena o estupro, há pessoas que não viram a tortura dos regimes 16

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(a)polônia militares por estarem vislumbrando os eventos distrativos feitos sob medida para a ocasião. De qualquer forma, é um espetáculo de quem, como fazem os poloneses, alemães e judeus, visita e revisita o tema sem descanso; constrói e descontrói; discursa, corta e cola (e aí minha impressão de Ulisses não será de todo ingênua); enfim, que pensa a questão, busca compreendê-la sob uma óptica mais transcendente, abrangente, incômoda, sem satisfazer-se com uma resposta final. Lembrando, inclusive, que a visita aos campos de concentração de Auschwitz, na Polônia, são parte de uma grade curricular de ensino obrigatório na Europa. Talvez para não deixar a lição morrer em tempos de novos ódios; talvez por reconhecer a crueldade humana em si mesmo, e utilizar-se da poética, no caso, teatral, para expurgar esses males. A III MITsp esteve repleta desses temas. Porque, afinal, como no encerramento de (A)polônia, todos vamos nos reencontrar num hall intimista, parado o tempo, onde uma banda vai cantar o amor e a vitória, enquanto todos os mortos, mãos visíveis ou invisíveis, vítimas visíveis ou invisíveis, vão se olhar além da cor, gênero e raça e compreender Pedro, o Vermelho, o elo perdido e o que precisa ser feito de nós para não mais haver holocaustos.

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por maria teresa cruz

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(a)polônia

N

ão existem deuses nem entre os deuses. Eram chamados de deuses, mas nunca foram virtuosos. Ao apropriar e personificar as figuras da mitologia grega, a montagem desloca e

provoca desconforto de sentido. Ainda mais quando se considera o significado da palavra Deus. No dicionário está bem explícito: substantivo masculino, o ser que está acima de todas as coisas; o criador do universo; ser absoluto, incontestável e perfeito. Mas em (A)polonia não tem deuses, embora em muitos momentos alguns personagens ajam como, especialmente no tocante a “ser absoluto” e “incontestável”. Aliás, se formos para o limite da semântica, o título da peça por si só é uma negação, com a letra “a” antes do nome próprio. O nome de uma pátria. O nome do que foi um lugar em que brincaram de Deus – ou deuses – no período da Alemanha nazista, tendo ficado nas mãos de uns poucos escolhidos a possibilidade de decidir quem deveria morrer e quem merecia viver. Brincaram de deuses, mas eram todos mortais. E falíveis. E com boa dose de culpa pelo que ficaria inesquecível pelas manchas nas folhas da história da humanidade. O projeto de supremacia que dizimou um povo e fez a cabeça de outro se tornaria, com o atraso de algumas décadas, uma vergonha mundial. Hitler pode não ter se culpado – até porque morreu antes que esse sentimento, típico de quem desenvolve reflexão em perspectiva, pudesse aflorar. Mas apoiadores do nazismo e a própria Alemanha – depois de também se perceber como fracasso na tentativa de unidade – se curvaram, reconhecendo sobejamente os horrores do holocausto. Mas se a história não perdoa, também não evita que atrocidades continuem a ser cometidas. Prova disso é que a intolerância continua servindo de base argumentativa para ações

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(a)polônia de diversas naturezas. O tom pessimista do enredo nos dá essa certeza: não é que a bondade, a benevolência, a generosidade acabaram. É que elas nunca existiram. Também a culpa manifestada não é um reconhecimento de erro. É muito mais uma blindagem, uma precaução para o caso de um dia virar alvo. As manifestações de culpa na peça aparecem das mais diferentes formas e estabelecendo as mais diversas conexões. De complexos edipianos – dos dois lados – passando pela ingenuidade muito comum em pessoas imaturas até chegar nas irracionalidades dos quereres. Se é da Segunda Guerra Mundial a que se referem as cenas da peça, discordo que seria necessário estabelecer essa definição do período histórico. A guerra é o estado de coisas aonde a ética é a do mais forte, a moral sempre está sendo relativizada e o bem e o mal é uma mera questão referencial. E essa guerra pode ser a Segunda, a Guerra Fria, a da Síria, o conflito Israel-Palestina, ou pode ser aquela interna, aquela que travamos dentro de nós. E nesse ponto, a perturbadora pergunta se estabelece a partir da iminência de um enlace de dois apaixonados: “você morreria por mim?” ou “até onde você iria por mim? Até ter que dar sua vida para que a minha seja poupada?”. No limite, quem diz sim a essa pergunta, ou apenas está querendo encontrar um motivo, ou está sendo motivado pelo sentimento de culpa. Quem consegue responder a essa pergunta sem qualquer pressão externa, dirá fatalmente que não. E a razão disso é tão simples quanto simplória. Somos egoístas por definição e por atuação na relação com o outro. Cobramos que o outro nos dê a sua vida em sacrifício. A prova de amor passa por um profundo ato de egoísmo de quem pede a comprovação. E conseguir a prova não é algo exatamente difícil, uma vez que a ameaça é o abandono. Cobrar gera culpa, em quem deixa de realizar e não exatamente em quem pede. Mas não queremos ser cobrados. E, no entanto, cobramos. Duvidamos. Exigimos. Temos culpa, mas terceirizamos isso ao outro, pedindo que o sacrifício venha de lá para cá. 22

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É tempo de suspender os julgamentos. Mas eles nunca, em tempo algum, estiveram tão fortalecidos nos tribunais sem toga. Nesse processo, as pessoas têm massacrado o sentido das coisas de tal modo que, sem grande esforço, elas deixam de fazer sentido. E é esse o caminho para a perda completa do exercício da compaixão, porque não há lugar para esse tipo de relação humanista em um cenário de egoísmo, como esse que se pinta na peça. Por fim, é compreensível que a segunda parte da montagem seja dedicada a um discurso verborrágico interminável e proposital sobre aquilo que não podemos ou não queremos ver. Aquela parte que se nega, embora exista, embora não seja possível colocar debaixo dos panos. Mas para um efeito reflexivo, a suspensão do ato, antes que a atriz respondesse ao questionamento lapidar da peça sobre o que você faria pelo outro, tira a plateia da zona de conforto e transporta para além do que se vê naquele átimo de ação para a vida de cada um. Uma atualização dos dez mandamentos da tábua de Moisés, que rege cristãos pelo mundo todo, mas tudo ao contrário. Se fosse para batizar a lista seria: os dez mandamentos de como aceitar que o mundo no qual você está inserido é vil, mesquinho, egoísta e pouco de importa com o seu sofrimento. É bastante lógico, como recurso narrativo, que a peça se divida e desenvolva dessa forma e, por essa razão, a linearidade na condução dos fatos deixa de apresentar uma pesquisa que aponte para um desenvolvimento dramatúrgico surpreendente. Contudo, fica muito clara a utilização da narrativa como recurso estético. Ou seja: a pesquisa aponta para um conteúdo que serve a forma. Ao espectador, cabe aqui uma analogia: é como se fosse retirado o respirador de um paciente com problemas pulmonares em uma unidade de tratamento intensiva. Deixar sem resposta o principal questionamento da peça gera vazio, portanto tem muito mais a ver com forma do que conteúdo. Um asfixiar. Algo como dizem por aí: “durmam com esse barulho”. Nesse caso, é a ausência dele. especial polônia antro+

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por fernando pivotto

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(a)polônia

S

omos indivíduos que necessitam de um lar. Seja a morada onde nós habitamos, a família da qual viemos ou aquela que formaremos, seja nós mesmos ou o país onde fica-

mos, o lar é o local onde nos sentimos protegidos, onde compartilhamos experiências, onde nos identificamos com algo ou aquilo que serve como totem para nossa memória. O lar é um dos pontos centrais da nossa formação e da nossa existência. O que resta de nós, então, quando perdemos nosso lar? O que somos sem família para amar, ou um lugar seguro para viver? O que sobra quando aquilo que nos é fundamental é pervertido e esvaziado de qualquer memória boa ou de possibilidade de futuro? Segundo o Nowy Teatr e o diretor Krzysztof Warlikowski, o que resta é a tragédia. Em determinado momento, alguém no palco diz que o ser humano tem dois direitos básicos, o de não ser morto e o de não precisar matar. Em outro ponto, é perguntado a um casal se eles se amam e se morreriam um pelo outro. Mais adiante, um homem pranteia a mulher que acabou de assassinar. Assombra a constante associação entre amor e morte. Talvez mais do que isso, assombra a simples possibilidade de associar uma coisa à outra. Quanto de nós – de nossa humanidade, de nossa civilidade, desse verniz com o qual nos revestimos – sobrevive à morte, ou à possibilidade da morte? O que de nós sobrevive quando aquilo que amamos se vai? O quanto de nós ainda existe no dia seguinte a uma perda? O que acontece conosco quando a morte e a violência se tornam cotidianas? Talvez o lar seja fundamental porque é ele que nos protege do horror. É ele que nos guarda da dor, da morte e da violência – não delas em si, mas da sua percepção, da sua possibilidade.

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(a)polônia Nós somos tanto aquilo que tememos perder, quanto aquilo que nos resta ao perdemos o que amávamos. Nós somos, fundamentalmente, medo. A única certeza é a de que vivemos em tempos violentos. Na Grécia antiga das tragédias, na Polônia que se cura da guerra, ou no Brasil de agora – da cadeira onde eu digito, do quarto que me protege da chuva –, estamos em tempos cruéis e com garras afiadas. No palco de (A)Polônia, as diversas manifestações artísticas – teatro, música, instalação, videoarte – atropelam-se umas às outras, num fluxo constante e caótico, criando mais um ruído do que um diálogo. A enxurrada de referências, que vão de textos clássicos a discursos contemporâneos, passando por figuras históricas e pelos posicionamentos dos atores, também estilhaça qualquer possibilidade de entendimento convergente do espetáculo: tudo pode significar uma coisa ou outra ou outra. O caos que toma o teatro (quase não há silêncio, quase não há calmaria) ecoa o mundo convulsionado em que vivemos. Os deuses que surgem também parecem desprovidos de qualquer aura divina. Apolo, quando entra em cena, é tão caricato que não inspira terror ou esperança. É alguém tão medíocre quanto qualquer um de nós, ou quanto os outros personagens das tragédias que inspiram o espetáculo. Estar à mercê de criaturas tão ridículas quanto as que povoam o panteão de (A) Polônia só reforça o aspecto patético da condição humana. As peças que compõem o espetáculo mais se chocam do que se encaixam, e são as fagulhas que surgem desses impactos que são significativas. Neste mundo que sobreviveu à Segunda Guerra apenas para gestar outros conflitos, as colisões parecem continuar existindo com força total. Encaixes existem, é claro, e momentos de silêncio e calmaria surgem aqui e ali, mas a violência ainda nos trespassa, o ódio e o estranhamento ainda são poderosos catalisadores sociais e a tragédia ainda ronda. 26

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Neste contexto, o teatro de Warlikowski parece avisar que nossa tragédia segue inalterada. Os horrores permanecem aí, prontos a se repetir, as guerras parecem a um passo de eclodir, talvez porque fomos incapazes de aprender com nossos erros, talvez porque não haja alternativa para a violência. Os manequins infantis que ficam em cena por grande parte do espetáculo, ora manipulados pelos adultos, ora apenas testemunhas, nos fazem refletir sobre aqueles que virão depois de nós: eles servirão para romper ou perpetuar nosso ciclo destrutivo? Hemingway uma vez disse que “o mundo é um lugar bom, e vale a pena lutar por ele”. Essa frase ficou ecoando na minha cabeça durante todo o espetáculo, e segue reverberando mesmo depois de tanto tempo. O mundo é cheio de horrores, mas ainda vivemos nele, ainda fazemos arte, ainda depositamos nossa fé no teatro e acreditamos que ele pode nos ajudar a enfrentar nossa jornada – seja nos dando um respiro na peleja, seja nos lembrando que a luta não está ganha. O teatro é nosso lar, e ainda nos ajuda a encarar os horrores

fotos stefan okolowicz

do mundo.

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resenhas crĂ­ t i c as semana do teatro polonĂŞs/SP



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TR Warszawa

Texto e Direção: Anna Karasinska Co-dramaturgia: Magdalena Rydzewska

ewelina chora


por Maria Teresa Cruz

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ewelina chora

O

que somos é resultante da imagem daquilo que somos para nós mesmos e a imagem daquilo que somos para os outros. Somado a isso, o olhar do ator para sim mesmo, para a

práxis da criação e, mais que isso, da manifestação da arte. Não sei se serviria como uma sinopse, mas é, no mínimo, um interessante ponto de partida para reflexão sobre o trabalho. A gente tende a ser cruel na avaliação de nós mesmos. Ewelina não consegue chorar. É falsa, na contaminada visão dos outros atores. Contudo, é, na verdade, a única figura verdadeiramente honesta. Todos os outros estão contando histórias, estão criando contextos, estão simulando verdades que são admitidas como as únicas versões possíveis àquele momento da história. Verdade e mentira estão envoltas em ne-

blina espessa. Isso é, em certo modo, assustador. Mas, em que pese as diferenças da produção e pesquisa artísticas entre Brasil e Polônia e ainda mais o hiato de realidade, estamos no fundo discutindo – e mais – debruçados sobre a mesma questão: projeção e situação. Há uma certa dose lisérgica em tudo isso, como não poderia deixar de ser, mas há também no cerne da discussão algo muito simples e prático dessa avaliação quase moral entre o que se é, o que se vê e o que se gostaria que fosse. A começar pela flexão dos verbos. A terminar, pelas inflexões – ou implicações – filosóficas. No final das contas, a montagem é dividida em dois principais eixos: o da crítica à realidade e o da metalinguagem. A partir do momento em que atores que se dizem pessoas comuns, rejeitam a condição de estarem expostos como atores. Ou seja, se por um lado se retiram do lugar de fala, se despindo de qualquer responsabilidade pelo que está sendo dito, por outro, admitem o 32

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ewelina chora fato como uma oportunidade de se verem naquele contexto. Não há como rejeitar o elemento de apropriação do discurso, como se aquela verdade fosse a lógica por onde passassem os processos de significação do presente. Para além disso, é impossível ignorar o certo desprezo pela teoria de Stanislavski como argumento para escrachar o jogo do eu sou ele. Na peça, para além da construção e exposição das personas, Ewelina é chamada a aprender a chorar. Entretanto, esse tipo de exacerbação de emoção é aprendido ou sentido? É evidente que o choro, desde o surgimento das artes de encenação, é usado como artifício (ou representação clara) de uma emoção. Nessa proposta, subverte-se o sentido de que o choro é a manifestação de uma emoção – seja ela alegria ou tristeza extrema, ou até mesmo raiva. O choro pode ser encenado, o choro pode ser inventado, mais do que isso, o choro é criação. Até porque, o sentimento é o que fazemos dele; a forma com a qual controlamos ou expomos, também é criação. Sendo assim, ele também tem uma dose de controle. Ewelina é a única que é. E nesse sentido, na forma psicanalítica do que se pode considerar ser, ela exacerba as sensações, implodindo o superego a ponto de deixar de existir no palco. Em um primeiro momento, não se submete ao que o fotos: Marta Ankiersztejn e Dominika Odrowąż

outro espera dela. E, nesse caso, não é o outro de fora – a plateia – é o outro de dentro – o (ou “os”) personagem. Para se inserir, ela passa então a reagir da forma esperada. Mas a linha entre realidade e representação não é clara e Ewelina talvez signifique a essência de um desrespeito aos contornos e nuances da psique a partir de um estímulo externo agressivo e castrador, que determina os padrões daquilo que é certo e errado. No limite, representar é o centro da discussão. “Ewelina chora”, em resumo, fala sobre nossa relação com nós mesmos e com o outro e, para além disso, do ofício do ator, da construção da narrativa e das escolhas cênicas no exercício do teatro. especial polônia antro+

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A escolha narrativa do diretor em mostrar isso da forma mais simples possível (atores negando a própria identidade e assumindo outra) e estética (microfone, palco limpo e a força do discurso) é também provocadora. Para mentir ou falar a verdade precisamos de plateia, mas não precisamos de cenário. As histórias narradas pelos personagens, ora ironicamente ora com contornos de escárnio, provocam proposital confusão, nem tanto sobre o que se fala, e sim sobre quem se fala. O contexto político é colocado, mas fica quase totalmente em segundo plano. O fator e material humano são os fundamentos para as provocações inevitavelmente suscitadas no trabalho. É interessante também o paralelo sugerido entre o destrinchamento das possíveis ‘personas’, apropriando-se do sentido existencialista sobre o qual Ingmar Bergman muito bem trabalhou décadas atrás. Somos a história que gostaríamos de contar. Mas isso quando há um interlocutor. E o que fazemos com aquilo que somos e, de repente, queremos ocultar? No ofício do ator, por princípio, na perspectiva do material humano desse ofício, estamos embebidos de pressupostos, mas existe uma história pregressa da personagem que não é a nossa; existem vontades e desejos que não são exatamente os nossos; existem, por fim, pressupostos filosóficos que sedimentam a persona. Apesar das múltiplas teses existentes sobre a formação da personalidade, o elemento preponderante é o que faremos sobressair e o que ocultaremos. E isso diz muito mais respeito aos efeitos provocados pelo exterior, quando em contato com o interior, do que a algo transcendental ou incontrolável. Da brincadeira entre a personagem, a personalidade, a persona, o que fica não é a reação, mas o verbo. Os atores contam histórias em terceira pessoa, desqualificando muitas vezes aqueles que estão representando, no fundo, eles mesmos. Ou não. É um exercício radical de negação daquilo que dizem ser você, mas que talvez não seja a fiel representação de sua persona. Quando 36

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ewelina chora se estabelece o exercício brechtiano, o resultado é que o local de fala fica de fora para dentro e cria um certo desconforto porque. Afinal, quem está falando de sobre quem? “Ewelina chora” também dialoga com o conceito de Pós-verdade tão evocado em análises recentes sobre o comportamento das pessoas, especialmente em ambiente tão volátil como o das redes sociais, por exemplo, aonde se constroem e destroem reputações. Nunca foi tão fácil checar fatos, na mesma medida em que nunca foi tão fácil propagar verdades frágeis. Ou mentiras, como preferir. E essa fragilidade dos discursos reside com força no lugar de fala. O exercício cênico da montagem desloca exatamente esse lugar de fala. Mostra que, no final das contas, é possível criar narrativas convincentes apenas com o discurso. A pesquisa que coaduna a linguagem do teatro com a da performance tem trazido uma práxis contemporânea para os palcos, onde o comunicado tem muito mais força do que quem comunica. Mesmo porque, quem comunica é incerto. A ironia presente na ideia de que todo mundo pode estar representando e de que ao mesmo tempo isso é incerto tira da zona de conforto os mais afoitos que buscam verdades conclusivas. A Polônia que traz a história marcada por tantas intempéries humanas só poderia estar sendo o local onde se discute exatamente as incertezas do discurso. Transpor isso para os palcos é evidenciar que olhar e refletir sobre o lugar de fala são fundamentais em tempos em que as verdades são tão questionáveis, a ética é tão relativa e os discursos andam tão voláteis.

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Direção e texto: Leonardo Moreira

TEATR STUDIO EM VARSÓVIA

wiosna


por ana carolina Marinho

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wiosna

E

ra no futuro, mas era agora. Fui sugada por um caminho frio e distante que se aproximava cada vez que a dramaturgia se desenrolava. Se eu soubesse o frio que faz na Polônia,

ele me queimaria o rosto? Se os poloneses soubessem o calor que faz no sertão, ele lhe queimariam as vísceras? Ao contrário dos poloneses, nem todos aqui sabem o que é a primavera. Eu mesma, cresci num lugar onde só existe verão e inverno. A nossa “Wiosna” é para poucos. Mas aquela noite era de primavera. E, diante de mim, as palavras eram duplicadas por dois homens que anunciavam a angústia que sentiria pelos próximos minutos. O eco não cessa, é incansável. Diante de mim “Wiosna” e dentro de mim a memória de um lugar em que nunca estive, um relato sobre um lugar que habitei por horas: Lá fora havia um jardim imenso com três árvores robustas: troncos maciços, copa fechada e nenhum cupim. Temi que elas caíssem antes de mim e as cortei: receava a aproximação dos cupins vizinhos. Antes que elas morressem, eu matei-as. Agora, a casa cheira forte à madeira. O piso e as paredes sangram com o recém corte. Uma vida inteira eternizada em pedaços. Atribuí um sentido e uma função para cada parte. Mal reconheço o que veio de cada uma. O todo não se realinha mais. Não é possível. Esperei que pelos vincos e frestas houvesse algum sinal de vida. Mas nada. A minha respiração é ofegante. Não paro de puxar o ar que se torna, cada vez mais, rarefeito. Malditas árvores! Deveria ter deixado elas apodrecerem solitárias, sem nada poderem fazer umas pelas outras. Deveria ter esperado elas ruírem diante de meus olhos que descansavam na cadeira de balanço. Não deveria ter feito nada por vocês. Deveria ter esperado vocês gritarem por socorro e suplicarem para que eu apaziguasse o sofrimento

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wiosna e antecipasse o fim. Teria feito assim se tivesse me dado conta que, exatamente quando quis exterminá-las por não suportar a presença, eternizei-as. Agora, permaneço aqui dentro respirando o fétido odor que exalam das árvores depois de mortas. Vocês impregnam todos os móveis. Que ideia estúpida essa de eternizar. Eu sigo e vocês permanecem. Mas abri a porta para a vizinhança. Quero ver até onde vocês podem sustentar. Abri fendas entre as tábuas para que a vida brotasse, mas a teimosia de vocês tornam-nas ignorantes. Achando que podem vingar-se, brotam nos pequenos vasos sobre a mesa. Achei que podiam ir além. Superestimei-as. Tudo é, inevitavelmente, orquestrado e limitado. Silencio. Mas as vozes não param de soar. O silêncio é o único que não ecoa. O maior problema talvez não seja o cheiro. É, não é isso. É a proximidade das paredes. Por que as construí nessa distância? Troquei aquele piso frio por essas estacas porque não aguentava o som que voltava depois que eu emitia qualquer palavra. Me disseram que o piso de madeira diminuiria o eco. Isso é diminuir? Mal consigo me ouvir, porque parece que sempre estou no passado, na frase anterior. Querendo completar o predicado, que parece ter sido subtraído, não consigo sair do sujeito. A repetição me dilacera o juízo. Não aguento mais ouvir a minha própria voz. O som está distorcido. Preciso de um revestimento acústico. Não créditos fotográficos não informados

ouço a minha voz sem ouvir, ao mesmo tempo, a de todos os outros que ecoam diante de mim. Diante de mim, a “Wiosna” floresce. Um jardim de enfermidades onde se brotam humanos que vegetam. Aquelas palavras cortantes saem de alguém que com certeza já queimou o rosto com o frio. Nessa época neva na Polônia? Dentro de mim, uma pulsão de inquietação segue no eco da dramaturgia. Há um pouco de terra naqueles vasos sobre a mesa. Seria o suficiente para me enterrar? O que aconteceria se em vez de vocês três, quem caísse fosse eu? Já não suporto mais o meu estômago especial polônia antro+

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ser triturado por esses cupins. Já não me restam vísceras! Deixem ao menos a vesícula! Não suportaria permanecer com tudo isso aqui dentro sem ao menos digerir. E as abelhas lá fora? Não há primavera para quem nasceu na linha do Equador. Tampouco outono. É por isso que as plantas estão todas dentro de casa. Aqui dentro a ilusão torna “Wiosna” possível. Não suportaria o cheiro das flores sorrindo à cada raio de sol. Aqui dentro elas ardem com essa luz branco quente. Essa primavera é húmida e a minha respiração está cada vez mais fraca. E se fosse eu que tivesse caído? Eu virei uma planta, mas não sei se quero cultivar. Como se respira em uma casa doente? A “Wiosna” carrega, aqui dentro, a possibilidade de ser duas ao mesmo tempo. De ser eco e sombra, sem ao menos deixar claro de onde brotam os ruídos primordiais. Retiro de mim a possibilidade de ser primavera. Com medo de ser responsável pelo meu futuro, deixei que o tempo desenrolasse os eventos. Vegetei. Parecia o futuro, mas era agora. É a isso que chamam primavera? Era tudo quente e húmido. Aqui não faz o frio que deve fazer na Polônia. Mas era possível sentir o vento cortante com cada palavra dita e ecoada pelos atores. Falo de mim, querendo dizer sobre tudo que vi naquela noite de primavera. Diante de mim, a “Wiosna” e dentro de mim esse turbilhão de pensamentos e angústias em que compartilho nessa escrita. Lembro de poucas experiências que como essa me conduziram a lugares memoriais, a cheiros angustiantes, a um frio cortante que nunca sequer senti. Pensei que não poderia me espantar com uma encenação tão delicada e afiada depois de “Ficção”, mas Leonardo Moreira reafirma sua direção e escrita profundas e arrebatadoras em “Wiosna” e mergulha o espectador num espaço de encenação cheio de provocação e sutileza. A primavera, aqui, inverteu a lógica da longevidade e do frescor. Provoca ao desmontar a expectativa dos jardins: aqui, os jardins são empreendimentos que mantém, a qualquer custo, vidas 44

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wiosna vegetando. Jardins de artificialidades. “Wiosna” foi, antes de tudo, uma experiência de interlocução com a sombra que habita do lado de dentro de cada um, com essa angústia que precede a colheita: e se não houver nenhum fruto? E se nascerem podres? Sem dúvida, a derrubada das três árvores do jardim e a construção dos móveis das casas e, inclusive do caixão, é uma das narrativas que permanecerá ecoando aqui dentro e encontrando espaço para reflorescer à minha maneira, afinal, também cresci com uma árvore gigante que foi plantada no mês do meu nascimento. Uma mangueira: suas raízes entortaram o muro da casa: quando será o dia em que precisarei derrubá-la? A encenação justapôs dois ambientes, dois palcos, duas plateias, uma montagem paralela, em que ora o eco reforçava a intensidade de cada frase, ora as frases se distinguiam e os lugares se revelavam em suas distâncias. Foi esse jogo que me provocou o vai-e-vem dos meus pensamentos, essa sensação de que mal consigo me ouvir, porque parece que sempre estou no passado, na frase anterior. Um eco que me conduz um passo à frente e me paralisa nos dois próximos. Que me faz questionar sobre as consequências de minhas escolhas e de todas as minhas ilusões de “e se?”. Que provoca o diálogo entre os tempos e os países. Os atores assumiram a responsabilidade por cada palavra dita, o sotaque só reafirmava a minha impressão de que o frio da Polônia deve mesmo queimar o rosto. Fui conduzida para um espaço em que nunca estive, apesar da familiaridade. Brasil e Polônia construindo um espaço de múltiplas leituras: era na Polônia, mas era aqui. Era no futuro, mas era agora.

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resenhas crĂ­ t i c as boska komedia/cracĂłvia



cracĂłvia

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A

visaram-nos. A noite começaria cedo. Descobrimos lá, ser o cedo, o meio da tarde. Chegamos e saímos do aeroporto já noite, então. Ao menos no céu, e não no relógio do celular. No caminho à cida-

de, as casas guardavam seus aposentos com luzes amarelas e mínimas. Era o que se podia ver por dentro das janelas. E foi o que encontramos também pelas ruas mais centrais. Existe uma certa melancolia em uma cidade com iluminação baixa, que hoje nos remete ao antigo. Prédios históricos, árvores sem folhas, e essa luz que chegava de repente superando o sol. Perambular pelas vielas e praças, errar os caminhos e errar pelos caminhos, descobrir o local e não apenas o turístico, conhecer um pouco da intimidade daquele preso a um cotidiano comum. Isso sempre nos interessa. E em Cracóvia, frente à distância da experiência estética que seu inverno provoca a alguém dos trópicos ensolarados como nós, isso se deu intensamente. Luzes de natal, charretes na praça, palco e números preparados por adolescentes e crianças. E neve. Tivemos essa sorte. Nevou o suficiente para deixar a cidade tão bela quanto os melhores filmes. Saímos antes de um temporal que trouxe mortes e tristeza. Uma cidade para se conhecer sem pressa. Para ser visitada pelas esquinas. Uma cidade cenográfica com a história presente e um sentido de paralisia romântica e singular. Uma cidade realmente disponível à imaginação e sobretudo ao teatro.

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boska komedia

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eculo XIV. O poeta italiano Dante Alighieri trabalha em um dos poemas épicos mais definitivos para a cultura ocidental. Uma jornada dele mesmo conduzido pelo poeta Virgílio aos três reinos: Paraíso, Purgatório, Inferno.

Desde então, a Divina Comédia ganhou milhares de comentários, estudos, ressignificações, apropriações nas letras, artes visuais e teatro. O impacto simbólico sobre os séculos seguintes determinou muito do que se entende dessas esferas e não apenas aos religiosos, mas a todo o imaginário clássico e moderno, superando a si mesmo como poesia para conquistar perspectivas filosóficas próprias. Século XX. O teatro se consolida como um das artes de vanguarda, substituindo suas dimensões românticas e o realismo histórico e denunciativo, propondo o palco como expansão às experiências estéticas mais radicais. Surgem os grandes diretores e encenadores. Surge a performatividade e a intersecção mais profunda entre as linguagens artísticas. Aos poucos, até mesmo a dramaturgia se moderniza e conquista o direito de se reinventar. Novos formatos exigem outras possibilidades e os festivais modernos, milênios distantes da festas gregas, assumem o pensamento e o diálogo como estímulo e investigação, soma e ampliação, dúvida e busca. Século XXI. No Boska (Divina) Komedia, festival nacional de teatro polonês, os três mundos dantescos voltam a se esbarrar propondo panoramas específicos. Inferno tratou de reunir dez espetáculos com estreias nos anos anteriores; Paraíso, trouxe oito jovens criadores em uma mostra própria; Purgatório ampliou ainda mais através de co-produções, estreias, espetáculos internacionais convidados, performances, eventos. A presença de intelectuais e críticos é uma constante, já que as premiações são definidas por um júri composto por convidados internacionais. 2016. Era final de novembro, quando recebemos o convite para irmos à Polônia. Aceito, seguimos sem muito bem saber o que encontraríamos. Os espetáculos assistidos no Brasil foram provocativos e instigantes, o que nos acendia certa ansiedade sobre o que encontraríamos. Fomos. Chegamos em pleno inverno de dezembro. Aterrizamos na Cracóvia, após uma conexão rápida em Amsterdã. Não há voo direto daqui para lá. Era noite, ainda que não fosse tarde. Escurecia às 16h, o que nos parecia uma aventura. Mas para bons notívagos como nós, nada poderia ser melhor. E uma vez instalados seguimos diretos para o primeiro espetáculo. O dia seguinte trazia a boa surpresa. Conhecer os envolvidos na produção do festival e pegar os materiais. A impressionante organização dava conta de todos os mínimos detalhes, de nossa agenda maluca que buscava assistir ao máximo de peças possíveis, dos translados, conversas, encontros, eventos, jantares. Tudo estava pronto. E o interesse em nós era realmente estimulante. especial polônia antro+

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Aos poucos, ganhando intimidade com a cidade e a rotina da 9a. edição, correndo entre as diversas salas, durante os 11 dias de programação, a direção artística de Bartosz Szydłowski ganhava contornos e suas proposições surgiam mais objetivamente. A aproximação entre consagrados e jovens criadores colocava um em espelhamento ao outro. Ao tempo em que se podia conferir a qualidade nas pesquisas dos já reconhecidos, também o frescor recente surgia com mais impacto, provando o quanto o teatro polonês ainda está em movimento e invenção. Ainda? Não é possível definir tão facilmente assim, em um país que ofereceu ao mundo nomes como Tadeusz_Kantor e Jerzy_Grotowski. Diretores que construíram estéticas próprias e modificaram o teatro radicalmente, ampliando a cena de modo definitivo a qualquer outro artista. No Boska Komedia, como disse, também estão os jovens. E essa é a diferença. Atenção especial, sobretudo, ao espetáculo Schubert, da jovem diretora Magda Szpecht, uma revelação poderosa para uma renovação do teatro. Trata-se de uma história complexa. A Polônia está no mapa em território estratégico, intermediando polos. É inevitável, portanto, que a presença do nazismo, tão destrutiva e desumana aos judeus, e não apenas a eles, e depois dos soviéticos durante a Guerra Fria, circunscreva muitos dos argumentos e narrativas. Quando não diretamente, aspectos decorrentes e as consequências na sociedade surgem pela investigação sobre como se firmaram na subjetividade como algo inerente. É tão distante e incompreensível para nós brasileiros que inicialmente parece estranho que ainda tenha tanta presença. Esqueça. Basta conversar, dividir as mesas dos cafés, ouvir e tudo surge com tamanha realidade no imaginário polonês que, aos poucos, assume-se para si as mesmas dores. A cidade ganha contornos de sobrevivência. Qualquer sorriso, ganha valor de resistência. E, ainda que muitas vezes os olhos estejam distantes e silenciosos ao convívio, é o teatro quem os expõem de modo mais sincero e convidativo. O teatro na Polônia, pode-se dizer, portanto, é antes a afirmação da própria presença. Era proibido falar polonês, durante a Guerra, contam-me. Também essa era uma das ações dos invasores para anular a identidade do povo e do país, e com isso subjuga-lo ao seu controle mais íntimo. Menos em um lugar. Um espaço de resistência, aonde a língua renascia dia-a-dia, e novamente no dia seguinte. Sustentada pelo teatro e a importância de falar sobre si, sobre o outro, sobre o ontem, sobre a sensação de falta de amanhã. Passou. Em parte. Ficou, sobretudo, a importância da palavra, e também da dramaturgia. Espetáculos que para nós pareceriam longo, com mais de duas horas, a eles 52

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são comuns. E estão certo, pois é preciso tempo para construir ao espectador uma ideia, uma imagem, uma sensação. E principalmente a fala é uma das grandes estratégias de criação a esse convívio. 15 entre 17 espetáculos assistidos tinham a fala como estrutural à cena, não como elemento estético. E, ao menos para 9 deles, a narrativa ocorria diretamente pelo uso da palavra, pelo contar, pelo diálogo; enquanto os outros traziam a narrativa aliada à estética, mas ainda com prioridade em sua construção. Contar histórias. Em uma sociedade atingida diversas vezes e com um passado ainda tão próximo, de fato parece ser uma urgência significa. O quanto a palavra tem surgido novamente presente em diversas cultura conduz à exposição do isolamento do indivíduo e o esgotamento das relações. Muito disso se deve a novas ordens que integram realidade e virtualização do sujeito, e não apenas em seu sentido tecnológico, mas, e principalmente, como manifestação simbólica perante o mundo. Com o peso da história ainda tão latente, a Polônia não trouxe um panorama já excessivamente aprisionado a essas questões. O que é bom. Pois, ao resistirem, olhando a si mesmos e interessados também em compreender o seu presente, os espetáculos produzem um encontro eficiente com o outro e significativo às elaborações estéticas. Esse certamente é o ponto mais complexo de ser analisado. Não há uma estética radicalmente dominante. Há estéticas, e muitas, com perspectivas divergentes e não antagônicas. O público variado entre as expressões demonstra o quão rica é essa pluralidade. Ao contrário do que vivenciamos no Brasil, onde o público é em sua maioria o mesmo, cada teatro apresentava espectadores próprios, interessados em suas pesquisas e seus jeitos. Poder acompanhar o Boska Komedia foi ir além da participação em mais um festival. Foi a possibilidade de entender mais sobre a Polônia, sobre o teatro contemporâneo polonês, o vivenciar uma cultura que se inquieta, manifesta-se, protesta, recusa e quer mais. De todas as idades e estilos, os atores e atrizes, ao final das peças passaram a fechar suas bocas com fitas pretas. Era a maneira de provocar uma reação a algo de lá, uma confusão recente, uma intervenção governamental no funcionamento de um teatro. Não eram necessários gritos. Não surgiam vaias. Não atrapalhavam as cenas. Apenas se calavam. Novamente a fala. Só que dessa vez, tirada como protesto mais provocativo a um existir desprovido de verbo. O silêncio pode e deve ser sim uma arma também de transformação. E silêncios não são ausências de sons, mas a impossibilidade de dizer e deixar que os aplausos ocupem a voz em forma de multidão. especial polônia antro+

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Teatr Laznia Nowa

Texto e dramaturgia: Mateusz Pakula Direção: Eva Rysová

the whale the globe


por ruy filho

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the whale the globe

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uando Krzystof Globisz entrou em cena, vimos um senhor, na imponência de sua presença, surgir frágil e titubeante. A bengala em auxílio pode ser, a quem o desconheça,

um artifício teatral. Não é. Trata-se de uma resposta concreta, após vencer o próprio corpo. O ator sofreu um acidente vascular. Retorna agora aos palcos também na estreia ocorrida nessa quinta de dezembro, durante o 9o Boska Komedia. Surge maestro, regente ao que ouvimos, mas com a condição de estar em nós a música. Ao menos na prática. Já que a ouvimos por fones individuais, e não tive a perspicácia de tirá-los para saber se também o ator ouvia o mesmo ou era mantido em silêncio regendo suas lembranças, pensamentos e sons interiores. O início, portanto, em experiência binaural, trouxe a chegada do ator tridimensionalizando seus passos ao nosso redor, aproximando-o aos poucos, enquanto outros conversavam quase aos sussurros. Falam dele, de sua condição, de coisas outras? Difícil saber, pois o instante primeiro não é legendado. Favorece a experiência sonora; dificulta a compreensão narrativa. Se o início transita entre a dubiedade dessa compreensão, isso se soma ao espetáculo pelo estrangeirismo que não existe à maioria na plateia. Afinal, obviamente, os poloneses entendem a conversa. Torna-se, assim, o espetáculo, um acontecimento propositadamente local. Proposital, pois, ao que se segue, as legendas surgem em inglês, reconhecendo a presença de estranhos, salvo nos momentos de improvisações. Há nisso o querer somar certo estranhamento ao espectador não local. Exata condição em que me encontro. O que me leva a concluir estar na simbologia da cena, o maestro e sua regência como resistência, o valor mais precioso ao

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the whale the globe instante. Tanto quanto ao espetáculo como um todo, imagino, buscando coerências sobre as estratégias. As primeiras falas traduzidas e disponíveis chegam com Krzystof deitado no sofá. Explicam o contexto imagético da música, sua capacidade em ser alucinação. Talvez minha desconfiança de ouvirmos vozes e músicas de seu interior esteja certa, portanto. Seguimos para dentro de seus pensamentos. Percurso que ora se faz a partir de sua condição física, ora non sense e com forte infantilização no trato das ações. No entanto, parece ingênuo demais, principalmente pelas escolhas dramatúrgicas. Com o aparecimento de duas atrizes mais e um baterista que acompanha junto a trilha, o espetáculo assume sua vertente delirante. Histórias e pequenas ações, canções e desafios, Nemo (o irreal peixe palhaço da Disney) e um aquário com peixes reais se juntam ao homem em um discurso ecológico que conduz à reflexão sobre fins e encontros, urgências e solidões. As escolhas são demasiadamente simples e os discursos apresentados intercalam argumentos com falas, ora mais banais, tornando o espetáculo menos potente do que poderia. O certo tom juvenil limita-o a ser mais sobre o querer Krzystof ali. O que não basta para validá-lo como grande acontecimento teatral, e sim como reconhecimento e respeito à sua importância. Ainda que generoso, esses são os dois maiores pontos de fragilidade ao trabalho: estética e devoção. Falta ousadia à construção do vocabulário e elaboração da ambiência cênica. No palco, o painel de folhas de papel que se deforma ao vento, feitos escamas de peixe em movimentos, estruturado também à retroprojeções, é subutilizado por ideias já comuns, repetindo estratégias previsíveis e reconhecíveis. Carece a ambiência de uma instalação capaz de promover maior deslocamento simbólico. Afinal, fala-se sobre alienações, o que verdadeiramente é muito pouco aproveitado como argumento estético. Exemplo

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mais evidente é a própria escolha pelo início binaural que não retorna radicalmente, permanecendo um efeito em diálogo ao modismo cada dia mais explorado nos espetáculos atuais. Ampliado, poderia construir outra qualidade à experiência de estarmos dentro dos pensamentos do personagem. O que instiga no começo, então, some durante o desenvolvimento de seu próprio argumento. Por tratar de alucinação, alguns aspectos poderiam ser melhor investigados. Há que se diferenciá-la de realidade e irrealidade. A alucinação manifesta-se como algo intermediário na consciência. Alucinar significa existir e agir tendo por instrumento de ativação de novos contextos narrativos e simbólicos o comum, sua estranheza se vale principalmente ao ser confrontada ao real, e mesmo assim coerente em seu contexto de singularidade. Em outras palavras, a alucinação faz sentido enquanto se manifesta e a quem se manifesta, não ao ser comparada e aos outros. O mesmo pode ser dito sobre o sonho e a loucura, por exemplo. No entanto, exige o sonho a condição do adormecimento, enquanto à loucura a permanência. A alucinação, por fim, condiz ao existir desperto e a interrupção da consciência tida por normal. Em Wieloryb the globe, a ambiência cênica, visual e sonora, procura a alucinação desse homem interiorizado pelos limites de seu corpo em resistência. Todavia, a estética proposta não se faz como concretude sobre a qual se foge, alucina, mas pela representação de um lugar estável, em estado de surrealidade, como se não pudéssemos sair da alucinação. Sem a transição da alucinação ao real, a alucinação deixa de existir como tal. Por isso falta à estética igual ir e vir, entrar e sair, estar e não, ao contrário da estabilidade conformada a ser uma realidade única, ainda que não propriamente a realidade plausível. A segunda fragilidade demanda mais cuidado sobre sua argumentação, dado o valor de subjetividade e pessoalidade 60

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the whale the globe conclusiva. Logo, aqui é menos um desvio e mais uma problematização. O quanto se coloca a condição física de Krzystof Globisz como argumento ao espetáculo? É preciso levar em conta dois aspectos: um, o acerto de não negar limites e fazer deles o estímulo à dramaturgia; o outro, o inevitável apreço por cuidar do artista que supera o personagem. É sobre este, o dilema em questão: o quanto o espetáculo poderia ser mais violentamente íntimo e particular ou mesmo se apropriar das condições para elaborar estruturas cênicas. Há um evidente respeito que se sobrepões ao espetáculo e o delimita como interferência. Paradoxalmente. Pois, ao ser uma respeitosa homenagem ao artista, esta se faz mais ao homem do que à sua história, ao assumir com certa piedade seu momento. A plateia está ali para aplaudí-lo, fica evidente ao término. Mas, até mesmo por respeito ao artista e não ao homem, o quanto foi posto como teatro à sua presença? Sem ele, o mesmo espetáculo seria ovacionado? A cruel dúvida, e me repito, a subjetividade - e não determinismo desse questionamento - somente surge pelas fragilidades das escolhas elencadas anteriormente. Fosse o espetáculo mais bem fundamentado e menos ingênuo certamente o aplauso seria inquestionável a ambos. Essa sim seria a maior homenagem possível de conquista. Um espetáculo em que a emoção não exigisse a contaminação por outros sentimentos que não a surpresa por ser atingido de modo definitivo por uma experiência única e radical. Não à toa, alucinar também significa ir além das próprias paixões. E nisso, Wierloryb the globe igualmente se esquiva

fotos Tomasz Wiech

indo ao mais próximo do que poderia alcançar.

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direção: Lars Jan

Early Morning Opera

the instituto of (ti m e) memory


por ruy filho

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ó podemos olhar o passado através de algum mecanismo. Uma palavra, alguém, uma imagem que se guarda. Pode ser um acontecimento, instante na história. Ou

mesmo uma sensação, emoção. O fato é o passado só poder ser acessado ao ser mediado. Por isso é tão complexo chegar a ele. Não se trata de um passado, então, mas de qual passado. Pois sendo resultante a esse mover-se por algo, depende sobretudo de quem e quais são as suas referências. Soma-se a isso a condição da lembrança. Distorcida pela subjetividade da memória (já que esta busca mais confirmar a si mesma do que apresentar algo a quem a busca), a lembrança é mais parte de quem a quer do que daquilo que se acessa. A memória se conflitua, por fim, em ser a reafirmação de um mecanismo ao passado, cujo intuito é aproximar o indivíduo aos seus interesses inconscientes. A memória, em resumo, é sempre misteriosamente um processo afirmativo sobre si mesmo. Seja uma recordação boa, seja ruim, o indivíduo desconhece o que ali procura novamente sentir, contudo o faz. Já o teatro, por ser o espaço à criação de sensações, não requer o passado como algo determinado. Inventa-o. Elabora pessoas, fatos, sentimentos, emoções não vividos e paradoxalmente também próprios de quem os gera. A memória no teatro é principalmente a própria teatralização das possibilidades de um passado. E disso nascem oportunidades inclusive para criar um outro próprio a si mesmo. Lars Jan vai atrás das memórias de seu pai, confundidas em plena Guerra Fria e sua atuação como operário. Aproxima arquivos, histórias, sensações sobre a época, documentos, os exames cerebrais. Do mistério desse homem, qual rascunha a

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arquitetura de um momento, projetam-se ao filho-artista os alimentos para voltar a si. É preciso desconfiar e selecionar as memórias que servem à reconstrução da figura paterna. Para tanto, impõem-se a elaboração de uma linguagem cênica que represente ao espectador o quão particular é esse percurso. Assim, a literalidade é suprimida para valorizar a ambiência, a sugestão de um lugar desenhado em planta baixa por feixes de luzes. Ora sobre os dois atores, como se a memória estivesse em outro plano; as lembranças soltas em sua condição de imaterialidade. Ora no chão, trazendo ao presente os fatos como narrativas reais, aos quais se conviveu, e que só agora podem ser vistos como tais. A parede de luzes frias que igualmente transforma o espaço, em um determinado momento, ainda se assume como parede ao fundo e resume a condição cenográfica como que para recuperar a percepção do teatro ser a real experiência nesse labirinto. É possível, então, pensarmos sobre as dimensões teatrais da memória, seus inventos, seus redirecionamento por interpretações oportunas ao que se quer sentir, e não mais como a memória como suporte ao sentimento para construção da cena. Inverte-se as premissas naturalistas sem necessitar negá-la. Pois, ao inverter seu procedimento, é importante que se perceba ser ainda ele apenas sobrepujado a outro percurso. Se era fundamental criar uma linguagem ao espectador para particularizar a memória; Lars Jan vai além ao construir uma linguagem ao próprio discurso teatral. Lâmpadas frias em cena não são novidades e realmente se tornaram comuns. Mas poucas vezes são postas como algo além de adereços luminosos ou efeitos cenográficos. Em Time, diferentemente, a planta baixa feita com elas resumem o próprio movimento da memória pelas casas e ambientes aonde os rascunhos do pai se encontram. Somada à antiga máquina de escrever, sua presença, ainda que continue enigmática em uma época já tão distante no calendário, 68

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the instituto of memory (time) mas cada dia mais recuperada nas possibilidades do presente, mantêm-se real sem necessitar qualquer exatidão. No entanto, esse é o segundo instante do espetáculo. Não começa o mesmo. Os atores intercalam tipos comuns, enquanto constroem diálogos que atravessam o momento, evidentemente para nos apresenta-lo e também aos envolvidos. Há muito nisso da Off Broadway de décadas atrás, quando a tipificação assumia características caricatas. Por mais que o procedimento possa ser uma referência também ao passado, agora tendo o teatro ao reconhecimento desse passado, o esgotamento do recurso acaba por revelar a escolha menos interessante ao que virá depois. O quanto comentar o ontem pela sua representação tal qual fora, possivelmente validada em pesquisas sobre a cena da época, é o dilema a ser vencido. Por muitas vezes, o teatro acaba massacrado como espaço criativo na imponência de seu próprio histórico. O Instituto da Memória é um exemplo disso. Ao final, o espetáculo é mais instigante e sensível quando próprio. Melhor seria, frente ao que os acertos conquistam, que a memória do teatro permanecesse isolada. Se é possível inventar o passado no teatro, ainda falta ao teatro aprender

fotos Tomasz Wiech

a inventar a si mesmo como um passado diferente.

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Direção: Wiktor Rubin Texto e dramaturgia: Jolanta Janiczak

Zygmunt Hubner Theatre in Warsaw

we get what, we believe in


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we get what, we believe in

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o redor da imensa mesa de madeira surge uma cumplicidade inevitável. Deve-se ao desenho inesperado da arquitetura cênica escolhida e às circunstâncias que impõem

a todos o convívio. É evidente ser a estratégia um conflituoso encontro também entre espectadores e atores. Não se sabe qual, nem como ocorrerá. Estamos ali para investigar e pen-

sar a democracia, em suas muitas variantes de entendimento, dizem as informações iniciais. Informar mais do que isso, seria criar o espetáculo antes que se revelasse. A expectativa ao recebe um controle para votação só amplia a sensação de ser o espetáculo mais um que utilizará os recursos da participação como viés argumentativo. Assim, tanto aqueles acomodados diretamente aos assentos junto à mesa-palco, quanto os mais afastados em pequenas plateias espalhadas ao redor sabem que, por ali estarem, agora serão peças determinantes no desvelamento dos inquéritos. Duas são as escolhas para recepção do público que oferecerem novas pistas. A primeira, o carrinho com toda sorte de bebidas, alcoólicas e não, distribuídas de acordo aos interesses individuais. A segunda, o homem que transita por debaixo do móvel tocando, esbarrando, cutucando, intrometendo-se inesperadamente aos distraídos. Humor e envolvimento, sugerem as escolhas, maquininha individual para votação, prancheta, papel e caneta. E é de se imaginar que algo ali exigirá uma exposição mais profunda às pistas iniciais. Pistas falsas, no entanto. Acaba o espectador compreendendo rapidamente ser somente outro espetáculo ao qual é convidado a se unir. Perguntas, respostas, placares, risadas, novas perguntas e respostas, risadas. Segue-se essa dinâmica por um bom tempo. Talvez tempo demais. 72

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Há na qualidade dessa específica construção teatral a sistematização de mecanismos de revelação das convicções, crenças, preconceitos, limites e morais. Se as votações trazem resultados fechados, não nominais, isso simplifica ao desenho do todo o modo como o conjunto de espectadores daquele momento compreende cada questão, cada dilema, do mais inesperado ao mais banal. Todavia, seria importante apontar como o grupo de cada instante se espelha ou distancia do acúmulo de respostas já adquiridas. Por não ser, sabemos somente sobre aqueles presente. Porém, sem a compreensão do que isso significa frente ao macrocosmo desenho da e das sociedades. A estratégia não é surpreendente. Muitos são os espetáculos que utilizam tais procedimentos nos últimos anos. A perspectiva de envolver o espectador em uma representação de si mesmo a partir de sua estatística tem vantagens e cansaços. Interessa por expor de modo a tornar evidente suas ideológicas e subjetividades. Interessa menos, quando pensada a partir das respostas estéticas, quase sempre similares, repetitivas, que a nada surpreendem o espectador mais frequente às salas de espetáculos e festivais. É fundamental o mecanismo estar ligado a um contexto narrativo que supere o efeito da participação. Seja pela ficcionalização do contexto, como propõe alguns espetáculos de Roger Bernard, por exemplo; seja pela potência estética transformando dados e informações em representações do coletivo, como outros de Rimini Protokoll – apenas para citar alguns. Não importa saber quem começou o quê, mas o quanto a reutilização do mecanismo é capaz de ressignificá-lo para construir um espetáculo que vá além dos ocorridos. Não é esse o caso em Każdy dostanie to, w co wierzy. As perguntas não são tão inesperadas, o que torna menos interessante respondê-las. A estética não supera o efeito da mesa como maior atrativo, enquanto os atores caminham sobre a tampa, o que também não é radicalmente di74

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we get what, we believe in ferente, ainda que continue cenicamente belo. De fato, sobra ao espetáculo após decifrados os códigos de sua estrutura, a maneira como a participação irá além, propondo-se investigação original. E é exatamente na tentativa de alcançar esse aspecto que o realizado supera os dilemas estéticos e narrativos e mergulha em problemas bem mais complexos e perigosos. Ao trazer um ou outro ao espetáculo, convidando-o para subir à mesa ou em ações paralelas dentre as cadeiras, opta-se pela inclusão através da exposição do outro pelo ridículo e até mesmo pequena humilhação. Confortavelmente acomodado com suas bebidas em mãos, os demais espectadores se divertem com a exposição patética daquele que antes era um igual e anônimo. Por ser um espetáculo que se volta a entender e problematizar a democracia, dentre outras coisas, cria o dilema de se impor como sistema e força sobre o outro, de modo a não lhe fornecer qualquer escapatória que não a da exposição. É de se perguntar o quão democrático é o próprio espetáculo, então, ao não dar escolhas e oportunidades, apenas de impor o patético. Claro, é expondo o que se pretende combater que a arte pode também trazer à tona de modo mais violento a própria crítica que lhe interessa. No entanto, para tanto é necessário não alicerçar o constrangimento a pré-julgamentos, mas conduzir de modo sutil a percepção do espectador à sua própria descoberta. Ao ser a humilhação banal, apenas, faz-se visível a ausência de desconforto àquele que assiste. E o espetáculo acaba por ser a confirmação dos estereótipos de como reagir aos vícios da democracia, sem que se perceba igualmente viciado na maneira de agir e determinar. Qual o valor revolucionário que a erotização constrangedora pode oferecer, que não o do constrangimento e só? Ou da culpa sobre a riqueza de alguém, quando exposta de modo invasivo e igualmente constrangedora? Nada disso alcança o valor anárquico ao teatro qual se espera. Perde-se na tentativa da denúncia e revelação, e se limita a um efeito vingativo especial polônia antro+

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do espectador que se sente aliviado por poder culpar, julgar e condenar o diferente. Um teatro dogmático, portanto, por conduzir a todos como se ele estivesse mais correto e fosse inquestionável por ter a coragem de falar o que se espera ouvir. Bom, ir ao teatro para que alguém ensine a pensar é tão perigoso quanto a própria dubiedade dessa farsa chamada democracia. O espetáculo é um sucesso por onde passa, é óbvio. Parece engraçado, parece divertido, parece inteligente, parece provocativo, parece despojado, parece improvisado, parece libertário, parece dialético, parece inovador, parece inventivo. E parecer significa muito. Todavia também pode significar o desvio de seu real significado preso às aparências de uma suposta modernidade estética e coragem retórica. Há um segundo momento. Descobre-se, depois. O que muda toda a experiência, ou deveria. De repente migramos a uma narrativa dramática. O Mestre e a Margarida, livro de Mikhail Bulgakov, cuja construção se fez por uma dezena de reescritura durante décadas e mãos, destruído, reiniciado, censurado, taxado como satanista. Há um espetáculo no livro, é bom que se saiba. Nele, o pior da sociedade é revelada à plateia. O espetáculo na literatura comenta sobre quem o assiste. Evidentemente, a primeira parte de Każdy dostanie to, w co wierzy buscou trazer essa situação. Revelar aos espectadores eles mesmos através de seus votos, escolhas, abstenções, dúvidas, certezas. Ampliar cada um a partir do escarnio ao serem expostos e até mesmo a participação narcisista. Contudo, repito-me, não pareceu haver qualquer incômodo nessa imagem exposta. De que serviu, se não para o divertimento e autoafirmação da plateia, já que pouco dessa crítica toda retornou ao próprio espectador? Resta assistir a cena, a encenação do romance, enquanto o deslocamento necessário para tanto - afinal os estilos são radicalmente distintos aos iniciais -, exige ao espectador maior destreza de interpretação dos códigos teatrais. De todo modo, o exagero dramático implica 78

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we get what, we believe in em subverter a ordem da literatura e sua intimidade. A cena de exposição da sociedade é mais real do que o romance teatralizado, enquanto Bulgakov propôs o inverso a isso. Pode-se justificar como uma releitura proposital. Tudo bem. Nessa dicotomia entre ficção e realidade, vence a proposição do escritor russo frente à dos artistas poloneses como melhor mecanismo de confrontamento. Por fim, o efeito se faz, e aos que não foram atingidos pelas estratégias cabe aceitar democraticamente as escolhas coletivas. Aplausos entusiasmados. Sorrisos aos montes. É evidente que o Mestre não atingiu a consciência da plateia. E ao coletivo seguro isso não parece ser uma questão tão importante assim. Agora é esperar que Margarida, tal qual a história original, não se volte contra o crítico afim de destruir aquele que desvelara os perigos das manipulações. Rezemos a Dioní-

fotos Anka Kaczmarz

sio, que é a quem de fato importa nisso tudo.

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Direção e Autoria: Anna Karasinska Colaboração em dramaturgia: Ewelina Pankowska

Polish Theatre in Poznan

the other show


por ruy filho

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the other show

O

que venha a ser a representação depende do entendimento de ser o teatro a soma entre conflitos. Também por ser algo

apresentado com a urgência de alguém que lhe presentifique,

o observe, e pela soma desses movimentos, aquilo que pode surgir, então, como cena. Muitos são os espetáculos e dramaturgias que tratam o lado sobre o palco como espaço a ser investigado. Falar de teatro com os recursos do teatro é, portanto, tão comum que se faz quase sempre desnecessário. Ao menos, quando por essas estratégias sem as mesmas serem ressignificadas enquanto deslocamento conceitual. Há a outra ponta; pode se dizer, fosse isso linear. Aquele que olha, assiste e se coloca em contato, primeiro através de si, depois ao descobrimento do outro a partir das sensações traduzidas. De e em, portanto, são faces inevitáveis ao observador. Nas fórmulas ocupando o mercado teatral, aproximar para o palco quem estaria na plateia tornou-se um recurso óbvio. Não se quer verdadeiramente incluir o espectador, mas formar outra qualidade de ator pelo espectador. Ou seja, desloca-se o outro ao contexto da cena e se destitui desse o que de melhor havia para oferecer, o não pertencer ao palco. Intelectuais e teóricos já consideram pensar o espectador como alguém ativo. Curiosamente, os argumentos para isso são tão estranhos que parecem ignorar o mais simples: ninguém está inanimado e acomodado na plateia, ao contrário. Significa que olhar, ouvir e existir é fundamentalmente também conviver aos estímulos de modo ativo e pessoal. E aí está o grande dilema do momento: a pessoalidade nesse existir. Ao se admitir o espectador como um ser ativo, justificam tais pensadores a importância de construir por ele uma totalidade, uma comunidade. Se não mais tão diferentes os performers e espectadores, ainda o será

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the instituto of memory (time)

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pela necessidade de equalizada a presença, agora uma única manifestação. A teoria é complexa. No entanto, é preciso perguntar sobre qual interesse se quer tanto anular as individualidades daqueles na plateia? Pelo viés social, tal coletivo responderia a uma falência de valores, ideais, ideologias; quer que seja a face de uma transformação ao todo pela mera emancipação na direção de um mesmo intuito. O risco de atribuir a anulação para o bem-comum serviu de face a muitas características e expressões do que hoje se reconhece por fascismo. Ao anularem as particularidades dos espectadores, destrói-se também a essência da história cultural e seu dinamismo na construção das participatividades e pertencimentos específicos. É preciso aceitar a pluralidade exatamente como resposta às individualidades capazes de convivência. Deixemos os espectadores apenas serem eles mesmos. Sem nada a lhes ensinar, sem mestres. Afinal, as diferenças são também as bases da importância ao teatro como experiência individual. Conflitos existem não apenas como respostas às diferenças, mas pela importância das diferenças existirem por si só. Algo próprio às artes, convenhamos. Tudo isso está em Drugi Speaktakl e sem qualquer necessidade de se valer como discurso. Com humor próprio e divertindo-se ao ser o que é, o espetáculo de Anna Karasińska traz ao centro do palco não o espectador como ator despreparado à ação, e sim o espectador representado a partir da plateia assistida. São gestos e comportamentos representando os espectadores. É impossível não se reconhecer em algum momento. E quase nunca se supera a dúvida se o assistido é planejado dramaturgicamente ou se ao seu lado está ocorrendo exatamente o posto em cena. Por olharem frontalmente, por não fugirem dos encontros com os espectadores reais, tal possibilidade é argumento plausível sem necessidade de confirmação. Não importa se alguém está cruzando a perna, dormindo, acessando o celular mais ao fundo da plateia. E sim, o quanto é provável que esteja. Durante boa parte do espetáculo, então, surge um arcabouço de individuali86

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the other show dades que não chega a ser formalizar como coletivo em cena, se não pelo contexto de ali estarem ao mesmo instante. Nada sobrará ao término. E é exatamente esse aspecto que interessa, o da exposição de sermos a ilusão de sermos uma mesma coisa. Continuaremos igualmente diferentes, para o melhor e pior que isso contribui à realidade. O acerto ao apelo às minúcias entre os diversos atores-espectadores conduz ao mais previsível do que se espera no teatro, portanto: o conflito. Mas esse aparece também como estrutura dramática. As individualidades provocam, incomodam, dividem, agrupam, reagrupam. Passamos ao como os conflitos se solucionam ou não, o que torna o espetáculo previsível e, em certo sentido, didático e enfraquecido por recuperar o comum ao entendimento de como deve ser feito o próprio teatro. Por conseguinte, o que é divertido se resume a exercícios de sala, o instigante se transforma em espera. Perde-se a radicalidade de ter no conflito a própria confrontação sobre as certezas dos intelectuais e pensadores, quais apresentei rapidamente no início. Em outra palavras, o conflito volta à estrutura narrativa, enquanto, antes, alicerçava a argumentação do teatro como experiência individual mais do que social. Entre o primeiro momento acertadamente provocativo e o segundo problemático por querer ser o desfecho do primeiro, fica a inquietação de quanto do início foi proposital ou apenas consequente às inquietações dos artistas. Se intencional, então é esperar que os próximos trabalhos não se diluam nas condescendências explicativas ao público com suas necessidades de conclusões e finais. Se inconscientes, é realmente para voltarmos a fotos Anka Kaczmarz

olhá-los com mais interesse. Pois o incômodo ali escondido deve se tornar inevitavelmente um bom e fundamental problema aos argumentos futuros sobre o como, para esses artistas, deve e precisa ser o teatro do nosso tempo. Há algo instigante escondido nisso tudo. É deixar que chegue a explosão que já parece prestes a acontecer. especial polônia antro+

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Direção e adaptação: Krzysztof Garbaczewski

TR Warszawa

robert robur


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robert robur

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contemporâneo vem esfacelando todas as possibilidades de acompanhá-lo. De algum modo, vivê-lo e percebê-lo sempre fora mesmo impossível. Giorgio Agamben tem escrito

muito sobre a necessidade cada vez maior ao indivíduo de afastamento do presente para que possa efetivamente acessá-lo. Sendo inevitável, portanto, não há de ser totalmente ruim, imagina-se. Mas não é exatamente disso que fala o filósofo italiano. É sobre a incapacidade de, estando radicalmente envoltos pelos acontecimentos, de criticamente percebemo-lo. Ocorre que em épocas de novos conceitos como Pós-Verdade, Segunda Realidade e Distopia sustenta o contemporâneo sua apreensão mediada, seja pela falência de conceitos sistematicamente confrontados por substitutos, seja por interfaces virtuais, ou pelas mudanças dos paradigmas sócio-políticos e culturais ininterruptas. Por ser mediado, as mídias tradicionais e outros mecanismos se tornam ainda mais determinantes às construções de contextos transitórios. Outrora, com o advento dos jornais e revistas, a comunicação passou a direcionar a percepção comum recortando acontecimentos e estabelecendo perfis específicos. Não demorou muito para que o chamado Quarto Poder, a imprensa, somando aos instrumentos impressos o impacto da televisão, fosse reconhecido fundamental às estratégias e aos interesses. Hoje, não diferente, como se repetíssemos o mais assustador desse movimento, e após um século, as redes sociais e o universo virtual se fazem os novos fabricantes de percepções, levando a comoções de toda sorte sobre qualquer assunto, pessoa, quase que com efeito imediato. Tudo se tornou urgente e superficial. Pensar o presente, portanto, e não mais o futuro, é observá-lo a partir de como as

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robert robur mediações implodem e explodem acontecimentos, reflexões e vontades. O quanto falseiam as aproximações. O mundo é outro, e não somente por ter mudado. É outro por se a face de um instante que se modifica ao sabor dos valores manipulados a cada segundo. Não se é mais possível olhar o contemporâneo de dentro sequer minimamente, pois é o instante que atropela agora o indivíduo. Estamos expulsos da realidade e pronto. Parece que realmente, por vias tortas, teremos a chance de olharmos a história à distância, como interessa a Agamben. Mesmo que pelos motivos e mecanismos errados. Do horror pode sim surgir uma ótima possibilidade? Talvez não. Ainda descobriremos. O espetáculo apresentado durante o Boska Komédia surgiu primeiro em livro. O romance inacabado de Mirosław Nahacz, assim permaneceu, dado seu suicídio aos 23 anos. Isso, uma década atrás. Um relato romanceado da sociedade conduzida e controlada pela mídia, cujas informações manipuladas estruturam uma realidade específica às pessoas. Assassinatos geram o desequilíbrio à ordem e, acusado, o roteirista Robert Robur nos conduz ao encontro com o movimento revolucionário de resistência, em um intricado labirinto estético e conceitual que reúne elementos de ficção científica, universo pop, virtualização, ironia, citações cinematográficas e literárias. Divido em três atos, o último é destinado a completar o final da narrativa literária, reaproximando a ficção ao contexto histórico da Polônia, potencializando os valores culturais de uma sociedade sistematicamente atingida por outros interesses. A linguagem difere radicalmente dos atos anteriores gerando um ruído proposital final, como quem busca evidenciar ao espectador ser esse momento uma resposta criativa de Krzysztof Garbaczewski ao próprio autor. É sua sugestão, portanto. E, assim como caberiam outras, a escolha é por reaproximar o espectador ao mais reconhecido de sua realidade, movimento este que amplia a dimensão ficcional especial polônia antro+

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também sobre a história e o quanto nela é subvertido aos interesses de quem a narra. A importância de retornar ao espetáculo, nesse olhar de trás para frente, está no reconhecimento de se por um lado essa é a escolha do diretor, por outro, a maior ousadia está mesmo no uso brutal do excesso estético utilizado nos dois primeiros momentos. Excesso esse só compreendido como tal, a partir das cenas finais. Cores fortes, palco recoberto por tralhas, tecidos, telas, enquanto os atores circulam por corredores escondidos no cenário, para os assistirmos através de suas projeções “televisionadas”. Lida-se, então, com a presença não mais por sua concretude, mas pela consciência de ser sua virtualidade apenas o mecanismo de expansão da matéria e das circunstâncias. O recurso oferece ganhos à narrativa que ambiciona provocar a experiência de fugas e perigos, tanto quanto no argumento distópico pretendido. Contudo, o primeiro ato chega a ser confuso, tamanha excessividade estética. Precisa-se de tempo para conviver com o universo cênico oferecido, mas a velocidade indispensável ao acompanhamento da trajetória de Robert Robur nem sempre permite. Perde-se entre o movimento de perceber a totalidade cênica e o pendular objetivo de acompanhar a história. E ambas acabam superando-se simultaneamente provocando um paradoxal estado de letargia ao espectador que se deixa levar pelo espetáculo à espera de respostas mais objetivas. Já no segundo ato, o espectador insistente descobrirá com mais clareza o tom irônico de tudo, inclusive da estética. Para muitos, é tarde demais. Para quem persistiu, ao contrário, tem-se o melhor de Krzysztof Garbaczewski, sua disposição para confrontar o espectador, mesmo que para tanto desconstrua o espetáculo já erguido. Assim, o diretor revela sua estratégia maior: perturbar. O segundo ato, portanto, serve ao reconhecimento do primeiro, e pratica94

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robert robur mente lhe salva como ação teatral. Não mais casual ou sem acabamento, e sim consciente e provocativo. Não é comum diretores abrirem mão das próprias conquistas frente a seus espectadores. Em Robert Robur, Garbaczewski utiliza a tática de sedução sem pudor, exigindo integral interesse daquele que lhe assiste, sem facilitar os caminhos e as respostas. Todavia, estará o espectador interessado em executar tamanho esforço? Vivemos o tempo das imagens e das facilidades em transitar sem amarras. Hoje, o hiperlink já se confirma como meio de interação às informações e supera o que fora um mecanismo de navegação para compor o próprio imaginário na esfera da realidade. A duração com algumas horas faz do espetáculo um movimento contra a essa simplificação. É preciso se manter atento e disponível, e isso não é nada realmente simples aos

fotos Magda Hueckel e Tomasz Wiech

menos preparados ao teatro.

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Direção: Michal Borczuch Texto e dramaturgia: Tomasz Spiewak

Laznia Nowa Theatre

all about my mother


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all about my mother

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que trazem as memórias? O quanto nelas diz respeito a quem as acessa e a qualquer um? Como superar a dimensão particular e justificar uma experiência coletiva capaz de suscitar

a necessidade de sua exposição até mesmo pela construção de um espetáculo? Como traduzir para cena algo tão subjetivo como as lembranças? Memórias são, sobretudo, recriações, inventos a partir de desejos, ainda que traumas em confrontamento. Desejos pelo revisitar, desejos pelo recriar diferente. O certo tom de dramaturgia, de escrita, de invento sobre a própria história revisitada, estabelece conflitos, ápices dramáticos e até valores trágicos. De certo modo, seja qual for o caminho de escrita da memória, intui-se sobre ela a materialidade dos acontecimentos reais, ainda que por sua ficcionalização. Ou seja, a memória é inevitavelmente o reviver o passado provocando sua presentificação. A similaridade com o teatro é inevitável, portanto. Recorrer às memórias desenha a narrativa através de princípios teatralizados, só que não mais enunciados ao palco, mas, e principalmente, a si mesmo como verificação da narrativa a qual se inclui. Por conseguinte, há que se estabelecer diferenças entre o teatro feito a si no intuito de construir memórias e a memória trazida como teatro, como representação ao outro. Ambos possuem características comuns. Contudo estão nas diferenças os fundamentos que tornam o primeiro um gesto psicanalítico e o segundo linguagem artística. É plausível dizer ser a memória algo mais do que pessoal, de ser também material simbólico ao uso de outras manifestações. E sendo assim, o teatro que dele se deriva provoca não sua meta-teatralidade, e sim uma possível meta-pessoalidade como artifício de teatralização. Então é como se investigassem os seus próprios eus , que o di-

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retor Michał Borczuch e o ator Krzysztof Zarzecki, seu frequente colaborador criativo, discorrem sobre o outro, apropriando-se de seus passados para desenhar as histórias de cinco mulheres. A particularidade usada para isso, a base desse feminino ampliado em arquétipos repartidos, vem das figuras de suas mães e a condição de as terem perdido para o câncer ainda jovens. Tornada tão pessoal, a narrativa exige ser acessada com distâncias e proximidades. Aproxima-se por serem mulheres que circunscrevem as vidas de todos de forma referencial, plausíveis ao reconhecimento comum; enquanto a intimidade das lembranças impõe ao espectador a condição de voyeur. Como concluir sobre algo em parte ficção, outra parte sentimento? A estratégica implica o convívio sem muito confronto, afinal assiste-se ao interior de cada artista exposto de modo poético. Esse é o risco. O de acabar o teatro despercebido frente sua realização. O paradigma é ser sobretudo o teatro o mais importante, ainda que apropriando-se ao íntimo, ampliando ainda mais o olhar à linguagem como única saída para estabelecer certa distância crítica e emocional. Basta, por fim, investigarmos o teatro proposto ao todo e não o quanto há de particular em cada movimento. Michał Borczuch sustenta a narrativa com forte investigação da ambiência cênica. Expõe os contextos das subjetividades das personagens pela marcante presença do espaço trabalhado com forte viés arquitetônico. Feita uma gigantesca instalação, com ecos que recordam os monumentos públicos de Richard Serra, por exemplo, o lugar não é desenhado para descrever um algo específico ou literalmente representar. Supera a dimensão explicativa impondo-se artificial e enigmático. Permanecem, então, na presença do texto e performers, as qualidades maiores à narrativa, ainda que luz, cenário e sonoridade estabeleçam um terceiro conjunto uníssono e independente. Estetizado, o argumento cênico se confunde quanto a sua proposição, dada a dimensão de representação tão próxima ao naturalismo e com tipos bem esquematizados. A questão desdobrada disso é por que as atuações ainda são delineadas 102

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all about my mother tão clássicas frente à espetacularização mais aberta e instigante? Por se tratar da memória o material inicial, é importante atentar-se a tais diferenças nesses tratamentos. No que se refere à estética, a arquitetura mais onírica faz sentido. Sugere ocorrer a narrativa em um espaço fora do tempo, irreconhecível, e portanto interior aos artistas e não à realidade. No entanto, os personagens mais próximos ao reconhecível diferem do que poderia ser essas sensações não objetivamente classificáveis. Perdem eles, assim, a possibilidade de serem também representações mais abertas e menos comuns. A diferença entre as abordagens gera à dramaturgia mais racionalismo, elemento impróprio à liberdade da memória. E a dicotomia incomoda por não oferecer nem mesmo um desvio ao reencontro de ambos os aspectos. Mesmo as projeções, que poderiam unir memórias e representações, são igualmente próprias ao real e não ao imaginário. E tudo parece limitado a um artifício auto-referencial, cuja particularidade dos estímulos iniciais surge como estratégia e não investigação de algo singular. Não sendo a memória possível de equalização ao comum, por estar sobretudo nos pensamentos de quem as projeta, os aspectos reconhecíveis neutralizam os princípios do argumento. Pouco importa se são mesmo memórias. Importa mais falar sobre essas mulheres em suas condições de personagens, nem sequer de arquétipos. O que é pouco como novidade de escrita dramática. Ainda que o as atuações superem tais paradoxos e se projetem como ótimos trabalhos de atrizes realmente talentosas. O espetáculo, por fim, confunde-se em suas estratégias e desvia do espectador mais atento as incoerências das escolhas entre

fotos Tomasz Wiech

proposições diferentes e estilos distintos que nem se provocam, nem se somam. Em algum momento, as particularidades que envolvem a criação do espetáculo precisam ser esquecidas e os artistas se voltarem ao teatro como linguagem, para nela perceber as coerências e faltas. Esse é o importante movimento que faltou em All About my mother. especial polônia antro+

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Direção: Jan Klata Texto: Henryk Ibsen, Michal Buszewicz

The National Stary Theatre in Kraków

an enemy of the people


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an enemy of the people

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o palco, a quantidade de objetos impressiona. Não que a instalação seja ou não, esteticamente. Esse é valor subjetivo. Pouco importa. A coleção de objetos cotidianos e

aparentemente inúteis constrói uma montanha em cena equilibrada em si mesma. O primeiro impacto, portanto, é a já evidente quebra com qualquer tentativa de aproximação do texto de Ibsen ao naturalismo óbvio que muitos ainda lhe aplicam. Ao oferecer como imagem inicial o acúmulo, tudo muda de figura, e Klata passa a comandar o imaginário, desde então. Sabemos mais com essas iniciais informações. Pois a presença do homem, seja quem for, afinal nem todos conhecem a peça, inclui o ruído da unidade ao caos. Ele, ali, é um. E como um pode muito bem ser alguém. Tudo se confunde. Se fosse para ser apenas a instalação, se fosse apenas o homem, mas os dois, ali juntos; ele apresentado comum destoa provocativamente do ambiente. Afinal, o caos é real ou o representa? É possível que ambos. Ibsen construía personagens complexos, desses que não cabem em um primeiro olhar e sobre os quais é preciso descortinar o íntimo. Tomo para mim que então seja isso. A descrição desse homem aparentemente correto esconde o tormento de um mundo caótico. Basta saber agora qual parte do seu mundo ele estará disposto a nos revelar. Até o desmoramento. Outra manipulação do diretor. O que parece ser o pretexto para a cumplicidade do espectador, o adentrar ao universo desse homem para conhece-lo, é imediatamente exposto. Ele se mexe, a bola de basquete quica, acerta o lugar certo que movimenta outra parte, e, como se fosse uma corrida de dominós ou castelo de cartas, tudo se encaixa em uma lógica precisa e simplesmente desaba. O caos

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an enemy of the people assume definitivamente a cena. O caótico desenha definitivamente o homem. Klata não nos dá o tempo da dúvida, da desconfiança. É direto, objetivo, urgente, como quem precisa de todo o tempo restante para nos levar a algo ainda maior. Ao quebrar com os preceitos de como Ibsen construía seus personagens, só possibilita acessar não mais o íntimo, o pensamento, e sim sua própria subjetividade. O homem para qual olhamos é sobretudo a dimensão caótica e perdida do acumulo de seus próprios argumentos, de suas próprias ideias, de suas dúvidas. E já revelado assim, tudo aquilo que virá na forma narrativa pelos diálogos do autor deixa de estar no final do século XIX para ocupar o XXI de modo essencial. Não há tempo para perceber, apenas ouça. O desmantelar da estrutura das centenas de objetos é também o único grito inconsciente do personagem. A partir de agora, o que se assistirá deverá ser entendido sem rodeios, sem metáforas, por mais que essas insistam por presença. As figuras de linguagem se espalharam pelo chão e são entulhos de possibilidades e nada mais. O ritmo passa a ser outro, e o espetáculo volta a ter o percurso imaginado pelo autor original seguindo o curso da história escrita. Trata-se de uma cidade pequena, cujo problema com a água, para ser resolvido, implicará em perdas também econômicas a seus moradores. O homem, médico, tenta alertar a todos. É ele verdadeiramente o inimigo do povo. Pois as demais forças sociais e políticas não estão dispostas a abrir mão de seus ganhos apenas pela proteção da saúde de seus cidadãos. E nem eles mesmos. O texto torna-se cada dia mais eficiente em época de alerta máximo ambiental, claro. E o excesso de objetos plásticos em cena retrata bem a qualidade de nosso envenenamento pelo uso excessivo e descontrolado de derivados de petróleo e das extrações minerais. Ao escolher encenar essa peça, Klata inevitavelmente volta seu discurso a questões complexas sobre o planeta também.

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an enemy of the people Foi Paul Crutzen, químico holandês, quem criou o conceito que viria definir um novo momento geológico ao planeta. O Antropoceno diz respeito a um mundo dominado pela presença humana, responsável por mudanças estruturais tanto na geologia como na organização da biosfera e tudo que se conhece vivo. Para Crutzen, ganhador do Nobel no final do século XX por sua pesquisa sobre a camada de ozônio, as cidades são o maior exemplo da presença determinante do homem sobre o mundo. Basta ver uma imagem noturna por satélite e tais conclusão se tornam autoexplicativas. De certo modo, Ibsen antecipa esse dilema e não apenas pelas questões ambientais e ecológicas. O Inimigo do Povo diz respeito também as transformações ocorridas ao homem quando em convívio e proximidade ao poder e à riqueza. O quanto um problema está linkado ao outro há discussões intermináveis em andamento. No entanto, certo mesmo é que, se mais ou se menos, as questões se relacionam cada dia de modo mais explícito. Ao encenar a peça não pelo naturalismo clássico, Klata reafirma a dimensão simbólica dos discursos estético e retórico. Portanto, fala sim do Antropoceno, como quem não quer mais simplesmente alertar sobre as condições destrutivas que tanto já se conhece. E vai mais além, ao provocar o homem como símbolo de sua própria incapacidade em superar sua natureza. O que pode também a vir a ser um problema, dirão alguns filósofos. Para esses, o apreço e urgência do Antropoceno estão condicionados ao não aceitar o homem como possibilidade fora do centro histórico do planeta. O paradoxo se resume na busca por entender tudo como anti-natural, quando, talvez, seja necessário compreender que o mundo não acaba sem a humanidade; resiste e sobrevive, ainda que transformado. Seria no espetáculo entender a tentativa do personagem em alertar à comunidade como igualmente sua necessidade de se fazer útil e responsável, enquanto talvez devesse entender que, ainda que a cidade e 110

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ele deixem de existir, a vida continua lá fora. Qual sua disponibilidade para aceitar o trágico humano, então, poderia ser a pergunta feita ao final da apresentação para cada um dos espectadores. Klata não delira a tanto. Permanece entre Ibsen e o Antropoceno. E isso já é de fato muito. A escolha fundamental em qualquer remontagem desse texto está no instante em que o personagem discursa para a cidade. É quando é possível incluir e apresentar ideias próprias, ampliar o autor, sustentar novos discursos, atualizar as urgências sem descaracterizar a escrita original. Na montagem apresentada no Boska, não foi diferente. Ator exposto e itens pelos quais improvisar, tendo o público como audiência. Juliusz Chrząstowski, no papel do doutor Stockmann, assume o proscênio como púlpito, ao melhor estilo do teatro romântico, e passa a discorrer sobre as lutas sociais de agora, os conflitos mundiais, os refugiados que chegam desumanizados por toda Europa, a fumaça que faz de Cracóvia uma das cidades mais poluídas do continente. Se permanecesse falando apenas sobre os perigos com dimensões globais, o discurso poderia se transformar em algo presunçoso. Afinal, ainda que agentes sobre qualquer um ali, são também tão distantes que a vida é capaz de se enganar resistir. O grande acerto está na inclusão de um problema imediato e particular, o ar irrespirável que atinge sem possibilidade de reação. Assim como no século passado, Londres fora atingido por uma imensa neblina tóxica provocada pela queima de carvão, matando mais de 12 mil pessoas e adoecendo seriamente outras cem mil, Cracóvia também enfrenta o dilema social de não conseguir se livrar do material para o aquecimento, dada a força adquirida com o passar dos anos pelos representantes sindicais e empresários do setor, o que provoca de tempos em tempo neblinas igualmente nocivas. Meio século depois, e as pessoas já não morrem aos milhares, é verdade. O que não diminui a preocupação sobre a resposta na qualidade de vida de muitos. 112

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an enemy of the people Aqui, novamente, Klata une Ibsen e o Antropoceno de forma sutil e inteligente. É o carvão um problema ambiental e também político. E a presença de como a cidade se estrutura por linhas de forças e riquezas para sua manutenção impede a transformação urbana, social, pelas mesmas questões apontadas pelo personagem. Entre a água ficcional de Ibsen e o carvão real de Klata, um século e meio parece ser exatamente o mesmo a um homem que ainda não se percebeu destruidor de si, do mundo e do outro. Um espetáculo inteligente, surpreendente, que reafirma Klata como um dos grandes encenadores da atualidade. E, é preciso dizer, com uma das melhores interpretações recentes do médico personagem. Juliusz Chrząstowski conquista a plateia com imediata empatia e uma capacidade de realização absolutamente únicas, oferendo ainda mais prazer a quem assiste. Juntos, diretor e ator tornam a montagem um profundo e ne-

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cessário acontecimento teatral.

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Direção: Pawel Miskiewicz Autoria: Elfriede Jelinek, Joanna Bednarczyk

The National Stary Theatre in Kraków

the supplicants


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the supplicants

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uitas são as tragédias gregas que chegaram a nós. Muitas também as perdidas. E com isso, alguns trechos da história antiga e de como os teatrólogos daquela

época os comentaram. De todo modo, a tríada máxima de dramaturgos trágicos, Ésquilo, Sófocles e Eurípides, costuraram uma pseudo-linha sustentando um percurso aos mais interessados. Segue, após as histórias sobre Édipo, o conflito às portas de Tebas, por permanecer o trono vazio, cuja batalha levou Antígona a descumprir as ordens de não enterrar os mortos em batalha. No percurso entre algumas das peças mais brilhantes já escritas, a condição das mulheres frente a seus maridos e filhos e a imposição ao abandono. É sobre esse intermédio que As Suplicantes também é escrita em suas duas versões. Por Ésquilo, mais comumente conhecida; por Eurípides, raramente encontrada nos teatros atuais. Se levada em conta Antígona, de Sófocles, com abordagens que particularizam cada autor, os três mais importantes de Atenas se dedicaram a esse instante e aos seus dilemas trágicos. O que pode parecer casualidade no percurso das Grandes Dionisíacas – festival em que os autores se inscreviam com trilogias e uma peça satírica -, requer mais atenção se percebido raramente uma história ser dedicada pelos três. Quase cinco milênios atrás, portanto, a discussão sobre como o poder desumanizava o vencido impondo-lhe humilhações públicas e perigo, já se fazia fundante. De lá pra cá, falar sobre se mantem assustadoramente urgente. Também por isso, cada vez mais retornam aos festivais contemporâneos e principais palcos textos como As Suplicantes. Não apenas pela qualidade da escrita, nem para nos alertar sobre a pos-

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the supplicants sibilidade de tais perigos, mas para evidenciar que eles nunca de fato deixaram de existir. No primeiro instante, a expectativa é que uma outra montagem possa dar contornos novos ao texto conhecido. Seria demasiadamente enfadonho apenas revê-lo aprisionado em seus próprios limites. Se isso poderia ser um problema, ao entrar no teatro, a questão se dissolve de imediato. O espectador é confrontado com o palco reconfigurado com mais água do que chão, e os atores, vestidos com coletes iguais aos utilizados pelos refugiados que desembarcam aos milhares nas costas europeias. Sabe-se, assim, tudo ali ser sobre o hoje e não sobre uma peça clássica. Paweł Miśkiewicz propõe criar seu próprio contexto às súplicas deixando para trás as falsas simplicidades de apenas adaptar a peça. Essa é outra, por mais que o nome nos remeta às versões originais. Sempre existe risco nesse gesto. A complexidade em dar outra versão exige compreender o original superando a narrativa, instituindo ressignificações simbólicas a partir de informações muitas vezes sequer percebidas pelo espectador menos acostumado. Enquanto a adaptação, seja reducionista ou modernizadora, implica em se ater mais à narrativa e as costuras, mais voltada à preservação e reconhecimento. Miśkiewicz arrisca-se, então, e o faz bem. O texto de 2012, de Elfride Jelinek, é inegavelmente singular. E isso importa muito ao resultado final. A condição limítrofe dos imigrantes ilegais que ocuparam uma igreja em Viena é o estímulo central ao dramaturgo. Miśkiewicz aproxima ao contexto polonês, as transformações ocorridas com a presença forçada do outro, também os refugiados como esse outro outro, o esvaziamento das identidades àqueles não mais pertencentes a lugar algum. Durante três horas, o espectador é conduzido ao universo dos sobreviventes. Por não haver pressa, resta o convívio estranho com essa sombria e desesperadora realidade, da qual nos imaginamos distantes e protegidos. A sala do teatro extremamente

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the supplicants fria pelo dezembro da Cracóvia expõe ainda mais a crueza do que representam, e nem mesmos as cobertas oferecidas pelos atores conseguiram distanciar de volta ao seguro e cômodo. Sobretudo, se assistir na primeira fileira como estive, com a cena tão próxima e tendo apenas ela mesma como imagem, sem a presença dos demais espectadores. É preciso aceitar o outro como condição, então. Está na aproximação entre dramas pessoais e tragédia coletiva o maior acerto. As Suplicantes conquista a dimensão de ambas, enquanto discorre com atuações ora ingênuas, ora profundas. A variação, porém, não chega a interferir sobre o todo também graças à duração. Aos poucos, mesmos as atuações mais frágeis convencem pela empatia e reconhecimento das características de cada performer. Contudo, valeria estudar com um pouco mais de ousadia quando as intepretações se formalizam como cenas dentro da narrativa e quando se limitam à performatividade isolando-se como acontecimento passageiro. Consequência inevitável no convívio entre a particularidade e o coletivo trazidos ao mesmo jogo dramático. Ainda assim, alguns momentos podem ser abreviados e outros estendidos mais, compondo um ritmo mais incontrolável ao espetáculo, tornando-o um sistema imprevisível. O impacto inicial é forte, as primeiras cenas e o diálogo travado é instigante, a chegada dos demais atores impressiona. Depois tudo parece se resolver em uma cena mais e outra e outra, e na reunião de boas ideias agrupadas. A experiência em assistir é mais aguda do que o aquilo posto em sequência. De forma ainda mais radical, o surgimento de cenas poderiam continuar ainda por outras horas, como se aquele contexto não permitisse sairmos dali, assim como não seria resolvida ali a condição dos personagens, e também não são tão imediatamente as dos refugiados reais. Alcançar o excesso até torná-lo verdadeiramente insuportável explodiria de vez o impacto provocado pelo incômodo. 120

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O humor trazido no intervalo, com os atores sentados em uma praia improvisada no salão, fora do espaço de apresentação, junto ao público surpreendido, é cínico e necessário. Para quem ficou na sala, as imagens seguradas e tranquilas violentavam ainda mais os coletes espalhados sobre o palco. Assistir a volta do público possibilita perceber pela primeira vez a dimensão igualmente burguesa de estarmos em um teatro assistindo uma peça. O paradoxo sobre os argumentos para lá se estar lá transita entre o passar a noite protegido, enquanto se ocupa por estar no teatro, e o vivenciar algo até certo ponto indigesto. Entre o querer ocupar algumas horas e o desejo por ser conduzido ao inesperado, o espectador é maliciosamente manipulado ao ter espelhada sua tranquilidade na forma de um ensolarado e reconfortante dia na praia. Esqueça. O espetáculo recomeça e a porrada, dada assim, é certamente ainda maior e mais silenciadora. Já próximo ao final, quando cenas de uma década atrás de outro espetáculo de Miśkiewicz é reapresentada em vídeo e com os atores, estabelecendo um diálogo ao tempo que supera ambos os momentos, recupera-se a profundidade do discurso teatral, agora voltado aos próprios artistas expostos. O quanto o texto de Dea Loher, de ontem, ainda é pertinente, é a questão. Uma década depois, o homem ainda se move pelas mesmas armadilhas. Será que aqueles que suplicam o direito à vida nada mais serão ao futuro que as faces de hoje, de que ainda permanecemos procurando respostas? O espetáculo parece acreditar que sim. O último momento cabe à jovem atriz, após os densos aplausos, deslocando-se pela plateia e gritando como as cadeiras esvaziadas, enquanto o público se retira. Suas súplicas não serão ouvidas. Seu desespero é ignorado. Sua urgência só existe para ela. É ela, portanto, apenas mais uma outra. O mesmo outro que, por tão assustador, é ignorado por proteção, egoísmo ou estupidez, tanto faz, pelas ruas da cidade. 122

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the supplicants Sua condição é a mesma e independe dos sentimentos dos demais. O teatro se esvazia. Ela ficará ali até quando? A sensação é que ainda está lá, nesses meses que passaram desde quando assisti o espetáculo. Sozinha, no escuro de um teatro vazio, como as noites nas praias, o andar pelas estradas, as barracas improvisadas em calçadas, os olhares incapazes de percebê-la real. Apenas outra. Todos ali, apenas outros. Ou somos esses nós? É possível. Eles gritam, falam, pedem, denunciam, criam. Estão vivos. Nós, acomodados em nossas poltronas, talvez sejamos quem verdadeiramente está morrendo. Seria isso, não fosse o espetáculo existir e a urgência de sua experiência única. O teatro de Miśkiewicz conquista a dimensão de levar o público a perceber seus próprios silêncios e ausências. Assistí-lo, por fim, é um grito de súplica ao

fotos Magda Hueckel e Tomasz Wiech

querer novamente se perceber vivo.

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Direção: Magda Szpecht Dramaturgia: Szymon Adamczak

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le conheceu muitos dos que já eram grandes músicos e dos que viriam a ser. Isso, entre os séculos xviii e xix. Mas a vida de Schubert nem por isso foi tão tranquila como

esse contexto pode sugerir. O compositor austríaco passou grande parte de sua maturidade artística sendo sustentado e acolhido por amigos. Havia nisso, a tônica de certo reconhe-

cimento, e que, no entanto, também lhe impunha contextos de submissão. Não que se importasse. O temperamento não permitiria ser tão facilmente domado. E a boemia típica da Europa Romântica acabava lhe convidando aos arroubos de seus vinte e poucos anos; mais tarde interrompido pela sífilis e febre tifoide, que não lhes permitiram passar os 31. De todo modo, sua imensa obra refletia sua necessidade cotidiana. Era preciso criar para existir ao dia seguinte. E foi assim, entre álcool, noitadas, bagunças, um gênio incontrolável, que criou algumas de suas mais importantes músicas, sobretudo as que ajudaram a transformar o estilo clássico. Sem conhecer a velhice, Schubert viveu nesse curto tempo a profundidade de sua época. Tocado em salões e presídios, jardins e teatros, impressiona quanto nessa sua formação e deformação espelha, ou melhor, antecipa, outro. Dostoiévski virá em seguida. Não fosse a morte do compositor, viveriam por muito tempo intensamente os mesmos dias, ainda que um na Rússia e outro em Viena. Mas é curioso como a narrativa de ambos se confundem com as necessidades pragmáticas que lhe exigiam criações calculadas, e que, ao fim, se tornaram radicalmente inovadoras. Homens de seu tempo, portanto. Ou de um certo tempo, ao menos. E falar de Schubert, então, é também olhar a esse tempo não como um momento na história, e sim como 126

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um estado de existência que conflitua a ideia de ser a passagem do tempo imperativa ao homem. Szpecht não pretende contar exatamente a história do compositor ao espectador. Ainda bem. Nada pode ser menos interessante do que as dramaturgia biográficas, quando se requer o brilhantismo de uma escrita capaz de superar o previsível. Há sim partes do seu diário trazidas em projeções, e são pelos rascunhos de seus pensamentos que encontramos boas pistas do que descrevi. Por vezes, um escritor prolixo; outras, um niilista irrecuperável. Seus diários mostram que a maneira como Schubert estabeleceu vínculos com o mundo não fora apenas criando músicas, mas se relacionando com a partitura como quem faz dela um argumento. É plausível considerar que o maior sustento lhe oferecido pela música fora mesmo para sua alma. Afinal, estamos em pleno Romantismo, quando, mais do que nunca, é permito ser poético. Época em que sonho, idealização e arte confundiam o dia-a-dia e enfrentavam as questões mais práticas pela sublimação da realidade. Schubert talvez não tenha tido tanto espaço prático para que sua música fosse um delirante mergulho ao platônico das notas perfeitas. Entretanto soube, como poucos, se contaminar com tudo isso. Portanto, ainda que seja ele uma espécie de elo estranho nessa imposição pela sobrevivência, sua música é sem dúvida a combinação perfeita entre existir um em corpo – gasto, brutalizado, cansado – e concomitantemente outro em pensamento – juvenil, provocativo, disposto, inventivo. Em resumo, por não querer contar exatamente a história, mas apresentando Schubert como um signo para compreensão de outras questões, essas sim próprias de agora, Magda Szpecht supera a dimensão do teatro mais banal e simplório e cria um caminho com respostas inteligentes em muitos sentidos. Inclusive ao próprio teatro. É preciso superar a certeza da linguagem teatral acumulada até então. Cada espectador possui seu vocabulário conquis128

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schubert tado e isso implica em idealizações e predefinições. É tudo isso que o espetáculo ataca sem pudor, sem titubear, e incomoda. Assistir é entranho, assim como é esquisito traçar qualquer intencionalidade simplista ou reducionista. Nem a cena, nem a dança, nem a música, nem o gesto, nem a narrativa, nem a resposta. Nada se prende ao esperado. Ampliando cada um desses acessos, a multiplicidade de linguagens sobrepostas cria sua complexa estrutura, que, de tão evidente, torna-se por vezes propositadamente incompreensível. Dizer que desconstruiu isso ou aquilo é igualmente simplificar. Magda não quer a destruição, parece. Ao contrário. Sua procura é exatamente pela construção, ainda que para consegui-la se arrisque acertadamente aos descumprimentos das regras tradicionais. Cada um carrega seu próprio duplo. Assim os performer se apresentam aos espectadores aos pares, jovens e idosos, profissionais e amadores. Respectivamente, é importante dizer. Se feito ao contrário, correria o erro de trazer o experiente como quem detém o saber e o jovem como aprendiz ingênuo. Ao inverter, atualiza o tempo, traz ao agora a responsabilidade de expor a experiência; dispõe o ontem feito sombra com valores próprios em sistemas limitados ao que as idades permitem a cada um, aos aspectos técnicos ainda não lapidados pela prática. Corpo e pensamento, portanto. Tal qual Schubert duplicado. Corpos frágeis e inexperientes, corpos prontos e preciosos. E um único pensamento em movimento: a busca ininterrupta pela próxima ação. É preciso esclarecer algo mais, ainda. Os movimentos, por serem nesse primeiro momento espelhados, trazem contexto ao espetáculo de ser também coreografia, e não apenas cena. Ocupa-se o palco pelo mover-se, pelo gesto, pela materialidade física e sua presença como narrativa, aspectos próprios da dança. Só que, quase nunca, o espectador a verá como tal. Ainda que alguns dancem literalmente, servem esses para provocar maior esespecial polônia antro+

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schubert tranhamento aos demais. Essa tem sido tônica da escolha na dança, nessas últimas décadas. A dança como a presença e não como coreografia; a coreografia como contexto de movimento e não como narrativa; o movimento como resistência à significação imediata e não como sequência gestual; o gesto como expectativa ao gesto e não como sua afirmação e realização. Tudo isso está no espetáculo sem ser didático ou teórico demais. Apenas está. E o que se validou como linguagem na França e Bélgica de outrora, agora se renova na Polônia sem precisar ser impositivo, com sabores jovens revigorando a própria origem do dançar ao não dançar. Entre querer e não, Schubert surge fisicamente no embate desses corpos, desses estados, e a música executada em cena necessita ser igualmente fisicalizada para além de sua sonoridade. São várias mãos tocando um mesmo instrumento clássico, subvertendo não o uso, mas os limites dos corpos que tocam as cordas. Schubert não compôs para serem assim. Todavia, certamente, é como melhor pode ser representada a urgência, a multiplicidade, as condições confusas de suas composições. O aspecto de reinterpretar os instrumentos dialoga na mesma potência com as músicas experimentais contemporâneas, assim como fizera com a dança, ofertando coerentemente um único pensamento ao espetáculo, o que torna mais viável o acesso às subjetividades que essas estéticas propõem. Pode ser possível aproximar tal conceito também pelo teatro e a diluição do personagem em uma espécie de persona multipartida entre muitos. Portanto, as várias entradas, ainda que não conclusivas ou facilitadoras, agrega o espectador ao trabalho em possibilidades distintas, ampliando o como este pode se sensibilizar com tais escolhas. Teatro, dança, música e história. Há um pouco de tudo em Schubert, uma composição romântica para 12 atores e 1 quarteto de cordas. E nesse pouco há muito do que mais instigante tem movido as linguagens em direção a novas possibilidades. E esse é o ponto 130

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fundamental que explica o mais profundo nesse imenso título. Para muitos, o Romantismo é a primeira grande ação radical da Modernidade. O século xviii produziu brilhantes artista que olhavam ao final do século se aproximando enquanto resistiam ao presente. Não à toa, o flâneur talvez seja o grande último aspecto do romantismo já no século seguinte. Andar pelas ruas, observar e resistir ao tempo eram aspectos que desde o início compunham o arcabouço dos artistas românticos. Sonhar com outra realidade, nada seria mais especial do que isso. Para outros intelectuais, no entanto, nunca deixamos de pertencer ao Romantismo que, verdadeiramente, não terminara até hoje. Em menores números, eles argumentam incluir o presente a idealização de si mesmo, o distanciamento do tempo cronológico, o voyeurismo sobre tudo e todos como uma espécie de flâneur não mais das ruas, mas dos indivíduos em busca do que neles se esconde do comum. Os atores estão ali, olhando para Schubert não apenas como alguém, também como algo. Ali, idealizado por eles, tanto quanto por Magda Szpecht e Szymon Adamczak (que assina a dramaturgia), o compositor é dimensão teatral simbólica de como representar o homem hoje, construindo-o pela amplitude desse romantismo persistente, em um discurso que se apresenta via comportamento, pelo caráter do seu comportamento, pela sonoridade de suas inquietações e por suas palavras. Um espetáculo inquietante, extremamente complexo, irreverente, imprevisível, que exige do espectador atenção plena. Schubert, o espetáculo, e não o artista, de fato implica na aceitação das estranhezas de nossas buscas estéticas e poéticas de modo singular. A ambiência cênica ainda se faz mais jovem do que os estudos nas linguagens apontadas anteriormente, faltando encontrar igual potência ao discurso contemporâneo para ampliar a espacialidade, sua materialidade e ocupação, agregando discursos outros já tão próprios das artes visuais, como a troca da ideia estável 132

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schubert de instalação aos contextuais da instauração, ou a dimensão escultórica que as memórias ocupam na relação com a espacialidade, a partir do homem como parâmetro de percepção, ou mesmo a ausência como representação de materialidade ao porvir. Ainda assim, o próprio espetáculo indica ser esse tanto mais apenas uma questão de tempo. Magda Szpecht já se valida como grande criadora, mesmo tão jovem, e muito perto de chegar radicalmente a algo especialmente original. Após ter assistido centenas de espetáculos em 2016, em diversos países e festivais, Schubert é, sem dúvida alguma, um dos meus preferidos nessa minha lista imaginária que infelizmente não completou sequer vinte trabalhos que me mobilizaram profundamente. Uma obra que deveria estar

fotos Tomasz Wiech

nas principais salas dos principais festivais mundo afora.

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Autoria: Zespól Teatru Figur Direção: Dagmara Zabska

Teatr Figur

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por ruy filho

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Carta à bicicleta

ocê achou que estava só. Eu sei. Em certo sentido estava, correndo pela imensidão que os próprios sonhos projetavam na quadratura instransponível daquele campo de

concentração. Você sabia no início do que se tratavam aque-

las paredes? Ali, tão frágil e ao mesmo tempo tão forte, apenas uma pequena bicicleta em busca de alguém, e também a resistência frente ao terror que se impunha e o desespero inevitável. Queria poder te abraçar, tocar sua buzina alto, subir em você e te levar para correr para fora de lá. Talvez lhe parecesse uma travessura, talvez salvasse sua consciência infantil. Queria ser o corpo que sua metáfora procurava. Mas eu era apenas seu espectador. Então, sim, eu te vi pela estruturas da cama e objetos, te vi nos pensamentos dos bilhetes na entrada, das gavetas que me convidavam e desapareciam. Eu estava lá, enquanto você se escondia das sombras ameaçadoras que te procuravam e atormentavam. Não foi fácil permanecer distante, apenas assim te olhando. A vontade de acender a luz e acabar com tudo era grande. No entanto, havia uma certa esperança, acho, de que no final sua história não seria a que conhecemos. Por que não? Afinal, sendo tudo teatro, poderíamos fingir um final diferente, trazer todos de volta. Eu sei que você me ajudaria a encontra-los. Mas não há como mudar os fatos. Não há como fazê-la deixar de ser somente uma bicicleta para ser uma estrela. Nem mesmo no teatro. Nem é essa a função da ilusão. Ao ser a combinação de relatos e precisar os acontecimentos, a ilusão não se permite ser outra coisa que não apenas a realidade pela construção 136

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huljet huljet de outras qualidades estéticas. E foi assim, sendo você mesma para ser mais do que apenas isso, que a cada quadro, a cada instalação, a emoção me sufocava de modo imperativo e destruía em mim também as ilusões. O fato é que a ilusão de que acabaria, a ilusão do teatro, não surgia contra a minha, mas se alimentava da minha conduzindo-me ao presente sem perspectivas de solucionar o insuperável. Talvez por ter me trazido novamente um pouco da criança que fui, a mágica de cada quadro me atingia ainda mais profundamente. Não estamos mais acostumados a ser crianças, e não tenho certeza se você sabe disso, pois não tivera a oportunidade de deixar de ser uma, ao tempo em que fora impedida de ser. Como explicar o inexplicável? Como traduzir o indizível? Por dentro dos muros e cercas, no universo construído para esconder e destruir estavam muitos outros como você e diferentes também. Estavam aqueles e aquelas que logo compreenderam a dimensão mais assustadora que se pode ofertar a alguém: a certeza de que o futuro não mais virá. Correr, sorrir, olhar o céu, tomar chuva. Nada do que ainda poderia ser sinônimo de liberdade, existir por simplesmente existir. Trouxeram crianças para dentro e, ainda que algumas tenham sobrevivido, é difícil imaginar que não saíram dalí sem sequer se despedirem de suas infâncias. Então, perdoe por ter permanecido apenas olhando você correr de um lado a outro da cama labirinto, dos objetos destroços. Corri junto em silêncio procurando algo que também não sei o que é. Apenas corri como a possibilidade de lhe dar um pouco mais de vida para que deixasse de ser a sobra de uma sombra. Não sei se pode ver. A sala foi preparada com delicadeza. Mas o belo também impôs um estado melancólico imediato. O silêncio se instaurou sem aviso. As ausências surgiram fortes em todos. E forte por serem reais. Em cada instalação, uma maneira de te expor e contar. Escritos, gestos, presença, movimentos, sombras, projeções. Relatos dolorosos, ainda que os mecanismos teatrais sejam especial polônia antro+

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huljet huljet sempre fascinantes. É perigoso se perder pelo encantamento de cada efeito sem se atentar aos contextos de suas narrativas. Lembravam-me Boltanski, o artista plástico. Acho que você gostaria dele. Lembravam-me as gavetas de minhas avós e seus pertences esquisitos. Acho que você teria medo dela. Vivemos tempo diferentes. Eu estou aqui, você é a sombra de um dia anterior. Mas somos os mesmos, de certa forma. Pois somos, cada qual, a prova da falência de nossas épocas. A sua busca certamente será reiniciada amanhã e depois de amanhã. Eu, no entanto, não tenho certeza de que hoje teremos tanto tempo assim para nos reinventarmos. É preciso olhar para além, enxergar as curvas com que as sombras se deformam nas superfícies. Perceber as águias e suas garras. Você me mostrou de modo tão profundamente poético o inimaginável, que só posso lhe agradecer não me protegendo em sentir. Então, boa sorte, cara bicicleta. Espero que encontre o menino. Espero que amanhã consiga pular o muro e se salvar. Do lado de cá, os muros estão voltando e os pássaros que te perseguiram se tornaram vários e parecem querer novamente levantar voo. Mesmo assim, espero ainda poder reencontrá-la e leva-la para correr em um ensolarado jardim de primavera

crédito fotográfico não informado

junto a crianças risonhas e deliciosamente barulhentas.

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resenhas crĂ­ t i c as varsĂłvia


e v e r em b este é um caderno mutante! novas atualizações com conteúdos inéditos serão divulgadas logo mais!


entrevi s tas parte 2 breve em

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diĂĄrio de imagens fotos de patrĂ­cia cividanes

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