Sou feia mas Tô na Moda

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE PROGRAMA DE PÓS-GRADUÇÃO EM COMUNICAÇÃO SOCIAL ALUNA: GABRIELA DE OLIVEIRA S. MIRANDA 1º SEMESTRE/2010

TRABALHO FINAL PARA DISCIPLINA “CORPO, TECNOLOGIAS E SUBJETIVIDADE” PROFESSORA: PAULA SIBILIA

“SOU FEIA MAS TÔ NA MODA”

Resumo: Este trabalho dedica-se ao levantamento de reflexões acerca da importância e recorrência dos investimentos que recaem sobre o corpo feminino na contemporaneidade. Como objeto de referência para o estudo apresenta-se a figura da cantora de Funk, Tati Quebra-barraco. Conhecida por sua máxima “sou feia mas tô na moda”, ela se submeteu a diversas intervenções cirúrgicas de fim estético após se tornar famosa. O objetivo é identificar as possíveis motivações que a levaram a realizar tais procedimentos.

Palavras-chave: Corpo, Narcisimo e Tati Quebra-barraco

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Introdução

“A idéia que o homem tem do belo imprime-se em todo seu vestuário, torna sua roupa franzida ou rígida, arredonda ou alinha seu gesto e inclusive impregna sutilmente, com o passar do tempo, os traços de seu rosto. O homem acaba por assemelhar-se àquilo que gostaria de ser.” Charles Baudelaire, Sobre a Modernidade

Este trabalho dedica-se ao levantamento de reflexões acerca da importância e recorrência dos investimentos que recaem sobre o corpo na contemporaneidade. Como objeto de referência para o estudo apresenta-se a figura da cantora de Funk Carioca, Tatia Quebra-barraco. Para tanto, começamos com uma discussão teórica sobre o corpo enquanto construção histórica, utilizando alguns pressupostos teóricos de Mauss e Foucault. Em seguida, nos aproximamos de nosso objeto inserindo alguns argumentos de Jurandir Freire Costa e Denise Sant´anna para pensar corpo e subjetividades na contemporaneidade. Na terceira parte do trabalho, introduz-se um breve histórico sobre o surgimento da vertente sensual do Funk Carioca, para então comentar a trajetória de Tati Quebra-barraco, tentando relacionar seus investimentos em cirurgias plásticas com a discussão teórica antes comentada e em conjunto com outras referências teóricas. Em “As técnicas do corpo”, Mauss (2003) nos fornece um quadro analítico em que o corpo aparece como um instrumento, um “objeto técnico” com o qual as diversas sociedades, por meio da tradição e da educação, agem a partir do corpo no próprio corpo. As ações humanas são percebidas como uma espécie de reflexo da ação do social, o corpo como um elemento chave da representação social. Assim este autor rejeita a noção de que técnicas corporais sejam da esfera da Natureza (um elemento dado) para entendê-lo como o lócus de produção de diferenças, de alteridade. Mauss apresenta um inventário de diversas técnicas corporais aprendidas e também torna visíveis as fronteiras que, socialmente, demarcam e constituem diferenças como idade, gênero e raça. Pode-se perceber em Mauss uma dimensão de criação nas técnicas corporais, no sentido de que toda reprodução carrega consigo algo de criação. Deste modo, as técnicas do corpo se oferecem como ferramentas

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a serviço da noção de pessoa, a de “eu” (2003), pois a noção de corpo está imbricada – em Mauss – à noção de pessoa. O corpo aparece então como um instrumento que serve à construção de identidade da pessoa, às criações subjetivas dos indivíduos, que pressupõem técnicas definidas a serem incorporadas e reproduzidas. Mauss insere a noção de habitus, enquanto incorporação das diferenças culturais transmitidas pela educação. As técnicas corporais podem ser pensadas enquanto um processo de aprendizado e ‘reprodução’. Tomado como construção cultural e histórica de determinado período e sociedade, o corpo se apresenta como um rico objeto de estudo por contribuir para o entendimento de certos fenômenos e práticas que o tomam como suporte ou finalidade. Michel Foucault teorizou exaustivamente sobre a complexidade das forças de poder que foram investidas sobre os corpos no que chamou de sociedade disciplinar. Segundo ele, entre o século XVII até meados do XX, as biopolíticas empregadas pelos governos através das instituições disciplinares – escolas, hospitais, presídios etc – tinham por finalidade estender o tempo de vida dos trabalhadores e tornar os indivíduos cada vez mais produtivos, sempre dóceis e úteis. Porém, a rigidez e densidade desses regimes acabaram por despertar a atenção dos indivíduos para o próprio corpo, o que gerou tentativas de escape à normalização e novas formas de sujeição. Lembramos que para o autor o poder não se limita a reprimir, censurar e negar a ação dos indivíduos, pois neste sentido ele teria sua eficácia e amplitude de alcance, reduzidas e fragilizadas. Sua força advém da produção de efeitos positivos no nível dos desejos e dos saberes. Assim, o biopoder deve produzir forças, canalizá-las em ordem, fazendo-as crescer de modo a sustentar e ampliar a possibilidade de vida, e por fim levar adiante o desenvolvimento do sistema econômico e de produção capitalistas daquela época. Isto justifica, parcialmente, que seu campo de atuação privilegiado, junto às técnicas de higienização, tenha sido medicina e mais recentemente, a tecnociência (SIBILIA, 167). (Microfísica do Poder pg 148). No seminal “História da sexualidade” as dimensões coercitivas e criativas, que Foucault identifica como movimentos normais ou típicos do desenvolvimento das relações de poder, são colocadas lado a lado. Seguindo seu pensamento, se por um lado a sexualidade se torna uma fonte de preocupação e o corpo passa a ser o objeto por excelência de vigilância e controle, por outro lado, o corpo se torna um objeto de produção de conhecimento, de saberes, de desejos sobre o próprio corpo. O corpo e a sexualidade, portanto, se configuram como dispositivos de disputa de poder. Na transição da sociedade disciplinar à atual sociedade de controle, as principais

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instâncias que edificavam os indivíduos, tais como o Estado, a família, o trabalho e a religião perderam sua função de doadoras de identidade em meio à crescente liberdade prometida pelos valores da globalização neoliberal. Jurandir Freire Costa nos conta que os dois principais suportes que vieram a substituir a normalização propostas por estas instâncias são o narcisismo e o hedonismo. Na nova dinâmica identitária, a lógica dos investimentos empreendidos pelos indivíduos deve servir, tão somente, aos cuidados de si. Neste sentido, toda a ação terá por fim a auto-realização, e a gama de ferramentas e incentivos para fazê-lo não cessam de serem inovados pelo mercado, ilustrados com muito entusiasmo pela mídia publicitária, e até mesmo estarem disponíveis numa vasta literatura de auto-ajuda. Para ele, o individualismo contemporâneo dispensa as obrigações de cunho social e coletivo, e como efeito surge o hedonismo, uma vez que começamos a aprendemos que a felicidade equivale à satisfação sensorial obtida pelo prazer (2004: 185). O outro nos desperta interesse na medida em que pode prover de alguma espécie de gozo e/ou nos ajuda neste processo de auto-realização narcísica. De todas as formas, seguimos a hierarquizar entre Bem e Mal nossas atitudes, mas apoiados sobre quais valores? (2004: 189). Apesar de defender que estas idéias reduziriam em demasiado a discussão, Jurandir pergunta: o que senão a religião, o trabalho, a política ou a família dá sentido à vida? “o que funciona como valor transcendente aos meros propósitos de auto-realização?” No argumento do autor, a força normativa destas instâncias não teria sido apagada por completo. Mas estas teriam sido privatizadas na tentativa de sustentarem sua eficácia, passando a serem ativadas caso a caso, como que reconhecendo a unidade individual de cada um. Em resposta à ausência do sentido de unidade fornecido pelo que é institucional, ele conclui que a fonte de orientação moral universal que substitui as tradicionais instituições tem sido a ciência, ou melhor, o mito cientificista. O debate científico, hoje, seria o que legitima as formas de vida e detém a autoridade para dizer o que é bom, ruim ou verdadeiro. A saúde, a boa forma e a qualidade de vida, orientadas pelas descobertas da ciência, serão tomadas como valores morais a serem seguidos, e a partir deles seremos submetidos ao juízo do olhar alheio, que, baseado na avaliação e desempenho da forma corpórea, dirá se as aspirações à felicidade são bem ou mal direcionadas. Segundo o mesmo texto do psicanalista brasileiro, a nova instância produtora de identidades chama-se bioidentidade; através dela, diversos grupos sociais se organizam na tentativa de se tornarem socialmente reconhecíveis. Ser belo, jovem,

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saudável e fazer isto visível ao maior número de olhares possíveis significa, afinal, ser bem sucedido no mundo. Ao mesmo tempo, paradoxalmente, esta tentativa que busca o reconhecimento, ou a diferenciação, tende a se enquadrar em padrões de normalidade que buscam a invisibilidade, pois se não somos notados, é sinal de que não há nada de errado em nós. Quando a forma do corpo e o estado de saúde atingem um nível de tão alta importância em nossas vidas, novas formas de construção do eu são inauguradas junto a novas acepções de normalidade e desvio. A falta de cuidado consigo estará relacionada à fraqueza entendida por ausência de determinação nos empreendimentos que concernem à qualidade de vida, inaugurando novos distúrbios que podemos experimentar. Ele chama de personalidade somática este novo modo de estar no mundo que se apóia sobre tudo no desempenho corporal a que devemos responder. Ao corpo conferimos a responsabilidade de ser o suporte fundamental de nosso caráter, identidade, ambições e prazeres. Nele tudo parece se inscrever. Como efeito colateral, desenvolvemos uma hipersensibilidade às “coisas” de nosso corpo que não estejam “no lugar” devido. O trecho abaixo faz sentido retomando as premissas de Mauss a respeito das técnicas do corpo como instrumentos de construção do “eu”:

“O sujeito vê-se, simultaneamente, como onipotente – ao acreditar que pode criar o eu moral e psicológico a partir da pura experiência sensual do corpo (...)” (COSTA, 2004: 196)

Resta perguntar: que corpo devemos ter agora? Para que ele deve servir? Quais formas de aprisionamento se inauguram no paradigma apresentado? Não existe a certeza do um caminho certo a ser seguido, mas somos impelidos à corrida eterna do corpo da moda.

O vigor sexual como valor moral O tempo já é moderno e o sexo tem que variar Se ele quer que você mande, manda eles te chupar Discurti, Deize Tigrona

No romance Admirável Mundo Novo, de 1932, os personagens de Aldous Huxley são submetidos a condicionamentos biológicos no período de desenvolvimento fetal, 5


e, psicológicos durante a infância. As técnicas de condicionamento aplicadas visam à organização social de divisão de castas daquela sociedade ficcional, justamente como espécie de biopolítica. Quando adultos, se insinuam orgulhosamente através da libido e a exploração da sexualidade se configura como mais uma via à ascensão do status social. Qualquer sintoma de angústia é remediado por estímulos sensórios ou apaziguado pela soma. Mas deixemos de lado o futurismo literário e pensemos um pouco no conceito de biopolítica e do dispositivo da sexualidade de Foucault no Brasil de agora. Em abril de 2010, pudemos ouvir o ministro da saúde do Brasil, José Gomes Temporão, incentivar os cidadãos a praticarem mais relações sexuais a fim de melhorar a saúde do povo brasileiro; ele declarou: “Não é brincadeira, é sério, fazer atividade física regular significa também fazer sexo, com proteção sempre, claro”1

Se hoje há espaço e aceitação para este tipo de declaração (vindo de um ministro da saúde!) temos mais do que certeza de que boa parte dos princípios social e moralmente aceitos que antes nos orientavam – principalmente no que tange à sexualidade – passaram por grandes transformações. Mas devemos ter em conta que ao longo da história não se exclui a possibilidade de certas normas terem sido reforçadas ou mesmo dissimuladas em outras roupagens. Felizmente na contemporaneidade vivemos uma época em que nossa sexualidade não mais é sufocada; isto graças às conquistas que eclodiram nos anos 60 do século passado. No entanto, apesar de ternos nos liberado da chamada moral burguesa, novas formas de constrangimento e cerceamento que não mais correspondem exclusivamente aos ideais da moral puritana são conclamadas pelas maneiras de exibição que vivemos. Falar do ato sexual, a partir da segunda metade do século XX, não é só um privilégio de especialistas, mas é algo que empodera o locutor. Dentre as instancias normalizantes que persistiram entre nós, vale destacar duas constantes que serviram como balizas para a diferenciação genérica entre homens e mulheres que também se dão no âmbito da sexualidade. Aos homens foi lhes atribuído o dever social de serem fortes e provedores, e às mulheres – com a graça divina – o de ser bela (SANT’ANNA 1995:121). De alguma forma esses imperativos se mantém mesmo

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Retirado do G1 http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2010/04/ministro-da-saude-recomenda-sexo-para-combate-doencas-

cronicas.html

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havendo uma espécie de cruzamento entre eles2. Mas o que interessa são as mudanças dos parâmetros estéticos que regulam o dever da mulher de ser bela e os meios para fazê-lo, que se servem do discurso científico e de seu instrumental técnico para “construir” o corpo desejado.

Das brigas à sensualidade: Eis que o sexo rei veio para salvar os funkeiros Beijo na boca é coisa do passado A onda do momento é namoro depravado É um pega daqui, é um pega de lá, se a mina for boa todo mundo quer pegar É dia, é de noite, faça chuva faça sol, em cima da cama, embaixo do lençol Todo dia toda hora tem nego fazendo agora, Vou mostra pra tu gatinha como é que se namora

Namoro Depravado - Furacão 2000

A história do Funk Carioca conta com aproximadamente 30 anos e foi atravessada por inúmeras polêmicas que tantas vezes viraram notícia na grande mídia3. Na segunda metade dos anos 90 as denúncias citando os “bailes de corredor” ficaram tão conhecidas ao ponto de ser criada em 1999 a CPI do Funk destinada a investigar diversas práticas ilegais que, supostamente, aconteciam nos bailes envolvendo pornografia, brigas, ligações com tráfico de drogas e até mortes. Nesse tipo de baile, o público masculino era dividido em Lado A e Lado B formando um corredor organizado por seguranças do local encarregados de “ordenar” as brigas ali travadas pelos ditos “guerreiros”. Hermano Vianna, ainda no fim da década de 80 (VIANNA, 1987), discorreu sobre a iminente violência sensível nos bailes que freqüentou enquanto escrevia sua etnografia.

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Infelizmente, os limites deste trabalho não dão espaço para a rica discussão que pode ser travada sobre cruzamento desses imperativos (homem forte/ mulher bonita) que acredito poderem contribuir para um estudo analítico sobre os corpos e performances de dançarinas de Funk numa discussão sobre gênero. 3 Ver O funk e hip hop invadem a cena de Michael Hershmann (2000)

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Imagem 1 – Baile de corredor

De acordo com os depoimentos presentes no documentário Sou Feia Mas Tô na Moda4, de Denise Garcia, o baile de corredor marca a pior fase do Funk Carioca e quase o levou à completa decadência. A MC Deize Tigrona e o DJ Duda, ambos da Cidade Deus, defendem que a vertente sensual do Funk sucedeu a fase violenta elevando o prazer para o primeiro plano nos bailes, onde “agora todo mundo rebola” (mulheres e homens). Notase que o estímulo do corpo, tão caro a esta manifestação cultural e a tantas outras formas de entretenimento, se manteve, porém, seu eixo foi deslocado do gesto belicoso proibido e acabou por encontrar na incitação do gozo sensório, um campo fértil a ser explorado. O corpo feminino será então o principal suporte na produção dos efeitos desejados na nova fase do estilo que se iniciava. Que corpo deve ser este e o que se deve fazer para conquistálo? Veremos mais adiante o que Tati Quebra-barraco optou por fazer para alcançar a autoimagem que passou a desejar para si. A nova temática – da sexualidade – serviu para inaugurar um novo papel das mulheres dentro do Funk – o de MC – e ampliar o espaço para as dançarinas que já subiam aos palcos para ilustrar as coreografias das músicas cantadas e tocadas por homens nos bailes. Algumas dessas mulheres começaram a compor seus raps e se tornaram ícones femininos dentro e fora do movimento. Outras, principalmente as dançarinas, se beneficiaram de seus atributos físicos, aperfeiçoados e conquistados através da musculação e também de cirurgias plásticas para chegar ao sucesso almejado, o que pode inclui ser capa de revistas masculinas. Na seqüência do artigo o foco recai sobre a MC Tati Quebra-barraco devido à apreensão de sua trajetória como uma rica fonte de estudo de fenômenos sociais que 4

Sou feia mas Tô na Moda, filmado em 2004, mostra a participação das mulheres dentro do Funk Carioca, e explora através de depoimentos de artistas do movimento e moradores da Cidade de Deus seus argumentos para a desvalorização do estilo musical e de seus participantes pelas camadas mais favorecidas da sociedade brasileira.

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se inscrevem no corpo feminino atualmente5. Entre esses fenômenos, destacam-se a valorização e o cuidado de si, necessários à elevação da auto-estima na faceta narcisista da construção de subjetividade, aliada ao hedonismo que nos impele ao gozo. Para tanto, apresentam-se como fontes de análise as letras mais famosas e declarações concedidas em entrevistas à mídia, além do documentário supracitado.

Quebrando o barraco com Tati

Sou feia Mas to na moda Eu fiquei 3 meses sem quebrar o barraco, Sou feia mais to na moda, to podendo pagar hotel pros homens isso é que mais importante. Quebra meu barraco 1000000000X

Sou Feia mas to na moda, por Tati Quebra-barraco em Boladona

Figura 1, 2 e 3 – Tati Quebra-barraco no início da carreira posando na Cidade de Deus

Tatiana dos Santos Lourenço nasceu no Rio de Janeiro em 1979 e passou praticamente toda sua vida na Cidade de Deus. Antes da fama cozinhava numa creche perto de casa e chegou a fazer um curso de esteticista, pois o trabalho de cabeleireira lhe interessava. Ficou conhecida com o bordão da letra “Sou feia mas to na moda”– na epígrafe acima – e pela recorrente incitação ao sexo que praticamente atravessa toda sua produção musical. Tati começou a cantar quando por três meses ficou sem “quebrar o barraco” 6 e pelas ruas da Cidade de Deus tentava arranjar um namorado e resolver seu problema. Seu 5

Fenômenos que não se reservam ao gênero feminino, mas que atravessam a sociedade contemporânea no que Jurandir Freire Costa chama de personalidade somática 6 “Quebrar o barraco” significa fazer sexo selvagem e satisfatório na gíria do Funk Carioca. Ver Essinger, 2005 pg. 216.

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meio-irmão e empresário, Márcio dos Santos Silva, é responsável pela administração de sua carreira e participa na composição das letras de seus raps. Abaixo segue uma fala de Márcio sobre sucesso da irmã: “Todo mundo acha que a Tati xinga muito, mas não é xingar por xingar. Às vezes o homem ofende a mulher na música e ninguém critica. Mas é porque ninguém respondeu a ele. As mulheres tinham que ouvir e ficar quietas. Aí eu falei para a Tati: ‘então vamos lá, você vai fazer as músicas escrachando mesmo os homens. Vai falar o que você pensa e eu vou escrever isso’. Tudo o que eu não gostava que uma mulher dissesse para mim eu escrevi para ela dizer para todo o mundo” (ESSINGER, 2005: 218) Sem dúvida, o sucesso de Tati Quebra-barraco se deve à apropriação do direito de falar de sexo de forma explícita e lúdica. E o fato de seu irmão administrar e ser coautor de suas músicas nos revela outro lado da mesma moeda. Falar de sexo, de fato, está na moda talvez como nunca antes. A própria cantora confessou a dificuldade que seria tentar cantar músicas românticas, pois não é isso que o público espera dela. Sua carreira ultrapassa uma década e, segundo a pesquisa jornalística de Silvio Essinger (2005), até o ano de 2003 a vida de Tati era “espantosamente comum”(220), o que incluía estender roupa no varal, beber cerveja no quiosque com suas colegas e fazer churrascos em casa nos fins de semana. Mas ao longo desses 10 anos, Tati fez shows com Preta Gil, cantou em festivais internacionais e foi convidada em 2004 pelo Ministério da Cultura a participar de um congresso feminista na Alemanha. No mesmo ano, começou a receber convites para cantar em boates da zona sul do Rio de Janeiro, tornando-se musa gay, e chegou a cantar no evento de moda São Paulo Fashion Week. Além da fama que atravessa oceanos e classes sociais, Tati conquistou um novo corpo e isto é o que mais nos interessa para a discussão que se segue. De acordo com o depoimento7 concedido à jornalista Daniela Pinheiro, Tati se revela orgulhosa por não parecer com a assustadora foto de identidade tirada antes de se transformar num “filé” 8, como conta a própria. Ela se submeteu a cerca de 20 cirurgias plásticas e perdeu mais de 30 kilos. Os procedimentos estéticos a que se entregou são enumerados na mesma entrevista:

“Tati fez lipo no pescoço, nos braços, nas costas, nas coxas, no rosto, e garante, em lugares de alta intimidade. Extraiu um pedaço de osso

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Revista Veja, edição 13/12/2006 Filé é uma expressão comum no Funk Carioca e se equivale ao “gostosa” mais comumente utilizada para falar de uma mulher bonita e de curvas generosas. 8

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do quadril para modelar um nariz afilado, refez o umbigo, amarrou os músculos flácidos da barriga, levantou e pôs silicone nos seios. Tudo cortesia da Clínica Santé, em São Paulo. Ainda falta colocar silicone nas nádegas, amarrar a musculatura do pescoço e fazer um implante de cabelo liso e dourado fio a fio” Ainda não completamente satisfeita com os resultados obtidos, Tati dizia na época da entrevista querer tirar costelas para afinar a cintura, tal qual fizeram as cantoras Shakira e Mariah Carey. No que tange ao auto-controle necessário à manutenção da “boa forma”, ela diz se entregar a todos seus desejos gustativos: come tudo o que quer e nuca sofreu com dietas ou com os cansativos exercícios físicos. Todo o peso que perdeu “foi chupado mesmo”. A decisão de fazer uma nova cirurgia parte da auto-observação diante do espelho; em caso de insatisfação com algum aspecto da imagem se corpo, sem pestanejar ela se direciona a clínica estética9. Se submeter a tais procedimentos cirúrgicos poderia parecer incoerente, já que Tati é feia, mas de todas as formas ela já estava na moda. Mas se ela pode continuar na moda e deixar de ser feia, e até mesmo se tornar um “filé”, porque não fazê-lo? Se observarmos o contexto onde Tati e outras mulheres que se destacam no Funk circulam, nos deparamos com uma variedade de corpos extremamente trabalhados para servir ao exame atento de olhares durante a execução das tantas coreografias do estilo Funk e de outros como o Axé, o Forró Eletrônico e o Tecnobrega no Brasil. Em especial, no Funk, parece ser muito fácil perceber na “classificação” das mulheres a idéia de bioidentidade antes suscitada. Temos um variado vocabulário para a nomenclatura das formas físicas, do comportamento das mulheres nos bailes e dos “nomes artísticos” destas. Popozuda, cachorra, gatinha, preparada, fiel e amante são bastante comuns nas letras dos raps cantados seja por homens ou mulheres. A expressão “filé” encontrou uma representante oficial – a Mulher Filé – dentro da salada de frutas que surgiram nos últimos anos, que incluem a Mulher Melancia, Mulher Melão, Mulher Jaca e até um travesti que – guardando o duplo sentido – diz ser a Mulher Banana. Abaixo seguem imagens de algumas delas:

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Na mesma entrevista, a jornalista Daniela Pinheiro comenta que as cirurgias de Tati foram cortesias da Clínica Santé, localizada na cidade de São Paulo.No entanto, nenhum cirurgião “pigmaleônico” assumiu a autoria das transformações estéticas de Tati Quebra-barraco.

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Figura 4 – Mulher Melão e Alexandre Frota Figura 5 – MC Creu e Mulher Morango

Figura 6 – Mulher Jaca

Na entrevista10 dada à revista feminina Marie Clair, a repórter lhe perguntou quais mulheres ela acha bonita. Tati respondeu: “A Sheila Carvalho, as meninas do programa "Caldeirão do Huck". Tem muita mulher bonita por aí, dá até raiva [gargalhada]. Não tenho olho grande no que é dos outros, cada um tem as suas coisas. Mas essas mulheres, com esse corpo, dá vontade de dar nelas.” Para refletir sobre esta declaração, retomamos os pressupostos colocados na primeira parte do trabalho no esforço de identificar as motivações de Tati e entendê-las dentro do contexto em que ela vive. A imagem corporal admirada por Tati estava distante de sua própria, e chegava a lhe causar o sentimento de raiva, mesmo expressada no tom de brincadeira. No entanto, para conseguir admirar-se diante do espelho e se auto-referir como um gostoso filé, ela pôde recorrer a um instrumental técnico da medicina estética contemporânea, de forma bem semelhante à explicação das técnicas do corpo que servem de construto da pessoa segundo Mauss. Se ela não nasceu bela, conseguiu ter os recursos para aprimorar-se, e isto de forma “confortável”, já que não se priva de comer o que lhe der vontade e tampouco pratica atividades para gastar as calorias extras ingeridas. As técnicas a que recorre para o embelezamento participam da faceta narcisista para o fortalecimento de si através da auto-imagem e, ao mesmo tempo, excluem os esforços físicos que poderiam dispensar algumas cirurgias do tipo lipoaspiração para o fim da eliminação das gorduras indesejadas, revelando assim, parte do caráter hedonista em seu comportamento.

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Marieclair Edição 167 – Fevereiro de 2005. Tati Quebra Barraco: Cinderela funk. Por Marta Barcellos

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O texto de Denise Sant´anna nos ajuda a entender a dedicação de Tati Quebra-barraco a si mesma como um fenômeno coletivo: “(...) é na minúscia enfadonha dos cuidados que visam às unhas, a pele, os olhos e os cabelos, que percebemos como se fortalece a cultura do espaço íntimo, na qual o corpo feminino merece lugar de destaque. É, igualmente, na crescente valorização dos produtos e métodos de beleza, que assistimos ao desfile de nossas inquietações e à emergência de estratégias que forjamos para responder nossos medos e ultrapassar nossos limites” (SANT´ANNA 122) A autora segue sua argumentação afirmando que os discursos destinados ao embelezamento feminino têm por referência além dos padrões morais, interesses econômicos e as justificativas científicas de cada época. A conclusão inicial de seu texto nos conta que deixar para trás a imagem obsoleta através do embelezamento revela diversos matizes do sonho de ser moderno e civilizado na elite brasileira. Na medida em que seus apontamentos para uma história do corpo no Brasil avançam, Sant´anna argumenta que a mulher feia, na verdade, é uma mulher que não se ama. Em nossa época só é feia quem quer. Nesse sentido, a falta de vontade para se tornar bela “denota uma negligência feminina que deve ser combatida” (129). Falta de vontade que revela fracasso nas premissas de Costa comentadas na introdução do trabalho, pois o cuidado de si servirá como meio para a construção identitária dos fortes e normais, de acordo sua teorização sobre a personalidade somática de nosso tempo. Para o autor “A personalidade somática se tornou uma espécie de antipersonalidade, pelos próprios mecanismos que a constituem. De um lado, só dispõe das aparências corpóreas para singularizá-la, individualizá-la como “identidade” irrepetível; de outro, pelo fato de só dispor da aparência como meio de individualização, procura anulá-la, aboli-la, como meio de escapar ao sentimento persecutório da vulnerabilidade ao olhar do outro.” (200) Apesar do interesse que Tati Quebra-barraco despertou no público e na mídia ter partido da incitação ao sexo em suas músicas, como dito antes, sua velha forma corpórea – especialmente feia – sem dúvida, foi decisiva para sua singularização entre outras mulheres no Funk Carioca. Para fechar esta parte do artigo, seguem algumas imagens de Tati mais atualizadas.

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Figuras 7, 8 e 9 – Tati após a série de cirurgias plásticas

Considerações Finais “Narciso é o mito de uma humanidade sem interdito e fascinada pelo poder ilimitado de seu eu” (ROUDINESCO, 2006:51)

O objetivo deste artigo foi fazer notar as motivações que levaram a cantora Tati Quebra-barraco a tentar romper com a feiúra que, no entanto, ajudou a torná-la famosa, em conjunto com sua atitude de apropriação do discurso que canta sobre o sexo. A procura pelo agenciamento das impressões de identidade ao olhar alheio, e a importância que nossa forma corpórea tem nessa dinâmica se encontra, atualmente, hipertrofiada. O corpo como meio de expressão do eu tornou-se assim, o objeto maior do juízo moral a que podemos ser submetidos. Alguns estudos têm se referido a tal fenômeno como o eclipse da subjetividade introdirigida que dá lugar a alterdirigida. Isto é, o que somos não estaria mais contido na interioridade de nosso ser, mas no que mostramos ser. Este novo modo de estar no mundo inaugura novos desejos que, sobretudo, recaem no corpo e podem corresponder à continuidade do culto do espaço íntimo que se radicaliza com o avanço dos valores burgueses de privacidade. No Brasil, a beleza se tornou um direito. Em hospitais da rede pública, mulheres que não possuem recursos financeiros para conseguirem realizar as modificações desejadas para seu corpo podem se inscrever numa lista, a espera da intervenção de uma equipe de jovens instruídos pelo famoso cirurgião Ivo Pitanguy. Isto revela que esse tipo de prática não se reserva somente às camadas mais favorecidas da população. Mirian Goldenberg,

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em estudos etnográficos sobre o corpo carioca, reconhece o atual discurso a respeito da responsabilidade de cada um por sua própria saúde e forma física. Na medida em que o ideal de autonomia individual cresce, mais se exige a conformidade dos corpos dentro dos padrões de beleza estabelecidos. O corpo não é algo natural, mas uma construção cultural, o corpo “(...) também é roupa, máscara, veículo de comunicação carregado de significados que posicionam os indivíduos na sociedade” (2007: 10) Se ser moderno é estar na moda, Tati Quebra-barraco não se limita a investir somente na atualização de sua forma. A compra e vestimenta de cordões de ouro e das cobiçadas calças da marca Gang no universo Funk instigam bastante a funkeira e servem para completar a pessoa que é. Em 2006 ela contou ter cerca de 900 calças da marca e 200 tênis. Apesar de tentar se controlar com medo disso se tornar, segundo suas próprias palavras, uma “neura”11, Tati comenta que todo dia compra algo novo para si e não tem o hábito de doar ou presentear os outros com receio de ser pobre novamente. Entre as últimas notícias com destaque sobre a cantora consta que ela se tornou avó aos 29 anos, em 2009 começou a freqüentar a igreja evangélica e chegou a comemorar seu aniversário com pastores. Revelam que ela é candidata à deputada federal pelo Partido Trabalhista Cristão (o mesmo pelo qual foi eleito o falecido apresentador e ex-deputado federal Clodovil Hernandes), e terá de concorrer com a celebridade/candidata funk Mulher Melão. Apesar de tudo isto, ela segue fazendo seus shows com as mesmas músicas picantes, roupas justas de sempre e continua morando na Cidade de Deus.

Referências: EHRENBERG, Alain. “O indivíduo sob perfusão” e “Conclusão: Em nome de si mesmo”. In: O culto da performance: Da aventura empreendedora à depressão nervosa. Rio de Janeiro: Ed. Relume Dumará, 2002: p. 131-183.

ROUDINESCO, Elisabeth. “O culto de si e as novas formas de sofrimentos psíquicos”. In:A análise e o arquivo. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2003; p. 51-76. ORTEGA, Francisco. “Do corpo submetido à submissão ao corpo”. In: O corpo incerto:

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Retirado da revista Marieclair Edição 167 – Fevereiro de 2005. Tati Quebra Barraco: Cinderela funk. Por Marta Barcellos

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Corporeidade, tecnologias médicas e cultura contemporânea. Rio de Janeiro: Garamond, 2008; p. 17-53.

SANT´ANNA, Denise Bernuzzi. “Cuidados de si e embelezamento feminino: Fragmentos para uma história do corpo no Brasil”. In : SANT´ANNA, Denise (Org.). Políticas do corpo. São Paulo: Estação Liberdade, 1995.

SIBILIA, Paula. “O show do eu”

COSTA, Jurandir Freire. “O vestígio da aura” Garamond

MAUSS, Marcel. “As técnicas do corpo” In: Antropologia e Sociologia. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

GOLDERMBERG, Mirian; RAMOS, Marcelo Silva. “A civilização das formas: o corpo como valor”. GOLDERMBERG, Mirian. (Org.) Nu e vestido: Dez Antropólogos revelam a cultura do corpo carioca. Rio de Janeiro: Record, 2002; p. 19-40

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade Vol. I _________________ “Poder Corpo” In: Microfísica do Poder

Sites: http://extra.globo.com/lazer/retratosdavida/posts/2009/09/22/tati-quebra-barraco-viraevangelica-comemora-30-anos-com-pastores-225290.asp

http://moglobo.globo.com/integra.asp?txtUrl=/pais/eleicoes2010/mat/2010/08/16/funkeiratati-quebra-barraco-cantora-simony-humorista-tiririca-estao-entre-os-artistas-candidatosnas-eleicoes-2010-917399841.asp

http://veja.abril.com.br/blog/eleicoes/tag/mulher-melao/

http://virgula.uol.com.br/ver/noticia/musica/2010/04/09/245303-tati-quebra-barraco-econfirmada-como-candidata-a-deputada-federal

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Anexos

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