P.O.C Procedimentos para ocupar a cidade Copyright © Eduardo Bruno (Organizador), 2021 Impresso no Brasil / Printed in Brazil TODOS OS DIREITOS RESERVADOS Capa Kerensky Barata Revisão de texto Eudo Araújo e João Paulo Lima Diagramação eletrônica Léo de Oliveira Alves Impressão e acabamento Expressão Gráfica e Editora arte@expressaografica.com.br (85) 3464-2222 Ficha Catalográfica Bibliotecária: Perpétua Socorro Tavares Guimarães - CRB 3 801-98 P.O.C.- Procedimentos para ocupar a cidade / organizado por Eduardo Bruno .- Fortaleza: Expressão Gráfica, 2021 (Coleção Imaginários). 108p.: il. ISBN: 978-65-5556-164-7 1. LGBTfobia 2. Direitos dos LGBTs 3. Movimentos sociais I. Bruno, Eduardo II. Título. CDD: 306.7660
sumário
apresentação 4
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Eduardo Bruno e Waldírio Castro Clínica de reabilitação para homofóbicos
21
Levi Banida O mar não é binário #1 - Triatlas
37
João Paulo Lima Cova
51
Sy Gomes Plantas de casa vinte vinte
Aires Gazela
Ellícia Maria Via-Trava
65
81
95
Henrique Gonzaga Cacos
apresentação POC – Procedimentos para ocupar a cidade POC é uma proposta de criação inter-transartística, tendo na linguagem da performance um dispositivo para repensar as noções, as percepções e os imaginários citadinos de Fortaleza-CE. Contemplado no Edital Arte Livre por meio da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, fomentado com recursos da Lei Aldir Blanc e produzido pelo Coleção Imaginários, Grupo EmFoco, Clandestino Poético e Covil das Banidas, o projeto tem como perspectiva redesenhar as coreografias de habitação, território e participação social de corpos e corpas dissidentes de gênero e sexualidade, habitando também espaços de interseccionalidades – criando assim uma aglomeração poética. A palavra POC tem origem pejorativa insinuada contra corpos LGBTQIA+, especialmente endereçada a travestis e homens gays afeminados. Nesse sentido, pensamos em uma subversão linguística. Além de usarmos POC como um dispositivo de luta, nomeamos o projeto dessa forma pensando, também, em como a discriminação linguística opera contra diferentes corpos/corpas dissidentes. Assim, operamos em um projeto interseccional que agrega diferentes setores da margem identitária (travestis, pessoas trans – binárias e não-binárias –, gays, lésbicas, negros/negras e PCD), provocando micropolíticas que presentificam processos de subjetivação que reconfiguram os contornos da realidade em movimento continuo de criação.
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Para isto, foram convidados 8 performers – Aires, Eduardo Bruno, Ellícia Maria, Henrique Gonzaga, João Paulo Lima, Levi Banida, Sy Gomes e Waldírio Castro – para realizarem sete ações performáticas pela cidade: seis individuais e uma dupla (um casal gay). Cada ação foi criada a partir das inquietações sociais de cada performer, a partir da relação de seus/suas corpos/corpas e percepções enquanto ser na cidade. As ações foram criadas/executadas dentro do território de moradia dos/das performers, ou em cantos que assimilam como seus territórios afetivos de Fortaleza. Com isto, por meio de micropolíticas do corpo/corpa, as ações propõem reconfigurar, mesmo que por um tempo recortado, os hábitos dos bairros e espaços ocupados: Demócrito Rocha, Dionisio Torres, Rodolfo Teófilo, Praia de Iracema, Poço da Draga, Planalto Ayrton Senna, Bom Jardim. Neles as/os performers criaram, para si e a para a comunidade ao entorno, heterotopias e alargamentos de mundo construídos a partir de outras centralidades da existência.
Propositores do projeto: Aires; Eduardo Bruno; Levi Banida
Realizado entre 14 e 25 de janeiro de 2021 5
Gazela
Aires1
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Gazela não monogâmica, não-binária em reconstrução das feridas que um dia lhe foram causadas. Performer, graduada em licenciatura em teatro.
Foto: Matheus Dias
Foto: Matheus Dias
Foto: Matheus Dias
Foto: Matheus Dias
Foto: Matheus Dias
Foto: Matheus Dias
Foto: Matheus Dias
Foto: Mateus Falcão
Foto: Mateus Falcão
Foto: Matheus Dias
Quando eu era criança eu costumava encurtar os caminhos. Eu não andava, saltitava a maioria das vezes, saltitava como uma gazela. Gazela é um gênero de mamíferos bovídeos que reúne pequenos antílopes da África e da Ásia, de pernas longas e chifres espiralados, presentes em ambos os sexos. As gazelas vivem em manadas e têm um temperamento nervoso e assustado. Era assim como eu era chamada quando era criança. Saltitar por 2 km.
Temperamento nervoso e assustado Colar cartazes com fotos suas de quando era criança utilizando nessas fotos filtros de maquiagem. 16 cartazes. Saltitar, andar, suor, dor. Quando pensei em realizar esse programa de performance, pensei nele como um processo de cura de alguns fantasmas das violências que sofri quando era criança. Escolhi lugares que tem diretamente haver com esse processo de violência: escolas, igreja e lugares onde morei. Moro há 31 anos no mesmo bairro, morei em 5 lugares diferentes ao longo desse tempo, e esses lugares falam muito do meu processo de entendimento pessoal e da minha performatividade de gênero, e de como processos de violência durante a minha infância e adolescência são responsáveis pela minha construção pessoal.
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Temperamento nervoso e assustado Pensava em, nessa ação, trazer à tona em forma de áudio algumas das violências que esses espaços trouxeram no desenvolvimento ao longo da minha vida, gravar depoimentos que se relacionavam com esses lugares escolhidos para colocar esses lambe lambes. Decidi mudar de estratégia e fazer uma carta como dispositivo documental desses depoimentos. Após o dia da realização da ação, resolvi novamente percorrer esses espaços para ver como estavam esses cartazes e a sua grande maioria estavam rasgados. E a carta que tem no QR code do cartaz iniciava assim: “Essa carta é uma carta em processo. É uma carta que tenta falar sobre marcas na tentativa de criar processos de cura em torno da minha existência. Ela será escrita ao longo de 7 dias, ela se inicia hoje na ativação desse programa de Performance onde percorro lugares que se relacionam com a infância no meu bairro, Rodolfo Teófilo.” Não consegui mais escrevê-la. Ver esses cartazes rasgados só acentuou a percepção dessa violência, como se tudo voltasse a ser falado no meu ouvido, todos aqueles xingamentos e as situações que eu passei durante minha infância e adolescência. E volto hoje aqui a revirar essas memórias, assim como quando saí colando esses cartazes, lembro no dia da ação que passava pelos lugares e falava com a equipe que me acompanhava relatando alguns pontos de situações que eu havia passado nesses lugares.
Temperamento nervoso e assustado A diretora da escola que mandou eu ir ao banheiro com o menino que me chamava de viado, aos 9 anos de idade, para que mostrássemos um para as outras nossas genitálias. 77
A mãe de um amigo de infância que pediu que eu nunca mais fosse na casa dela brincar com o filho dela por que eu era muito feminino. A escola onde estudei da 7ª ao 3º ano, quando eu era assediado constantemente pelos porteiros e alguns professores. A casa da minha mãe, que fica junto à casa de outros familiares em uma vila, onde todos os meus primos me xingavam e eu andava ao som de “pei, pei, pei”. Essas são algumas das situações que eu passei ao longo da minha infância. Esses dias estava vendo um documentário chamado “Bicha bomba”, que traz nele as histórias de violência contra a infância e adolescência. No trailer tem diversos trechos do Estatuto da Criança e Adolescência. Queria compartilhar um trecho desse estatuto: “Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.”
Temperamento nervoso e assustado A partir disso, faço um convite a você que lê esse texto a pensar sobre a sua infância: quais as violências que marcaram ela? Hoje paro para pensar sobre esses processos durante a minha infância e vejo o quanto isso foi responsável por diversos processos ao longo da minha vida adulta. Aquela gazela de temperamento nervoso e assustado era na verdade uma criança que nunca entendia ao certo muito daquilo que era acusada e julgada. Era eu, que ao longo dos anos que se seguiram, fui sendo violentada para não ser feminina. Essa é só mais uma tentativa de fazer as pazes com a minha criança. Essa só é mais uma tentativa de ser apenas gazela. 78
“O que pode um corpo gay na cidade de Fortaleza-CE?” “O Mar não é binário, nesse sentido, é uma sopa existencial, para mim.” “Eu precisava trazer comigo uma flor amarela e me sentir cavando o asfalto...” “Elas dominarão. A começar pelas Plantas de Casa 2020.” “Essa é só mais uma tentativa de fazer as pazes com a minha criança.” “Um dos principais marcadores do projeto é o afeto.” “Cacos é algo que um dia foi um e depois passou a ser vários e múltiplos.”