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Economia Circular

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Investigação

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O IMPACTO DA ESCASSEZ DE MATÉRIAS-PRIMAS PRIMÁRIAS E NECESSIDADE DE PROMOÇÃO DA SUA SUBSTITUIÇÃO POR MATÉRIAS-PRIMAS SECUNDÁRIAS

por Nuno Lacasta, Presidente do Conselho Diretivo da Agência Portuguesa do Ambiente, e Ana Cristina Carrola, Vogal do Conselho Diretivo da Agência Portuguesa do Ambiente

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O atual modelo de crescimento económico é ainda fortemente baseado numa economia linear, dependente de uma produção permanente proveniente de materiais extraídos, tratados e processados em bens que, no final do seu ciclo de vida, são eliminados como resíduos ou emissões. Uma tendência que se quer invertida a muito curto prazo, como expressam as diversas iniciativas e medidas que se encontram em desenvolvimento. A nível mundial¹, entre 1970 e 2017, a extração global de materiais tais como biomassa, combustíveis fósseis, metais e minerais, mais do que triplicou, crescendo de 27 biliões de toneladas para 92 biliões de toneladas, impulsionada essencialmente pelo forte aumento da procura determinado pelo crescimento das economias emergentes. Desde 2000 as taxas de extração aceleraram, com uma subida percentual anual de 3.2 %. Para fazer face aos sinais de alerta evidenciados no início do século XXI em 2008 foi publicada a Iniciativa “Matérias-Primas” – Atender às Necessidades críticas para assegurar o crescimento e o emprego na Europa², que refere a importância das matérias-primas para o funcionamento sustentável das sociedades modernas. A Iniciativa é clara quando refere que o bom funcionamento da economia da União Europeia depende fortemente do acesso a preços módicos às matérias-primas minerais. Sectores como a construção, as indústrias química, automóvel ou aeroespacial, o sector da maquinaria e equipamentos, que representam um valor acrescentado total de 1 324 000 mi-

¹ SWD (2020) 100: Leading the way to a global circular economy: state of play and outlook ² COM(2008) 699 final Nuno Lacasta

lhões de euros e empregam cerca de 30 milhões de pessoas, dependem todos eles do acesso às matérias-primas. Pese embora a União Europeia (UE) detenha depósitos de matérias-primas, os mesmos encontram-se sujeitos a uma crescente exploração e extração. Por outro lado a UE encontra-se altamente dependente de importação de matéria-prima de importância estratégica e cada vez mais afetada por distorções de mercado. Sendo esta uma problemática de dimensão Global, a UE, assumindo um papel de liderança na defesa de valores ambientais, tem vindo a estabelecer estratégias orientadas para uma economia baseada numa utilização mais eficiente dos recursos, nomeadamente uma economia “mais circular”, conceito operacional no caminho para a mudança de paradigma, tendo em vista enfrentar os problemas ambientais e sociais decorrentes da globalização dos mercados e do atual modelo económico baseado numa economia linear de “extração, produção e eliminação”³. A transição para uma economia circular é urgente, uma economia em que os materiais abióticos⁴ permaneçam na cadeia de valor pelo maior tempo possível, não apenas por processos de reciclagem, mas também através da promoção de ciclos mais curtos como reutilização, reparação, remanufactura, mantendo-se, assim, o seu valor ao longo do seu ciclo de vida, aplicando-se também esta premissa aos materiais biológicos (biomassa), por via da otimização do seu valor por uma utilização em cascata⁵, reduzindo-se, desta forma, pressões de fornecimento dessa biomassa como matéria-prima primária, seja das áreas florestais, agrícolas ou recursos aquáticos. Em 2015 a Comissão Europeia adotou um ambicioso Plano de Ação da UE para a Economia Circular com o propósito de impulsionar a transição da Europa para uma economia circular⁶. O Plano de Ação estabeleceu medidas concretas e um programa de ação extremamente ambicioso que abrangeu todo o ciclo de vida dos materiais e produtos, do fabrico ao consumo, da reparação à recriação, da gestão de resíduos à reintrodução de matérias-primas secundárias na economia. Neste âmbito, e uma vez que as matérias-primas secundárias representavam, em 2015, uma pequena percentagem dos materiais utilizados na UE⁷ tornou-se fundamental a definição de medidas de gestão de resíduos, com impactos na quantidade recuperada e qualidade de materiais. Adicionalmente a Comissão propôs-se analisar obstáculos que condicionavam o mercado de maté-

³ https://eco.nomia.pt/pt/ ⁴ The circular economy and the bioeconomy: Partners in sustainability (EEA Report No 8/2018) ⁵ Utilização circular e eficiente em termos de recursos de qualquer biomassa. ⁶ Fechar o Ciclo, COM(2015) 614. 7 Com algumas exceções, como o aço ou o papel – por exemplo, o plástico representa 5%. rias-primas secundárias, nomeadamente a dificuldade de recirculação dos materiais. Em 2017 foi lançado um sistema de informação sobre matérias-primas que identifica as necessidades de conhecimento dos setores industriais estratégicos, com especial destaque para a monitorização da reciclagem de materiais relevantes e a disponibilidade de dados em setores fundamentais⁸. No entanto, a criação de mercados para as matérias-primas secundárias permaneceu e permanece um desafio em aberto, tendo como objetivo garantir que os materiais reintroduzidos na economia são economicamente viáveis e seguros para os cidadãos e para o ambiente. Em 2020 o novo Plano de Ação da UE⁹ para a Economia Circular, constitui-se como um instrumento central na estratégia de crescimento da União, o Pacto Ecológico Europeu, que visa uma economia com um impacto neutro no clima, eficiente em termos de recursos e competitiva. Novamente as matérias-primas secundárias têm lugar de destaque neste novo Plano, cujo propósito se baseia em prevenir um desfasamento entre a oferta e a procura de matérias-primas secundárias e garantir a expansão harmoniosa do setor da reciclagem na UE, propondo-se uma série de medidas entre as quais se destaca a avaliação da possibilidade de estabelecer novos critérios para o fim do estatuto de resíduo e para os subprodutos na EU, assim como analisar a viabilidade da criação de um observatório do mercado dos principais materiais secundários. Paralelamente tem vindo a ser dado um lugar de destaque também à bioeconomia a nível da UE, um modelo económico que tem como principal objetivo substituir os recursos fósseis por matérias-primas renováveis de base biológica, quer na produção de materiais, quer na produção de energia. A bioeconomia abrange todos os setores e sistemas que dependem de recursos biológicos (animais, plantas, microrganismos e biomassa derivada, incluindo resíduos orgânicos), e para ser bem sucedida, a bioeconomia europeia deve assumir um caráter sustentável e circular. Em 2012 foi publicada a Estratégia para a Bioeconomia10, sendo que em 2018 essa Estratégia foi atualizada¹¹ com o propósito de acelerar a implementação de uma Bioeconomia sustentável assim como para maximizar a contribuição para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Para além dos diversos contributos que a bioeconomia poderá ajudar a alcançar nesse sentido, esta representa também o segmento renovável

8 https://rmis.jrc.ec.europa.eu/ 9 Para uma Europa mais limpa e competitiva, COM(2020) 98 final. 10 COM(2012) 60, Inovação para um Crescimento Sustentável: Bioeconomia para a Europa, 13.2.2012. 11 COM(2018) 673, Uma bioeconomia sustentável na Europa: Reforçar as ligações entre a economia, a sociedade e o ambiente.

da economia circular, capaz de transformar os resíduos orgânicos, inorgânicos e os desperdícios em recursos valiosos, através da sua reintrodução no processo produtivo, reduzindo a produção de resíduos.

O Programa do XXII Governo Constitucional não ficou alheio a todas as temáticas anteriormente referidas, tendo definido a economia circular como parte fundamental da agenda política nacional referindo que a persistência numa economia linear – que extrai, transforma, vende e deita fora – acarreta uma pesada fatura climática, para além de intensificar os riscos derivados da escassez de água, solo arável e materiais. Portugal ainda tem um desempenho menos satisfatório na produtividade material e na redução do consumo de matérias-primas e na sua substituição por materiais recuperados. Urge tomar medidas que melhorem a eficiência dos processos e mantenham os produtos e materiais no seu valor mais elevado, ou seja, em uso. A nível de Bioeconomia está previsto o desenvolvimento de uma “Estratégia Nacional para a Bioeconomia Sustentável 2030”, partindo dos domínios de ação definidos na Estratégia Europeia para a Bioeconomia”. Em 2017 foi aprovado o Plano de Ação para a Economia Circular (PAEC)12, o qual promove o uso eficiente e a produtividade dos recursos, através de produtos, processos e modelos de negócio assentes na desmaterialização, reutilização, reciclagem e recuperação dos materiais. O PAEC tem como pilar a procura da obtenção de valor económico e utilidade dos materiais, equipamentos e bens, pelo maior tempo possível, em ciclos energizados por fontes renováveis. Os materiais são preservados, restaurados ou reintroduzidos no sistema de modo cíclico, com vantagens económicas para fornecedores e utilizadores, e vantagens ambientais decorrentes de menor extração e importação de matérias-primas, redução na produção de resíduos e redução de emissões associadas. O Plano de Ação para a Bioeconomia encontra-se presentemente em desenvolvimento pelo Ministério do Ambiente e da Ação Climática. O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) prevê uma componente de investimento destinada ao setor empresarial fomentando mudanças estruturais ao nível da promoção da Bioeconomia sustentável e visa incentivar três setores estratégicos para a economia portuguesa: o têxtil e vestuário (ITV), o calçado e a resina, com um financiamento estimado de 150 milhões de euros.

12 RCM n.º 190-A/2017, de 23 de novembro 13 Decreto-Lei n.º 102-D/2020, de 10 de dezembro O investimento engloba iniciativas como a dinamização das atividades de I&D para o aproveitamento de matérias-primas de base florestal, bem como a dinamização do setor agroindustrial para valorização de resíduos como de fonte matérias-primas. Prevê, adicionalmente, a implementação de vários pilotos industriais e agroindustriais, para comprovar o bom desempenho ambiental das novas tecnologias mais sustentáveis. Recentemente foi publicado o novo Regime Geral de Gestão de Resíduos13, que incorpora um capítulo dedicado à desclassificação de resíduos, com o objetivo de eliminar barreiras na utilização de resíduos enquanto matéria-prima e simplificar a sua reincorporação no processo produtivo, promovendo assim a utilização de matéria-prima secundária. Apesar da importância das iniciativas estratégicas e legislativas que decorrem entende-se que também a indústria deverá ter um papel ativo no que respeita à inversão da tendência de utilização de matérias-primas numa perspetiva linear sendo necessário: • Aposta na conceção de produtos mais duradouros beneficiando a reparação e rejeitando a promoção da obsolescência com o intuito de promover uma redução da utilização de recursos; • Promoção de boas práticas no que concerne a simbioses industriais assim como partilha de conhecimento promovendo que resíduos de uma empresa possam ser utilizados como matéria-prima de outra, substituindo matérias-primas primárias por matérias-primas secundárias.

Num enquadramento comunitário e nacional que se foca cada vez mais nesta temática importa que a indústria procure reinventar-se através do desenvolvimento de novos modelos de negócio assentes em tecnologias e cadeias de valor mais sustentáveis, dissociando o seu crescimento da exploração de recursos, transformando os desafios em oportunidades.

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