O Antigo Regime e a Revolução: 1750-1815

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o aNTIGo reGIMe e a revolução 1750 – 1815


SUMÁRIO Advertência................................................................................................09 i. O ANTiGO rEGiME .................................................................................23 1. O homem e o espaço – Mundo conhecido e mundo ignorado ........................ 23 1. O mundo não está unificado ................................................................23 2. As etapas do reconhecimento do mundo: das grandes descobertas à conquista do espaço; a epopeia geográfica .......................................28 3. Começa o tempo do mundo acabado ...................................................35 2. O povoamento ............................................................................................ 38 1. A dimensão demográfica ....................................................................38 2. A população e seu crescimento ............................................................41 3. A divisão entre os continentes ..............................................................42 4. O mundo: subpovoado e superpovoado ao mesmo tempo ......................47 Os meios de subsistência ...............................................................48 O emprego ..................................................................................49 3. A organização social do Antigo Regime ....................................................... 51 1. Os princípios de toda organização social .............................................51 2. As atividades profissionais ..................................................................54 a sociedade rural .................................................................................54 No oeste da Europa .......................................................................56 Europa central ..............................................................................58 Na rússia ....................................................................................59 a sociedade urbana ..............................................................................63 As cidades ...................................................................................63 Os portos .....................................................................................65 As burguesias ...............................................................................66 3. Ordens e classes ................................................................................68 as ordens, as classes ............................................................................69 a orGaniZação social e seu envelheciMento ...............................................73 A centralização monarquista ..........................................................73 As transformações da economia .....................................................75 O movimento das ideias e a evolução dos espíritos ..........................76 a reação da nobreZa ............................................................................77


4. As formas políticas do Antigo Regime .............................................................80 1. As sociedades feudais........................................................................... 83 2. As repúblicas patrícias ......................................................................... 90 Seu domínio: a civilização urbana .................................................... 90 Liberdade, colegiado, oligarquia ...................................................... 91 A situação no século xviii................................................................. 93 3. A monarquia absoluta e administrativa.................................................... 95 Predominância da monarquia........................................................... 95 Modernidade da monarquia absoluta................................................ 96 Os limites de fato do absolutismo.................................................... 100 A administração enfraquece o caráter pessoal.................................. 102 4. O despotismo esclarecido.................................................................... 102 Analogias com a monarquia absoluta.............................................. 103 Traços distintivos............................................................................ 103 A posteridade do despotismo esclarecido......................................... 108 5. O regime britânico.............................................................................. 111 Suas características ....................................................................... 112 As características comuns............................................................... 118 A experiência dos Estados Unidos................................................... 121 5. As relações internacionais .............................................................................123 1. As relações entre a Europa e os outros continentes – Os impérios coloniais.... 126 2. As relações entre Estados europeus....................................................... 127

ii. a revolução (1789-1815)................................................................... 135 Revolução Francesa ou Revolução Atlântica?.................................................. 136 1. As origens da Revolução................................................................................141 Os princípios de explicação e as séries de causas............................. 142 A Revolução, um simples acidente?.................................................. 144 A influência oculta das minorias...................................................... 145 Os fatores de ordem econômica ..................................................... 147 A organização social e a crise da sociedade.................................... 151 As causas políticas......................................................................... 152 O movimento das ideias e sua difusão na opinião pública................. 154 2. O processo revolucionário e seus saltos..........................................................156 1. Dois modos possíveis de evolução: mutação ou adaptação..................... 156


Por que a Revolução?..................................................................... 156 Uma sucessão de revoluções em cadeia........................................... 159 2. Os fatores do processo revolucionário................................................... 165 “a força das coisas”............................................................................. 165 O problema dos meios de subsistência............................................. 165 O medo........................................................................................ 167 A guerra....................................................................................... 167 A questão religiosa........................................................................ 168 as vontades e as paixões......................................................................... 170 3. A Revolução e a Europa...................................................................... 171 A primeira etapa........................................................................... 171 A segunda etapa........................................................................... 173 A terceira etapa............................................................................ 175 3. A obra da Revolução.....................................................................................177 1. O Estado........................................................................................... 180 evolução da noção de política................................................................ 180 Comparação com o Antigo Regime................................................. 180 Ampliação do campo da política..................................................... 181 Importância crescente da política.................................................... 182 as práticas........................................................................................... 183 A consulta popular pela via eleitoral................................................ 183 A deliberação pública.................................................................... 183 Os novos suportes da vida política.................................................. 184 2. A organização administrativa............................................................... 185 A obra da Assembleia Constituinte.................................................. 186 O governo revolucionário............................................................... 186 O Diretório................................................................................... 187 O Consulado................................................................................ 188 3. Religião e sociedade........................................................................... 191 A tradição.................................................................................... 191 Antes de 1789.............................................................................. 192 O papel da Revolução................................................................... 192 Após a Revolução.......................................................................... 193 4. A ordem social................................................................................... 194 A obra da Revolução..................................................................... 194 A obra do Consulado e do Império.................................................. 198 É uma sociedade burguesa?........................................................... 201 5. A nação, a guerra e as relações internacionais...................................... 204 O sentimento nacional.................................................................... 204 A guerra revolucionária.................................................................. 206


O novo sistema de relações internacionais....................................... 207 6. Conclusão.......................................................................................... 208 4. O continente americano (1783-1825).............................................................209 1. Os quatro impérios............................................................................. 210 2. O fim dos impérios francês e britânico.................................................. 213 3. A emancipação das colônias portuguesas e espanholas.......................... 216 as causas da ruptura ............................................................................ 216 a independência do brasil........................................................................ 217 as colônias espanholas: da lealdade à secessão.......................................... 219 O ponto de partida........................................................................ 219 Rumo à emancipação..................................................................... 220 O terror contrarrevolucionário......................................................... 221 A independência........................................................................... 221 conclusão.......................................................................................... 223 4. A marcha dos Estados Unidos rumo à democracia.................................. 225 Notas........................................................................................................ 235


ADVERTÊNCIA sE o costumE de advertir o leitor quando uma obra é publicada possui outra justificativa que não a mera formalidade, este é o caso do presente livro. A necessidade se impõe, junto com a cortesia. Mais que os outros, este volume guarda a empreitada das circunstâncias que antecederam sua publicação, e um simples aviso é, sem dúvida, a melhor forma de defini-lo, bem como seus objetivos e intenção. O texto que percorreremos (ou leremos) é fruto do curso realizado no Institut d’Études Politiques de Paris, ministrado aos alunos do primeiro ano, chamado preparatório. Ensino de caráter geral, sem nenhuma preocupação erudita, e cuja única ambição é introduzir o entendimento do mundo contemporâneo a um público voltado bem mais para atividades práticas, que atraído pelo conhecimento desinteressado. Convencido, de longa data, que o ensino oral e o escrito pertencem a gêneros diferenciados, e que um curso, mesmo de qualidade, não gera um bom livro, eu mesmo jamais pensei em publicar minhas anotações preparatórias das aulas. Além disso, conheço por experiência as dificuldades da síntese, sei o tempo exigido pela pesquisa, sou tomado pela necessidade de análise para sequer elaborar um projeto – quanta pretensão! – de encerrar dois séculos de história nas páginas de um livro. Graças à amizade com Michel Winock, que me convenceu de que, se o curso prestou serviço a um auditório de estudantes, sua leitura não seria de todo inútil a um público maior e desejoso 9


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de ­compreender o tempo em que vive. Se acreditamos que o entendimento do presente escapa a quem desconhece o passado e que não é possível ser contemporâneo de seu tempo sem a consciência das heranças, consentidas ou contestadas, um ensino que busca precisamente estudar o ontem em função de hoje – e mesmo de amanhã – não deveria interessar a outros e não somente a jovens estudantes? A condição é não mascarar a verdadeira origem e deixar o curso, para o bem ou para o mal, com suas características originais tanto em forma quanto em conteúdo. A oralidade foi preservada, ainda que suprimidas as repetições, necessárias em termos pedagógicos, e reduzidos os enunciados e recapitulações, insuportáveis para a leitura. Ao leitor cabe julgar se manter um texto mais direto, eco surdo de um ensino que aspira restituir vida aos acontecimentos passados, compensa de forma indulgente o relaxamento da expressão, preço quase inevitável. Os inconvenientes que poderiam resultar do gênero justificam que expliquemos as circunstâncias. O curso se destinou a alunos que estudaram história durante vários anos em instituições de segundo grau e, diferentemente de seus colegas nas universidades que lecionam história durante toda a vida, não pretendiam continuar a estudar a disciplina findo o ano.1 Este ensino devia se apoiar sobre o conhecimento adquirido, bem 1 Ao mencionar “segundo grau”, o autor se refere aos anos de ensino fundamental e médio, de acordo com a nomenclatura do sistema de ensino brasileiro. Ao citar os “colegas nas universidades”, há a intenção de explicitar que o curso por ele ministrado não pertencia à grade curricular de uma graduação em história, mas sim de outras áreas. [N.E.]

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como supor, conhecida a relação dos fatos, bastar a si mesmo. A presente obra não é um manual: não se apresenta como um resumo dos acontecimentos. Cabe ao leitor decifrar e elucidar as alusões propostas; a leitura não dispensa o conhecimento das circunstâncias. Confesso que, relendo a versão do curso, senti muitas vezes um desejo raivoso de inserir com precisão, em notas de rodapé, todas as referências que foram evocadas apenas sub-repticiamente. Desisti porque as notas ocupariam a totalidade das páginas. Seria o mesmo que fazer mais uma História Geral, que já existem e são excelentes. Melhor deixar o curso com seus traços de origem, inclusive os defeitos, a se arriscar a um resultado sem identidade. Os inconvenientes inerentes ao gênero podem ser agravados – embora talvez igualmente legitimados – pela amplitude do tema tratado, nada menos que dois séculos de história do mundo. Tal temporalidade, fixada pelo programa escolar, possui uma justificativa objetiva. Se o estudo do passado encontra, segundo o Institut d’Études Politiques, sua razão de ser pela contribuição que traz para a compreensão das situações e dos problemas, das forças e das mentalidades que formam o mundo contemporâneo, não será de bom alvitre voltar às primeiras agitações, anunciadoras das transformações revolucionárias do fim do século xviii? À Revolução Francesa de 1789, certamente, bem como à onda revolucionária que varre o mundo ocidental no último quarto do século xviii e que tem sua origem com a declaração de independência dos Estados Unidos em 1776. Entretanto, o 11


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s­ ignificado da mudança só pode ser avaliado em função da situa­ ção anterior, e a apreciação do alcance de uma revolução está ­subordinada à comparação com o regime que ela derrubou; daí a necessidade de trazer à lembrança os traços essenciais do Antigo Regime. Por isso este curso tem como ponto de partida, aproximadamente, meados do século xviii. Mais de duzentos anos, o período de vida de seis ou sete gerações, formam a matéria e a medida estendida desta síntese. Dois séculos em que a ideia de mundo, a composição das sociedades, as relações entre os povos, as condições de vida e, talvez, mesmo as mentalidades e as sensibilidades tenham mudado mais que durante os milênios anteriores. A densidade do período suscita o risco de levar o ensino à caricatura e à tendência de simplificação. Como fazer para conter a profusão dos acontecimentos nos limites necessários sem embaralhar as evoluções, reduzir o tempo, escamotear a preparação e a maturação dos fatos? A tentativa apresenta outro risco: o da sistematização a posteriori. Os historiadores, conhecendo a sequência dos fatos, sentem a grande tentação de conferir aos acontecimentos uma racionalidade que o contemporâneo era incapaz de discernir, não somente por causa da debilidade de seu olhar, mas porque a realidade histórica tal não comporta. Ao considerar do alto o desenrolar circunstancial, perdemos de vista a contingência dos encadeamentos, o imprevisto das situações. É essencial reafirmar a importância da conjuntura, de reencontrar o papel do acontecimento, a influência das individualidades, em suma, reabilitar o fortuito e restituir o lugar do singular. Tal profissão 12


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de fé não implica, de modo algum, a inexistência de certa lógica nas evoluções. É um falso dilema, dentro do qual certas escolas desejam nos encerrar: ou o reconhecimento de um determinismo histórico ordenado em direção a um fim único e definitivo ou a dissolução em uma infinidade de situações sem razão nem porquê. Para não se deixar reduzir à lógica dos nossos sistemas de pensamento e interpretação, a experiência histórica não escapa de todo à racionalidade. Devemos admitir que um movimento, inerente à história, apresenta grandes orientações e os processos pelos quais se manifesta e se efetua comportam sempre uma pluralidade de combinações possíveis. É precisamente no esforço para discernir estas linhas mestras e determinar os eixos principais da evolução ocorrida nos séculos xix e xx que este curso encontra sua razão de ser. Todo estudo histórico se situa no ponto de interseção de duas dimensões, as mesmas do entrecruzamento que definem a posição na história de todo ser e da coletividade: o tempo e o espaço. As referências cronológicas foram dispostas; o cenário geográfico deve ser estabelecido. O último terço do século xx, que assistiu à emancipação dos países colonizados, torna impossível a existência de uma história que não seja universal. Nada justifica que nosso campo de ação se limite à Europa e, menos ainda, à França. O ensino da história em instituições francesas, por longo tempo, sofreu de um ponto de vista exclusivamente ocidental, quando não de um preconceito galocêntrico, que conduzia a representação da experiência dos outros países por 13


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meio da história nacional francesa. Ora, é anacrônico projetar as preocupações de um tempo – o nosso –, com seu vocabulário e seus conceitos, sobre o passado; e é pecado mortal na história imaginar as sociedades contemporâneas sob o mesmo modelo do nosso. Semelhante erro leva a desconsiderar a diversidade dos mundos e a singularidade de cada experiência. Os efeitos são ainda mais nocivos quando o espírito do sistema, legitimando o preconceito e a preguiça intelectual, não teme erigir como dogma o postulado de que todos os países devem passar pelas mesmas etapas de uma evolução uniforme. Que possam existir vários caminhos para se chegar a uma mesma conclusão, até mesmo o mundo comunista está prestes a descobrir por meio de suas rupturas e conflitos. Esta é – ou deveria ser – uma das virtudes maiores da cultura histórica: expandir nossas limitações e aumentar nossa experiência enquanto nos torna cidadãos de outro tempo e de outros povos. Não há história verdadeira se não for ampliada às dimensões do globo. Entretanto, como veremos, a maior parte destas páginas será consagrada à história da Europa. Apesar do que foi dito, essa preponderância europeia não é arbitrária. Ela possui justificativas mais legítimas que o simples fato de ser um curso ministrado em escola francesa ou de que o nosso conhecimento do passado seja muito desigual de acordo com os continentes. É fato que, para determinados continentes como, por exemplo, a África, sua história começou há pouco a se constituir. A ­ausência de escrita e a indiferença dos historiadores europeus em relação à África antes da colonização levaram, ­consequentemente, à 14


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i­mpossibilidade de destinar aos povos africanos o espaço que a extensão de seu território, a antiguidade de seu povoamento e a diver­sidade de suas tradições merecem. A verdadeira razão é histórica: desde o início dos tempos modernos, a Europa desempenhou na história mundial um papel desproporcional ao seu tamanho. Constatação que não guarda julgamento algum sobre o valor e a riqueza das respectivas civilizações. É verdade que as civilizações chinesa e indiana eram muito refinadas e bem mais antigas que as europeias. Houve um momento em que os países europeus ainda pareciam bárbaros enquanto o extremo oriente já apresentava um alto grau de evolução. O fato é que a Europa, por meio de seu avanço tecnológico e intelectual, tomou a iniciativa e assumiu a dianteira se mostrando aos outros povos. Foram os navegantes, os conquistadores e os exploradores europeus que descobriram, desbravaram, organizaram e exploraram o universo. Este pioneirismo teve consequências incalculáveis: a Europa impôs ao resto do mundo sua organização político­-administrativa, seus códigos, suas crenças, seus modos de vida, sua cultura e seu sistema produtivo. A Europa se tornou referência, e é em relação a ela que, queiram ou não, os outros povos se definiram, seja para imitá-la e aderir ao modelo do mundo ocidental, ou, ao contrário, para combatê-lo e rejeitá-lo. Tanto os asiáticos como os africanos se afirmaram e tomaram consciência de si próprios tendo como referência o europeu, bem como as relações entre a Europa e os outros continentes traçaram um dos eixos principais da história dos últimos séculos. Daí por que, sem nos considerarmos infiéis ao princípio de que a história 15


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deve ser universal, ela será elaborada pelos eventos que afetaram a Europa em primeiro lugar – revoluções políticas ou sociais, industrialização, êxodo rural, sistemas ideológicos, despertar do sentimento nacional, afirmação do Estado nação –, podendo parecer desproporcional o espaço reservado ao continente. E será, certamente, se abstrairmos o quanto cada um desses fenômenos repercutiu, direta ou indiretamente, fora da Europa. Um último aviso se impõe para precisarmos o objetivo da empreitada, relativo à natureza dos fatos considerados. Dentro da multiplicidade de acontecimentos disponíveis à observação do historiador, uma escolha deliberada foi feita em favor do político e do social. Sem nos perdermos na busca de definições sempre difíceis e desalentadoras, diremos que por político será entendido tudo o que se relaciona, de uma forma ou de outra, com o governo dos homens, a estrutura de poder, o exercício e a conquista da autoridade, as forças constituídas para tal fim, as tensões internas e os conflitos externos. Quanto ao social, o termo sociedade é mais satisfatório que o adjetivo social, ao qual a prática conferiu um sentido restritivo, como se só houvesse uma classe social – dos operários da indústria – e uma única questão, colocada à sociedade pela existência desse proletariado. O estudo dos fatos sociais é o das sociedades, de sua organização, ou seja, do conjunto dos diversos grupos que as constituem, de suas relações, de fato e de direito, das considerações de princípio, que fixam seu lugar no conjunto, e das relações de força, de poder ou de riqueza, que as aproximam ou as opõem. 16


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Conferir atenção privilegiada aos fatos políticos e sociais implica duas convicções: que ambos possuem existência e consistência próprias, bem como dispõem de certa autonomia em relação às realidades de outra ordem. Entre as duas séries de fatos, existem estreitas relações, especialmente com a realidade econômica, à qual interessa as relações entre o homem e a natureza, a matéria, a terra, a energia e sua atividade produtiva. Se a proposta deste livro apresenta alguma originalidade, é na conjunção desses dois pressupostos que ela tem a chance de residir. Após vinte anos consagrados à tentativa de decifrar os fenômenos políticos e a investigar suas causas, minha convicção inicial foi fortalecida: a de que eles pertencem a uma ordem de realidade autônoma, possuidora de especificidade própria, e cuja explicação deve ser buscada, prioritariamente, nela mesma. O mesmo se dá com os fatos sociais, que não são simplesmente reflexo de uma realidade fundamental, pois também possuem uma existência relativamente autônoma. Afirmar a autonomia do político e do social não significa, em nenhum nível, constituí-los como setores totalmente independentes dos outros domínios da história. Não significa desconhecer a influência, muitas vezes determinante, que eles podem exercer sobre o governo das sociedades, as relações de classe, a evolução da conjuntura econômica ou o progresso técnico. Mas, cremos que, salvo exceções, os fatos econômicos, políticos e socialmente neutros – ou ambíguos – não intervêm no encadeamento dos acontecimentos políticos ou na dialética das relações sociais, exceto pela mediação de realidades intermediárias, psicológicas ou ideológicas. Em outros termos, nós não pensamos que toda realidade histórica ­conduza, em última ins17


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tância, às relações de produção, nem que todos os conflitos sociais possam ser reduzidos à luta de classes, nem que os homens se definam essencialmente pelo lugar que ocupam no processo de transformação da natureza e nem que o trabalhador seja mais decisivo que o habitante, o crente ou o cidadão. A realidade social é mais rica, variada e complexa do que a imagem simplificada proposta por todos os sistemas de explicação. Rejeitar as interpretações monistas por causa da simplificação excessiva, e afirmar, ao contrário, a pluralidade dos fatos e dos princípios de explicação, não resolve, entretanto, o problema de fundo, o das relações causais. A proposta de estudar em conjunto o político e o social coloca em toda sua amplitude e extensão a mais inextrincável dificuldade: existe correlação entre os regimes políticos e as ordens sociais? De que tipo e de que natureza? São os regimes que exprimem e traduzem, dentro da organização de poder, uma ordem social específica, e daí podemos estabelecer uma estreita correspondência entre a classificação dos tipos de governo, exercício favorito da filosofia política, e as distinções entre os tipos de sociedade? Ou os regimes reagem à evolução das estruturas sociais? Mais do que formular de maneira abstrata proposições teóricas, nos permitimos remeter o leitor ao corpo da obra: ele constatará que nossa preferência é por um sistema de relações complexas, cujo sentido não é fixado de forma irrevogável e unilateral, mas que pode, segundo as circunstâncias e as sociedades, se inverter. O tipo de causalidade mais comumente observada na história e que, em definitivo, nos parece propor a tradução menos inadequada da realidade, é o da causalidade recíproca ou circular. 18


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Quantas precauções devem ser tomadas para apresentar um panorama da história contemporânea, pensará alguém. Concordo; mas não há, e é impossível que exista, um modo de encarar a história de forma absolutamente inocente. Sem a necessidade de concluir, por isso, que a objetividade é impossível. Toda leitura do passado possui a marca de seu tempo e exprime uma personalidade. Não manda a honestidade que declaremos abertamente nossos pressupostos?

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I. O ANTIGO REGIME


I. O ANTIGO REGIME 1. O homem e o espaço – Mundo conhecido e mundo ignorado

a primEira abordagem a ser feita é retomar nosso ponto de partida há pouco mais de duzentos anos. É preciso mais imaginação que memória para representar o mundo de 1750, em função de tudo o que os homens criaram depois, desde as obras (construções e intervenções no espaço), bem como as transformações da sua estrutura mental. Como o mundo se apresentava em meados do século xviii? 1. O mundo não está unificado

Uma primeira constatação se impõe com fortes consequências: em 1750, o mundo não existe enquanto unidade, não é concebido como tal pela humanidade, ou se assim é visto por alguns espíritos, esta ideia não é veiculada como experiência. Percebemos melhor o alcance desta observação por comparação. Na realidade contemporânea, um acontecimento, por pouco interesse que suscite, é de imediato propagado, divulgado para o mundo inteiro, que se torna, ao mesmo tempo, espectador e ator. O planeta inteiro está coberto por uma rede de informações que interconecta todas as partes do mundo. Em termos de conhecimento, por meio dos canais de informação e dos meios de comunicação, o mundo se constitui como uma unidade efetiva. É necessário 23


I. O Antigo regime • O ANTIGO REGIME E A REVOLUÇÃO 1750 - 1815

apenas um breve período de tempo para que todos os homens – ou quase – sejam informados de um acontecimento. Outro exemplo: as relações econômicas interdependentes que progressivamente são estabelecidas entre os diferentes paí­ ses. A fixação dos preços dos alimentos e dos produtos industriais é determinada por dados que ultrapassam o quadro de um mercado nacional, mesmo que grande. O criador de gado na Argentina ou o agricultor da Costa do Marfim dependem dos mercados mundiais para o valor de sua remuneração, o estabelecimento de seu nível de vida, a sua possibilidade de existência e, algumas vezes, até para sua subsistência. As ­crises se propagam de um país a outro. A primeira grande crise a se apresentar de forma acachapante, e com essa característica universal, foi a que se originou em 1929 em Nova York. Em poucos anos ela afetou a vida econômica de todos os países do mundo. Não foi um caso isolado; desde então temos visto se reproduzir, ainda que com menor intensidade, fenômenos análogos. A Guerra da Coreia, em junho de 1950, desencadeou uma violenta alta de preços, da qual nenhuma economia escapou. É o sinal de que atualmente os movimentos de preços e as crises econômicas se propagam num meio relativamente homogêneo, contínuo e largamente unificado. Por este viés, percebemos a universalidade do mundo contemporâneo. O terceiro exemplo que apoia esta afirmação são os conflitos. Era possível, até o século xix, limitá-los geograficamente, e não se podia falar, ainda, de conflito mundial no período. O século xx foi, ao contrário, o século dos conflitos mundiais. 24


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