O Espaço Vazio - trecho

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Um livro sobre o teatro: moribundo, sagrado, rústico, imediato

tradução Roberto Leal Ferreira

1 ª Edição

Rio de Janeiro 2015


peter brook

o espaรงo



Prefรกcio, por Gerald Thomas

O teatro moribundo O teatro sagrado

11 17 69


O teatro rĂşstico O teatro imediato

105 157


por Gerald Thomas


F

azer teatro, montar peças não é exatamente a coisa mais difícil do mundo. Autorar, sim, é difícil. Mas o “pensar” o teatro, isso é mais difícil ainda. Pensem no seguinte: uma edificação é construída – seja um prédio ousado, uma ponte complicada, um projeto urbano que inclui toda a civilização. Bem, existem aqueles engenheiros civis que a constroem, assim como os pedreiros, os marceneiros, e toda aquela turma com seus ferros contorcidos e concretos protendidos. Mas existe, primordialmente, aquele que “bolou, concebeu” a coisa toda. Esses são os que chamamos de “gênios”. Falo de Peter Brook, obviamente. Peter Brook é o pai e a mãe e o Deus do teatro moderno, contemporâneo, pós-moderno, desconstrutivista e avant-garde. Sem ele e seu conceito de “espaço vazio”, não teríamos tido Bob Wilson, Pina Bausch, Antunes Filho, Peter Stein, Victor Garcia, Steven Berkoff, Richard Schechner, Mabou Mines ou... ou tantos outros como eu, por exemplo. Sim, ele estava numa posição muito confortável em sua Royal Shakespeare Company em Londres, plenas décadas de 60 e 70, quando algo lhe invadiu a cabeça, como um daqueles pesadelos gostosos, com gosto de “Tempestade Calibanesca” (aquela que destrói o que existe, mas aparece com gostos do novo e sabores exóticos). 10 | 11


Foi Grotowski para lá, Grotowski para cá, foi Jan Kott para lá e para cá e foram os princípios de Artaud, mas foi, sobretudo, a ideia de “um espaço vazio”, despojado, expondo o campo nu e cru, com seus andaimes à mostra e sem retoques ou maquilagem, que criou, de fato, o Espaço Vazio. Sim, foi o fim dessa ideia toda de encenação pomposa e farsesca (da qual Brook já era um consagrado mestre), que cairia como uma coluna de gesso falso e sobre a qual os novos valores, simples e diretos, prevaleceriam. “Menos, menos”, ele gritava ou sussurrava quando um ator ia “além” com histrionismos ou quando a emoção ficava fake, assim como um cenário brega de Bollywood. “Menos,menos”. Calmamente “menos”. Ironicamente, esse “menos”, virou o nosso “mais” (less is more) e chegou à nossa essência! Tive o privilégio de assistir aos ensaios de Sonhos de Uma Noite de Verão, no Aldwych Theatre, Londres, em 1971, ainda com a Shakespeare Company. Eu ficava olhando Brook no palco em pleno dilema, em plena crise sobre como contornar uma pergunta vinda de um ator “careta”, daquela nos moldes de “mas de onde tiro essa emoção, Peter?”. Eu o via, andando para lá e para cá no palco, tentando explicar o conceito de um espaço vazio ou de um exercício físico de Grotowski a esse ator. Nem sempre o resultado era feliz. Mas foi através de Robert Langdon Lloyd (o Puck da produção) que Brook achou sua resposta. Ironicamente, eu estaria (13 anos depois desse evento) dirigindo o prefácio


próprio Lloyd na minha première de All Strange Away, de Samuel Beckett, em Nova York. Que pulo! O Espaço Vazio é um “tapete no chão e uma ideia na cabeça”, uma onda no mar, uma estrela em formação. Os ingleses não tiveram muita paciência, mas os franceses, em especial o Ministro da Cultura da época, Jack Lang, convidou Peter Brook a se mudar para Paris, ofereceu-lhe um velho espaço abandonado – em frente à estação de trem principal, a Gare Du Nord, e um orçamento que faria com que os planos metafísicos do teatro de Brook decolassem. Brook se tornou um “ex-britânico” e, daí em diante, viria a ser a principal atração teatral de Paris. No teatro Bouffes du Nord, nessa “ruína de espaço”, Brook conseguiu “apagar” os cantos e coxias do teatro formal e lá constituiu a sua ideia de teatro internacional: vieram atores do mundo inteiro, da África, da Ásia, da Lua e de alguns meteoros interessantes. E, com pouco mais que um tapete persa no chão, um pouco de terra e dos ensinamentos do místico armênio George Gurdjieff, Brook mergulhou nos contos mais difíceis (como a encenação “não encenada” de Mahabharata – nove horas de duração –, onde alguém, um ator, simplesmente olha a plateia, abre um livro e conta uma história. Foi assim com suas adaptações de Tchekhov, de Bizet, de Shakespeare e de Beckett. Este livro, O Espaço Vazio, foi a nossa bíblia, nosso guia dos anos 70. 12 | 13


Cada página traz uma revelação e uma revolução a respeito do que seria o “palco puro” e o espaço preenchido com ideias metafísicas (em vez de monstruosos cenários que só adornam, enfeitam tudo e em nada contribuem). O Espaço Vazio de Brook foi como a ideia inicial que, no mundo do rock, passou-se a chamar de unplugged. Grupos como Nirvana, Pearl Jam, e mesmo algumas superbandas, entenderam que os efeitos estavam se tornando defeitos e que uma limpa, uma chuva sobre a poesia da arte, era necessária, assim como o quadro de Max Ernst “Europa depois da Chuva”. O livro veio na hora em que o resto da contracultura do mundo estava em pleno vigor, em plena limpa, em plena chuva. Se você é um encenador, autor ou mero espectador de teatro, este livro visionário de Peter Brook é um must. Por quê? Porque sem ele, você ainda vive naquela época triste e boba que não entende que Peter Pan voa através de um complicado mecanismo de alavancas e fios, mas que, na verdade, a fábula do menino herói pode ser muito melhor contada por alguém que o olha nos olhos – recriando em você a ideia do espaço que esse menino deveria ocupar. O Espaço Vazio está em nossas cabeças. E o bom teatro está na nossa capacidade de “imaginar o inimaginável”. E este livro de Peter Brook é um daqueles preciosos que você visita de tempos em tempos, assim como eu mesmo o faço, quando eu o procuro em minha prateleira e vejo que ele mudou de lugar por conta própria: assim como a nossa galáxia e o nosso organismo. Este livro é sinônimo prefácio


do nosso tempo-espaço e é o que eu chamo de uma masterpiece do século xx que mudou, para sempre, a história. Wengen, Suíça, 17 de janeiro de 2015

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o teatro


P

osso pegar um espaço vazio e chamá-lo de um palco deserto. Um homem caminha por este espaço vazio enquanto outra pessoa o observa, e isso é tudo de que se precisa para dar início a um ato teatral. No entanto, quando falamos de teatro, não é exatamente isso que temos em mente. Cortinas vermelhas, holofotes, versos brancos, gargalhadas, escuridão, tudo se sobrepõe de forma confusa numa imagem desordenada, coberta por uma palavra genérica. Dizemos que o cinema está matando o teatro, e com essa sentença nos referimos ao teatro tal como era quando o cinema nasceu, um teatro de bilheteria, com hall de entrada, assentos dobráveis, ribalta, mudanças de cenário, intervalos, música, como se o teatro fosse por definição isso e pouco mais. Tentarei dividir a palavra de quatro maneiras e distinguir quatro significados diferentes – e, assim, falarei de um Teatro Moribundo, de um Teatro Sagrado, de um Teatro Rústico e de um Teatro Imediato. Ora esses quatro teatros existem realmente, lado a lado um do outro, em Varsóvia ou na Polônia. Ora ficam centenas de quilômetros distantes um do outro, o Sagrado no West End de Londres e o Rústico na Times Square de Nova York; e ora são metafóricos: dois deles se confundindo num único espetáculo, dentro de um único ato. E às vezes, num só momento, os quatro, Sagrado, Rústico, Imediato e Moribundo, se entrelaçam. 16 | 17


O Teatro Moribundo pode, à primeira vista, ser considerado óbvio, pois significa mau teatro. Como essa é a forma de teatro mais frequente e está muito ligada ao tão vilipendiado e menosprezado teatro comercial, pode parecer perda de tempo criticá-la mais uma vez. Mas só se considerarmos que essa característica moribunda é enganosa e pode acontecer em qualquer lugar que teremos consciência da dimensão do problema. A condição do Teatro Moribundo é, no mínimo, razoavelmente óbvia. No mundo inteiro, o público vem diminuindo. Aparecem ocasionalmente novos movimentos, novos bons escritores etc., mas, de um modo geral, o teatro não eleva ou instrui e pouco ou nada diverte. Ele muitas vezes chegou a ser chamado de prostituta, no sentido de que a sua arte é impura, mas isso é verdade em outro sentido – as prostitutas pegam o dinheiro e em seguida oferecem um pouco de prazer. A crise da Broadway, a crise de Paris, a crise do West End são a mesma: não precisamos dos funcionários da bilheteria para saber que o teatro se tornou um negócio moribundo, e o público tem farejado isso. Na realidade, se o público realmente exigisse o autêntico entretenimento de que tantas vezes fala, estaríamos em maus lençóis para saber por onde começar. Não existe um verdadeiro teatro de diversão, e não é só a comédia banal e o mau musical que não valem o custo do ingresso – o Teatro Moribundo se insinua perigosamente na grande ópera e na tragédia, nas peças de Molière e de Brecht. Mas em nenhum lugar, é claro, o Teatro o teatro moribundo


Moribundo se estabelece de forma tão firme, confortável e dissimulada como nas obras de Shakespeare. Ele tem facilidade para se apoderar de Shakespeare. Vemos suas peças representadas por bons atores, no que parece ser a maneira correta – elas surgem vivas e coloridas, há música e todos estão muito bem vestidos, como deve ser no mais clássico dos teatros. No entanto, secretamente, as achamos terrivelmente tediosas – e do fundo do coração culpamos Shakespeare, o próprio teatro ou até a nós mesmos. Para piorar, sempre há um espectador moribundo, que, por motivos especiais, adora a falta de intensidade e até mesmo a falta de diversão, assim como o erudito que sai sorridente das representações rotineiras dos clássicos, pois nada nelas o impediu de testar de novo e de confirmar para si mesmo as suas teorias prediletas, enquanto sussurrava seus versos favoritos. Intimamente, ele quer, com sinceridade, um teatro mais nobre que a vida, e confunde uma espécie de satisfação intelectual com a experiência autêntica pela qual anseia. Infelizmente, ele empresta o peso de sua autoridade à obtusidade e, com isso, o Teatro Moribundo segue em frente. Todos os que assistem aos verdadeiros sucessos quando surgem, a cada ano, verão um fenômeno muito curioso. Esperamos que o chamado sucesso venha a ser mais vivaz, veloz, brilhante do que o fracasso – mas nem sempre é o caso. Em quase todas as temporadas, na maioria das cidades amantes do teatro, há um grande sucesso que desafia essas regras; uma peça que é bem-sucedida, não apesar, 18 | 19


mas por causa da estupidez. Afinal, associamos a cultura com certo senso de dever; figurinos históricos e longas falas com a sensação de enfado: assim, inversamente, o grau correto de tédio é uma garantia reconfortante de que o evento teve seu valor. A dosagem, evidentemente, se faz tão sutil, que é impossível estabelecer a fórmula exata – grande demais, e o público é arrancado de suas poltronas; pequena demais, e ele pode achar o tema desagradável e excessivamente intenso. Todavia, os autores medíocres parecem encontrar infalivelmente a dose exata – e perpetuam o Teatro Moribundo com sucessos estúpidos, universalmente elogiados. O público anseia por algo, no teatro, que possa chamar de “melhor” que a vida, e por esta razão está exposto a confundir a cultura, ou os floreios da cultura, com algo que não conhece, mas sente obscuramente poder existir – assim, tragicamente, elevando algo ruim à condição de sucesso, nada mais faz que se autoiludir. Já que falamos de moribundo, observemos que a diferença entre a vida e a morte, tão cristalina no homem, é algo obscura em outros campos. Um médico pode dizer de imediato, entre o indício de vida e um inútil saco de ossos, que a vida deixou de existir; mas estamos menos acostumados a observar como uma ideia, uma atitude ou uma forma pode passar da vitalidade à ruína. É difícil definir, mas uma criança consegue detectar isso. Aqui vai um exemplo. Na França, há duas maneiras moribundas de representar uma tragédia clássica. Uma é tradicional, e envolve o uso de um tom de voz especial, um jeito espeo teatro moribundo


cial, uma aparência nobre e um grande esforço musical. A outra maneira nada mais é que uma versão morna da mesma coisa. Os gestos imperiais e os valores da realeza vêm desaparecendo rapidamente do nosso cotidiano e, assim, cada nova geração considera as grandes maneiras cada vez mais vazias, cada vez mais sem sentido. Isso leva o jovem ator a uma furiosa e impaciente busca do que chama de verdade. Quer representar seu verso de modo mais realista, fazer com que soe como uma fala autenticamente real, mas descobre que o formalismo da escrita é tão rígido, que resiste a esse tipo de abordagem. É obrigado a estabelecer um incômodo compromisso, que não é nem agradável como a fala normal, nem desafiadoramente histriônico, à maneira do que chamamos de canastrão. Assim, sua representação é fraca e, já que o canastrão é forte, ele é lembrado com certa saudade. Inevitavelmente, alguém exige que a tragédia seja representada mais uma vez “do jeito como foi escrita”. Isso é muito razoável, mas infelizmente tudo o que a palavra impressa nos pode dizer é o que está escrito no papel, não como era o antigamente trazido de volta à vida. Não há gravações, nem vídeos – só especialistas, mas, evidentemente, nenhum deles tem um conhecimento de primeira mão. Todas as relíquias autênticas desapareceram – só sobreviveram algumas imitações, na forma de atores tradicionais, que continuam a representar da maneira tradicional, tirando sua inspiração não de fontes reais, mas de fontes imaginárias, como a memória de uma impressão deixada por um 20 | 21


ator mais velho – impressão que, por sua vez, não passa da recordação do estilo de um predecessor. Vi, certa vez, um ensaio da Comédie Française – um ator muito jovem se posicionava na frente de um ator muito velho, e falava e fazia a mímica do papel com ele, como um reflexo no espelho. Isso não deve ser confundido com a grande tradição, por exemplo, dos atores Nô, que transmitem seu conhecimento oralmente, de pai para filho. Ali, o que é comunicado é um sentido – e o sentido jamais pertence ao passado. Ele pode ser testado na experiência atual de cada homem. Mas imitar a exterioridade da representação só perpetua a maneira – algo absolutamente difícil de relacionar com alguma coisa. Também, em relação a Shakespeare, ouvimos ou lemos o mesmo conselho – “Represente o que está escrito”. Mas o que está escrito? Alguns signos no papel. As palavras de Shakespeare são registros das palavras que ele queria que fossem pronunciadas, palavras que saíam como som da boca do povo, em que altura, pausa, ritmo e gestos compunham seu significado. A palavra não começa como palavra – é o produto final que começa como um impulso, estimulado pela postura e pelo comportamento que ditam a necessidade de expressão. Esse processo ocorre dentro do dramaturgo, e é repetido interiormente pelo ator. Ambos podem estar conscientes só das palavras, mas tanto para o autor como, mais tarde, para o ator, a palavra é uma pequena parte visível de uma gigantesca formação invisível. Alguns autores tentam deixar claro o que querem dizer o teatro moribundo


e quais são suas intenções, com diretrizes e explicações de palco, mas não podemos deixar de nos impressionar com o fato de que os melhores dramaturgos são os que menos se explicam. Reconhecem que mais indicações muito provavelmente serão inúteis, e que o único jeito de encontrar o modo certo de falar uma palavra é por meio de um processo paralelo ao processo criativo original. Isto não pode ser evitado ou simplificado. Infelizmente, quando um amante fala ou um rei decreta, apressamo-nos em rotulá-los: o amante é “romântico”, o rei é “nobre” – e, sem nos darmos conta, estamos falando do amor romântico e da nobreza régia, ou do caráter principesco, como se fossem coisas que podemos pegar com as mãos e esperar que os atores observem. Mas essas coisas não são substâncias e não existem. Se as procuramos, o melhor que podemos fazer é criar reconstruções imaginárias a partir de livros e pinturas. Se pedirmos a um ator que represente em “estilo romântico”, ele valentemente fará uma tentativa, achando que sabe o que queremos dizer. Em que pode ele, de fato, basear-se? Palpite, imaginação e uma caderneta de recordações teatrais, que, tudo somado, lhe darão um vago “romantismo” que se misturará com uma imitação disfarçada do ator mais velho, que ele tanto admira. Se se basear em suas próprias experiências, o resultado pode não bater com o texto; se só representar o que julga ser o texto, será imitativo e convencional. De qualquer modo, o resultado é um compromisso: na maioria das vezes, não convincente. 22 | 23


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