A T O S E A R T E F A T O S além do estético e do semântico
• Héctor Oscar Arrese Igor (CONICET/Argentina)
Flávio Miguel de Oliveira Zimmermann (UFFS/Brasil)
Lucio Lourenço Prado (UNESP/Brasil)
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Marilia Mello Pisani (UFABC/Brasil)
Cleber Duarte Coelho (UFSC/Brasil)
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Renato Duarte Fonseca (UFRGS/Brasil)
Rogério Fabianne Saucedo Corrêa (UFPE/Brasil)
Gislene Vale dos Santos (UFBA/Brasil)
Joelma Marques de Carvalho (UFC/Brasil)
Maicon Reus Engler (UFPR/Brasil)
Editorial Aline Medeiros Ramos (UQAM e UQTR/Canadá)
Leandro Marcelo Cisneros (UNIFEBE/Brasil)
editorial: Charles Feldhaus (UEL/Brasil)
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Jean Rodrigues Siqueira (UNIFAI/Brasil)
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• Gilmar Evandro Szczepanik (UNICENTRO/Brasil)
• Arthur Meucci (UFV/Brasil)
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• Luís Felipe Bellintani Ribeiro (UFF/Brasil)
Alexandre Lima (IFC/Brasil)
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• Marciano Adílio Spica (UNICENTRO/Brasil)
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José Cláudio Morelli Matos (UDESC/Brasil)
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Joedson Marcos Silva (UFMA/Brasil)
Fernando Mauricio da Silva (FMP/Brasil)
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• Vanessa Furtado Fontana (UNIOESTE/Brasil)
Ernesto Maria Giusti (UNICENTRO/Brasil)
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• Elizia Cristina Ferreira (UNILAB/Brasil)
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Caroline Izidoro Marim (PUC RS/Brasil)
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• Gilson Luís Voloski (UFFS/Brasil)
• Renzo Llorente (Saint Louis University/Espanha)
Halina Macedo Leal (FSL FURB/Brasil)
Comitê
Paulo Roberto Monteiro de Araujo (Mackenzie/Brasil)
APOLODORO VIRTUAL EDIÇÕES
SÉRIE “FILOSOFIA, ARTE E EDUCAÇÃO”
Charles Feldhaus (UEL/Brasil)
Direção
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Editor da série: Evandro Oliveira de Brito (UNICENTRO/Brasil)
Celso R. Braida A T O S E A R T E F A T O S além do estético e do semântico Apolodoro Virtual Edições 2022
APOLODORO VIRTUAL EDIÇÕES Coordenadora Administrativa: Simone Gonçales Capa: “Fotocomposição de C. R. Braida sobre escultura do Mestre pernambucano José Alves de Olinda.” Diagramação e revisão do autor Concepção da obra Núcleo de Investigações Metafísicas (NIM ConcepçãoUFSC)daSérie Grupo de Pesquisa “Filosofia, Arte e Educação” (MEN/UFSC) Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com o ISBD B814a Braida, Celso R. Atos e Artefatos: além do estético e do semântico / Celso R. Braida. Guarapuava, PR: Apolodoro Virtual Edições, 2022 280p.IncluiISBNbibliografia9786588619 26 1 (Físico) ISBN 978 65 88619 27 8 (Digital) 1. Filosofia brasileira. 2. Filosofia da arte. 3. Arte I. Título II. Autor CDD 701 CDU 7.01 Atribuição: Uso Não Comercial Vedada a Criação de Obras Derivadas APOLODORO VIRTUAL EDIÇÕES editora@apolodorovirtual.com.brwww.apolodorovirtual.com.br
Noeli Ramme in memoriam Há uma descontinuidade que é a vida. C. L.
Sumário Prólogo .......................................................................................13 Além do estético e do semântico..................................25 Dos artefatos aos atos artísticos..........................................................................26 Proposições para ação...........................................................................................29 O sentido prime da ação.......................................................................................33 O ato do atuador ...................................................................................................37 A dança e o embaraço da filosofia......................................................................41 O natural e o artefatual .....................................................47 A matriz da artificialidade 48 Modelos ontológicos de fundo 51 O primado das atividades 56 A historicidade poligênica dos artefatos 59 O sentido dos artefatos .....................................................67 Multirealizabilidade e ação ...................................................................................68 Reconhecendo a existência de artefatos 70 O que caracteriza algo como um artefato..........................................................73 Analítica do artefatual ...........................................................................................76 A identidade dos artefatos....................................................................................87 Agência e processos geracionais..........................................................................91 A efetividade dos artefatos .............................................95 LibertaçãoDiferenciaçãoPerformaçãoTransiçãoAgênciaPlasmabilidadeHermenêutica.........................................................................................................95........................................................................................................97..................................................................................................................100...............................................................................................................103.........................................................................................................108.......................................................................................................111.............................................................................................................114 A arte da dança .................................................................... 117 Estético e semântico 118 A arte da dança como problema 119 Três teorias 120 O acontecimento da dança 123 A composição do corpo 125 A insurgência do corpo dançante 127 Atos de ficção........................................................................ 133 A dança da filosofia.............................................................................................137 Exercício da ficção ..............................................................................................142 A variedade do artístico .................................................. 145 A arte e o artístico ...............................................................................................152 Gênese, formação e reiteração ..........................................................................157
Voz sem corpo – Letra sem voz................................... 165 A inscrição muda.................................................................................................168 A figura dramática 170 Além do Inscriçãohomem..................................................................................................174................................................................................................................179 Pluralidade policêntrica................................................... 181 Indiferença ontológica ........................................................................................181 Além do universalismo abstrato........................................................................184 Experimentação e performação ........................................................................187 Multirealizabilidade .............................................................................................189 Insubstituibilidade ...............................................................................................193 Modos de se fazer................................................................................................195 Exercícios experimentais....................................................................................199 Indexação e Experimentaçãoenraizamento..................................................................................201antropológica..........................................................................206 Artes, artefatos e metafísica ........................................209 As ficções que fazem ver 210 O domínio do artefatual 211 O artifício da filosofia 213 Artes de teatro 215 Voz dramática Linguagem de Máquina 217 Vida liberta e emancipada 218 O fim da arte é a filosofia?.............................................227 O avanço do pluralismo .....................................................................................228 Obras de arte e mundos .....................................................................................231 Evolução e transformação .................................................................................234 Historicidade e temporalidade...........................................................................236 Da mutação à multiplicação...............................................................................239 Realização múltipla e diferença ontológica......................................................242 Pluralismo antropológico e político..................................................................244 Modulações da agência e transição ontológica ..247 Arte como performance .....................................................................................248 Modulação da ação e da interação ....................................................................250 Experimentação transformadora.......................................................................252 Efetuações ontológicas.......................................................................................255 Transição do humano .........................................................................................259 Seres da dança 263 Referências artísticas e técnicas ................................ 271 Referências bibliográficas..............................................275
O que se visa assim é pensar as obras de arte não mais como objetos, mas antes como provocadores de ação e de interação que solicitam antes de tudo agentes ativos e cooperativos. Desse modo, evita se, por um lado, o retorno às metafísicas e às ontologias do ser e da essência em filosofia da arte, vistas desde aí como reações excessivas
Atos e Artefatos 13 1 PRÓLOGO
Ser absolutamente eu livre, foi o conselho único dos mestres; e longe de insurrecionar se contra eles, abracei de todo o coração os seus preceitos. (Sousândrade) Os liames que fazem desses textos uma unidade são quatro; primeiro, o propósito de repensar os termos pelos quais as artes e as obras de arte são pensadas e apresentadas nos contextos filosóficos; segundo, a consideração da arte da dança como o fio de prumo pelo qual as teorizações filosóficas são avaliadas; terceiro, o objetivo de contestar as apreensões estéticas e hermenêuticas, a partir de uma abordagem interagencial, performática e performativa da arte; por fim, a consideração do artefatual e do ficcional enquanto efeitos de atos e enquanto momentos constitutivos do artístico. Esta abordagem se articula em torno da tese de que o artístico está diretamente fundado nos conceitos de ação, enquanto conceito primário incontornável e irredutível, de campo de ação ou situação interativa, e de interagência, a saber, de uma agência que se perfaz pela interação cooperativa de agências e ações de vários agentes. Artes e obras de arte são então pensadas como fundadas na interagência e na ação.
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Atos e Artefatos à estetização moderna e, simultaneamente, recusa se a apreensão semiótica e linguística, sem, contudo, se recair no agnosticismo. Nessas reações antiestéticas, ou inestéticas, preservam se dois equívocos básicos, a saber, primeiro, a suposição de que o artístico é uma propriedade ou relação de objetos e artefatos particulares; segundo, a exclusão da agência e das ações do campo da arte. Estes dois equívocos implicam conceber as artes, as obras de arte e o artístico em termos de objetos, propriedades e relações, tendo como referência o conceito de substância autônoma, enquanto um modo de se contrapor às concepções em termos de estados mentais, expressões, emoções e significações, o qual a arte sempre apenas cumpre de modo1.deficitário.Aalternativa que permanece no fundo desses debates consiste em reduzir o artístico à forma, seja ela pensada como forma pura ou como forma representativa, semântica ou estética. De todo modo, se o suporte artístico é um objeto concreto, um estado mental, intencional ou semântico, ou se é a pura forma ou simplesmente a matéria bruta, a suposição objetal permanece intacta. A apreensão filosófica do artístico o toma como um dado que se dá sob a forma de objetos particulares, e assim elimina da consideração e da apreciação os cursos e campos de ação nos quais o artístico, as artes e as obras de arte são partícipes na consecução de ações, ou seja, exclui de antemão a própria ação e agência de artistas e experienciadores enquanto agentes de atividades artísticas. Esta exclusão, necessária para se isolar o objeto no seu puro dar se, equivale àquela abstração linguística que quer compreender o sentido e o significado de letras e palavras tomadas isoladamente. A arte da dança e a dança como ação artística não cabem nesses esquemas. Primeiro, por não produzirem um objeto ou artefato que restaria aí, isolado dos atos, dos agentes e dos campos de ação nos quais e pelos quais uma dança tem consistência; segundo, por não permitirem a separação dos corpos, o da obra e o do artista, condição sine qua non da consideração ascética abstrativa da filosofia
constituição
2. Além disso, um outro propósito é fazer com que a reflexão sobre os artefatos faça parte da agenda filosófica, tanto quanto o é a reflexão sobre a arte e sobre a ciência, mas também questionar certas teorias que fazem uma discussão muito rasteira, meramente conceitual, sem sequer descrever o lugar e o papel dos artefatos na do mundo, não apenas o mundo “humano” ou “fenomênico”, pois também a natureza efetiva é alterada com a presença de um artefato. O ponto decisivo, algo que desenvolvi no artigo “Agência, performatividade e condição artefactual”, está em compreender que os conceitos de intencionalidade e de mentalidade, assim como o de linguisticidade, são afetados pela introdução de técnicas e artefatos, de modo que o mundo e o ser no mundo se alteram também. A distinção clássica entre “natural” e “artificial”, e também entre “subjetivo” e “objetivo”, ou ainda entre “natureza” e “espírito”, já não se sustenta teórica e praticamente. Não é apenas o mundo humano, mas a própria natureza que está em transformação
Atos e Artefatos 15 tradicional. Esta dupla inadequação da arte da dança intima e intimida a consideração filosófica, o que se mostra nos persistentes juízos negativos e até excludentes, de Aristóteles a Aquino, de Kant a Badiou. Estes juízos revelam, quando analisados sob uma hermenêutica de suspeição, uma persistente marcação sintomática de um preconceito, o qual nasce da impossibilidade de se manter o distanciamento que a filosofia exige de si mesma para se garantir um lugar privilegiado para ali se efetivar como pensamento puro. Todavia, a arte da dança é sem obra, tal como a filosofia é sem objeto. A dança, enquanto arte, não representa nada, nem sequer o nada e menos ainda o ser, e nisso se confunde com a filosofia, quando esta não se auto engana como ciência. Ambas, a dança e a filosofia, fazem sentido e assim liberam o agir e o pensar. Porém, daí o embaraço da filosofia, a dança faz sentido sem renegar ou esconder o corpo, enquanto aquela, as mais das vezes, abstrai se do corpo, abstrai o próprio corpo, sua agência e efetividade, para se refugiar no nephem ilusório do pensamento abstrato.
16 Atos e Artefatos nos seus fundamentos. Pois, de qualquer modo, um universo marcado pela presença de um artefato, técnico ou artístico, implica uma outra natureza e também um outro espírito. A distinção entre artefatos instrumentais e artefatos artísticos também precisa ser revisada, pois muito da arte contemporânea se faz por miscigenação e pela instalação de eventos e situações híbridas. E, se o dualismo separacionista for recusado, a obra de arte e o objeto técnico que a perfaz não são mais separáveis. A distinção entre natureza, técnica e arte é arbitrária, se for posta como indicando âmbitos estanques e independentes. As técnicas e as artes contemporâneas operam por transposição e transformação nos fundamentos das separações clássicas. A minha estratégia foi a de remeter estas distinções a um campo de ação instaurado por uma atividade ou ação, a qual sempre está enraizada num complexo de outras atividades, processos, materiais, hábitos, cognições etc. No plano epistêmico, as entidades naturais se distinguem das entidades artefatuais desde uma projeção já ela mesma mundana e artificial. Porém, as entidades naturais, assim como as entidades artefatuais, no plano prático efetivo, as mais das vezes, não se distinguem, como é o caso de uma usina hidrelétrica no rio ou de uma vacina no corpo. Os seus efeitos e suas atividades não dependem mais de uma projeção de mundo de um sujeito epistêmico e até mesmo de um agente prático. A atividade dessas entidades se enraíza e se encadeia com as atividades naturais sem nenhuma cisão. Apenas no contexto de uma ação em curso é que se deixam fixar os seus limites. Por isso, distinguimos uma abordagem fenomenológica e hermenêutica, que opera a cisão entre o possível e o real, pela qual o sentido das identidades das entidades é sempre para uma consciência interpretante, ou seja, onde o sentido depende de uma correlação com base em uma diferença categorial, e uma abordagem propriamente ontológica, que opera a cisão entre o virtual e o efetivo, pela qual o sentido tanto das identidades quanto das distinções são sempre da ordem do efeitual, e esse sentido sempre é uma correlação de efeitos a efeitos, e não de fenômenos a fenômenos, ou de
3.circundante.Afilosofiada
Atos e Artefatos 17 sentido a significados, como é o caso nas abordagens fenomenológicas e hermenêuticas. Em termos concretos, o artefato que é a vacina, ou a hidrelétrica, não produz seus efeitos nos planos fenomênicos e semânticos, ou no mundo, sem que esteja operando efetivamente no plano mesmo da materialidade e da atualidade, ou seja, no plano da natureza. Não é preciso ser realista para perceber o idealismo fenomenológico e hermenêutico que circunscreve a análise apenas ao domínio de referência do que é dado para um percipiente falante. O choque que nosso corpo leva e que o pode matar não é um efeito de sentido fenomênico, não é uma possibilidade de nossa projeção mundana, nem de cálculo ou interpretação, mas é sim um efeito material efetivo, embora a corrente elétrica que o provoca seja um artifício produto de uma armação teórica, ambos artefatuais e elaborações linguístico formais que agora fazem parte efetiva da natureza
arte, típica desde Hume e Kant, pensa as artes e as obras de arte da perspectiva do intérprete e do espectador. As obras de arte são representações, signos, símbolos, imagens e objetos estéticos. Todavia, na sua base as artes são atividades, ações e atos, e as obras de arte são agentes, efetuadores e atuadores, no plano mesmo da realidade mundana e natural, elas atuam e fazem efeitos enquanto partícipes de atividades e cursos de ações. A abstração do objeto estético, ou do objeto semântico, elide a própria agência da arte e ainda mais da obra de arte. A raiz dessa apreensão redutora está na suposição ontológica comum às filosofias da arte, clássicas e modernas, pela qual as entidades e as atividades mundanas são passivas quanto ao próprio ser e existir, embutida nas teorias do ser de fundo teológico. As atividades, ações e atuações, de sejam lá quais forem as entidades intramundanas, são assim pensadas como ontologicamente ineficazes. As artes e as obras de arte desse modo são postas no plano da simulação e da ilusão, assim também as ciências e as técnicas. Ontologicamente, as ações artísticas e técnicas não seriam fatores efetivos. Esta pressuposição, compartilhada também por aqueles que recusam a filosofia, admitindo apenas a
18 Atos e Artefatos eficiência natural ou teológica, determina a passividade ontológica das entidades intramundanas, inclusive do humano.
A situação atual do pensamento reflexivo se estabelece pela recusa desse passivismo ontológico e pelo reconhecimento da efetividade de diferentes agências. O ser das coisas e as próprias coisas mudam, transitam, e isso as mais das vezes é o efeito da agência e da interagência de agentes e atuadores intramundanos. Que essa nova consciência esteja em consonância com o reconhecimento da crise ambiental e com as ciências da complexidade, não é por acaso, pois este reconhecimento e este tipo de ciência apenas se tornaram prementes pela compreensão da ação e dos efeitos de artefatos, artifícios e intervenções técnicas na alteração e transformação da natureza. O que aí se mostrou foi a própria alterabilidade da natureza e, por inversão do olhar, a efetividade da atividade artefatual. A crise ambiental, sobretudo a alteração e a extinção de biomas e de espécies vivas, todavia, apenas confirma a matriz do pensamento contemporâneo, proveniente de Darwin e Lavoisier, cujo cerne está na ideia de que nada segura a consistência e a identidade das entidades no seu ser assim ou de outro modo. As artes e as técnicas apenas retomam e estilizam essa dança que vem de longe. As artes, as técnicas, os esportes, as instituições, as culturas, naquilo em que não são natureza, implicam algum grau de espaço de ação por sobre restrições e constrições autoimpostas por agentes que prezam o livre agir, ou seja, que se comprazem em não ser mais naturais e ainda assim ser espontâneos tanto quanto folhas ao vento e pássaros no ar. Todas as artes e técnicas, cuja maestria exige a atenção ao material e a regras, nos liberam da natureza e nos emancipam para a vida artefatual. Uma vez incorporada esta consciência, a revisão dos conceitos e categorias tradicionais da filosofia da arte se torna impositiva. Com efeito, as artes e as obras de arte têm sido pensadas a partir da categoria de objeto particular, de obra ou artefato isolado. As artes, nesse modelo, são formas de ação cuja realização se completa na apresentação de um objeto particular, como uma pintura, uma escultura ou mesmo um texto. Até mesmo as artes de execução são
Atos e Artefatos 19 pensadas como ações que se completam ao apresentarem um objeto com contornos espaçotemporais bem delimitados. As práticas de nomear, identificar e colecionar obras de arte parecem exigir isto, embora desse modo muitas ações e eventos de arte tenham de ser excluídas como ainda não ou não mais arte. Se muitos teóricos abandonaram as categorias de obra e de objeto, ao fazerem a distinção entre artefato e obra de arte, ou ao recusarem que a identidade da obra de arte dependa do objeto material que a implementa, isso foi apenas para reinstalar as artes e as obras de arte num plano abstrato e assim reafirmar a categoria de objeto particular como categoria ontológica das obras de arte e como finalidade das ações artísticas. De fato, conceitos tais como forma, forma representativa, forma significativa, unidade de sentido, noema, configuração de sentido, bloco de sensações, estado mental, objeto estético e análogos, que supostamente constituem a obra de arte, enquanto resultado da ação artística e sobretudo enquanto objeto da experiência estética e artística, mostram se sob um olhar atento como versões abstratas e abstraídas da obra de arte material e particular que encontramos nas galerias e museus. O que esses conceitos fazem é abstrair a materialidade e as condições efetivas pelas quais e nas quais a arte e o artístico ocorrem, com vistas a depurar um objeto atemporal que tem a mesma consistência das substâncias particulares e ideias clássicas. Recusado este modelo, as artes e as obras de arte, enquanto ações, atos e performances, voltam à cena e ao dado primário. Para pensá las adequadamente se faz necessário introduzir conceitos e categorias apropriadas para se admitir, na ontologia de fundo, processos, atividades, eventos e acontecimentos. Além disso, as categorias de agência, agente, ação e campo de ação também são necessárias, pois artes são formas de ação e obras de arte vem a se individualizar e realizar em campos de ação. Note se que essas categorias sempre foram necessárias para se pensar as artes e as obras de arte; porém, no processo de circunscrição do objeto particular de apreciação estética e artística, sobretudo no contexto da reflexão teórica, elas e o que elas apreendem são sistematicamente excluídas do foco de consideração.
A principal revisão aqui proposta, entretanto, não é a simples substituição da categoria de objeto particular por outra, seja ela qual for. O que se propõe é a tese do pluralismo ontológico aplicada aos artefatos técnicos e artísticos. O pluralismo ontológico implica que as artes e as técnicas pertençam a diversas categorias de ação e que os artefatos técnicos e artísticos pertençam a diversas categorias ontológicas. O contraste com o pluralismo ontológico revela o atrativo da categoria de objeto particular (objeto estético, objeto semântico, objeto intencional, objeto funcional), a saber, a promessa de unificação do campo artefatual. Além disso, o pluralismo tem uma outra consequência difícil, qual seja, a recusa da ideia de que a arte apenas realiza possibilidades já dadas, sobretudo no sentido de que a ação artística usaria meios materiais para realizar um objeto abstrato não feito cuja existência e identidade independe de ações e materiais.
Agora, uma consideração ligeira do dado de arte e de técnica que se apresenta no mundo contemporâneo já seria suficiente para se duvidar dessa apreensão unificadora. A artista Marilá Dardot, na obra A origem da obra de arte, de 2002, brinca e dança para indiferenciar as categorias de instrumento e de obra com as quais certos filósofos gostariam de estabelecer uma diferença ontologicamente inquebrantável.
20 Atos e Artefatos
A sua ação artística consiste em dissolver a diferença, ou então, miscigenar a arte e a técnica, de modo a que emerjam artefatos técnicos artísticos e vice versa. A separação entre arte e técnica é um produto de uma outra ação, seja ela econômica ou filosófica. O que esta artista faz, na verdade, não é diferente do que fazem e fizeram artistas e técnicos de todos os tempos. Os seus objetos borram as fronteiras das categorias ontológicas propostas como essência da obra de arte. Com efeito, se a peça Violência, do grupo Cena 11, é dança, Triz, do Grupo Corpo, também é, e ambas essas danças têm a mesma intensidade de Fole, de Michelle Moura, e de Vestígios, de Marta Soares. Estas quatro peças são eventos de dança, mas não se trata da mesma dança e não se trata da mesma história da dança. Seja como atos, seja como eventos, elas perfazem ações distintas e instauram situações ou campos de ação diferentes. Claro,
Atos e Artefatos 21 todas essas obras de arte podem ser capturadas e submetidas ao conceito de objeto estético e de objeto semântico, mas também ao de objeto funcional e de mercadoria. Eis a trilha que conduz o incauto ao pluralismo ontológico. Porém, a arguição desenvolvida nos capítulos a seguir tem por objetivo mostrar que estas apreensões são inevitavelmente reduções tanto do que se mostra como arte quanto da inteira amostra de arte. Se Triz poderia ser apreendida como objeto estético e como obra, as outras três escapam desse conceito; se Fole é performance e Vestígios é execução, se Triz é realização de uma coreografia, Violência também o é, mas o são de modo diferente. Com efeito, essas obras se constituem como entidades intramundanas fundadas na atividade performativa que instaura possibilidades antes inexistentes, em vez de realizar possibilidades já dadas. Nas ações performativas o que está em questão é a passagem do virtual para o atual, e não do possível para o real, segundo os termos de Deleuze (1968). O ponto principal, contudo, está em perceber que a arte é sem regra prévia, que arte indica um ato ou uma atuação primariamente de atualização por diferenciação e diversificação que abre e instaura possibilidades, que torna possível. Isso precisa ser repetido: a arte, no seu sentido primário, não é uma realização de possibilidades.Umavez que esta abordagem se torna um pensamento refletido e reflexivo, emerge com clareza o problema das recentes filosofias da arte, qual seja, o de insistentemente confundirem os predicados “arte” e “artístico” com os predicados “estético”, “semântico”, “verdadeiro”, “semiótico”, “ideal”, “formal” e por aí vai. Não há equivalência conceitual, por maiores e brilhantes que sejam os contorcionismos teóricos, entre “arte” e “estético” e “artístico” e “semântico”. Dito de maneira clara: as artes, as ações artísticas e as obras de arte não são substitutas em modo deficiente de alguma coisa que a filosofia tem ou faz por si mesma. A arte da dança mostra isso quando é considerada e pensada como um acontecimento artístico sem mais e sem menos. Nenhum conceito, nenhum filosofema, objeto ou artefato, é substituído por um evento de arte da dança e, sobretudo, nenhum deles o substitui. A filosofia não pode dispensar
22 Atos e Artefatos a arte, sobretudo a arte da dança, por meio de alguma análise, subsunção, suprassunção ou abstração. Por isso, uma abordagem das artes e das obras de arte, que as libere desses lugares cativos e passivos de objetos estéticos e semânticos, começa por reconhecer os aspectos agentivos e ativos que as caracterizam. As artes então emergem como formas de ação e de agenciamento; as obras de arte se mostram como os agentes desencadeadores de efeitos que deveras são; as ações artísticas se mostram como interagenciamentos performativos pelos quais realidades são instauradas nas quais os próprios agentes se constituem na sua forma de existência e modo de ser. Além de efeitos estéticos e semânticos, formais e materiais, as artes e as obras de arte instauram efeitos de realidade e assim têm eficácia antropológica e ontológica. A admissão da autonomia da arte também exige uma outra atitude filosófica. As obras de arte têm a mesma consistência das obras filosóficas, elas fazem e dão sentido. Por isso, as obras técnicas e artísticas listadas no final não estão ali como sinal de erudição, mas sim enquanto marcos de orientação no plano do sentido para o pensamento reflexivo. A sua consistência e vigência não depende de teorias e ainda menos de precompreensões antecipativas, pois elas fazem efeitos e dão sentido também para os desavisados e distraídos. Elas são as balizas frente às quais as conversas, teorias e histórias, tanto as aqui propostas quanto aquelas inscritas nas referências bibliográficas, precisam se fazer valer. Pois, o conceito tem sentido apenas se ele é apropriado à coisa, mesmo ali onde se trata de uma coisa feita. Para apreender o sentido e as indicações de um ato ou artefato é necessário participar, partilhar e cooperar no campo de ação que pelo seu vigor ele instaura.
4. Este livro complementa a abordagem teórica exposta no meu livro anterior, Sentido e Significatividade (2021), sendo o resultado dos projetos de pesquisa “O problema da caracterização ontológica dos artefatos tecnológicos e artísticos” e “Ontologia dos artefatos: agência, performatividade e condição artefatual”, desenvolvidos entre 2015 e 2022, primeiramente apresentado nos cursos de Filosofia
Atos e Artefatos 23 da Arte e de Ontologia e Filosofia da Arte, ministrados nos cursos de graduação e pós graduação em filosofia da UFSC. As primeiras versões foram objeto de apresentação nas seguintes palestras e conferências: “Plasmabilidade ontológica: efetividade dos artefatos técnicos e artísticos”, UECE, 2021; “A arte da dança para além do estético e do semântico”, UFSC, 2017; “Arte, ação e ficção do possível”, UFSC, 2017; “Do significado dos artefatos ao sentido dos atos artísticos”, UFSC, 2017; “Hermenêutica e genealogia das expressões culturais”, UFFS, 2017; “A condição artefatual do corpo funcional”, UFSC, 2016; “O ato de dançar como exercício de ficção”, X Seminários de Dança de Joinville, 2016; “A ficção de si pela reiteração do estranhamento da palavra”, UNISINOS, 2014. Em grande medida, os conceitos e teses aqui defendidos já foram expostos também nos seguintes textos publicados, com os quais esse livro forma um objeto disperso artefatual: “Agência, performatividade e condição artefatual” (2020), “Arte, ação e ficção do possível” (2018), “O ato de dançar como exercício de ficção” (2017), “A condição artefatual e a insurgência do corpo dançante” (2016), “A historicidade do artístico e a condição artefatual” (2016), “Da voz dramática às linguagens de máquina” (2015), “A forma e o sentido da frase ‘Isso é arte’” (2014) e “A provocação dos aparatos tecnológicos” (2014). Na passagem das palestras para os textos e nas alterações de agora, não foram modificadas apenas as ideias e as teses básicas, mas sim o estilo e o fraseado, sobretudo a economia dos signos. Faço***
aqui os meus agradecimentos ao Departamento de Filosofia da UFSC, por ser um espaço de liberdade de pesquisa e ensino, e agradeço especialmente a Alberto Cupani, Jussara Xavier, Anderson K. Plebani, Gabriel V. Bilhalva, Vanessa D. Mocellin, Dante Targa, Michelle Olsen, Gabriel Dietrich, Rodrigo Bernardi, Bruna
24 Atos e Artefatos Medeiros, Mariana Romagnani, Iur Gomez, Marco Vasques e Otávio G. Tavares, cujas conversas, questionamentos e sugestões estão presentes em muitas palavras neste livro. Córrego Grande, 2022.
Atos e Artefatos 25 2 ALÉM DO ESTÉTICO E DO SEMÂNTICO
A dança é uma arte exigente que faz girarem em torno de si as melhores teorias e caducarem os melhores conceitos. Com esse título proponho uma revisão do conceito de arte, sobretudo ali onde ele pretende apreender a arte que se efetiva como arte da dança. A intenção é pensar a atividade da arte e da dança antes de sua fixação como figura plástica visual, quando já aparece com sentido imagético e formal, e depois da realização do significado dizível e exprimível por meio da linguagem, pois penso que há, já e ainda, sentido se fazendo no plano mesmo da ação e da atividade efetiva que embasa o sensório, o imaginário e o discursivo. Se a dança moderna foi submetida aos regimes estéticos, como veículo da beleza, da forma e do sublime, a dança contemporânea se liberta também desse enlace cativante. Se muitos então concluem que a dança não é arte, isso se deve apenas aos conceitos que a premeditam. O que aqui será ensaiado é uma articulação de sentido pela qual a arte é ação efetiva, e a dança é a arte máxima com o mínimo de recursos e meios, pois nela a arte consiste da e na agência, sem necessitar de qualquer artefato ou objeto. Ainda não é imagem, ainda não é signo, mas faz sentir e faz sentido enquanto atuação que se perfaz em ato. A arte da dança não produz um produto, mas apresenta uma atitude; não faz uma obra, mas perfaz uma ação, não é um ato de inscrição, mas de interação. A arte da dança, naquilo em que ela se distingue das outras artes, desinibe o corpo próprio para a sua maior
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Atos e Artefatos potência, porquanto instaura sentidos e pensamentos, direta e imediatamente, in nude, sem a mediação de artefatos, imagens e linguagens. Sim, as mais das vezes a arte da dança é realizada como veículo e suporte para imagens, formas e enunciados; mas, a ação artística da dança não precisa fazer isso para ser arte e dança. Por isso, todas as outras artes se deixam expor como dança, pois, na sua inteireza ilimitada, o âmbito da arte emerge do atuar e do agir cuja base é a agência efetiva e eficaz. Pintar, esculpir, desenhar, escrever, cantar, compor, construir, encenar, fotografar, filmar, simular e pensar, não importa qual verbo se utilize para indicar a arte de alguém, esse verbo é uma modalização da agência eficaz que perfaz um campo de ação no qual sentidos e pensamentos adquirem consistência e efetividade. Até pode ter, mas o que aí se exercita nem sempre visa efeitos estéticos e simbólicos. No seu mínimo e, por conseguinte, também no seu máximo, esta modalização ou estilização da agência se apresenta como dança. Não é outro senão este aspecto que faz a dança ser tanto o símile quanto a antípoda da filosofia. Pois, também a filosofia é uma atividade no plano do sentido e do pensamento que se perfaz sem a intermediação de objetos e artefatos. Em relação às ciências e técnicas, a filosofia é o exercício do pensamento e do sentido, direta e imediatamente, sem a mediação de artefatos, imagens e linguagens, embora a cada vez se utilize de uma língua de exposição. Também para o filosofar, do mesmo modo que para a dança, todo objeto, artefato, imagem ou palavra já se constitui como uma distração do principal e até um empecilho. Todavia, filosofar não é já dançar, não é mais dançar; e dançar não é já filosofar, embora ambas exibam na sua plenitude desinibida a indicação mais apropriada do que é a outra. Dos artefatos aos atos artísticos A prevalência da linguagem escrita e da imagem material, que hoje nos dispensa e cativa nos aparatos maquínicos e cibernéticos, tem obnubilado a base agencial e performativa da arte e também da
As transformações encaminhadoras da emergência da arte contemporânea têm todas esse aspecto. Para usar os termos pelos quais se procurou dizer essa condição, a direção desse tipo de arte está na validação generalizada das modalidades de arte denominadas “instalação”, “arte corporal”, “acontecimento”, “ação” e “performance”. O sentido desse direcionamento da arte contemporânea está justamente na indicação de que o artístico pode se realizar plenamente como arte, e também propiciar uma experiência artística
Atos e Artefatos 27 filosofia já a muito tempo. Esta prevalência, no caso da arte, sugere que ela, se é uma ação, é uma tal que produz artefatos semânticos e ou estéticos. De certo modo, esta é a autocompreensão ordinária da filosofia e da arte. Elas seriam atividades poéticas na sua dupla acepção, ou seja, de atividade cuja finalidade é fazer algo, uma obra, que não é mais uma atividade, mas sim um objeto, e de atividade que é essencialmente linguística, a saber, que se constitui como inscrição. Este objeto, se bem realizado, torna se independente em relação a tudo o que constitui o seu processo geracional, sobretudo a agência e o agente, visto que ele precisaria valer e viger apenas por seus efeitos estéticos e semânticos perceptíveis, tal como exige a autonomia estética e semântica da obra de arte. Todavia, os conceitos de poesia e de obra, se pensados como o par ação produto, já não são suficientes e adequados para se pensar a atividade artística. A dúvida se impõe a partir da constatação de que muito da arte contemporânea perfaz se, primeiro, sem a produção de um objeto; segundo, que a ação artística também se realiza agora sem ser um fazer ou um produzir. E, mesmo quando se faz um objeto, esse não é feito para ser um objeto significante e ainda menos estético. Um dos aspectos que marcam a arte contemporânea se constitui pela passagem de uma situação em que se discutem e se experienciam artefatos em busca de afecções estéticas e significados artísticos para uma outra situação na qual se apreendem e experienciam sentidos de atos e ações, exemplarmente ilustrada pela transformação das práticas artísticas dos jovens para a dos artistas maduros Lygia Clark e Hélio Oiticica.
2 A atualidade do Belo, 2010 [1974].
28 Atos e Artefatos plena, sem a produção e sem a mediação de um artefato, ao se efetivar por meio unicamente de uma ação, ou melhor, de uma interação. A questão a ser pensada, portanto, por esta condição e suas implicações, diz respeito à compreensão dos conceitos pelos quais nós apreendemos e julgamos teorias sobre a arte, sobretudo as estéticas filosóficas da arte. As concepções hermenêuticas e semânticas da arte e da experiência da arte, pela qual uma obra de arte é um símbolo e um significante com sentido, são as primeiras a serem postas em questão pela existência da arte contemporânea. Com efeito, textos como A atualidade do belo, de Hans Georg Gadamer (1974) e A transfiguração do lugar comum, de Arthur Danto (1986), representam duas abordagens da arte e da experiência da arte cujo cerne está no conceito de sentido e na atribuição, às obras de arte, de um significado, sob a suposição de que toda obra de arte é um signo, símbolo ou até um enunciado.Todavia, a concepção de arte proposta por Gadamer é ambígua: ora pensa a obra de arte como jogo que se joga e assim se realiza1, portanto, como evento que perfaz os próprios sujeitos que dele participam, ora pensa a obra de arte como configuração simbólica reiterável e como expressão linguística embasada na intencionalidade humana2. Enfim, ora pensa a obra de arte como atividade efetiva, ora a pensa como artefato significante. Em última instância, Gadamer concebeu a obra de arte como uma configuração artefatual dotada de sentido, portanto, um artefato que é destinado a uma experiência significativa. Dessas articulações decorrem dois conceitos de experiência artística muito diversos: uma experiência de participação numa atividade em curso ou jogo; uma experiência de leitura e comunicação. A posição final de Gadamer consiste em pensar as obras de arte e os atos artísticos como realizando uma configuração de sentido, especificamente na acepção da arte fazer parte da dimensão simbólica que se torna plena ali onde ela se confirma como um 1 Verdade e Método, 2005 [1960].
Atos e Artefatos 29 enunciado que pode ser lido, ou seja, quando a obra, tomada como um artefato independente, se deixa ler3 . Depois de Gadamer, quem mais defendeu uma concepção semântica da obra de arte foi Arthur Danto, sobretudo na obra A do lugar comum. Com efeito, nesse livro, Danto termina por conceber as obras de arte como signos a serem interpretados contextualmente4. Embora não cheguem ao ponto de conceber a arte como linguagem e meio de expressão cognitiva, como o fez Nelson Goodman em Linguagens da Arte (1968), para Gadamer e Danto, tanto a experiência artística é uma experiência simbólica, quanto a fruição da arte é pensada como uma experiência de interpretação e de leitura. As obras de arte são enunciados, elas dizem alguma coisa. E, enquanto tais, elas são tanto mais bem sucedidas como obras de arte quanto mais nelas não apareçam os atos e os materiais de sua confecção e sobretudo os agentes de sua produção, os quais precisam desaparecer para que o sentido se realize.
Proposições para ação No entanto, no Brasil, desde os anos trinta do século XX, nós temos acesso a uma concepção de arte que abdica da dimensão simbólica e sígnica, e também abdica do conceito de interpretação e representação, como primários, na qual até mesmo a cooptação da arte pelo estético está superada. Primeiro, a arte e as obras de arte deixam de ser feitas e pensadas como signos e símbolos, para se tornarem objetos plenos com propriedades de coisas cuja presença e agência se impõe por elas mesmas. Elas são feitas para serem tomadas e manipuladas, e não como signos de outra coisa ou símbolos cheios de sentido. Os aspectos sígnicos e simbólicos, se estão ainda presentes, são sempre secundários, o primado é do coisal e do agentivo. Além disso, sob uma vertente que nasce dessa primeira liberação, a arte foi pensada e concebida como não mais precisando de um objeto ou artefato, pois era realizada plenamente apenas no 3 H. G. Gadamer, 2010, pp. 1 9; 133 141. 4 A. Danto, 2010, pp.18 19.
transfiguração
30 Atos e Artefatos plano dos atos, ações, eventos e situações, como é o caso da Experiência n. 2, de Flávio de Carvalho (1931). Objetos não simbólicos e atos não produtivos de objetos, todavia, exigem experiências e apreciações muito diferentes. A experiência propriamente artística foi assim retirada do âmbito do perceber significados ou imagens e deslocada para o âmbito do apreender interativamente sentido em atos e ações cuja resposta é também dada por atos e ações. Contudo, nos primeiros trabalhos nessa direção, a nostalgia do pequeno objeto pleno de significados ainda não fora inteiramente superada.
Com efeito, o passo de libertação da arte em relação aos artefatos e objetos, portanto, em direção ao modelo da arte como fundada na ação artística, emerge clara e já efetiva no manifesto de Lygia Clark, A propósito da Magia do Objeto (1965), na qual ela desenvolve a ideia disruptiva com a arte tradicional, constituída pelo uso e construção de um objeto para lhe dar um ‘poder poético’. Lygia percebe que a sua arte já não é mais desse tipo: “[…] meu “Caminhando” é muito diferente. Em seu caso, não há necessidade de objeto: é o ato que engendra a poesia”. A lucidez dessa constatação ainda não chegou à filosofia da arte brasileira. Lygia prossegue e esclarece que não “[…] se trata aqui da participação pela participação, nem da agressão pela agressão, mas de que o participante dê um significado ao seu gesto e de que seu ato seja alimentado por um pensamento, nesse caso a enfatização de sua liberdade de ação”. Ao equacionar a sua arte com o efeito de “liberdade de ação”, Lygia tinha consciência de que assim libertava a arte do seu lugar predisposto por Aristóteles e Kant. Ela continua desfazendo se da autocompreensão hermenêutica e semântica das obras de arte, ao recusar o conceito de obra como algo feito e posto para o espectador interpretar. Com a obra Caminhando, a artista propunha o esquema artístico de fundo no qual o partícipe realizaria o sentido de sua própria ação ao fazer o ato. Nessa formulação reflexiva, a artista explicita algo que se contrapõe a todas as filosofias e estéticas da arte que pensaram a arte como uma atividade produtora de objetos estéticos e significantes, sintetizados nos conceitos de símbolo, em Gadamer, e de significado incorporado, em Danto. A arte e a obra de arte
Atos e Artefatos 31 de Lygia Clark não é desse tipo e não é apreendida por esses conceitos. A sua arte dispensa o objeto, ela configura uma ação de interação que não se dirige à percepção do outro, mas à sua agência e o requer como agente ativo. A arte e o artístico se instauram no plano mesmo de um campo de ação, prescindindo do objeto independente e alterando a própria localização temporal da obra de arte como algo passado. Se a obra de arte, clássica e moderna, enquanto um objeto autônomo, era sempre já um reflexo de uma experiência já passada, portanto, de atos ausentes, a arte e o artístico agora “está no ato de fazer, no presente”, e se quer como “exercício espiritual da liberdade”, enquanto esse exercício é “também a realização da arte”, tal como pensou Mário Pedrosa. A equação de Mário Pedrosa torna explícita a transformação da arte contemporânea, a qual consiste no seu libertar se da função cativa de produtora de artefatos em direção à posição insubmissa do agir liberto. Lygia Clark nunca recuou dessa libertação em relação aos artefatos, articulando prática e teoricamente a sua nova arte. No manifesto de 1966, Nós recusamos, ela afirma esta nova autocompreensão: [...] Pertenço a um terceiro grupo, que tenta provocar a participação do público. Essa participação transforma totalmente o sentido da arte como o entendemos até então. Isso porque: recusamos o espaço representativo e a obra como contemplação passiva; recusamos todo mito exterior ao homem; recusamos a obra de arte como tal e damos mais ênfase ao ato de realizar a proposição; recusamos a duração como meio de expressão (…); recusamos toda transferência no objeto mesmo no objeto que pretendesse apenas salientar o absurdo de toda expressão; recusamos o artista que pretenda transmitir através de seu objeto uma comunicação integral de sua mensagem, sem a participação do espectador; (...)5
Depois, em 1968, no manifesto Nós somos os propositores, Lygia Clark chega à autoconsciência, como artista contemporânea de si mesma, e também como posição teórica reflexiva, quanto à própria concepção de arte, uma que não é mais estética e também não por isso semântica: “Nós somos propositores: enterramos a obra de arte como tal e chamamos você para que o pensamento viva através de sua ação”. Que esta formulação não se tenha refletido na filosofia 5 L. Clark, Nós recusamos, 1966.
6 L.
32 Atos e Artefatos brasileira, não é um efeito da subserviência voluntária dos nossos filósofos e filósofas às pautas e debates estrangeiros, mas antes ao contrassenso que ela provoca nos preconceitos e precompreensões da própria filosofia que ainda hoje repete o seu Aristóteles e o seu Kant, sem pensar e sobretudo sem observar o que acontece ali ao lado. A artista se resolve a despeito disso, se desvencilha da submissão imposta pela filosofia e reclama para si e para sua arte o lugar da ação livre, ou seja, da práxis pela qual o humano vem a ser o que é enquanto é um agente de sua própria ação: No seu diálogo com minha obra “dentro fora”, o sujeito ativo encontra sua própria precariedade. Também ele como o Bicho não tem a fisionomia estática que o definisse. Ele se descobre no efêmero, por oposição a toda espécie de cristalização. Agora o espaço pertence ao tempo continuamente metamorfoseado pela ação. Sujeito objeto se identificam essencialmente no ato.6
O ponto principal que estou explicitando com essas menções está no fato de que a posição e a função dos objetos e dos artefatos agora está alterada. As funções estéticas e semânticas agora são submetidas a um outro regime artístico, regime este que instaura um sentido próprio à dimensão da agência e da atuação. O típico objeto estático, posto para ser percebido e interpretado estética e semanticamente, sai de cena ou resta apenas como um auxiliar. Hoje, em qualquer galeria ou museu ou espaço de arte, encontramos “obras de arte” cuja consistência, existência e identidade dependem para se Clark, 1980, p. 24.
Ao recusar o conceito de arte como produção de artefatos estéticos e semânticos, Lygia supera também a separação entre os agentes e os seus atos, abrindo se para a ação artística ontologicamente e antropologicamente performativa. O que está em questão na arte e nessa concepção de arte não mais se deixa enquadrar no âmbito das ações secundárias e irrelevantes para as formas de existir e os modos de ser humano. A arte agora se mostra e se reconhece como agente antropogênico de primeira categoria, tanto quanto o pretenderam ser a religião, a política e a filosofia.
Atos e Artefatos 33 realizar da interação ativa, ou seja, de atos e ações de agentes participantes e não apenas espectadores7 . Todavia, outro aspecto da arte contemporânea para o qual quero chamar a atenção é um passo a mais de afastamento em relação à arte simbólica e à experiência artística como uma experiência de interpretação e de leitura. Trata se de pensar a experiência artística propiciada por instalações e ambientes interativos, mas sobretudo por obras que são elas mesmas agentes ativos que solicitam e impõem interações nas quais os agentes conscientes são passivos ou no mínimo co operativos. A experiência artística com esses artefatos agentes é distinta da experiência com obras de arte que são artefatos significantes, signos e símbolos, os quais também já exigiam um agente ativo. Pois, aí não se trata de apreender o sentido e o significado, menos ainda de perceber as remissões semânticas e linguísticas, de um artefato, mas antes de interagir com um agente e de participar como agente de um evento complexo que instaura um campo de ação no qual objetos e agentes vem a ser e se constituem de modo plural e diverso.
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O sentido prime da ação
Para liberarmo nos para esta outra concepção de arte e de lugar do artístico, faz se necessário revisar as nossas precompreensões sobre a articulação entre o agir, o pensar e o significar, pois há um consenso tácito que submete o conceito de ação aos conceitos de pensamento e intencionalidade prévios e independentes da ação e da experiência, conceitos estes que fazem de toda ação um signo de outra coisa. Por isto, não basta reconhecer o papel primário do agir; os próprios conceitos de agência e de ação precisam ser purgados de elementos simbólicos e linguísticos, ou seja, é preciso pensá los sem submetê los ao conceito de signo de outra coisa e de inscrição de uma mensagem. Cf. L. Matos, 2011.
34 Atos e Artefatos O sentido da ação, com efeito, não é um sentido de um signo, e menos ainda o significado de uma expressão linguística ou artefato. As ações não são signos e menos ainda são representações exteriores de uma realidade interior autônoma. Os atos e as ações têm sentido prático agencial, um sentido que se dá e é apreendido na própria interação sem a mediação simbólica. A ação não é signo ou sintoma de um evento ou efetividade que poderia existir sem ela, seja o pensamento ou a intenção, seja a consciência ou o estado mental. Ela pode ser tomada como sendo isso também, mas o sentido primário dela não está aí. Ao afirmar que sua arte e suas obras de arte eram proposições de ação e instaurações de campos de ação cuja consumação se resolvia em interações e atos de liberdade e interagência, Lygia mostrava que o conceito de ação, também nas artes, pode ser liberado da posição de mero auxiliar exterior. Considere se a obra Menina com brinco de pérola8. Apressados que somos, deixamos nossas compreensões tácitas se imporem e vamos logo dizendo que se trata de pintura e de retrato, e assim submetemos essa obra à rubrica dos signos, símbolos e representações cujo sentido está noutra coisa. Desse modo, nós a tomamos como um objeto isolado e como um artefato significante dado à nossa percepção interpretativa. O objeto está ali na posição submissa diante de nossa posição ativa, apenas como auxiliar mnemônico e como desencadeador de narrativas. Contudo, se adotamos a concepção que Lygia propõe, um quadro deixa de ser um artefato significante isolado para ser um partícipe de um campo de ação cujo sentido apenas se mostra ao interagirmos nele também como partícipes. O quadro agora é, por um lado, o efeito de um agenciamento e, por outro, uma proposição de ação que se dirige à agência e à interagência do espectador, que o requer como agente. O quadro então se torna um imbricante de campos de ação. Enquanto arte, o quadro é uma apresentação e não uma representação, signo ou sintoma. O quadro atua, perfaz, instaura uma realidade e não a representa. Se o experimentamos como retrato, então o pensamos como remetendo ao retratado. Vermeer, 1665.
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Nesse ponto aparece o aspecto decisivo das ações artísticas, sejam elas mediadas ou não por artefatos. Um ato artístico é tanto performático quanto performativo: ele tanto se realiza apenas ao ser executado, quanto ao ser executado realiza o artístico. Os atos têm sentido, mas não são signos, eles realizam e perfazem ações cuja inteligibilidade se mostra diretamente por meio de ações de interação e cooperação. Para usar uma distinção fregeana: esses atos mostram e apresentam o seu sentido, mas eles não dizem ou significam nada. Ou seja, trata se de atos não significativos, mas que fazem sentido. O sentido do ato artístico, por conseguinte, não se reduz ao de produzir um objeto ou artefato, e menos ainda ao de produzir um artefato significante e estético. O ato mesmo é tal que faz sentido, um sentido ali onde não havia nenhum. Mas, a base do ato artístico está na sua interagência: um ato cuja ocorrência implica a efetiva interação com outros atos e que apenas assim faz sentido, ao ser correspondido por atos de um agente ativo. O sentido do ato é sentido
Considere se um quadro no qual se mostra apenas uma boca humana costurada, como na obra Stitch, de Petr Pavlensky (2012).
Atos e Artefatos 35 Porém, isso é inteiramente desnecessário. Pois, artefatos fazem e têm sentidos, mas esse “fazer e ter sentido” não precisa ter a estrutura do significar, do dizer e do imaginar. Uma palavra ou um sinal é signo, mas um quadro não é isso. O pintor fez algo, e essa coisa feita, ela mesma, faz, produz efeitos, ou seja, dá continuidade e reitera esse fazer, e para isso não precisa ser tomada como signo, mas sim e apenas como oportunidade de ação e de interação.
Podemos tomá lo como signo e símbolo, sem dúvida. Agora, tudo muda se o vemos como uma ação efetiva de um artista que costura realmente sua boca para assim realizar um ato. Esse ato continua e se reitera, podendo ser tomado como signo e interpretado como tendo significados, mas essa camada semântica é apenas uma superfície da qual o fundo não é signo, mas uma ação que faz sentido nela e por ela mesma. Uma ação que instaura um campo de ação diante da qual nós podemos ficar inativos e apenas admirar, ou então participar e atuar, mas para isso precisamos abandonar a posição soberana e asséptica do leitor intérprete ou do esteta admirador.
A arte da performance, enquanto gênero de arte que aflora como urgente na era pós poética da arte, se constitui como a pura instauração de eventos a partir da ação artística cuja consistência e realização se efetivam unicamente como uma ação, sem a precisão da produção de um artefato ou elocução de um símbolo, pois por si mesma perfaz realidade, ao instalar um campo de ação no qual agentes e objetos vêm a existir e adquirem ser e identidade. O atuador não precisa fazer signos, ele atua; ele se faz inteiramente na própria ação, e o sentido emerge na interação e na co ação. Nesse caso, o artístico está primariamente e inteiramente na imediatidade da ação interagencial, ali onde ainda não há sequer o fictício, menos ainda signo e símbolo. Uma ação artística performativa, por isso, não requer um espectador, mas um outro agente ativo e interativo.
O que é exigido, então, para se pensar a atividade artística, é o conceito de agentes interativos e engajados em atividades cooperativas com outros agentes, tendo em vista que apreendemos o sentido das ações, eventos e objetos na situação de um campo de ação sem
36 Atos e Artefatos que se apreende interagindo e se mostra apenas por outros atos e para agentes interativos. Desse modo, se torna explícito a primariedade do agir e do atuar e assim a dispensabilidade dos objetos e dos artefatos para a consumação da arte. Artefatos e objetos têm, obviamente, presença garantida e ativa nas atividades artísticas. O que foi estabelecido não é a sua eliminação, mas a sua dependência ontológica em relação aos campos de ação e às ações, pois eles de fato são coisas feitas por e para a ação e a interação. Além disso, ao trazer os atos e as ações para a frente da cena artística, como fatores primários, se revela o seu caráter performativo em relação não apenas aos artefatos, pois os atos artísticos têm ainda uma sobre coisa: os atos artísticos são tais que perfazem o próprio artista enquanto artista e também perfazem o campo de ação no qual eles mesmos têm sentido. Este aspecto apenas se tornou explícito na arte contemporânea enquanto esta premedita ações performáticas, justamente por não mais se querer como mera produtora de artefatos.
Atos e Artefatos 37 a mediação simbólica. O próprio sentido dos signos, sinais e símbolos é já um efeito de seu agenciamento na situação e nas ações em curso. O sentido de uma ação, da própria agência, não provém de uma mediação simbólica e também não é um dado na percepção. A ação faz sentido, assim é sens ação. O reconhecimento do sentido da ação dos outros, com efeito, não pressupõe a realização de conhecimentos e representações e signos previamente adquiridos pelo intérprete nas suas próprias ações: apreendemos o sentido da ação dos outros diretamente na interação interagentiva.
O ato do atuador Reitere se a questão: o que é uma obra de arte? Um objeto estético, uma forma bela, um objeto significante, um símbolo? Apenas um corpo presente? Ou um bloco de sensações? A resposta aqui sugerida começa por dizer que a arte não se reduz ao estético e também não ao semântico, e menos ainda ao objeto estético significante, mas nem por isso se reduz à simples presença. No fazer e no agir inaugurais que estão na base da ação artística perfaz se uma transfiguração, uma transformação, que altera o real e o possível, o
A co ação e a sens ação cujos fins são a própria realização: uma atividade cuja execução se efetiva ao ser executada e que é plena em si mesma, no sentido, primeiro, que essa atividade é ela mesma um acréscimo de ser, sem ser a produção de mais um artefato, e, segundo, no sentido de que através dela os seus executores, não sendo, vem a ser o que não são e assim vem a ser o que têm de ser. Se cabe uma interpretação semiótica, imagética e simbólica das obras de arte, fundadas na ideia de representação e significação, há muitas outras ações artísticas que exigem uma outra abordagem: atos e ações artísticas sem objetos e sem artefatos. As palavras de Lygia Clark são ainda claras, embora pouco ouvidas: as suas proposições artísticas visam outra coisa que a experiência simbólica, elas visam o agente enquanto agente e propiciam uma oportunidade de interação, ao instaurarem um campo de ação interagencial.
38 Atos e Artefatos existente e o inexistente. Não se trata da verdade ou do ser, mas da perfeição ou culminância de fase de uma performance. Não basta recusar pela frente o hermenêutico ou semântico, para reafirmá lo por trás, como faz Gumbrecht (2010); não basta recusar o estético, para voltar a inseri lo, como faz Badiou (2002; 2006); ao invés, antes, há que se estabelecer uma outra base para o artístico. Nos atos dos atuadores, dançarinos, atores e performers, na base da agência que se efetiva antes ainda do ato de fazer algo, do cantar, do apresentar, do representar e do significar, está a matriz de todas as artes e obras de arte. O olho que vê apenas o objeto estético ou o signo significante já se perdeu para a efetividade artística, pois vê apenas o artefato e não mais o ato, ainda menos enxerga o campo de atuação que o embasa e lhe dá consistência, já que está preparado para ver e ler apenas inscrições, e não mais atuar junto e ser partícipe de umaFazação.parte do mérito da reflexão recente ter alcançado a clareza quanto ao enraizamento do artístico no âmbito do agir, como o fazem de modo claro David Davies9 e Erika Fischer Lichte10, mas é o problema da arte da dança que permitiu a Frédéric Pouillaude 11 explicitar o preconceito que orientou a filosofia de Platão a Badiou. A dança não faz um artefato, não constitui uma imagem e não profere uma palavra: a ausência da obra, contudo, não elide o artístico. Sem obra, a dança se realiza como arte no próprio ato de dançar e enquanto ato e nos limites do ato. Ela é, assim, performática, como pensa Davies, e também performativa, como pensa Fischer Lichte, por se efetuar no plano mesmo da agência. As artes de execução como a dança, a música, o teatro e a performance, artes cuja efetivação acontece na sua execução, a partir dessas análises e explicitações emergem como artes primárias e efetivas, deslocando as demais artes para o plano derivado daquelas artes cuja ação apenas se realiza na consecução de um artefato. A 9 Art as performance, 2004; Philosophy of the performing arts, 2011. 10 Ästhetik des Performativen, 2004. 11 Le désouevrement chorégraphique: étude sur la notion d’oeuvre en danse, 2014; “A dança e a ausência da obra”, 2012.
base das ações de poiesis e de poesia, vigem já atos cujo sentido não está em produzir um objeto estético ou em produzir um objeto significante, uma mensagem e ainda menos um artefato. Nesse nível primário, uma ação tem sentido enquanto ação e assim pode ser apreendida nela e por ela mesma, seja por aqueles que nela tomam parte como agentes, seja por aqueles que a observam e entendem o curso de ação. Não é o caso de ações e de atos serem primeiro apreendidos esteticamente e também semanticamente para apenas depois serem apreendidas enquanto ações. A interatuação entre ações e atos é anterior à interação estética, semântica e imagética. Ou, ao menos, são concomitantes. Se isso é assim, então a arte, enquanto realização do artístico, pode se realizar plenamente também no plano do puro agir e interagir. Que ela seja seguidamente compreendida apenas nos seus estratos superiores e sofisticados de obras autônomas, não elimina o fato primário de que o artístico se apresenta já no plano de atos e ações. Estas ações têm
Atos e Artefatos 39 dança, para além do poético, do estético e do semântico e hermenêutico, ou linguístico, se realiza no plano do atuar e do agir. Para além e aquém, pois o que está em questão, como bem mostra Davies, está nisso, que uma ação pode ser arte, mesmo que não seja um ato linguístico nem estético e menos ainda imagético.
O propósito aqui não é apenas dizer que há aspectos não estéticos e não semânticos naquilo que denominamos “arte”, e menos ainda que aquilo que é arte se efetua também de modo inestético e assemântico, pois isso é óbvio. Antes, e de modo enfático, pretende se mostrar que “arte” também se diz daquilo que é inefetivo estética e semanticamente, que a arte se efetua como atividade e ato cujo sentido tanto pode ser dito estar para além quanto aquém do representar, imaginar e significar, com base na tese de que a ficção de sentido já opera no plano mesmo do agir e antes de qualquer feição e dicção.
Por conseguinte, também a apreensão de sentido ocorre antes de qualquer representar e significar estar em ação: na interação cooperativa que antecipa, preside e rege a própria possibilidade de atos estéticos e semânticos.Naprópria
40 Atos e Artefatos o aspecto perfectivo, no sentido de que “dançar” indica uma situação completa, e nisso difere dos verbos básicos das demais artes que indicam ações que se completam apenas na completude do seu produto ou artefato. Se aceitamos as principais teorizações sobre a arte e as obras de arte, a dança é descartada como ainda não arte, como vaticina Badiou12, por esta mesma razão, ou seja, por não se consumar num artefato. Nos principais exemplos de Gadamer, assim como de Ingarden, Heidegger e Adorno, está pressuposta a figura do objeto unitário e perfeitamente delimitado, fruto de uma ação que ao se realizar se autosuprime e faz ser apenas o seu produto como um artefato determinado. “A arte vige na obra de arte”13, e por “obra de arte” Heidegger compreende aquilo que está nos lugares públicos, igrejas e moradias, aquilo que está guardado nas coleções e nas exposições, que está guardado nas mochilas dos soldados e nos depósitos de editoras (§7). O filósofo, com certa razão, recusa a concepção estética (§55), recusa também os conceitos de coisa e de utensílio para pensar as obras de arte (§§ 61 63) e concentra a sua tese na obra como um lugar de “abertura do ser do que é” e da arte como “o pôr se em obra da verdade” (§65). Para que a obra de arte cumpra esta “essência” que o filósofo projeta nela, há uma condição nada banal, qual seja, “seria necessário retirar a obra de todas as referências ao que ela própria não é, para deixar repousar só para si e só em si mesma”, a obra precisa estar “liberada para o seu puro auto permanecer em si” (§ 67), condição esta que, segundo Heidegger, apenas a “grande arte”, na qual o próprio artista que a realizou “posta se diante da obra como algo indiferente, quase como uma passagem que se auto aniquila para a produção da obra, no ato de criar”14 . Nessa imagem da arte, não há espaço para a arte da dança. Esta imagem implica a obra de arte de dança, de teatro, de música, de performance, etc. como arte menor e até como não arte, pois as artes de execução não se separam do artista e também não apresentam
13 M. Heidegger, A origem da obra de arte, 2010, § 3. 14 M. Heidegger, 2010, § 67.
12 A. Badiou, Pequeno manual de inestética, 2002, p. 94.
A dança e o embaraço da filosofia
Atos e Artefatos 41 uma obra capaz de restar em si e por si. Esta exclusão transcendental é uma reductio ad absurdum dessas teorizações. A arte da dança é de tal radicalidade enquanto arte que as teorias baseadas nos conceitos de obra, de objeto estético ou semântico, de imagem e de artefato, dançam e caem alquebradas diante dela, se ela for reconhecida como arte.
As artes constituem práticas e ações cuja expressão mais visível são as obras de arte encontráveis em museus, galerias e ateliês. Estas obras são os vestígios e os restos de atividades, empreendimentos e atos de indivíduos e grupos indexados a tempos e lugares particulares. Não há arte genérica e menos ainda pensamento universal. A atividade artística é ação premeditada que expõe e torna efetivo um pensamento. As diferentes artes são atividades emaranhadas na realidade viva que, embora autônomas, ocorrem conjuntamente sempre ali onde os sentidos da vida e das coisas alcançam a inflexão do pensamento sobre si e sua situação. Elas são atividades diferentes da filosofia, enquanto esta se ocupa apenas do pensamento. Todavia, arte e filosofia não se distinguem por uma ser estética e a outra racional, ou por uma ser material e a outra imaterial, ou ainda por uma operar no sensível e a outra no inteligível. Ambas são ações e práticas reflexivas, sentidas e pensadas, de pessoas e comunidades concretas engajadas na lida cotidiana do viver e morrer das gentes. Na sua base está a agência, para aquém da senciência e da consciência discursiva. Arte e Filosofia, antes de serem instituições e obras, configuram modos de atuar e de agir, perfazem atitudes, indicam modos de fazer e construir, são reiterações de cursos de ações de longo prazo. Um mundo sem agentes seria um mundo sem arte e sem obras de arte, e também sem filosofia. Nessas obras, ações e cursos de ações ganham efetividade e se completam os próprios agentes que as perfazem.
A efetividade, por que não, a eficácia das ações artísticas não é diferente da efetividade das ações filosóficas, pois ela se mostra na
Atos e Artefatos transformação do campo de ação no qual elas mesmas se realizam.
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Um ato artístico eficaz muda o mundo da arte; um ato filosófico eficaz constitui uma mutação do mundo da filosofia. Mas, as mutações introduzidas pela arte e pela filosofia são efetivas para além do mundo da arte e da filosofia, pois nada está separado. Arte e Filosofia são atividades indivisas que apenas as visadas reduzidas da estética e da semântica isolam e separam do mundo da existência viva. Mudar o mundo, transformar as coisas, eis o que fazem as pessoas reconhecidas como artistas e filósofas. Se olhamos apenas para as suas obras, descuramos as ações que por elas se efetivam. As filosofias da arte sofrem de uma síndrome de cura difícil, qual seja, o desejo pervertido de tudo reduzir e sobretudo diferenciar em relação à própria filosofia. Desse modo, as artes e as obras de arte têm sido minoradas e negativadas desde que Sólon expulsou Téspis da cidade por este ousar repensar os ritos e mitos, e assim instaurar a arte do teatro. Nesse esforço de redução, filósofos e filósofas não se cansam de encurtar o escopo de avaliação, cercando o objeto da arte cada vez mais até ele se tornar um pequeno objeto descontextualizado e isolado. Uma vez feita a redução, aplica se um conceito genérico unificador que anula as diferenças e torna tudo igual, seguindo o modelo de Platão, quando este condenava Íon, o artista, por este se recusar a ver e tratar as obras de Homero e de Hesíodo como idênticas e equivalentes. Cópia, imagem, imitação, ídolo, representação, afecção estética, estrutura emotiva, estrutura formal, enunciado, símbolo e por aí vai, assim a filosofia da arte pensa poder apreender e dispensar as obras de arte reduzidas assim a pequenos objetos esperando o seu conceito apropriado. A superação desta situação embaraçosa passa, primeiro, pela ampliação do escopo de consideração reflexiva e, segundo, pela percepção de que a arte e o artístico constituem âmbitos de ação e de interação irredutíveis a objetos isoláveis e descontextualizáveis. Sejam as abordagens estéticas modernas, sejam as abordagens semânticas e hermenêuticas do século que passou, o fato é que nessas abordagens a arte e o artístico são pensados como propriedades de objetos e artefatos. Uma vez que se amplie o escopo de avaliação,
Atos e Artefatos 43 seguindo os exemplos de David Davies e Erika Fischer Lichte, mas também as reflexões de artistas como Lygia Clark e Hélio Oiticica, de modo a incluir o contexto de atuação ou mundo da arte no qual o artista está inserido e, também, a incluir os materiais, o corpo e as ações do artista, seja do processo de geração da obra, seja do processo de atuação com a obra, assim como a história e o campo de ação em que a obra atua desde sua instauração, chega se a uma ideia inteiramente diferente. Não se trata mais, então, de analisar objetos isolados e suas propriedades. O que importa agora são as ações, cursos e campos de ações nos quais esse ou aquele objeto emerge como tendo consistência, lugar e função na sua consecução e efetivação.
Na origem e no fim dessa abordagem, os sentidos e os efeitos, que se podem atribuir a uma obra de arte, tornam se aspectos de um campo de ação que se perfaz por uma agência efetiva.
Um segundo ponto está em repor o conceito de ficção no cerne do conceito de artístico. As reações ao descredenciamento da
O ponto central a ser esclarecido é o problema ontológico do primado do ato ou ação, enquanto esse ato se diferencia dos atos de representação e significação, sobretudo quando esse ato é tal que por sua execução uma entidade vem a ser o que ela é ao se projetar como aquilo que ela não é, a saber, enquanto um ato que instaura um âmbito de ser diferente do real, ao efetivar o que não é, o ficcional. Com a análise desse problema se espera esclarecer a arte de atuação, como a arte da dança e a arte do teatro, enquanto estas se fundam em ações performativas que diferem das ações representacionais e linguísticas, mas também das ações produtoras de artefatos. O uso de conceitos como os de “ação”, “campo de ação”, “instauração”, “estrutura emergente”, “atividade”, “ambiente” e “efeito”, entre outros, enquanto conceitos não estéticos, não miméticos e não semânticos, indica o esforço teórico de explicitação da especificidade artística das obras performáticas e performativas, mas também de realocar o âmbito do artístico de modo a que as artes marginalizadas, como é o caso paradigmático da dança, mas também do teatro e hoje da arte de performance, sejam reconhecidas como estando, na verdade, na base e no centro desse âmbito.
16 R. M. Rilke, 2007, p. 192. 17 M. Barros, 2013, p. 318.
Na frase de Rilke, “Arte significa não saber que o mundo já existe, e fazer um”16, e também na frase de Manoel de Barros, “Eu fiz o nada aparecer”17, está indicado o ponto principal do que se chama arte e técnica: fazer ser o que não é, fazer uma ficção real, fazer uma fenda no real para que algo que não é possa vir a ser. O apressamento do pensamento tem levado a filosofia a capturar isso que se apresenta como arte por meio de conceitos transcendentais à própria experiência artística e em franca desconsideração do que nela emerge e se efetiva. Desse modo, a arte é desemancipada ao ser apreendida por conceitos como “Ser”, “Verdade”, “Consciência”, “Linguagem”, “Sensação”, “Forma” etc. Uma vez que se deixa de recorrer a esse procedimento, seja para marcar o que é, seja o que não é, libera se o pensar e o falar a partir da situação viva, onde aparece o isso que as ações artísticas fazem acontecer. Este “isso” que a arte perfaz não é natural, mas nem por isso é ilusório ou falso.
44 Atos e Artefatos arte15, que a alocam no domínio do falso e do imaginário, ao se fixarem nos momentos estéticos e semânticos, ofuscam o aspecto ficcional enquanto este não se confunde com o falso e menos ainda com o imaginário, pois o ficcional pertence ao domínio do efetivo e do material. Agora, que conceitos podem ser introduzidos para se pensar o artístico de uma arte, como a arte do ator e a arte da dança, que não sejam estéticos, nem semânticos e hermenêuticos, nem miméticos representacionais? O que é a arte se ela não está preparada como artefato e premeditada como efeito estético (Belo, Sublime, Sensacional), nem como signo e objeto significante (Sentido, Significado, Mensagem), nem como ícone e imagem (Imitação, Reprodução, Representação, Simulacro)? Nessas apreensões é a efetividade do ficcional, e antes a própria efetividade da ação, que é escondida eAapagada.partirdas perspectivas da própria arte e de quem ali atua, essas apreensões teóricas do artístico aparecem sempre como reduções
empobrecedoras.
15 A. Danto, O descredenciamento filosófico da arte; 2014.
Com efeito, em arte se trata de fazer e deixar aparecer o “Etwas”, o Isso, o “ThisThose” de Mariana Manhães (2011), implica suspender a significação, a representação, a encenação, o gosto, a intencionalidade e a própria linguagem. Para isso, é preciso suster se entre o ainda não e o agora sim do mundo objetivo e do pensamento premeditado. Pensar isso, o ainda e o agora, sem o sim e o não, sem preferi lo ou inferi lo. Pensar isso, a fissura, o enquanto, que ainda não é um tempo cronológico e cronometrado, nem ocupa um espaço reticulado, mas que demora e insta, para isso é preciso não reduzi lo a um pequeno objeto manipulável, não torná lo de imediato uma obra ou artefato à mão, sem, contudo, relegá lo ao fora do alcance da mão. O que aí está é coisa feita, todavia, mas uma coisa feita que exige uma outra postura e um outro pensar. Com efeito, a filosofia é também a tentativa de tapar os buracos e isso não é diferente nas filosofias da arte. Ao submeter e subsumir o artístico aos seus conceitos, ao estabelecer uma ordem e uma sequência na qual toda e qualquer obra tem um lugar como um átomo na tabela periódica, a filosofia sutura a fissura e escande a ferida: suspende essa fissura, para que se instaure um espaço tempo pensável e dizível depois do fim (da objetividade) e antes do começo (da determinidade), que toda obra de arte reclama e perfaz. A autonomia da arte se impõe ao pensamento reflexivo desde os seus começos. De Sólon a Badiou, o que se ouve é o juízo negativo e reativo 18 C. Lispector, 1998, p. 74.
Atos e Artefatos 45
A sua efetividade e a sua presença são da ordem daquilo que Meinong (1904) denominou “Aussersein”, que nem é nem não é, mas que, todavia, se perfaz a partir de uma agência eficaz. Para se ver isso que a arte perfaz, faz se necessário deixar cessar o que é aí (o ente, a coisa) e também fazer cessar o nada (ausência, vazio), abrindo um espaço de jogo para algo emergir e se manter ativo enquanto isso e nada mais; esse “nada mais”, esse nada de mundano e de já sabido, que Clarice Lispector indicava como o cerne de sua arte, ao dizer “não sei pintar nem melhor nem pior do que faço. Eu pinto um ‘isto’. E escrevo um ‘isto’ (…) o que te escrevo é um ‘isto’”18
.
46 Atos e Artefatos em relação à arte. E isto não mudou na filosofia contemporânea da arte contemporânea. Daí a posição limiar das propostas de David Davies, Erika Fischer Lichte e Frédéric Pouillaude, pois nela se articula um pensamento reflexivo disruptivo em relação às apreensões filosóficas clássicas conquanto os três pensam a arte e as obra de arte a partir do fazer artístico e do processo efetivo de construção e composição. Com os conceitos de “ação”, “campo de ação”, “espaço de atuação”, penso fornecer uma síntese dessas posições teóricas e oferecer uma melhor compreensão tanto das ações quanto das obras de arte. Ainda assim, essa posição ainda não diz de modo explícito o que as artistas e os artistas já refletem nas suas ações e pensamentos.
O nosso mundo é tal que reconhecemos a existência e a identidade de objetos técnicos, tais como cadeiras e aviões, e objetos artísticos, tais como esculturas e pinturas. Este reconhecimento é tanto prático quanto cognitivo, no sentido que agimos e lidamos com esses objetos, mas também os distinguimos e os classificamos em relação a outros objetos. Embora seja difícil às vezes a distinção, de fato percebemos a diferença entre um satélite natural e um satélite artificial, e também entre um banco de pedra onde podemos sentar e um objeto fabricado para servir como banco. A partir dessa percepção, admitimos como objetos artefatuais o avião Demoiselle 22, de Santos Dumont, e a instalação Invenção da cor, Penetrável Magic Square # 5, De Luxe, de Hélio Oiticica, diferenciando os em relação aos objetos naturais tais como o Morro do Cambirela e o Sabiá Laranjeira. Esta distinção, porém, sob uma análise ontológica mais acurada se mostra problemática. Com que categorias podemos fazer esta distinção e este reconhecimento de modo seguro, de modo a permitir inferências válidas tanto em sentido regressivo quanto progressivo? Seriam esses dois tipos, o artefatual e o natural, exclusivos e omniabrangentes? Não há outras categoriais e outras coisas no nosso mundo?
Atos e Artefatos 47 3 O NATURAL E O ARTEFATUAL
48 Atos e Artefatos A matriz da artificialidade
Estrelas, planetas, montanhas, rios e pedras são fases e formações naturais, e também o são os sabiás e os mosquitos selvagens; mas, uma represa, um satélite eletrônico, um sabiá e um mosquito geneticamente modificados, assim como um quadro de Tarsila do
A categoria do artificial aqui será pensada como incluindo os objetos técnicos, como machados e tesouras, os objetos tecnológicos, como telefones digitais, mas também os objetos artísticos, como esculturas, pinturas, músicas, poesias e danças. Enquanto esta categoria é predicada de objetos materiais isoláveis e destacáveis do entorno, poucas dúvidas surgem de seu emprego. Os problemas começam quando ela é utilizada para distinguir objetos cujos limites e propriedades são vagos, como é o caso de uma montanha de terra e pedras no meio de uma densa floresta e também de uma espécie biológica viva integrada ao ambiente. Que há montanhas artificiais e também espécies vivas sintéticas, não se duvida, mas se questiona sim a consistência da distinção que por ela se pretende estabelecer. Afinal, um coração transplantado é natural ou é artificial? E o respirar de Michelle Moura, na dança Fole, o que é? E as peças da instalação Incertezas vivas, de Krajcberg? As coisas artificiais são distinguidas em relação às coisas dadas na natureza, em geral introduzindo se o conceito de um fazer qualificado. Assim, os sabiás fazem ninhos e os humanos fazem casas. Sabiás e humanos são entidades naturais e, a princípio, suas atividades estão também contidas na natureza, no sentido de serem fases imanentes de processos naturais. Artificial seria tudo o que não é dado naturalmente, ou tudo o que não é produzido por processos naturais, e “dar se” e “processos” naturais são aqueles eventos em que atuam unicamente forças e atividades naturais. Artificial seria então o produto de atividades, forças e processos não ou extra naturais. A questão é especificar o fator ou os fatores intervenientes que rompem a imanência e introduzem uma defasagem em relação às derivas e processos naturais, ou então que produzem uma fase não natural.
Atos e Artefatos 49 Amaral, são fases e formações artificiais. Nesses casos, o fator interveniente é a ação humana qualificada. Mas, a matriz do artificial é mais complexa, pois nem todas as ações humanas são produtoras de artefatos, nem são somente as ações humanas que os produzem, visto que outros animais também fazem coisas que introduzem defasagens nas derivas e processos naturais. A distinção não é de todo clara. A respiração da bailarina e da cantora são processos naturais; todavia, respirar tanto pode ser espontâneo quanto voluntário, e a respiração dessas artistas faz parte constitutiva da obra de arte que elas apresentam. Então, muitas vezes a respiração é artificial. No caso de Michelle Moura, a sua respiração é premeditada e também não natural na maior parte da peça. Porém, no início e sobretudo no final da execução, esta respiração segue, é planejada para seguir assim, por si mesma e fora de qualquer controle. Então, deveríamos dizer que as categorias do natural e do artificial se imbricam e misturam nesse evento? E o que dizer dos mosquitos geneticamente modificados que passam a interagir e se reproduzir na natureza? O que dizer dos cavalos selvagens norte americanos que chegaram lá de navio e foram por milhares de anos selecionados por cruzamento forçado?De
qualquer modo, a proposta a ser desdobrada é que o conceito de artificial (de técnica, de tecnologia, de ficção e de artístico) implica sempre a remissão a uma ação qualificada e, por conseguinte, implica a agência efetiva, no preciso sentido de que em algum momento da gênese e da deriva, portanto, do vir a existência e do perdurar existindo de um objeto artefatual, haveria uma intervenção efetiva de um agente cuja ação seria disruptiva das forças e processos naturais. A proposta consiste em vincular a qualificação como artefatual e a própria existência e identidade dos artefatos a campos e cursos de ações. Isoladamente e sem correlações com outros objetos tudo é e não é natural. Pois, dada a multirealizabilidade ôntica e ontológica, uma mesma ação e um mesmo objeto podem ser naturais em uma situação e serem artificiais noutra, e numa mesma situação um objeto pode ser um artefato e ser uma entidade natural em rela-
50 Atos e Artefatos ção a dois campos de ação distintos que ali se entrecruzam e sobrepõem, como é o caso do pedaço de pedra sabão que é a minha cópia da estátua de Jeremias, de Aleijadinho, e também a morada de certas bactérias e também uma estrutura geológica em constante transformação físico química. A pedra sabão em minha sala, assim como a respiração de Michelle Moura, na peça de arte de dança Fole, é natural e também é artefatual.
O esquema de base articula os conceitos quanto à ordem de prioridade ontológica e semântica enquanto fundados nos conceitos primários de ação, processo e atividade. Os conceitos com os quais se expõe uma situação qualquer, como aquela em que alguém é bem sucedido em fazer uma omelete ou uma em que duas pessoas são bem sucedidas em realizar uma partida de tênis, são todos definidos a partir dos conceitos básicos. No esquema de fundo de uma teoria baseada na ação, a base são atividades e processos que constituem o acontecimento e a realização de uma ação. A ideia é que os conceitos teóricos são introduzidos por abstração, seleção e análise de momentos desse acontecimento, tais como os conceitos de intenção, propósito, sentido, função, papel, plano, direção, significado, entidade, propriedade, verdade, adequação, correção etc. Para todos estes conceitos, enquanto parte de uma teoria explanatória, a sua origem e também o seu lugar de aplicação são concebidos como 19 R. Briscoe, R. Grush, 2015; A. Greenberg, V. Gallese, 2011; L. O’Brien, 2017; M. Thompson, 2008.
A base dessa proposta é o que se tem denominado de “Action based theory”19, ou teorias baseadas na ação, sobretudo aquelas que perfazem os conceitos de mentalidade, intencionalidade, linguisticidade e significatividade, bem como os de sentido, significado e conceito, definidos como fatores emergentes por sobre ações e interações. O que aqui se propõe é que a artificialidade e a artisticidade, enquanto aspectos do âmbito do artefatual, são também fatores emergentes por sobre ações e interações. O que se avança nessas teorias é a tese de que as ações, interações, no plano ontológico, e os conceitos de ação e de campo de ação, no plano semântico, são primários, indecomponíveis e basais.
Modelos ontológicos de fundo O lugar dos artefatos técnicos e artísticos, mesmo que admitida a sua vinculação aos conceitos de agência, ação e campo de ação,
Atos e Artefatos 51 sendo o de um campo de ação instaurado por uma ação. A tese é
Desse modo, a unidade semântica mínima e basal é a de uma ação determinada e os conceitos teóricos são introduzidos por análise e decomposição dessa ação. Tanto a filogênese quanto a ontogênese, por exemplo, de conceitos como intenção e vontade, plano e correção etc., se enraízam nas atividades e processos, no agir e nas ações que agora se mostram efetivas no atos de fazer omelete e de jogar tênis. Num mundo sem atividades e agências, não há lugar para ações e assim também não há lugar para os conceitos pelos quais nós as descrevemos. De fato, por um lado, o domínio do agir e o conhecimento das ações está na base da introdução teorética de conceitos abstratos, e, por outro, os conceitos abstratos, tais como os de intencionalidade e significatividade, apenas têm sua aplicação e referência na descrição de ações. Em suma, a tese básica é que as ações são explanatórias nos planos epistemológicos, semânticos, lógicos e ontológicos em relação sobretudo aos termos e entidades mentais e linguísticas. No caso, a ação de fazer omelete explana os outros termos, e esses outros termos são abstrações por sobre ações. Estendida para a distinção e a identificação dos objetos artefatuais, esta tese implica que a existência e a identidade dos artefatos, técnicos e artísticos, está fundada e adquire consistência apenas no contexto de campos de ação. Com isso se estabelece uma relação intrínseca entre a categoria dos artefatos e a categoria da agência.
duplamente radical: fora do campo de ação de uma ação, estes conceitos não têm sentido e função teórica determinada e o sentido deles é derivado do conceito de ação. O que significa dizer que os conceitos de ação e de campo de ação são pensados como prime em questões de fundação e também de explanação.
Todavia, aqui se propõe uma posição pela qual não natural, ou extra natural, são aqueles fatores que rompem a imanência e o fecho causal da natureza, ao orientarem e determinarem as ações e cursos de ações de agentes naturais por princípios, regras e esquematismos formais fixados por abstração e ficção que, no seu caráter objetivo, constituem o âmbito das “ciências formais”, como as lógicas, matemáticas e informáticas, e também o âmbito do ficcional propriamente artístico. Nesses casos, o que atua, o que faz efeitos, o que é efetivo, sempre é um fator, agente, energético, material, dado naturalmente, mas a “regra” e o “sentido” de sua atuação e articulação podem ser extranaturais e até antinaturais (sem por isso ser transcendental ou metafísico), como já era o caso da regra de seleção pela qual os criadores de animais e plantas “criaram” novas raças e espécies, e ainda mais no sentido do barco à vela que permite usar o vento para navegar contra o vento. Na natureza constantemente surgem novas espécies e subespécies (tudo se transforma (Lavoisier), tudo sofre mutações (Darwin) por forças, fatores e mecanismos imanentes à natureza. Porém, hoje e também no passado, muitas dessas transformações e mutações são e foram imaginadas, calculadas, projetadas e induzidas por ações e cursos de ações baseadas em regras, cálculos, teorias formais e esquemas informacionais20 . Isto é claro no mundo técnico tecnológico atual, fundado que é no cálculo, nas articulações lógico matemáticas, pelos quais a natureza é constrangida e redirecionada, impedida ou transcendida, 20 P. Chopra, A. Kamma, 2006; P. Ball, 2016; A. Cupani, 2011.
52 Atos e Artefatos apenas pode ser determinado a partir de um mapa das regiões ontológicas básicas. Se supusermos um fundo inconcusso de atividades, processos e forças, a partir do qual emergem e se estabilizam formações e entidades com limites bem delineados, ainda assim seria preciso supor uma ruptura para introduzirmos o ponto de separação entre o natural e o artefatual. Em termos tradicionais, o fator interveniente que extrapola e excede o âmbito e o domínio natural era pensado como sendo da ordem do divino e do supranatural, ou seja, era relegado a uma supernatureza.
Atos e Artefatos 53 portanto, artificializada, como é o caso dos organismos transgênicos, das vacinas e dos transplantes de órgãos. Ainda assim, alguém poderia objetar que tudo isso ocorre no plano único da natureza omniabarcante, que tudo o que resulta dessas intervenções arbitrárias ou premeditadas não deixa de ser uma parte ou uma fase da natureza, sobretudo se nela incluímos as ideias e formas, as estruturas imaginárias, as estruturas lógico matemáticas e as implicações informacionais.
Agora, se a ideia de natureza é expandida a esse ponto, torna se claro que esse termo não faz mais nenhuma distinção. Um modelo compatível com este caráter abarcante e abrangente de natureza (N) é tal que as distinções são internas; o humano (H), o extranatural (E), o antinatural (A) e o artefatual (Af), embora sejam distinguíveis para efeitos práticos e heurísticos, ontologicamente são concebidos como objetidades dependentes e pertencentes ao domínio da natureza.Nessemodelo, a natureza é toda inclusiva. A entidade dos entes é natural, e assim o artefatual é posto como ontologicamente inexistente. Embora o humano se distinga por operar o extranatural e assim fabricar artefatos, isso não afeta propriamente a natureza na sua estrutura e deriva. Afinal, uma cama deixada nas intempéries volta a ser madeira morta e se decompõe nas substâncias químicas e físicas sem perdas e ganhos. Os artefatos seriam assim tão somente componentes naturais modificados pelos humanos e submetidos às constrições da natureza. Todavia, o extranatural e o artefatual, desse modo, são reduzidos ao humano, o que não permite explicar o seu potencial e sua efetividade que se observa nos seus efeitos destrutivos e disruptivos em relação aos processos e entidades naturais. Além disso, a presença e as inflexões de formações artificiais alteram os processos e formações naturais em direções irreversíveis, e isso de modo independente da ação humana, como é o caso dos resíduos químicos e atômicos. Para pensar esses efeitos, se faz necessário, porém, admitir algo estranho à natureza. A inclusão de um âmbito fora da natureza altera o modelo inicial. A natureza ainda abrange tudo, inclusive o humano, mas o abs-
54 Atos e Artefatos trato e o formal, nesse segundo modelo são pensados como extranaturais (E), pois escapam do seu regime. Afinal, os números e as estruturas transfinitas são bem conhecidas e ultrapassam qualquer dado natural. Uma simples reta já é algo artefatual. Os humanos acedem e operam o extranatural, sem que isso estabeleça uma cisão na natureza. Nesse modelo, o extranatural existe, mas é inefetivo, como o pensaram Bolzano e Frege. Outra versão desse modelo substitui o extranatural pelo antinatural (A), mas ainda assim o concebe como inefetivo, embora concebível e até calculável, como fazemos com as ideias de mundos possíveis e imaginários. Claramente estes dois modelos alternativos não são explanatórios do poder e da efetividade dos artefatos enquanto capazes de alterar e até se contrapor às forças e entidades naturais. Aqueles que o defendem mantém a suposição de que não há nada efetivo fora da natureza. A efetivação e a atuação do não natural seria sempre por meio de uma ação de um agente natural, no caso, o ser humano capaz de imaginação e elaboração mental e Paralinguística.esteaspecto ser explicitado, faz se necessário introduzir o conceito de artefatual (Af) como algo efetivo que extrapola em parte o domínio natural. Nesse modelo, o extranatural dá origem ao artefatual enquanto algo alienígena à natureza. Esta conexão entre o extranatural e o artefatual permite que a agência do que não é natural seja liberada e independentizada em relação à agência humana, no sentido de atuar para além da presença e continuação da ação humana.Neste modelo, o humano se mostra como capaz de se libertar das constrições naturais por aceder ao extranatural e isto é feito pela intervenção artefatual. As propriedades destrutivas e negativas associadas desde muito aos artefatos, às coisas feitas, agora são explicitadas como o efeito de sua origem e composição fundadas em fatores extranaturais. Seguindo a proposição de que o extranatural é simplesmente aberto e tornado disponível pelo emprego de abstrações, como esquemas, regras, cálculos, teorias formais e informacionais, para dirigir ações e cursos de ações, o caráter danoso dos artefatos, técnicas e tecnologias, em relação aos processos e derivas naturais,
A partir desse modelo podemos visualizar um outro em que a natureza não é mais pensada como omniabarcante, pois não inclui o domínio do extranatural nem o humano está a ela circunscrito. Neste novo modelo, seguindo aquelas ideologias que colocam o mal e a destruição nas escolhas e ações humanas, o antinatural é um produto do humano, inclusos aí os artefatos técnicos, os cálculos formais e os objetos artísticos, os quais, todavia, seriam formações e objetos ínsitos na natureza, mas fundados em princípios extranaturais. Com efeito, no geral não se pensa que as ações humanas e suas produções possam escapar dos domínios naturais, mesmo que possam ter efeitos deletérios. Ainda assim, nesse modelo o ser humano se torna capaz de instaurar regimes e artefatos contrários à natureza por ter adquirido a habilidade de operar em planos e regimes extranaturais.Aposição
Atos e Artefatos 55 torna se explícito. Além disso, o seu caráter e efetividade “antinatural” e de “extranatureza”, uma vez que se admita artefatos abstratos artificiais ou ficcionais, vem à tona. Artefatos, desse modo, sempre são híbridos, ao serem compostos de natureza e serem constituídos pelo recurso ao extranatural. Ainda assim, o antinatural e artefatual seriam uma projeção de entidades naturais capazes de lidar com abstrações. O mundo, enquanto distinto da natureza, seria uma projeção de seres mentais e linguísticos.
aqui defendida, que embasa a teoria dos artefatos acima esboçada, se estrutura como uma exacerbação desse modelo, na qual se distinguem quatro domínios interligados e sobrepostos apenas parcialmente: o natural, o extranatural, o humano e o artefatual. Embora se possa objetar que não há evidências claras para artefatos não humanos, a simples observação acurada das outras formas de vida na Terra, como os macacos prego e os polvos, sugere já que podem haver artefatos não humanos, e assim, por extensão, também poderíamos pensar em fatores extranaturais e antinaturais não humanos. Admitidas essas possibilidades, poderíamos distinguir entre cultural, como relativo ao humano, e liberar a categoria do artefatual, para outras formas de existência e agência.
Na categoria do cultural se articulam e sobrepõem a natureza, o humano, o extranatural e o artificial. O que vínhamos denominando antinatural pode agora ser dispensado, pois não temos nenhuma evidência de um âmbito independente com esse caráter. O antinatural é uma projeção normativa a partir dos efeitos destrutivos e disruptivos do humano e também de seus artefatos, mas isso também pode ser pensado a partir dos efeitos de comportamentos e artefatos não humanos. A natureza torna se assim um âmbito da realidade, ao lado dos âmbitos do extranatural e do artificial. Podemos imaginar um mundo em que os humanos exploram fortemente o âmbito do extranatural, por meio de ciência e arte, sem contudo produzirem um artefato sequer. Muitas pessoas sonham com um mundo assim no qual a natureza, inclusive a humana, restaria intocada. No modelo cosmogônico do senso comum científico atual, a natureza é o âmbito primário e os outros âmbitos emergem dele por algum evento evolutivo em termos das ideias de Lavoisier e Darwin. Esta evolução até pode implicar a irredutibilidade ontológica e conceitual, mas está pressuposto que no transcorrer do tempo tudo será transformado em direção a uma condição na qual os âmbitos emergentes serão destruídos. O modelo aqui defendido, ao contrário, implica a ocorrência de eventos disruptivos, no sentido de que a própria natureza se deixa transformar em direções não previstas na sua fábrica. Desse modo, se reconhece o grau máximo da precariedade das nossas condições de existência. O primado das atividades A dificuldade de se pensar um modelo ontológico de fundo tal como este último está nas pressuposições substancialistas e deístas ainda vigentes no pensamento teórico filosófico que supõem essências e formas naturais pré figurantes e independentes de processos naturais e materiais. A solução para superar essa crença está em adotar uma ontologia que elimine esse tipo de entidade ou que as admita apenas como efeitos emergentes e efêmeros porquanto relacionais
56 Atos e Artefatos
Atos e Artefatos 57 e dependentes21. Ainda assim, a natureza pode restar intacta enquanto estrutura e constrição para os possíveis processos e formações. Nessa perspectiva, a proposta consiste numa ontologia adequada aos conceitos de transformação (Lavoisier) e de mutação (Darwin) pela qual entidades (objetos, coisas, eventos) são fases (ou efeitos, produtos ou aspectos) de atividades e processos, ações e cursos de ações: sua existência, consistência e identidade se resolvem pela explicitação de atividades, processos e ações, mas também por seu ter parte e papel em atividades, processos e ações. Desse modo, a natureza material e também a natureza formal ou ideal são pensadas como fases e concreções dependentes de atividades e processos, justamente como é ilustrado pela teoria da grande explosão que remete tudo o que há para o domínio de forças e energias fundamentais, sobretudo as entidades que aparecem para nós como independentes, tais como pedras, animais, estrelas, montanhas e rios. Não se nega o fato de que essas entidades, as típicas substâncias aristotélicas e os típicos objetos kantianos, tenham consistência e assim existência e identidade passíveis de distinção e reconhecimento. O que se recusa é que o seu ser não seja o efeito de processos e atividades, de históricas, tal como é reconhecido já na geologia e na biologia. A análise em termos de entidades atômicas é um recorte que abstrai tempo e retém apenas a distribuição espacial. A inteira biosfera é uma variação de atividades que supõem átomos e moléculas, mas estes também são uma fase de atividades mais fundamentais. A vida na Terra, assim como esse próprio planeta, portanto, é uma formação entre outras e em muitos tempos e lugares essa formação não se instaurou, ou adquiriu outra direção. Desse modo, entidades naturais e entidades artefatuais podem ser reconhecidas e distinguidas, mas isso apenas sob a abstração dos múltiplos processos e derivas geracionais que os perfazem. Uma cadeira e uma pedra são ambas fases de processos geracionais em 21 J. Seibt, 2010; C. Coni, 2005.
58 Atos e Artefatos curso. A distinção entre natural e artefatual deverá então ser explanada pela intervenção de um fator extranatural no processo geracional da cadeira. Que hoje o façamos pelo remetimento do estar sendo e do estar assim constituída da cadeira a um processo que inclui uma ação humana, consciente e premeditada, não exclui de modo algum que haja no universo artefatos resultantes de outras intervenções disruptivas em relação aos processos geracionais naturais.
Nesse ponto podemos retomar o que foi posto no início, ou seja, a tese do primado das ações e dos campos de ação sobre os artefatos. A bola de tênis, um artefato técnico, tem sua existência e identidade determinadas e apropriadas no campo de ação de jogar tênis, mas quando adentra e faz efeitos no campo de ação de um almoço, ao quebrar um copo, o faz como objeto físico segundo as forças, propriedades e fatores da natureza. A bola de tênis é um artefato produzido e ajustado para ser um objeto apropriado para jogar tênis. A sua forma, o seu peso, a sua composição e suas propriedades, tudo é o resultado de sua apropriação para a ação de jogar tênis. Como tal, ela é o resultado de seleções e de intervenções nos suportes materiais a partir de esquemas, cálculos e regras não dadas na e pela natureza. Isto também se aplica aos objetos abstratos, como é o caso de um ponto no jogo de tênis e do desenho da quadra. Agora, considere se um tronco de árvore destacável, manuseável e identificável, seja enquanto o resultado de processos naturais, seja enquanto o produto de uma intervenção técnico mecânica artificial. Este objeto pode vir a ser um artefato técnico, como uma prancha de surfe ou uma tábua de limpar peixes, mas também pode vir a ser, com ou sem nenhuma intervenção adicional, uma obra de arte. De elemento e parte da natureza, um tronco de árvore pode vir a ser um objeto técnico e também uma obra de arte. O que o faz transitar de um ser ao outro é a sua apreensão e enredamento em diferentes campos de ação ao ser agenciado para ter parte e função relevante na consecução de ações distintas. Estas obras de arte, pois sim hoje estes troncos de árvores caídas e mortas existem como
Atos e Artefatos 59 obras de arte22, ainda são também natureza, um pedaço dela apenas retirado de seu ambiente, ou um outro retirado e alterado por meios técnicos e artísticos. Neles, natureza, técnica e arte se conjugam para produzir algo que não é dado pela natureza e que também a extrapola emUmparte.exemplo de obra de arte na qual esta conjugação não é apenas uma sobreposição, mas sim um plexo de interação de atividades e ações dos três planos é a escultura Soffio di Foglie, de Giuseppe Penone (1979). Nesta obra, que é uma escultura ou objeto resultante de uma sequência de ações performáticas prévias e premeditadas, se conjugam campos de atividades naturais, como as folhas das árvores, a respiração e o corpo do artista, atividades e ações de técnicas e de arte, mas que atuam, de certo modo, em separado. O resultado é um objeto com certa consistência, mas as atividades e ações não atuam conjugadamente, mas em sequência que culmina num objeto estático. Uma outra obra do mesmo artista estabelece a articulação e a conjugação das ações naturais, técnicas e artísticas de modo interagencial e constitutivo da própria realização da obra.
Com efeito, a obra Elevazione, G. Penone (2000), instalada no parque Inhotim, já não pode ser classificada como mero artefato e também não como mera obra de arte estética e simbólica, embora o seja isso também. A obra não é apenas o resultado ou produto da ação de Penone, pois o seu vir a ser o que é, o seu estar sendo tal como é e, também, o seu vir a ser o que ela será, se instaura pela cooperação das ações da natureza, da técnica e da arte.
A historicidade poligênica dos artefatos
O que antes foi denominado de extranatural e também de antinatural, o caráter monstruoso dos artefatos, que resulta da quebra do fecho causal e da disrupção da imanência natural, emerge no caráter multirealizável e poligênico que os afeta. Dito em termos negativos, os artefatos não têm essência e nem forma que lhes seja 22 F. Krajcberg, 2016; G. Albergaria, 2020; E. Srur, 2020.
60 Atos e Artefatos substancial e própria. Os aspectos substanciais e formais que reconhecemos nos artefatos técnicos e artísticos são, por um lado, o efeito de constrições históricas e, por outro, são contingências materiais. Se hoje fazemos tesouras preferencialmente com duas lâminas de aço forjado unidas por um pino metálico, isso nem sempre foi assim e nem sempre precisa ser assim. O seu desenho e também a sua composição são fatos históricos, portanto, contingentes e relacionais. Uma tesoura não tem este ou aquele formato essencialmente, esta função, e muito menos esta ou aquela composição. Na sua origem, as tesouras eram feitas de uma única lâmina de metal redobrada; hoje temos tesouras de fibra de carbono, com várias lâminas, para várias funções diferentes. Ali onde uma descrição se põe como a descrição da essência da tesoura, ali se escolheu uma tesoura particular como paradigma para todas as tesouras. Os artefatos técnicos se distinguem por estarem orientados para a eficácia na ação. A sua materialidade, desenho e função se determinam pelo propósito de uso, ou seja, pelo tipo de ação para a qual ele é preparado. A ação a ser realizada impõe as constrições da construção apropriada do artefato técnico. O ser apropriado, efetivo e eficaz de um artefato, isso se determina na ação que se realiza pelo seu uso. O próprio uso já secundário. Do primado da ação, facilmente se pode inferir a contingencialidade que afeta os artefatos quanto ao seu material e formato, mas sobretudo a sua poligenia, pois uma ação pode se realizar por outros meios. A ação de cortar papel e tecidos determina o desenho das tesouras, mas esta ação pode ser realizada de diferentes modos e com diferentes meios. No caso da ação de calcular e dos artefatos abstratos, diferentes algoritmos podem ser usados, de modo que um algoritmo, por mais impositivo que seja, também pode ser dispensado por outro que realize o mesmo cálculo. No caso dos artefatos artísticos também está em questão a eficácia na ação que determina a sua materialidade, desenho e função. Se há alguma diferença entre um artefato artístico, como um poema, e um artefato técnico, como uma tesoura, isto tem de aparecer como uma diferença de ação e de campo de ação que se realizam por seu concurso. Se pensados a partir da ação e do campo
Atos e Artefatos 61 de ação, os artefatos artísticos e obras de arte também deixarão ver o seu caráter contingente e poligênico. Com efeito, o conjunto de artefatos técnicos, abstratos e artísticos hoje existentes, além de serem uma formação histórica, não podem ser subsumidos em tipos naturais, mas também não em tipos artificiais. Este conjunto é, para retomar os termos de Husserl, uma totalidade imprópria, no sentido de que não há uma essência ou um conceito que os reúna a priori. Nos termos posteriores e equívocos de Wittgenstein, as expressões “objeto técnico”, “cálculo” e “objeto artístico” nomeiam a cada vez uma multiplicidade de objetos, mas isso não implica que esses termos significam um conjunto de propriedades fixo que corresponda às propriedades dos objetos designados.A partir dessa constatação, a própria distinção entre técnica, cálculo e arte se torna contextual e relacional: apenas pela delimitação e fixação de campos de ação e de especificações de ações é que se pode predicar de modo determinado “isso é arte e não é técnica” ou “isso é uma obra de técnica e não de arte”, ou “isso é uma proposição matemática e não artística”. Todavia, historicamente, pode se mostrar facilmente a distinção e até a oposição entre o campo de ação artística e o campo de ação técnico tecnológico. As ações técnicas estão orientadas para o agir fazer eficaz e os artefatos técnicos são desenhados e confeccionados para serem apropriados para a realização eficaz de determinadas ações em relação a materiais ou conteúdos determinados. Por sua vez, um algoritmo é criado e apropriado para realizar ações formais específicas. As ações artísticas também estão orientadas para o agir fazer eficaz e os artefatos artísticos também são desenhados e confeccionados para serem apropriados para a realização eficaz de determinadas ações em relação a materiais ou conteúdos determinados. Todavia, as ações e os campos de ação da arte e da técnica hoje são distintos, embora se sobreponham em muitos aspectos. O campo de ação da arte exige eficácia afetiva (estética, semântica, formal) em relação ao fazer sentido de uma ação ou de um artefato. O campo
62 Atos e Artefatos de ação da técnica exige eficácia causal (funcional, material) em relação ao fazer efeitos de uma ação ou de um artefato. Por isso, a efetividade de uma obra de arte se distingue assim da efetividade de uma obra técnica: enquanto partes e partícipes efetivos de uma ação, elas se distinguem por sua performance em campos de ação distintos. A performance artística implica efeitos de sentido, o que é um acréscimo à performance técnica que se realiza plenamente ao produzir efeitos causais e materiais. Contudo, não há obra artística que não seja um objeto técnico, e muitos objetos técnicos são obras de arte também.Comefeito, como no caso da obra Elevazione, de Penone, o campo de atividades da natureza às vezes se conjuga com o campo de ações técnico tecnológicas e com o campo de ações estético artísticas na consecução da inteira obra de arte. Esta obra é um artefato que articula e conecta a agência da natureza, da técnica e da arte, perfazendo um interagenciamento cooperativo simbiótico e maquínico, natural e artefatual. O próprio parque museu Inhotim, onde ela está instalada, tem esta constituição híbrida, é um recanto natural, mas tudo ali foi reconstituído, transplantado e alterado para ser idêntico a um sítio natural. Contudo, esta aparente fusão apenas se impõe para um observador esteta ou para um leitor desavisado que toma o dado apenas enquanto dado e nos limites do dado. Uma análise acurada, que inclua os processos geracionais e o tempo para além do instante, permite distinguir os diferentes campos de ação, suas gêneses e derivas, que atuam na realização da obra e também do parque. Uma vez instalada a obra, as ações e os campos de ações técnicos e artísticos permanecem ativos nos seus efeitos, mas estes agora estão no campo de ação da natureza, o que não exclui a efetividade das ações técnicas e artísticas. Esta interconexão e sobreposição parcial, às vezes simbiótica, às vezes disruptiva, se deixa melhor percebe quando se abandona o foco de apreciação voltado apenas para objetos isolados e se considera campos de ação amplos. Se o campo de ação técnico e artístico considerado é, por exemplo, a cidade de Florianópolis, com suas gentes, seus artesanatos, suas técnicas, práticas e artes, suas obras e
Atos e Artefatos 63 eventos, suas pontes e suas rendas, redes de pesca, canoas, poesias, literaturas, pinturas, esculturas, equipamentos técnicos e tecnológicos, instituições e códigos de leis, isso tudo enraizado material, geológica e biologicamente na formação rochosa no meio do mar denominada Meiembipe, então emerge aquela sensação de que tudo está conectado e que a natureza abrange todas as atividades e ações. Todavia, sob uma análise mais atenta ao tempo, aos processos de formação e às atividades, se tornam claros cursos de ações diferenciados e formações sobrepostas. Os processos e derivas naturais seguem seu curso e seus efeitos são pervasivos. Ainda assim, muito do que há e acontece na ilha provém e está constituído a partir de cursos de ações que a natureza por si só não provê e cuja lógica não é natural, mas sim artificial. De fato, a ilha vista de longe é um pedacinho de natureza e uma parte do universo natural. De perto, porém, nem tudo é tão natural assim, pois muitas entidades e condições são assim como são e existem ali apenas pela intervenção transformadora e disruptiva das ações humanas, ações essas conduzidas e estruturadas por princípios e lógicas extranaturais múltiplas. Ainda que todas as coisas inorgânicas e todos os organismos da ilha possam ser reconduzidos retroativamente por processos geracionais a uma origem comum e ao próprio evento de formação do atual universo natural, a composição e a constituição de muitas formações e objetos ali são o produto da quebra do fecho causal e da imanência natural. Estas quebras produzem tanto entidades, como prédios, máquinas e organismos cuja estrutura e genética foi alterada por processos maquínicos, quanto rupturas e destruições de entidades, condições e ambientes naturais. Por isso, admitimos que na ilha estão em curso vários processos antinaturais, os quais são o efeito de ações e cursos de ações fundados em princípios extranaturais técnicos, tecnológicos e, por que não, artísticos.
O conjunto de objetos e eventos artefatuais da ilha Meiembipe, por sua vez, o âmbito dos objetos técnicos e tecnológicos, mas também dos objetos de artesania e de arte, conformam também uma multiplicidade imprópria, pois eles não se deixam apreender a partir
64 Atos e Artefatos de uma única origem, tendo em vista que a sua proveniência e seu uso são o resultado do entrecruzamento de múltiplas atividades, ações em curso e cursos de ações. Não é possível reconduzi los todos retroativamente a um único ponto de origem. No passado e no presente, atuam e interagem múltiplos campos de ação e deles resultam diferentes formações e objetos artefatuais. As letras que compõem as inscrições do nome “Florianópolis”, esta palavra imposta arbitrariamente, diferem em muito das inscrições indígenas nas pedras no interior da ilha. Ambas são formações que se enraízam em diferentes e variados cursos civilizatórios. As técnicas, as artes, os linguajares do pescador, do marujo e do surfista, nas suas lidas diárias com a natureza e o entorno artefatual, para citar apenas um exemplo, mostram que diferentes engajamentos prático corporais, diferentes campos de ação (pegar peixe, pegar onda, transladar gentes e mercadorias), ações e cursos de ações vigoram e fazem efeitos na cidade de Florianópolis. A diferença de cultura, de engajamento e agenciamento indicam que pescadores, marujos e surfistas irão perceber, representar, dizer e perfazer o mundo da lida com o mar de modo distinto e também que conformam artefatos, como o barco e a prancha, e técnicas diferentes. Além disso, pescar e surfar na praia da Joaquina são fases de cursos de ações cujas gêneses e derivas se enraízam na história humana profunda e são o resultado de entrecruzamentos e sobreposições plurais. “Onde quer que a vida tenha ocorrido e tenha ganho a compreensão, há história. E onde há história, o sentido se faz presente em sua multiplicidade”23. A multiplicidade de artefatos e de tipos de artefatos é irredutível, tal como o é a multiplicidade de palavras da língua portuguesa falada na cidade. Por conseguinte, diferentes gêneses e derivas estão em curso, em fase ou defasadas, na natureza, nas técnicas e nas tecnologias, nas artes e culturas de Florianópolis.Sobum
olhar analítico e ontológico, o que é isso que há em Meiembipe é e não é apenas natureza (N), pois inclui muitas coisas 23 W. Dilthey, 2010, p. 253.
Atos e Artefatos 65 que apenas são explanáveis na sua origem e formação pela suposição de fatores extranaturais (E), sobretudo aquelas coisas cuja proveniência se deve às intervenções e transformações humanas (H). Muito da natureza, incluindo espécies e espécimes, ambientes e formações, montanhas e rios, foram extintos; muito do que é ainda a natureza foi alterado definitivamente pelas ações humanas, de modo que há na ilha fatores antinaturais (A). Se vemos uma árvore e até uma floresta ao longe, muito certamente ela não é natural, mas sim uma formação vegetal na qual se conjugam e se interpenetram dinâmicas e derivas naturais com ações e cursos de ações artefatuais (Af).
Os artefatos técnicos e artísticos têm sua existência, sentido e função determinados por campos de ações enquanto partícipes de ações em situações indexadas a agentes. Artefatos implicam agentes ativos e ações bem sucedidas. A analítica do sentido dos artefatos aqui proposta se baseia no conceito de campo de ação, como uma alternativa às teorias funcionalistas, intencionalistas e também às de dupla natureza. A teoria proposta é realista quanto à existência de entidades que são artefatos, no sentido de tomá los como constituintes efetivos de situações, e praxiológica quanto à natureza de tais entidades. A base da teoria é o conceito de agência, sob a suposição de que um universo sem agência é um universo no qual o conceito de artefato não tem aplicação. A partir do conceito de agência são introduzidos os conceitos de campo de ação e de partícipes de um campo de ação, a saber, agentes e objetos. Um artefato é definido como uma entidade selecionada por um agente para ter parte e papel na consecução de uma ação. A teoria dos artefatos diz respeito a um tipo de entidade que se diferencia em relação aos tipos naturais e aos tipos meramente possíveis e também aos imaginários. Um garfo e um telefone, mas também uma estátua e uma aeronave, são objetos candidatos a pertencerem às entidades do tipo artificial. Aqui vou defender que artefatos existem e que eles têm identidades determináveis. No debate atual nenhuma dessas teses está decidida. Alguns defendem que não
Atos e Artefatos 67 4 O SENTIDO DOS ARTEFATOS
68 Atos e Artefatos há entidades que sejam artefatos, e outros defendem que há artefatos, mas que eles não têm uma identidade definida, seja por não terem uma natureza ou essência, seja por pertencerem concomitantemente a diferentes categorias ontológicas. A primeira tese que vou expor e defender afirma que o nosso universo é tal que algumas entidades que o compõem são artefatos, no sentido de que a composição e a estruturação do universo como domínio de agenciamentos, e não apenas como universo de discurso, inclui itens artificiais. Esta tese é implementada por meio de uma segunda, que afirma que artefatos são entidades com identidade determinada, mas correlacional e contextual, baseada nos conceitos de ação e campo de ação.
Multirealizabilidade e ação A proposta para a identidade e a existência dos artefatos segue a direção sugerida por aquelas teorias, primeiro, que têm o conceito de ação como base na explanação dos conceitos de percepção e de linguagem24 e, segundo, e mais decisivo, aquelas teorias que defendem que o conceito de ação é primário25. Essas teorias indicam que o conceito de ação tem um uso explanatório básico e que muitos conceitos podem ser dele derivados ou então o pressupõem como já aplicado. A estratégia explorada aqui consiste em referir o conceito de artefato ao conceito de ação, nos sentidos de agir e fazer, conquanto a existência de um artefato implica a ocorrência de uma ação e de que a identidade de um artefato implica para a sua determinação a referência a uma ação. O conceito de ação então seria explanatório em relação ao conceito de artefato, e também seria suficiente, por dispensar os conceitos de função, intenção e mente comoUmsecundários.artefatonão é algo extranatural, mas ainda assim parece não ser um tipo natural. Um artefato é o produto de uma ação. Dizemos que uma oca e um cesto de vime são artefatos, mas que os 24 R. Briscoe, R. Grush, 2015; A. Glenberg, V. Gallese, 2011. 25 L. O’Brien, 2017; M. Thompson, 2008, pp. 116 18.
Atos e Artefatos 69 ninhos dos pássaros Furnarius rufus e Turdus rufiventris não são artefatos. Casas e cestos seriam tipos culturais, os ninhos são tipos naturais, assim reza a teoria desde Dilthey (2010). Porém, sob uma análise em termos de funções e estruturas não há nenhuma diferença relevante e explanatória, causal e material, que permita essa distinção. A única diferença é que os primeiros são objetos feitos pelo Homo sapiens e os outros são feitos por aves passeriformes. Se aceitamos a teoria da evolução, esses tipos de objetos se deixam facilmente localizar numa série ininterrupta de adaptações bem sucedidas que propiciaram condições favoráveis à continuidade das respectivas espécies. Do ponto de vista da eficácia causal e fisical, em prover abrigo para as proles, essas construções são muito efetivas. Então, onde está a diferença, se é que há alguma? A resposta está nos conceitos de multirealizabilidade e de agência. Todos os Turdus rufiventris fazem ninhos de galhos, gramíneas e barro na forma de um cesto encaixado nos galhos de uma árvore e todos os Furnarius rufus fazem seus ninhos de barro e gramíneas sobre um galho ou apoio qualquer. Mas nem todos os humanos, mesmo pertencendo à mesma espécie natural, fazem casas e cestos de vime. E, se fazem objetos com a mesma função para realizar os mesmos propósitos, os fazem com materiais e estruturas diferentes, além de o fazerem para outras funções e com outras intenções. A partir disso, podemos delimitar os artefatos como aqueles objetos feitos com base na exploração reiterada da multirealizabilidade. E o conceito de agência também pode ser referido à exploração da multirealizabilidade por parte de uma entidade. Artefatos são o resultado de um fazer e podem ser identificados por essa ação. Sabiás e Kamayurás não encontram ninhos e ocas na natureza, eles precisam fazer alguma coisa para que um ninho e uma oca passem a existir. Este fazer põe na existência um artefato, e também determina a sua identidade. Ninhos e ocas são datados por terem sido feitos num tempo e não em outro, além de serem localizados, pois são feitos em um lugar determinado pela ação determinada de determinados agentes.
70 Atos e Artefatos A diferença está no processo geracional que embasa esse fazer. Os Kamayurás fazem ocas na aldeia, mas também o fazem em um museu de arte contemporânea e também o fazem apenas para mostrar para outros humanos como é que se fazem ocas. Todavia, um Kamayurá pode não fazer uma oca e sim fazer uma casa de tijolos ou escolher alugar um apartamento para morar. Porém, os sabiás fazem ninhos apenas na estação de procriação e quando estão em fase de acasalamento. Denominemos provisoriamente o fazer dos Kamayurás de ação, e o fazer dos sabiás de atividade. A partir disso podemos caracterizar um objeto como artefato pelo fato de ele ser um efeito de uma ação. E uma ação é uma atividade de um ou mais agentes, mas uma tal que eles podem realizar e também podem não realizar. Na raiz do conceito de ação está a multirealizabilidade. Um agente é qualquer atuador ou efetuador que pode atuar e também pode não atuar, ou ainda atuar de maneira diferente. Quando dizemos que uma casa e um cesto de vime são artefatos implicamos nessa forma de dizer a agência e também a multirealizabilidade. E ao dizermos que os ninhos dos pássaros são um tipo natural implicamos que eles são feitos pelos pássaros, mas também que eles não poderiam não o fazer e sobretudo não poderiam fazer de outro modo.
Reconhecendo a existência de artefatos Um artefato é tanto o referente de certos termos e frases quanto um objeto de certos atos de atenção e também um componente ôntico de situações. Além disso, defendo que um artefato é um tipo de entidade. Considere se a estátua de um filósofo. Várias formas linguísticas podem ser usadas e introduzidas para referir esse objeto, e também várias práticas e ações podem ser realizadas com ele; e esse objeto pode ser visto a partir de diferentes visadas, pode ser pensado, imaginado, admirado, e levado para outra sala; e, todavia, para além de ser uma coisa sobre a qual se fala e diz alguma coisa, e para além de ser um objeto de atos conscientes e inconscientes, penso que o recenseamento das coisas que efetivamente estão aí terá
Atos e Artefatos 71 de incluir esta estátua de pedra que parece com Nietzsche. Nesse sentido, defendo a tese de que entre as coisas que há estão algumas que são artefatos. O universo é tal que artefatos fazem parte dele. Também defendo que artefatos são um tipo específico de entidade, a saber, entidades historicamente dependentes de ações e agentes: um artefato é uma entidade cuja identidade e existência resultam de uma ação, ou curso de ações, de seleção ou produção, realizadas por um ou mais agentes na consecução de uma ação. Ademais, um artefato pode ser efetivo para além da ação de produção, pois é o seu agenciamento numa ação que faz dele ser o que é e existir como artefato. Por conseguinte, nessa análise, os artefatos são produtos de atividades de seleção e produção, ou seja, um artefato é uma coisa feita. Para contraste, sem ainda tomarmos essa distinção como já fixada, considere se uma pedra na pedreira. A própria pedra não é um artefato, mas, sim, é um artefato o busto de Nietzsche que o escultor fez com esta pedra. A estátua e a pedra compartilham agora uma parte substancial, pois dois terços da pedra original compõem agora a estátua de Nietzsche. O escultor não fez, formou ou gerou a pedra; a pedra foi formada por eventos e processos geológicos a milhões de anos. Já a estátua de Nietzsche foi formada pelas ações do escultor no mês de abril de um ano qualquer, de recolher uma pedra para fazer uma estátua de um filósofo, usando para isso cisões, martelos e lixas. A diferença entre a pedra, enquanto objeto natural, e a estátua, enquanto objeto artefatual, está justamente na ação executada pelo escultor.Aatividade formadora da pedra e a atividade formadora da estátua são diferentes, por isso dizemos que a pedra é um efeito de certas atividades e que a estátua é um produto de certas atividades e ações. A teoria dos artefatos aqui defendida assume essa distinção como básica, no sentido de que a natureza dos artefatos será essencialmente remetida a um tipo específico de atividades, denominado de “ações”, que implica necessariamente um ou mais agentes, os quais são agentes apenas por suas ações. Os artefatos em geral são produtos resultantes de ações de fazer algo a partir de uma outra coisa. Agora, nem todo artefato é um produto de uma ação de fazer, mas
26 A. Wierzbicka, 1996, p. 372. 27 S. Carey, 2009, pp. 158 59.
72 Atos e Artefatos todo artefato é um produto de uma ação que toma algo para realizar uma função ou ter um papel no curso de uma ação. Assim, se alguém utiliza uma pedra para escorar a porta, esta pedra se torna um artefato relativamente a esta ação. Esse ponto é decisivo, pois sem o remetimento a uma ação ou a um curso de ações, algo não é propriamente um artefato. O ser um artefato de uma pedra não está propriamente na pedra, mas esse ser é dado por uma ação que a agencia para o exercício de um papel em algum curso de ação. Por isso, uma pedra que não sofreu nenhuma modificação por uma ação proposital pode ainda assim ser um artefato, desde que seja selecionada e tomada como tendo um papel efetivo nalguma ação, e uma pedra trabalhada e alterada por uma ação proposital pode deixar de ser um artefato ao ficar solta em relação a cursos de ações e restar à deriva das causas e efeitos não agentivos. Todavia, a própria distinção entre efeito e produto, acontecimento e ação, ancora se na distinção entre agente e não agente e implica alguma diferenciação no plano mesmo das atividades. Pois, nessa visada, se há artefatos, há ações, e para haver ações é preciso haver agentes. A estratégia aqui será a de partir da diferenciação de tipos de atividades, a ponto de ao menos tornar claro a distinção funcional entre atividades desencadeadas por agentes e atividades desencadeadas por efetuadores não agentivos, tendo em vista que distinguimos, inclusive gramaticalmente26, entre artefatos e não artefatos, e psicologicamente27 entre agentes e objetos não agentivos. No caso da admissão de artefatos, tais distinções parecem indispensáveis. Porém, a admissão dos artefatos no cômputo ontológico, no sentido de os incluir no rol daquilo que há, ainda não diz nada acerca da natureza ou consistência dessas entidades.
Com vistas a uma análise compreensiva, considera se aqui como artefato os utensílios, aparelhos, instrumentos e aparatos técnicos e tecnológicos materiais, obras artísticas, objetos produzidos ou selecionados para algum propósito, concretos ou abstratos. Um automóvel é um artefato, mas também o é uma ponte, um anel, e uma usina atômica; a atual tabela periódica é um artefato e também o é Abaporu, um livro e assim também a prova da incompletude da aritmética de Gödel e a teoria geral da relatividade, a constituição brasileira de 1988 e a Universidade Federal de Santa Catarina. No geral, intuitivamente, seguindo a noção antes indicada, uma pedra, uma árvore e um pássaro não são então artefatos, e nem uma molécula de hidrogênio. Todavia, na teoria que se desenvolve, mesmo esses itens podem vir a ser, e aqueles anteriores também podem não ser, propriamente falando, artefatos.
O conceito de artefato foi introduzido a partir dos conceitos de agente e agência relativos a um campo de ação delimitado por uma ação em curso, ou curso de ações. Que o agente seja ou não humano não é decisivo, mas sim a atribuição de agência e a atribuição de um papel ou função (role) a algo no contexto de uma ação. Se um pássaro seleciona, adapta e usa um graveto para retirar uma lagarta de um buraco e o faz reiteradamente na ação de se alimentar, então, por esse conceito, o graveto é um artefato. Exemplos disso são essas observações recentes28 que mostram animais adaptando objetos para conseguir algo impossível de se fazer com os meios naturais disponíveis. O que torna algo um artefato é o agenciamento no contexto de uma ação que explora a multirealizabilidade. Por isso, se um robô, na sua interação com o ambiente, seleciona e adapta um material do ambiente para realizar um papel ou função no contexto de uma atividade, esse material deveria ser descrito como sendo um artefato, tal como esses galhos utilizados pelos animais. Fora do contexto da ação de obter água, são galhos e não artefatos, mas selecionados e adaptados e usados, no curso dessa ação, 28 J. Lapuente et al, 2016; G. Hunt, R. Gray, 2004.
Atos e Artefatos 73
O que caracteriza algo como um artefato
de um agente utilizar uma pedra para prender uma folha para ela não ser levada pelo vento, e o caso (2) em que uma pedra rola do morro e cai sobre uma folha prendendo a de modo que o vento não a pode levar. O que sugiro é que a pedra do caso (1) é um artefato e que a pedra do caso (2) não é, embora elas tenham a mesma propriedade e a mesma relação causal na situação. A sequência de eventos de uma pedra rolar e cair sobre uma folha e prendê la não é uma ação ou um curso de ações atribuível a um agenciador e isso faz toda a diferença, pois acarreta que não há uma ação em curso na qual a pedra foi agenciada para realizar a função de prender a folha. A pedra do caso (1), diferentemente, tem a de prender a folha agenciada por um agente para realizar a ação de prender a folha para que o vento não a carregue. No contexto dessa ação, a pedra tem um papel (role) ou propriedade (propriety), mas esse papel não se confunde com a propriedade (property) de prender a folha, pois ele se determina apenas pela ação de prender a folha para evitar que o vento a carregue. A diferença pode ser descrita em termos de realização múltipla, pois o que distingue um caso de outro é a possibilidade, dada no caso (1), de se utilizar um outro objeto e também de se utilizar aquela mesma pedra para realizar outra ação. Mas, em última instância, é a referência à ação de prender a folha que faz com que a pedra seja um prendedor de folhas.A partir dessa concepção, tanto objetos tecnológicos, como o telefone usado para enviar uma mensagem, quanto uma pedra usada para prender uma folha, podem ser artefatos nesse sentido, pois o que define se algo é um artefato é, primeiro, o seu agenciamento no curso de uma ação, segundo, que seu papel ou função seja selecionado, atribuído ou implementado pelo seu agenciamento no curso de uma ação. Em português, e em análise gramatical, a palavra que melhor capta esse conceito é “instrumento”. Nos exemplos acima,
propriedade
74 Atos e Artefatos são artefatos. Por artefato, entendo qualquer item usado para realizar uma ação cujo ter parte e papel na ação seja implementado por esse tipo de Considereagenciamento.seocaso(1)
O conceito de artefato então é pensado relacionalmente e contextualmente, sobretudo interagencialmente, no sentido de que “ser um artefato” é um predicado relativo a uma (possível) ação, ou a um curso de ações, de um agente em relação a um ambiente, ou de um agente em relação a outros agentes e um ambiente. O que faz com que algo seja um artefato é o fato desse algo desempenhar um papel função (causal ou não) no curso de uma ação, e não propriamente sua forma ou matéria. Apenas o papel ou a função no curso da ação importa e é esse papel que determina inclusive a seleção de formas e propriedades enquanto o artefato tem papel operatório na realização da ação. A bola de tênis é um exemplar típico de artefato, mas também um pedaço de carvão utilizado para escrever. O que hoje conta como bola de tênis e como instrumentos para escrever são artefatos tecnológicos muito sofisticados, mas ainda assim a sofisticação tecnológica das bolas e lápis está orientada pelo papel a ser desempenhado nas ações de jogar bola e de escrever. Se alguém pergunta o que é isso, uma bola e um lápis, as respostas que mencionam as ações de fazer e usar algo para jogar e para escrever já são suficientes.A ausência de agenciamento faz um objeto perder concomitantemente a condição de artefato. Uma bola esquecida no quintal e uma estátua jogada no lixo são objetos apenas submetidos às leis, 29 R. R. Dipert, 1993.
Atos e Artefatos 75 diz se que a pedra e o telefone são os instrumentos usados para realizar a ação. Poderíamos reservar a palavra “artefato” apenas para as coisas feitas, modificadas ou construídas; mas, o conceito de artefato também inclui aquelas coisas apenas selecionadas29, sem serem trabalhadas ou feitas, para cumprir uma função que elas não têm por si mesmas ou naturalmente. Desse modo, o conceito de artefato é definido pela atribuição ou implementação de propriedades, como ter parte, papel ou função, a algo por meio de seu agenciamento no curso de uma ação, e não pelo fato de algo ser trabalhado ou alterado por uma ação intencional, e também não por ter essa ou aquela propriedade em si mesmo.
Analítica do artefatual Uma concepção bem estabelecida sobre a natureza dos artefatos propõe que os artefatos sejam definidos pela função. Para Hilary Kornblith30, a natureza dos artefatos determina se por sua função e o que faz com que dois artefatos pertençam ao mesmo tipo é que eles cumprem a mesma função. Nessa teoria, artefatos são concebidos como objetos funcionais, no sentido de que a essência ou identidade desses objetos é constituída por sua função. A função do ob30 1980, p. 112.
76 Atos e Artefatos relações e atividades naturais, ou seja, não são mais “uma bola de futebol” e “uma estátua”, pois essas funções e papéis não têm parte no contexto natural. Além disso, esses mesmos objetos, sem alteração nenhuma, podem ser agenciados para serem sucata por um vendedor de sucatas. Este aspecto, contudo, gera seguidamente a ilusão de que a condição de artefato de um objeto seja dada pela consciência intencional que apreende o objeto e o constitui como sendo tal e qual artefato. A teoria aqui desenvolvida recusa a constituição intencional da artefatualidade com o argumento de que ser um artefato não é posto pela consciência intencional e menos ainda pela percepção de um observador, mas sim pelo agenciamento no campo de ações e no contexto de ações. O reconhecimento de um objeto como sendo uma estátua é a projeção de uma possibilidade de ação propiciada por um objeto, mas isso não implica que o objeto seja previamente já um artefato ou seja já uma estátua. Uma pedra ou um galho podem bem ser tomados como estátuas no curso de uma ação. Portanto, o reconhecimento de uma estátua como estátua é o reconhecimento de uma possibilidade de ação, qual seja, a de que aquele objeto pode ser agenciado como estátua, ou que foi antes usado como estátua, ou que foi uma pedra trabalhada para ser uma estátua etc. O ponto decisivo está na alocação do objeto no contexto de uma ação, atual ou possível. E isto abre a entidade para se multirealizar sob diferentes identidades.
Um objeto é um artefato apenas se foi produzido com a intenção de que seja de um tipo e para cumprir determinada função. Desse modo, os artefatos são entidades cuja identidade, existência e função dependem de uma mente. Thomasson31 é exemplar na defesa dessa posição; para ela, um objeto é um artefato se satisfaz duas condições. Primeiro, um artefato pertence a um tipo K de artefatos apenas se for o produto de uma intenção bem sucedida de que ele seja um K; segundo, isso apenas acontece onde já se tem um conceito substantivo da natureza desse tipo de artefato, dado por realizações anteriores.
Nesta definição, nem o desempenho de uma função nem o desenho ou configuração do objeto contam como prioritários, mas sim o ser o polo de uma relação intencional. Nesse ponto parece haver uma confusão entre propriedades (property) e o ser apropriado para uma ação (propriety) de um objeto. Com efeito, é dito que a existência de alguma propriedade do artefato é dependente do seu caráter intencionado, expresso na condição de dependência32. A existência de algumas propriedades do artefato depende da intenção do au31 2003, p. 600. 32 R. Hilpinen 1993, p. 65.
Atos e Artefatos 77 jeto determina o tipo que o objeto é. O ponto definidor dessa concepção é que artefatos são objetos funcionais selecionados e produzidos por um grupo cultural de usuários e criadores para desempenhar determinadas funções. Sem função, não há artefatos.
A concepção intencional, por seu lado, realça o papel constitutivo da intenção dos produtores em criar um objeto de um tipo específico como fator decisivo. Risto Hilpinen (2011) e Amie Thomasson (2007) recusam a concepção funcional por entenderem que também objetos naturais realizam funções. Para eles, a diferença entre objetos naturais e objetos artefatuais está na origem da função, que para eles é, no caso dos artefatos, dependente e relativa a intenções, concebidas como estados mentais dos produtores e usuários.
78 Atos e Artefatos tor de fazer um objeto de certo tipo. Esta condição induz Thomasson a falar que os artefatos são “criações da mente”33. Essa conflação entre o ter propriedades, como ter massa de 150g, e o ser apropriado, como ser perfilável como Nietzsche, não parece ser um bom pontoSobteórico.uma análise mais concreta, a concepção intencional, e também a funcional, dos artefatos pode ser acusada de idealista, pois define os artefatos a partir de propriedades relacionais que estão fora do próprio objeto. Seja a função, seja a intenção, o fato é que nessas abordagens a constituição da própria coisa que as realiza é secundária. Uma terceira posição corrige essa deficiência ao conceber a natureza dos artefatos como determinada tanto pela estrutura interna quanto pelo propósito ou uso do objeto. Os artefatos seriam definidos pelo propósito e pelo uso, para além de sua estrutura interna, ao modo de Losonsky (1990), ao sugerir que o reconhecimento da estrutura interna, do propósito e do modo de uso, na natureza de um artefato, propicia uma abordagem em que regularidades e predições podem ser contabilizadas e um tratamento científico em termos nomológicos se torna viável. Um relógio, ao contrário do que as concepções funcionalistas e intencionalistas sugerem, não se define apenas pela função de marcar o tempo ou de ser tomado como um marcador de tempo. A estrutura interna e a composição material é decisiva. Uma ampulheta, um relógio de pêndulo e um relógio de corda são todos marcadores de tempo, mas o modo como fazem isso, o seu mecanismo, é muito diferente. A diferença do mecanismo ou estrutura interna altera o modo de uso e o ser apropriado ou não para certas ações. A multirealizabilidade da mesma função e da mesma intenção não implica a equivalência ontológica dos objetos que as realizam. Além disso, Hilpinen (2011) propõe um adendo para se resolver o problema da natureza dos artefatos. O ponto dele é que um artefato é algo feito por um autor ou produtor, de modo que o conceito de artefato implica o conceito de produtor: um ob33 A. Thomasson, 2007, p. 52.
Esta proposta explicita o caráter híbrido dos artefatos. Baker sugere que os artefatos possuem uma dupla natureza, pois para além de sua função estrutural eles teriam uma natureza intencional. A natureza material explicaria as propriedades funcionais, mas é a natureza mental ou intencional que explicaria as funções do artefato. Baker afirma que além de terem uma dupla natureza, os artefatos têm uma relação flexível entre a função e a base material. Assim, um martelo tem uma composição material, como um agregado de madeira e metal, e uma função própria, “determinada pela intenção de seu projetista e ou produtor”35. Por essa abordagem, um objeto é um artefato se ele foi feito ou desenhado para cumprir uma função que realiza as intenções de seus projetores ou construtores, e se ele é constituído por um material apropriado, selecionado e arranjado para realizar uma função específica. Nesta caracterização, o conceito de “ser apropriado” é decisivo. Um objeto material é apropriado em relação à realização de uma função, e isso tanto se refere às suas propriedades materiais quanto à sua apropriação intencional aos estados mentais de seu autor. 34 L. R. Baker, The ontology of artefacts, 2004. 35 2004, p. 102.
A partir dessas considerações torna se visualizável uma posição híbrida que combina a condição intencional e a condição funcional. Artefatos são desenhados intencionalmente para realizarem funções; por um lado, dependem da intenção de seus criadores para serem o que são; por outro, os artefatos têm estruturas e capacidades próprias que independem de seus criadores e usuários; portanto, os artefatos ontologicamente dependem de intenções ou propósitos, mas são o que são enquanto têm efetivamente funções próprias34 .
Atos e Artefatos 79 jeto é um artefato se e somente se ele tem um autor. Porém, Hilpinen mantém a posição intencional, pois o próprio conceito de agência que perfaz um autor é definido intencionalmente. De qualquer modo, agora, para além da função e da intenção, a analítica dos artefatos inclui a composição material, o desenho e também os agentes.
38. Nesta formulação se explicita que uma descrição adequada tem que fazer uso de termos que referem a intenções e ações humanas, a saber, termos como “uso”, “propósito”, “desenho”, “função”. A flexibilidade indicada por Baker é um sintoma de dificuldades para esta teoria. Ela diz respeito ao fato de que uma mesma função pode ser realizada por diferentes meios materiais e também que um mesmo meio material pode realizar diferentes funções39. Na perspectiva analítica aqui desenvolvida, evita se esta dificuldade ao se caracterizar a condição de artefato diretamente pelo seu encaixe
39 L. R. Baker, On the twofold nature of artefacts, 2006.
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36 The dual nature of technical artifacts, 2006.
A posição híbrida se refere tanto à identidade quanto à existência dos artefatos. Um artefato é o artefato que é pelo entrecruzamento de uma intenção e um arranjo material, como propõem Kroes e Meijers36. A proposta pressupõe que o mundo humano se constitua pela articulação de dois centros de apreensão, que se mostra em nossos pensamentos e obras. Por um lado, apreendemos o mundo em termos de interação entre objetos físicos e interações causais complexas, e por outro apreendemos o mundo em termos de agentes com estados mentais como crenças, pensamentos e desejos, que representam a realidade. O programa transfere essa duplicidade de apreensão para os artefatos, isto é, para as construções e criações humanas. Por conseguinte, a descrição adequada dos artefatos precisa incluir, para além de sua descrição fisical e causal, a descrição das intenções e propósitos dos agentes intencionais em termos mentais37. Este aspecto da teoria é relevante porque a identidade e até mesmo a existência de um artefato não é dada na percepção ou por sua descrição composicional e estrutural, pois assim a função e a intenção que a preside não são apreendidas. No seu sentido forte, esta proposição implica que a identidade e a existência de um artefato podem ser constatadas por uma descrição completa na qual se especifica um objeto físico e uma função
37 P. Kroes e A. Meijers, 2006; P. Vermaas et al, 2011. 38 W. Houkes et al, 2011, p. 199.
O ponto a ser destacado é que a admissão de artefatos na plataforma analítica dos tipos de entidades que compõem o domínio de referência se ancora na sua necessidade para explanar os eventos e situações que compõem o universo na sua teia material e causal.
Os conceitos de propósito, de intenção e mente são ontologicamente dispensáveis para isso, pois o conceito de ação é suficiente e explanatoriamente mais claro. Os artefatos, ao contrário do que afirma a teoria intencionalista, não dependem de intenções e desejos para terem papéis e realizarem funções em um campo de ações. Se
Atos e Artefatos 81 numa ação. Desse modo, o problema da multirealizabilidade desaparece, pois um artefato é o artefato que é apenas em relação a uma ação. Uma vez que a identidade do artefato, o tipo de coisa que ele é, é dada pela ação na qual ele tem parte, a multirealizabilidade não afeta a identidade do artefato. A multirealizabilidade também diz respeito à função, à intenção e à estrutura material. Uma mesma função ou intenção pode ser realizada por diferentes estruturas e uma mesma estrutura pode realizar diferentes funções. Mas, isso faz parte da descrição do artefato apenas enquanto ele faz parte e tem papel na consecução de uma ação, além de ser compatível com uma mesma base realizar diferentes funções e intenções concomitantemente.De qualquer modo, a função permanece um fator determinante na definição dos artefatos, pois ausente a função fica indeterminado o tipo de objeto em questão, sobretudo tendo em vista a multirealizabilidade. Algo feito para ser um relógio, mas que não cumpre essa função, não é um relógio, mas não deixa de ser um artefato. Nessa direção, tanto o nome genérico quanto o tipo de artefato são indicados pelo nome comum usado para designá los: prego para pregar, lixadeira para lixar, impressora para imprimir, navio para navegar etc. Um artefato parece ter a sua função essencialmente, no sentido de que esta constitui sua identidade. Não apenas a sua consistência ontológica, mas também a sua persistência ou existência, como o artefato que é, parece depender de sua função permanecer a mesma. Porém, isso não afeta a coisa, mas apenas os diferentes seres que a coisa realiza.
82 Atos e Artefatos na ação de cortar se emprega uma pedra lascada, então essa pedra é um artefato, mesmo que não tenha sido lascada para isso. Considere se as seguintes definições, analisadas no artigo de Stefano Borgo e outros40. A primeira delas, relativa à classe ontológica dos artefatos: um artefato é um objeto físico que um agente ou grupo de agentes cria por meio de dois, em geral conjugados, atos intencionais, a saber, a seleção de uma entidade material, como único constituinte do artefato, e a atribuição de uma qualidade ou capacidade.
40 S. Borgo et al, 2011, Technical Artifact: An Integrated Perspective, p. 5.
Nesta definição, um artefato não precisa ser o resultado de um processo de produção. Todavia, a explicação da artefatualidade do artefato permanece sob o escopo da teoria intencional, pois a propriedade de ser um artefato é dada ou constituída pelos atos de seleção e uso. A situação é descrita como criando uma nova entidade, uma pedra passa a ser um prendedor de papel. Nesse processo ocorre uma transição ontológica análoga àquelas descritas por Gadamer (2005) e Danto (2010) para o surgimento de obras de arte. Esta não é a melhor descrição, porém, pois a pedra não desapareceu e também não se acrescentou uma nova entidade ao lado da pedra. A pedra é o prendedor de papel, mas também é o abrigo natural de uma colônia de bactérias. O que ocorre nesse caso é antes um agenciamento de uma entidade com certas propriedades para a execução de uma ação na qual a entidade tem um papel (role), mas sem que se altere suas propriedades. Pela definição, a identidade do artefato é dada por sua constituição material e pelo ato intencional que o agencia. Uma segunda definição, proposta por Kitamura and Mizoguchi, para artefatos de engenharia, acentua o processo de produção. Com efeito, por esta definição um artefato técnico é um objeto físico criado por meio de um processo de produção intencionalmente realizado, por um ou mais agentes, com a finalidade de produzir um objeto capaz de realizar um certo comportamento em certa situação técnica genérica41 .
41 S. Borgo et al, 2011, p. 7.
Nesta caracterização, embora visando apenas os artefatos técnicos, os termos usados na descrição são todos eles objetivos e circunscritos ao domínio do agir efetivo de agentes, além de ser tematizado o conceito de plano a ser executado. Os autores propõem uma integração destas definições, que é apresentada como um esquema que correlaciona os conceitos de entidade física, de ação de seleção e de ação de produção. As ações de seleção e produção atribuem propriedades à entidade física e a fazem ser um artefato. Embora seja reconhecida a posição central do conceito de ação, esse conceito não é propriamente tematizado naquilo que ele exige. No entanto, Vieu, Borgo e Masolo43, ao indicarem o elemento central da intencionalidade, referiram se diretamente à ação e também vincularam a esta o papel (role) exercido por um objeto para efetivá lo como um artefato particular. O ponto principal está na indicação de atos de seleção intencional de um objeto e de sua modificação física para se adequar às nossas tarefas. As capacidades e funcionalidades do objeto resultam de seu agenciamento intencional no processo de sua criação. A intencionalidade é uma propriedade dos agentes e não do artefato. Mais especificamente, os autores acentuam o fato da existência do artefato depender de ações de outras entidades, o que os leva a introduzir uma diferença categorial entre entidades naturais
Nesta definição, embora ainda estejam presentes os termos para intencionalidade e propósito, aparecem explicitados os conceitos de agente e de processo de produção. Desse modo, a existência e a identidade do artefato ganha precisão e determinação, e além disso a definição corretamente localiza a produção dos artefatos no campo de uma ação, portanto, avançando no reconhecimento do caráter objetivo e efetivo da ação para a existência e a identidade dos artefatos. Este aspecto se torna explícito e operante na definição de artefatos técnicos, proposta por Houkes e Vermaas, cuja formulação é esta: um artefato técnico é um objeto físico criado por um agente, ou agentes, por meio da realização de um plano de fazer um objeto com uma descrição física42 .
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42 S. Borgo et al, 2011, p. 9. 43 Artefacts and Roles: Modelling Strategies in a Multiplicative Ontology”, 2008.
44 L. Vieu, S. Borgo e C, Masolo, 2008, p. 124.
45 L. Vieu, S. Borgo e C. Masolo, 2008, p. 126.
O ponto central desta caracterização está no reconhecimento, embora não explorado explicitamente, de que a intencionalidade é um aspecto de agentes e que a existência dos artefatos depende de uma ação, e em conformidade com o que esse conceito exige, que os artefatos se definem por papéis (role) que apenas têm sentido no campo de uma ação. Com esses acréscimos se chega a uma teoria complexa dos artefatos que é efetiva em reconhecer sua existência e em lhes garantir uma identidade determinada. Todavia, na justificação da teoria ainda se faz uso do conceito de ação baseado na intencionalidade e na mentalidade, mantendo se assim preservado o núcleo da teoria da dupla natureza. Esta dupla natureza tem seu preço ontológico: um mesmo item conta duas vezes na conta por um das entidades do universo. Com efeito, por essa teoria, a pedra é uma entidade distinta do prendedor de papel, ali mesmo onde a pedra é o prendedor de papel. Os autores afirmam taxativamente que o artefato, o prendedor de papel, não é a pedra de que ele é feito. Pois, o prendedor de papel apenas começaria a existir a partir de sua criação por um agente, e isso acontece posteriormente ao surgimento da pedra. Isso leva os autores a concluírem que onde há um prendedor de papel há sempre dois objetos, os quais, embora sejam sobrepostos, têm propriedades diferentes e mantém entre si relações distintas, pois o artefato depende da pedra, mas esta não depende dele45 .Este é um resultado que deve e pode ser evitado. Se numa sala há uma pedra e esta pedra é usada para prender papéis sobre a mesa, o que há nesta sala é uma única entidade, a pedra, e uma ação em curso, de prender papéis sobre a mesa. De modo algum há duas entidades, a pedra e o prendedor de papéis. Ser um prendedor de papéis é uma função (role) em uma ação. Sim, nós falamos em ser um prendedor de papel, e que a pedra é o prendedor de papel, mas esses usos de
84 Atos e Artefatos e entidades artefatuais que implica que um artefato seja um empilhamento de entidades. Um peso de prender papel, assim, não se confundiria com a pedra que o constitui44 .
46 The bootstrapped artefact: A collectivist account of technological ontology, functions, and normativity, 2009. 47 R, Cummins, Functional Analysis, 1975.
O problema das propostas funcionalistas e intencionalistas, sobretudo a da dupla natureza, está na teoria da ação pressuposta, mas também na teoria da intencionalidade que pressupõe a dicotomia ou então a anomalia do mental. Agir, e fazer, para esses teóricos, é um evento dúplice; por um lado, é um evento físico, por outro,
Atos e Artefatos 85 flexões do verbo ser indicam apenas o papel temático de um item relativo a ação indicada por um verbo, no caso, a ação de prender papéis. Porém, uma mesma entidade pode vir a ser agenciada concomitantemente e assim cumprir diferentes papéis temáticos em diferentes ações. Por fim, cabe mencionar se a teoria proposta por Schyfter46 na qual se faz referência à dupla natureza dos artefatos, como tipos híbridos em que são combinados fatores naturais e fatores sociais. Artefatos são tipos artificiais fundados em tipos naturais, mas cuja existência e identidade se determinam no contexto de práticas sociais de referência coletiva. Na perspectiva da teoria aqui delineada, este aspecto é sumamente relevante, tanto por introduzir o conceito de atividade social quanto por prefigurar o conceito de prática interagencial. A proposta aqui defendida está direcionada para unificar essas definições a partir do conceito de ação: artefatos são o que são, são estruturados como são, têm a materialidade e a função que têm, devido à ação de produção que os produziu e à ação na qual eles têm parte e papel relevante para a consecução da ação. Estas ações circunscrevem um campo de ação. Um objeto que não faz parte e não tem papel relevante na consecução de uma ação não é um artefato, mas um objeto natural. A artefatualidade é dada não apenas pela função e pela estrutura material, mas sim pelo papel efetivo47 na realização de uma função, a qual tem de ser referida a uma ação em curso. Com isso, obtém se de saída uma característica básica dos artefatos, qual seja, a de que artefatos são entidades dependentes quanto à identidade e existência. A sugestão é que essa dependência ontológica seja, primariamente, em relação a ações ou atividades, e não a outras entidades e menos ainda a mentes e intenções.
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Atos e Artefatos um evento mental. Os artefatos herdariam essa duplicidade. Este ponto, porém, não é óbvio. Que os agentes sejam entidades com dupla natureza, fisical e mental, não acarreta que os artefatos por eles produzidos tenham também eles uma dupla natureza. Um garfo não é uma entidade mental, mas sim puramente fisical; mesmo um telefone é puramente fisical. O desenho, o formato, a lógica do garfo e do telefone também não é mental. A função ou papel do garfo e do telefone, em determinado uso, não é mental também. Alguns argumentam que, sim, garfos e telefones não seriam entidades dotadas de mentalidade, mas seriam entidades dotadas de intencionalidade, por assim dizer, incorporada. Haveria uma intencionalidade na própria coisa, no seu desenho, no seu formato e estrutura. Mas isso é um exagero, o que há é uma estrutura causal e material. Um garfo não é uma entidade intencional e também não tem intencionalidade.
O conceito de intentio não se aplica a ele. Fora de campos de ação, um garfo é um objeto natural. Esta duplicidade e ambiguidade precisam ser eliminadas. Pessoas até podem ser entidades dúplices, dotadas de corpo físico e de mente intencional. Mas, para compreendermos o conceito de artefato, o que é necessário e incontornável é reconhecer que artefatos são coisas feitas, isto é, que o conceito de artefato implica o conceito de fazer e este conceito é um subtipo do conceito de ação. Para a teoria dos artefatos, o que importa é que haja agentes e ações, e não mentes e intenções. Com efeito, justamente ao se assumir o conceito e o fenômeno da ação como prime pode se, por abstração sobre ações, cursos de ações e campos de ação, introduzir os conceitos de fazer e de padecer, de intencionar e de sofrer, e assim também os de estado mental e de propósito. Esses conceitos têm seu campo de aplicação sempre delimitado por uma ação ou atividade. O conceito de artefato também é assim introduzido. Primeiro, se reconhece um agente e uma ação; depois, se reconhece um sentido ou direção da ação; se a ação se realiza pelo agenciamento de um objeto, ou se ela se realiza pela produção ou alteração de um objeto, então, pode se introduzir o conceito de artefato para apreender esses objetos agenciados para a realização da ação ou resultados da finalização da ação.
Atos e Artefatos 87 O garfo e o telefone, seus formatos e estruturas, bem como suas funções, podem então ser pensadas como inteligíveis a partir de seu ter parte e papel no contexto de uma ação. A ação e sua direção explicam o formato, a estrutura e a função desses objetos. Os conceitos de mente e de intenção até podem ser agora introduzidos, mas eles são aplicáveis ao agente, e não aos objetos agenciados, também no contexto de uma ação. O fato de algo ter sido feito pelos humanos não o qualifica como artefato. As lascas de madeira que o escultor e o artesão produzem não são artefatos, mas sim são as estátuas e as casas que eles fazem. As marcas que os humanos produzem ao caminhar na areia não são artefatos, mas sim são artefatos as marcas que eles fazem para sinalizar o caminho na floresta. Para marcar essa diferença, introduzem se três conceitos básicos na teoria dos artefatos: os conceitos de intenção, de função e de desenho ou estrutura material.
Embora possamos reconhecer a forma das lascas de madeira e das pegadas na areia, dizemos que elas não têm função e não foram intencionalmente produzidas, sobretudo não foram produzidas com essa forma para realizar uma função que satisfaria um curso de ações determinado. No caso da estátua, da casa e da marca de sinalização, esses conceitos ganham determinação e assim dizemos que se trata de artefatos típicos: a estátua, a casa e a marca de sinalização são artefatos e, para além disso, são artefatos de um tipo particular.
Agora, esses conceitos são suficientes para determinarem a existência e a identidade de artefatos e de tipos de artefatos? A identidade dos artefatos A partir do que foi analisado nos tópicos anteriores podemos delinear as condições que um objeto tem que cumprir para ser considerado um artefato (CA). Um objeto é um artefato se, e somente se, ele preenche as seguintes condições: condição intencional (CI), ser um polo de uma relação intencional; condição funcional (CF), cumprir uma função em uma situação; condição estrutural (CE), ter uma estru-
embora essas condições tenham parte na descrição dos artefatos, e permitam reconhecer a existência de artefatos para além das entidades naturais, na análise aqui proposta, elas não são suficientes para identificar um objeto como um artefato de um tipo particular. O argumento geral é que a condição de artefato (CA) é anterior a essas condições e é por sua efetividade que um objeto as cumpre e realiza. Dito de modo direto, um objeto tem uma função, cumpre uma intenção, tem uma estrutura e uma composição materiais, relevantes para sua identificação como sendo um artefato de um tipo particular, apenas se ele é parte atuante e efetiva no contexto de uma ação ou curso de ações de um ou mais agentes. A condição de artefato não é outra que a condição de ser uma coisa feita ou selecionada, enquanto parte efetiva de uma ação (CPE), definida pelo seu agenciamento em uma ação por um ou mais agentes. Algo é um relógio no contexto da ação de contar o tempo apenas se esse algo é agenciado para realizar essa função e efetivamente a realiza. Por conseguinte, não basta a intenção, nem a função, e menos ainda a estrutura e a materialidade, haja vista a possibilidade da multirealizabilidade, pois é o ter parte e papel relevante na consecução de uma ação que torna algo um artefato e, sobretudo, um artefato que é um relógio. Se um agente constrói um aparelho de molas, alavancas e engrenagens para medir a passagem do tempo, temos um artefato, mas podemos não ter um relógio caso isso falhe em fornecer unidades de medida de tempo; e, por outro lado, temos um relógio se um agente utiliza a sombra de uma pedra, naturalmente constituída e estruturada, para medir o tempo. O mecanismo e a pedra medem o tempo a partir de sua constituição estrutural e
88 Atos e Artefatos tura desenhada e apropriada para realizar uma função; condição material (CM), ter uma composição material determinada e apropriada para preencher a intenção e cumprir a função. Desse modo, tipicamente um objeto é um artefato do tipo relógio se, e somente se, for intencionalmente selecionado ou construído para ter a função de marcador de tempo, o que exige que ele esteja estruturalmente e materialmente constituído para realizar essa função e cumprir essa intenção.Todavia,
Atos e Artefatos 89 material, mas o fazem de modo diverso; o mecanismo é tipicamente uma coisa feita, a pedra é tipicamente uma formação natural; o aparelho tem sua estrutura e materialidade escolhida intencionalmente para realizar certos movimentos que possibilitam a fixação de unidades de medida; a pedra projeta uma sombra conforme a posição do sol sem nenhuma intervenção humana, mas a inteira fase do movimento da sombra configura um espaço de fase que possibilita também a fixação de unidades de medida. Nos dois casos, a intenção, a função, a estrutura e a materialidade constam na descrição da condição de artefato, mas é a sua articulação e agenciamento enquanto têm parte e papel efetivo na ação de medir o tempo que as conecta e unifica. Fora desse campo de ação, nem a pedra nem o aparelho são um relógio e, quero também concluir, não são artefatos. A teoria está direcionada para admitir que o aparelho, fora de um campo de ação, não é um artefato. O argumento é que um aparato construído para realizar uma função que preenche uma intenção, enquanto estrutura material, é uma entidade física e natural tanto quanto o é uma pedra no topo de uma montanha. Ambos estão submetidos às derivas e forças naturais. Apenas em relação ao campo de ação circunscrito pela ação de construir relógios e de medir o tempo, um aparato é um artefato e exemplifica um tipo de artefato, não importando se foi ou não feito para isso. A ilusão está em supor que a identidade e existência de um artefato seja determinada por algo que está fora da ação: a intenção, o plano, o projeto, a estrutura etc. Mas, a pedra não tem nada disso e funciona como relógio ao ser usada para marcar a passagem do tempo. E, um aparelho metálico pode ter tudo isso e não ser um artefato de algum tipo. Se o relógio foi esquecido a centenas de anos debaixo de uma pedra e agora está todo enferrujado e fundido com a rocha, embora digamos ainda que ele é um relógio e, portanto, um artefato, o fazemos apenas por analogia e de modo metafórico. Reconhecemos na verdade o vestígio de um artefato do tipo relógio, mas isto se dá porque sabemos o “para quê” ele era usado, ou seja, sabemos em que campo de ação ele era efetivo, e também sabemos como ele foi feito, ou seja, sabemos o campo de ação no qual ele foi produzido.
90 Atos e Artefatos Sem essas duas remissões não poderíamos identificá lo nem como relógio nem como artefato. O exemplo do “mecanismo de Antikythera” ilustra bem esse ponto. Embora reconheçamos serem vestígios de um aparato construído, não podemos dizer que artefato era, ou seja, a que tipo esse aparato pertence, e isto por um motivo muito claro: não sabemos para que ele era ou poderia ser usado. Enquanto não fixarmos o campo de ação no qual esse objeto tinha função e papel, não podemos dizer que tipo de artefato era ele. Mas a dúvida também paira sobre o campo de ação no qual um processo geracional o produziu e, assim, até mesmo a sua natureza de artefato está em questão. Pois, apenas o encaixando numa ação de produção ou de uso é que podemos eliminar a junção por acaso dos seus componentes. Do mesmo modo, o disco de Phaistos; embora possamos decifrar seus sinais e transformá los numa frase em português, o que essa frase diz apenas pode ser determinado pelo campo de ação no qual esse disco foi produzido e o campo de ação no qual ele tinha uma função e um papel na consecução da ação, e a frase um sentido determinado.Umaspecto
importante diz respeito à constituição do campo de ação no qual um artefato tem existência e identidade. Assumo a preeminência dos campos de ação e de práticas fundadas na interagência de agentes ativos e interativos. Desse modo, a condição de artefato inclui a interatividade e a interagencialidade enquanto vêm a ser os veículos pelos quais um grupo social objetivamente agencia algo para efetuar uma ação ou realizar uma prática48. Esta predominância é a base por sobre a qual os artefatos adquirem uma independência em relação aos seus criadores e suas ações, por meio de um processo de objetivação social49. Além disso, tanto as noções de intenção e mentalidade, quanto as de plano e regra, apenas se deixam objetivar no contexto de uma correlação de interações e interagências entre agentes ativos e cooperativos. Admitido isso, as teorias puramente intencionais, puramente funcionais, e também as teorias 48 P. Schyfter, 2009; W. Houkes & P. Vermaas, 2010. 49 G. Nillson, 2001.
O seu funcionamento e efetividade, a capacidade de fazer efeitos, não depende da intenção desse ou daquele indivíduo. Na base de sua efetividade, todavia estão ações de fazer, selecionar e construir, e ações e cursos de ações.
O ponto de partida foi a admissão de que na descrição do mundo, o mundo tal qual o temos suposto nas nossas práticas e conversas objetivas, nas quais se podem apontar erros e acertos, estão inclusas coisas tais como estátuas e textos. Embora possa haver um mundo do qual se pode dizer que não há estátuas e textos, o nosso mundo é tal que há estátuas e livros cujas páginas contêm textos determinados e identificáveis objetivamente. Estátuas e textos são casos típicos de artefatos, de modo que o nosso mundo é tal que dele se pode dizer com segurança que há artefatos. As nossas práticas são tais que exemplares deste tipo de coisa são feitos, vendidos, comprados, estocados e destruídos. O nosso mundo é tal que
Agência e processos geracionais
O ponto principal da crítica à concepção intencionalista, que atinge também a concepção da dupla natureza, é quanto ao papel das intenções e propósitos, sobretudo quando estes são pensados como realidades mentais. O fato é que a função, o formato e a composição material não são fatores determinados por uma intencionalidade ou por estados mentais. Por isso, penso que se pode recusar que artefatos sejam o que são e existam apenas enquanto são objetos de uma intencionalidade e uma mentalidade que os constitua como tendo essa função ou aquele papel na realização de uma intenção.
Atos e Artefatos 91 da dupla natureza, mostram se parciais por não explicitarem a base interagencial por sobre a qual elas mesmas têm aplicação.
Não basta a intenção e o propósito, e estados mentais não transformam um objeto num artefato. A rede elétrica, a rede de telecomunicações, os artefatos inteligentes, uma obra de arte, um livro, não executam as suas funções e têm parte nas operações que se efetivam por meio deles por serem constituídos pelos agentes intencionais, pois de intenções e estados mentais o mundo do fracasso está cheio.
Um artefato se define como o resultado de uma atividade de produção. Alguns artefatos exigem um suporte material específico como constituinte sem o qual deixam de existir, como é o caso de estátuas e casas, outros não; alguns artefatos exigem suportes genéricos e substituíveis, como textos, projetos e instituições. Denomino processo geracional, seguindo as definições de D. Davies (2004), a sequência de atividades conjugadas cujo resultado final é um artefato. O processo geracional de uma pedra é diferente do processo geracional de uma estátua, mesmo que a estátua seja feita da pedra.
O escopo de apreciação é decisivo. Se considero apenas o objeto material em sua materialidade, não há propriamente artefatos. Mas, se incluo o processo geracional, então é possível diferenciar artefatos e objetos naturais. Todavia, o sugerido aqui é que o escopo de apreciação precisa incluir o campo de ação de um ou mais agentes para se estabelecer a existência e a identidade para artefatos, pois fora de um campo de ação as coisas são o que são e não se diferenciam em relação às demais a não ser por suas propriedades materiais e relações causais. Um campo de ação, porém, apenas se deixa delimitar por uma ação ou por um curso de ações. E ações implicam agentes, pois um evento que se realiza sem o concurso de um agente é um mero acontecimento. Chover e nevar são acontecimentos. Agora, se a chuva e a neve são provocadas pela ação de José, elas são então artefatos. Distinguimos esses eventos pela estrutura gramatical que as expressa objetivamente. O verbo chover pode ser usado de modo absoluto para indicar que está chovendo. Mas também usamos esse verbo em frases como esta: “José fez chover cerveja sobre a plateia”. Nesse caso o verbo solicita um agente e um objeto. A minha proposta consiste em fazer o conceito de artefato gramaticalmente depender de um verbo de ação que exige o preenchimento do papel temático de agente. Desse modo, contempla se aquelas teorias que exigem um autor. Mas é a ação realizada que faz de um agente um autor. Sem a ação não há nem autores nem artefatos. E uma ação se diferencia de
92 Atos e Artefatos muitas conversas e pensamentos são admitidos como corretos ou incorretos em função de estarem indexados e referidos a artefatos.
artefato é um efeito de uma ação que produz efeitos depois da ação cessar. Ou, pode se também dizer, um artefato é um continuante para o processo da ação. Sob uma teoria de processos e atividades, um artefato é uma fase de uma atividade. O sistema de encanamentos de distribuição de água e coleta de esgoto de uma cidade é um artefato complexo que parece independente. Todavia, ainda assim se trata de um objeto finito, construído e explicável pelas ações de distribuir e coletar água, e pelas ações de direcionar, canalizar, filtrar, encanar, bombear e usar águas. Nada do que importa no sistema escapa ao conceito de ação de indivíduos e coletivos. E o que escapa é totalmente explicável em termos das ciências dos tipos naturais. Descrito em termos de mecanismo, o sistema é um objeto físico complexo. Mas, se acrescentamos no escopo de apreciação o processo geracional, o sistema é um artefato resultado de uma sequência de ações de construção e de manutenção; e se acrescentamos a esse escopo também a ação da qual o processo geracional é uma fase e uma parte, o sistema em seu todo é um artefato agenciado na consecução da ação de distribuição, consumo e captação de água pelos moradores da cidade. Intenção, função, desenho e estrutura material, nessa descrição, têm um papel secundário e são introduzidos apenas para explicitar o tipo de ação que ali se efetiva por meio de um artefato. Ao explicitarmos as ações que produzem e agenciam um artefato, explicamos tanto a existência quanto a identidade desse artefato, sem que seja necessário introduzir duplicações ontológicas ou simulacros mentais.
Atos e Artefatos 93 um acontecimento natural pela efetividade da realização múltipla e pela efetividade da realização e da não realização. Uma ação é um evento que poderia não ocorrer, e também que poderia ocorrer de outro modo e com outros suportes, nas mesmas circunstâncias. Estas características são transferidas da ação para os resultados da ação, os artefatos. Um artefato é um objeto que poderia não existir, e também que poderia existir de outro modo e com outros suportes, nas mesmasDecircunstâncias.todomodo,um
A questão a ser explorada agora diz respeito ao sentido da conexão entre a arte contemporânea e a técnica contemporânea, ali onde elas são uma atualização da condição humana saturada pelos artefatos, a partir da visada delineada nos capítulos anteriores. A primeira suspeita é que a experimentação e a variação provenientes das práticas bem sucedidas, que colocaram a atitude técnica e as instituições científicas no centro da condição humana atual, transformaram a base operacional da condição humana e também das práticas artísticas. A segunda suspeição se refere aos procedimentos de abstração e formalização filosóficas que excluem a base na qual a arte e a técnica se enraízam e assim distorcem a compreensão de ambas e também de sua mútua interação. No lugar da ascensão semântica e fenomenológica em relação aos dados e fatos técnicos e artísticos, a correção da direção precisa ser buscada no descenso hermenêutico ao plano fundamental das práticas e das ações interagenciais nas quais tanto a técnica quanto a arte se enraízam e a partir de onde ganham sentido e significado.
DOS ARTEFATOS
Hermenêutica Na base das práticas hermenêuticas está o senso de justiça (Gerechtigkeit, Rightness) que situa as verdades e os fatos e a eles sobrepõe a questão do horizonte de sentido e da validade na situação, com a exigência de não deixar ninguém de fora e nada para trás, ou seja, de
Atos e Artefatos 95 5 A EFETIVIDADE
96
Atos e Artefatos não fazer abstração de nada, ( nem aphaeresis, nem abstraction, nem aufhebung e menos ainda epoché). Por isso, as partes são levadas em consideração tanto quanto o todo e, se o todo é levado em consideração, isso não se faz em detrimento das várias e diversas partes que o perfazem. Mais ainda, inclui na consideração a distinção entre as próprias partes, sem confundi las ou denegá las, ao mesmo tempo que situa e localiza o todo como um efeito de um campo de atuação.
A hermenêutica designa essa ação complexa de explicitação das armações que tornam evidentes as verdades estabelecidas e consistentes os fatos objetivos, ao apresentar sua proveniência e sobretudo ao explicitar as forças e poderes atuantes em sua instauração. Para isso, é preciso tirar os óculos, que nos fazem ver tudo enquadrado pela moral e pelas supostas verdades do momento, que fazem tudo parecer arredondado pela autoglorificação e pelo autoprivilegiamento. A estratégia de pensamento consiste em perseguir os atos sensé, tal como indicado por Dilthey50 e Bourdieu51 como o desvio pelo compreender e no conceito de espírito objetivado, recusando sobretudo o outro caminho, o das ideias, sem por isso recair no atalho fisiológico. Praticar hermenêutica consiste em agir de modo libertário em relação a instituições e crenças, em atuar pela emancipação no plano cultural e espiritual; mas, o principal está na ação de fazer pontes entre diferenças, pontes essas que preservam as distinções e margens no mesmo ato que as faz interagirem e participarem de um mundo comum, ao se comunicarem e comungarem um âmbito de sentido. Hermenêutica, tal como já se mostrava em Íon, o maior dos hermenéon hermenês, é a arte de fazer sentido com o sentido já dado nas distintas partes, sem o liame da lei universal, atendendo às diferenças, sentido esse que libera o significado de cada uma das 50 2010, pp. 29, 189. 51 2013, pp. 112, 135.
A hermenêutica se constitui no esforço para o esclarecimento de uma ação, artefato ou situação, para além das verdades superficiais e dos interesses imediatos, pois, se visa o espírito que ali se realiza, nem por isso esquece de expor o letramento pelo qual ele se inscreve e a matéria que o sustenta e vivifica.
Atos e Artefatos 97 partes para ação e sobretudo para a participação na ação recíproca. Pois, o que seria de um tradutor intérprete que fosse parcial ou que fosse genérico, que esquecesse ou abstraísse algum aspecto ou particularidade de uma das partes, ou que não conseguisse fazer relação entre o que cada uma das partes faz, quer e diz? Longe da violência e da destruição suprematistas, a hermenêutica se pauta pela gentileza que preserva a altivez das diferenças e as libera para a ação recíproca e para a interagência.
O que está aí à nossa porta e precisa ser atendido é a arte cone a técnica contemporânea, que são casos que demandam esforço hermenêutico, pois estão aí e fazem diferença, ou melhor, são a diferença. Embora contemporâneas, as artes e as técnicas que nos dizem respeito às vezes parecem se opor, outras se mostram como irmãs gêmeas. Se os gregos e latinos antigos usavam apenas uma palavra, para nós herdeiros dos modernos, todavia, “arte” e “técnica” indicam atitudes, pensamentos e ações distintas. Mas, temos razão ainda para essa distinção? E qual é o todo no qual e pelo qual essas partes se diferenciam e ajustam? A separação entre arte e técnica não estaria ela mesma fundada numa abstração que joga fora justamente esse todo e, assim, impede a compreensão das partes enquantoDespartes?deGalileu e Newton, o horizonte de sentido sobre o qual se instaura o mundo humano se alterou, nós agimos diferente e assim pensamos diferente. As artes e as técnicas atuais exibem essas mudanças ao mostrarem a diferença no plano do fazer. Nelas se realiza o que nós mesmos somos e se exibe a nossa diferença frente aos modos antigos e tradicionais do fazer e do ser humano. Mas, longe de aceitarem e fazerem as devidas prestações de reconhecimento e hospitalidade, muitos hoje adotam uma atitude de repúdio e de negação em relação a elas. O negacionismo, a fuga para o aquém ou para o além, o elogio do pré ou do pós, arcaico ou transcendental, enquanto modo de evitação da realidade, está aí na praça e nas redes
Plasmabilidade
temporânea
explicitaram
98 Atos e Artefatos sociais, sobretudo na filosofia, sob as mais variadas vestes. Por isso, faz se ainda mais necessária uma atitude hermenêutica, franca e liberta, que aceite quem chega, assim e tal como chega, e não fique a espera do retorno do passado ou do salto para o futuro. Pois, cabe ao intérprete fazer e dar uma palavra pela qual aquele ou aquilo que chega se mostra naquilo que é e como é, habilitando o a interagir e a conviver. Para isso, uma atitude interativa e aberta, de atender e lidar com o estranho como fazendo e tendo sentido, de conversar e negociar com a visita, por meio de um sair da própria casa e entrar no rio da existência, torna se urgente. Em outras palavras, é preciso admitir não só a presença, mas também a efetividade dos artefatos técnicos e artísticos, cujo nú cleo diferenciador está na inerente transformação do ser das coisas, ou seja, em admitir que nas artes e nas técnicas atuais opera se uma alteração ontológica do mundo e também do ser humano. Esta transformação é reveladora do que nós mesmos somos, o humano que emerge como resultado da efetividade das técnicas e ciências modernas. Porém, como se sabe, muitas vezes e para muitos de nós é difícil se olhar no espelho. Muitos hoje querem apenas mostrar o selfie, mas não querem ver o próprio nudes. Daí a renegação da arte e da técnica contemporâneas, e não menos da ciência, relegadas que são à condição de outra coisa que não nós, ao mesmo tempo que se afirmam o poder tecnológico, a globalização comercial e o liberalismo cultural. Na base da ciência moderna está a concepção de natureza e de universo, ou seja, do ser em seu todo, pela qual tudo se transforma e tudo é transformável sem perdas. Lavoisier e Darwin esse postulado implícito na mecânica de Galileu e Newton, os quais, no mesmo lance que explicavam a natureza, excluíam o humano como um outro em relação a ela. Explicitado esse postulado no plano ontológico, a consequência é que essa transformabilidade implica que as entidades naturais e o ser dessas entidades sejam plasmáveis pela ação humana. Para isso, todavia, é preciso admitir, pace Heidegger e Gadamer, que somos nós que fizemos e fazemos isso que está aí, que isso, a arte e a técnica, as obras de arte e as obras técnicas, são efeitos do nosso agir
Se essa exclusão, na forma da autodesculpa de quem diz que a técnica não é obra nossa, e assim diz que a guerra e o horror da guerra não são também obra nossa, ao dizer que isso acontece, que isso é da ordem do destino, que não fomos nós que o fizemos, se essa elisão for aceita, se essa forclusão da ação e da agência humanas for admitida, então a arte e a técnica, as obras de arte e as obras técnicas, ou não são obra humana ou são inócuas do ponto de vista ontológico. A grande maioria, sem pensar, aceita a tese da não efetividade ontológica da arte e da técnica e isto porque aceita também sem pensar a não eficácia da ação humana. A crise ecológica e as mudanças climáticas, mas também os horrores dos genocídios e da extinção de espécies, estão aí para provar que as nossas ações são eficazes quanto ao ser e ao existir de entidades e tipos de entidades. Dizer que não somos nós os agentes disso é fazer a pior das abstrações, a
Atos e Artefatos 99 e da nossa agência. Ou seja, é preciso dizer, como aquele homem louco de que Nietzsche fala: nós o fizemos, com nossas mãos, nós mesmos, e não se auto eximir dizendo que isso é um destino e um acontecimento, que isso nos acontece por um envio de um deus ou do próprio ser. A queda de um meteorito nos acontece, é uma fatalidade e uma externalidade; uma obra de arte e um aparato técnico são produtos e realizações humanas com base em ações, escolhas e interagências.
Claro, para muitos isso também soa como um acontecimento e um destino, no sentido de que isso, o Abaporu e o Poema Sujo, a rede elétrica e as vacinas, já estavam aí fazendo efeitos quando eles nasceram. Mas, essa condição particular não elimina o fato primário de que essas obras foram feitas por alguém ou por uma comunidade e que elas fazem parte de uma ação coletiva de reiteração ainda em Comcurso.efeito, embora a tese de que na arte e na técnica ocorre uma alteração ontológica faça parte do rol de conceitos propostos pela filosofia hermenêutica desde Schleiermacher, Humboldt, Nietzsche, Dilthey, Heidegger e Gadamer, ela se contrapõe a algumas outras teses de alguns desses autores, especialmente àquela exclusão transcendental da ação e da agência, nos textos heideggerianos e gadamerianos principais, do quadro de fundo dos conceitos básicos.
Considere se, para isso, o caso dos seguintes artefatos. A obra Invenção da Cor, de Hélio Oiticica (1977), hoje com uma réplica instalada no parque museu Inhotim, em Brumadinho, exemplifica a arte dita contemporânea, aquela arte que se faz hoje e que em parte é diferente da que se fazia antes. E o aparelho Demoiselle 22, de Santos Dumont (1909), hoje com uma réplica no Museu Aeroespacial, Rio de Janeiro, um exemplo da técnica dita contemporânea, aquela técnica que se faz hoje e que em parte é diferente da que se fazia antes. Nessas duas obras, como execuções de uma arte e de uma técnica, ocorre uma disrupção no campo de ação no qual elas são obras de arte e de técnica, respectivamente. Disrupção que fez caducar o que até então se fazia e havia, por serem ambas um exercício
100 Atos e Artefatos saber, aquela que nos retira de cena e valida apenas as miragens panorâmicas de sobrevoo; é fazer a mais perversa das suspensões, aquela que anula a existência desses fatos, feitos e atos como ontologicamente irrelevantes.
Agência A perspectiva aqui desenvolvida se posiciona junto com aqueles que admitem a efetividade da ação e da agência humana, sobretudo quanto à eficácia da arte e da técnica em transformar as entidades e o ser das entidades. O que quero sugerir, além disso, é que a efetividade dos artefatos técnicos e artísticos, caso não queiramos relegar esses artefatos para o domínio do aparente e do inócuo, está justamente no fato de que neles ocorre uma transformação de entidades e também do ser de entidades que é ela mesma efetiva. O conceito de artefato apreende justamente esse fato: obras de arte e objetos técnicos são artefatos e não mais entidades naturais ou, não mais dados fenomênicos, mas sim produtos da ação e oportunidades de agência. Mais ainda, propõe se o caráter performativo dos artefatos técnicos e artísticos, no preciso sentido de que ao realizá los e fazê los nós mesmos nos fazemos naquilo que somos e nos realizamos como aquilo que temos de ser, pois, diferentemente das tartarugas marinhas, nós não nascemos prontos.
Atos e Artefatos 101 de liberdade em relação ao já feito e sobretudo ao por vir nele projetado. Esse exercício de liberdade é também performativo, pois por meio dele os humanos se transformaram e se transformam. Isso também fica claro em outros exemplos desta disrupção e deste exercício de liberdade, como é o caso do cinema e dos computadores, do transplante de órgãos e da engenharia genética, mas bem antes disso, da invenção das vacinas e telégrafos, pois essas armações e artifícios estabeleceram um antes e um depois incontornável, fixaram uma fronteira temporal: essas obras e técnicas tornam possível o que antes era impossível e assim fundaram uma época, a contemporânea.No caso do avião Demoiselle, de Santos Dumont, estamos diante de uma invenção, que também é um ponto de uma série de modificações e transformações técnicas e materiais na busca por uma máquina, um artefato, que tornasse a ação de voar praticável para os seres humanos. Esse avião foi o primeiro realmente eficaz para o voo, a ser produzido em série, e nele Dumont introduziu praticamente todas as invenções e alterações que estão presentes na base dos aviões atuais, aquelas que tornam possível e efetivo o voo eficaz. O Demoiselle tornou efetivo um novo tipo de entidade que antes não existia, uma aeronave, um avião e também fez do humano um ser voador. Quando Dumont o apresentou em público, apresentou uma nova entidade e também um novo tipo de entidade, baseado num plano de uma coisa impossível até então, mas que agora faz parte dos projetos das possíveis aeronaves atuais. Embora seja uma evolução de modelos anteriores, por meio de várias invenções e adaptações, pode se dizer que com esse artefato complexo, Dumont fez uma inovação ontológica. A máquina era simples, era até portátil, e se compunha de materiais e forças naturais; mas, o mecânico, utilizando se da mesma mechane de Odisseus, fez ser um engenho que a própria natureza não provê.
A obra Invenção da cor de Oiticica, por sua vez, implementa um novo artefato artístico no qual a escultura, a pintura e a arquitetura, mas também o ambiente natural, a luz, o aroma e o som estão con-
Na base dessa arte e técnica, porém, está a ação de um agente capaz de transformar a natureza em outra coisa, de impor alterações à matéria e à energia, direcionando as para outras funções e as articulando com base em formas e estruturas não naturais. Mais ainda, na base está um agente capaz de alterar o seu próprio modo de agir e
102 Atos e Artefatos fundidos e transformados. Como construção e artefato, ela se efetiva como obra artística e estética. É uma entidade única, singular, embora possa ser replicada e reiterada sem problemas e perdas. A sua presença altera a paisagem ao mesmo tempo em que se constrói com os elementos da natureza: a obra e a arte aí são uma transformação da natureza que faz ser uma entidade não natural. Porém, nada nessa obra quer ser templo, nada de signos do transcendente, pois ali se funda uma experiência sensorial que faz sentido enquanto é experienciada e vivida corpo a corpo. Não simula a vida e menos ainda esconde sua origem artefatual. Não é uma peça única, pois se compõe de peças separadas; não é autocentrada, pois se abre e se deixa afetar por fatores extrínsecos e ambientais; não é isolada e menos ainda um símbolo fechado em si. Sobretudo, contra Gadamer e Danto, não é um signo ou símbolo autocontido a enviar mensagens crípticas transfiguradas. Também não reclama para si o divino, como o templo de Heidegger, pois é simples e técnica, térrea, embora faça assim brilhar a cor, uma cor artificial que não se distingue da própria cor natural. Ora, direis, “voar”, “inventar a cor”, isso é impossível! Os técnicos e os artistas, todavia, pensam o voo e a cor como um efeito de uma ação de interação e de interagência não como uma determinação ou dado essencial: pela recombinação da terra, do ar, da luz, da ação e da disposição da matéria, eles fazem ser e acontecer eventos, entidades e propriedades que a própria natureza não tem e não pode fazer. Santos Dumont e Hélio Oiticica tinham ambos uma atitude experimental, que se mostrava no constante fazer e refazer uma mesma proposição, técnica ou artística, várias vezes, processo esse no qual a obra se transformava e adquiria novas propriedades e características. A experimentabilidade e a variabilidade são a consequência pragmática do postulado ontológico da transformabilidade.
Atos e Artefatos 103 interagir, transformando se em outra coisa, ou ser de outro tipo, sintético, artesanal, enfim, cultural.
caracteriza a transformação que cria uma obra de arte como “transfiguração”. Todavia, essa transformação é pensada
Transição Agora, desde uma apreensão teórica que descredencia de antemão a arte e a técnica como meras atividades secundárias e negativas, não haveria nenhum efeito ontológico efetivo decorrente das ações artísticas e técnicas. As obras da arte e da técnica seriam efeitos de superfície e teriam vigência apenas no âmbito da aparência. A diferença do artístico e do técnico seria então apenas fenomenal e estética. Todavia, desde as teorizações de Nietzsche, Simondon, Gadamer e Danto, apenas para mencionar alguns nomes, tem sido contestado esse descredenciamento ontológico da arte e da técnica, sugerido se a tese de que com a obra de arte, e também com a obra técnica, ocorre um acréscimo de ser e uma transição ontológica. Esta é a sugestão de Arthur Danto para o caso do surgimento da obra de arte contemporânea, aquele tipo de obra de arte que emerge como imponente após o fim da história da arte. Nesse caso, há uma indistinguibilidade entre arte e não arte, entre uma obra de arte e uma obra prática ou técnica. A fonte de Duchamp é um caso desse tipo de obra de arte, tipo esse que Marilá Dardot, explora na obra A origem da obra de arte, de 2002. De um ponto de vista, esse objeto é um artefato prático; de outro, trata se de uma obra de arte. Mas, o que acontece na passagem, na transição que transforma um objeto prático num objeto artístico? A resposta de Danto é que ocorre nesses casos uma transfiguração do objeto, tal como sugerem os cristãos com a ideia de que o vinho e o pão se transformam no sangue e no corpo de Cristo durante uma missa bem feita. O pão e o vinho, ali, pela eficácia da ação ritual, são sangue e carne, e assim devem ser ingeridos. A ação e a interação constituída pela conjugação do rito e do mito altera a natureza daquilo que deles participa e toma Dantoparte.
104 Atos e Artefatos como uma passagem de um objeto sem significação para um com significação. Com efeito, Danto afirma que “ver uma obra sem saber que ela é arte é como ter a experiência da matéria impressa antes de aprender a ler”; e que “vê la como obra de arte significa passar da esfera das meras coisas para a esfera do significado”
52. O modo de compreensão desse fenômeno, todavia, Danto o compara com o pensamento mágico: O é da identificação artística tem uma função transfiguradora aparentada à da identificação mágica… à da identificação religiosa, como quando se diz que o pão e o vinho são carne e sangue de Cristo; e à da identificação metafórica, quando se diz que Julieta é o Sol… Todas essas identificações coexistem com o fato de que são falsas quando tomadas literalmente.53 Note se que filósofo americano descreve a experiência artística como uma transformação da experiência aletrada para a experiência letrada, e seria como se alguém, antes, somente visse os pontos escuros sobre o papel claro, mas não visse nem o pato nem o coelho, e ao aprender a ver como arte, passasse a ver ou o pato ou o coelho.
de Danto mostra que a ideia de plasmabilidade ontológica na arte e na técnica é um exemplo em filosofia de demanda obscura, embora ela tenha sido repetida com alguma força 52 2010, p 189. 53 2010, p. 191.
Ver uma imagem como arte implica vê la como uma figura ou símbolo. E, no mesmo ato, Danto coloca a inteira arte no plano do falso, pois o pato e o coelho são da ordem do “ver como”. Seria isso a transformação da experiência que ocorre na experiência artística? A imagem da arte que Danto opera parece muito semântica e pouco estética, muito linguística e pouco artística. Além disso, é evidente que ele desconsidera o contexto prático e pragmático, da ação que faz uma obra de arte, ao posicionar a obra de arte e a experiência da arte no esquema do observador leitor passivo. Por isso, ele trata como uma conversão repentina do objeto aquilo que é o efeito de uma ação e o resultado de uma interação ativa. A obra de Marilá Dardot implica outra coisa, pois é obra técnica e obra de arte concomitantemente.Oequívoco
Com efeito, no caso de Gadamer, embora haja a tentativa de pensar a mudança que se dá no vir a ser arte de uma obra também como um evento ontológico, ele também exclui a transformação técnica, sem sequer falar da ação e dos cursos de ações que estão na base de ambas. Na teorização do filósofo alemão, que tem na sua base o conceito de jogo, a arte e a obra de arte se realizam na transformação em configuração. Pois, apenas nessa transformação, o “jogo alcança sua idealidade, de modo que poderá ser pensado e compreendido enquanto tal”54. Note se que Gadamer insere na alteração que a arte é o momento da idealidade como condição de sua inteligibilidade, localizando o artístico nesse momento que, propriamente, está fora da ação de fazer e gerar a obra, ao localizar a identidade da obra na configuração reiterável. Além disso, todavia, Gadamer sugere que a “transformação não é uma modificação, algo como uma modificação de porte especialmente grande”55. O que o filósofo hermeneuta está indicando é que a transformação em arte é diferente de uma simples modificação ou alteração de um objeto. A tese é que na transformação em arte algo deixa de ser o que é para vir a ser uma outra coisa, ontologicamente distinta, “de maneira que essa outra coisa em que se transformou passa a constituir seu verdadeiro ser, em face do qual seu ser anterior é nulo”56. Gadamer recorre à imagem de uma transformação instantânea, sem fases ou processos intermediários, que anula o ser anterior. Segundo ele, não 54 2005, p. 165. 55 2005, p. 165. 56 Ibidem.
Atos e Artefatos 105 retórica. Falo em retórica, justamente porque me parece que os filósofos que a defenderam foram, por um lado, parciais, pois se referiram apenas à arte e não à técnica, e, por outro, porque esses filósofos não explicitaram o que significa dizer, por exemplo, que uma obra de arte é um acréscimo de ser, como o disse retoricamente Gadamer, na obra A atualidade do Belo (1974), explicitando em alguma medida o que havia dito de modo obscuro em Verdade e Método (1960), usando a distinção entre modificação e transformação.
106 Atos e Artefatos se trata sobretudo de uma transição. Por conseguinte, a “transformação em configuração significa que aquilo que era antes não é mais. Mas, também que o que agora é, que se apresenta no jogo da arte, é o verdadeiro permanente”57. O ser da pedra se anula com o seu vir a ser estátua. Com esse movimento teórico, Gadamer se afasta da concepção estética humiana e kantiana para se aproximar de Hegel e dar continuidade às propostas de Heidegger. Todavia, poucos artistas os acompanham, pois não compram essa diferença categorial que eles afirmam. Gadamer ainda assim recorre ao modelo da transubstanciação mágica operada no ritual religioso. Mas, diferentemente de Danto, que a concebe como uma transformação semântica, o filósofo alemão reclama uma interpretação ontológica no sentido forte e afirma que a explicação do fenômeno não é que o pão e o vinho passem a significar o sangue e a carne do crucificado; antes, “o pão e o vinho do sacramento são a carne e o sangue de Cristo”58. Gadamer aplica essa mesma interpretação ontológica para o caso da transformação em arte, para recusar a concepção semântica: “o fato de na obra de arte não haver somente uma referência a algo, mas de nela estar propriamente falando presente aquilo ao que ela se refere. Em outras palavras: a obra de arte implica um incremento de ser59 . A partir dessa teorização, Gadamer conclui que a transformação em arte é distinta absolutamente da transformação técnica. O acréscimo de ser, fundado na transformação de algo em outra coisa, ocorreria na arte e seria uma transposição de uma categoria ontológica para outra. Desse modo, o filósofo embute uma diferença categorial como condição do ser arte, no sentido de que na obra de arte os aspectos técnicos já não estariam presentes. Já as transformações técnicas e realizações produtivas derivadas do trabalho manual e da técnica, que estão na base do surgimento de aparelhos e máquinas, seriam apenas uma modificação sem efeitos ontológicos60. Note se 57 2005, pp. 165 66. 58 2010, p. 176. 59 2010, p. 176. 60 2010, p. 176.
Atos e Artefatos 107 que essa distinção entre obra de arte e obra técnica, Gadamer a impõe ao leitor sem argumento válido, apenas afirmando essa diferença, sem dar uma boa razão. Claro está que a obra Invenção da Cor já não é mais um objeto natural, mas por que isso não pode ser dito também da obra Demoiselle? Em ambas ocorrem transformações e alterações que escapam do domínio do natural e introduzem novas entidades no mundo. Em todo caso, Gadamer também reclama a imagem da transfiguração do pão e do vinho, ou seja, de uma transformação mágica que é ontológica. Além disso, ao fazer analogia com a transubstanciação que ocorreria na missa cristã, tal como Danto, se admite, de certo modo, que a transformação é distinta daquela que ocorre na construção técnica; ou seja, implicitamente Gadamer relega a transformação artística para o domínio do aparente e mágico. Contudo, quando se incluem na consideração as práticas e as operações construtivas e gerativas da obra de arte, essa distinção ontológica não se sustenta. Pois, ao reduzir o acréscimo de ser das obras de arte a esse tipo de transfiguração mágica, Gadamer esquece de dizer que para aqueles que a defendem isso se dá pela sua eficácia e efetividade teológica e prática do exercício do ofício do sacerdócio, o que, ao contrário do que diz o filósofo, é da ordem do effectus e do wirken que as obras técnicas têm, ou seja, como um efeito da efetividade da ação ritual do culto. Mas, Gadamer não pode pensar assim, pois exclui, sem pensar muito, a agência e a ação humana enquanto fatores ontológicos. Para se evitar essa abstração, que separa ação técnica e ação artística, faz se necessário recusar a concepção intencional e fenomenológica da ontologia, à qual aderem Heidegger e Gadamer, essa que torna inócua às transformações reais por suspendê las de antemão e se ater apenas à descrição do puro fenômeno dado na consciência. O aspecto instantâneo mágico da transformação é uma consequência da prévia epoché que elimina todos os processos de geração e efetividades atuantes, a tal ponto que algo passa a ser outro instantaneamente, sem nenhum resquício e resto. Ora, isso é o que não há. Onde se tinha um pato, agora se tem um coelho. Obviamente casos como esse, de transfiguração simbólica e imagética para o olho
108 Atos e Artefatos e o sentir, fazem parte do mundo humano. Porém, diferentemente desses artifícios que apenas vigoram se um agente os sente e vê, o avião Demoiselle e a instalação Invenção da Cor, primeiro, não são apreensíveis por uma visada que os toma como objetos isolados e em si mesmos; segundo, eles fazem efeitos e têm efetividade para além da intenção de seus autores e observadores, elas são entidades efetivas e eficazes por elas mesmas, queiramos ou não, pensemos nisso ou não: elas foram feitas de tal modo a terem consistência e agência própria, mesmo que as mais das vezes elas sejam agenciadas por agendas e agências alheias. Contudo, esse fato não as torna um efeito intencional, como quer nos convencer A. Thomasson61, na mesma linha de Danto e Gadamer, pois a sua eficácia e efetividade são tanto um produto de ações e interações quanto independem de intenções e percepções. Performação Todavia, não é clara essa tese no que se refere aos conceitos de acréscimo e de transformação e menos ainda aos conceitos de ser e de ontológico nela envolvidos. Dado um certo estado do mundo, o que se quer dizer quando se reconhece uma nova obra artística ou técnica como fazendo parte desse mundo? Trata se de apenas uma outra forma de ver e visar o mundo, ou de descrever o mesmo mundo com outras palavras e conceitos, ou trata se de uma transformação efetiva efetuada por ações eficazes que produzem efeitos independentes de intencionalidade e de observação e que propiciam agências e ações inéditas? Que para isso alguma alteração de algum tipo tenha que ocorrer parece ser óbvio. Agora, o surgimento de uma nova obra implica a ocorrência de uma transformação ontológica pela qual um novo ser ou um novo tipo de ser passa a existir? Não bastaria reconhecer apenas, por um lado, a alteração ou transfiguração simbólica e imagética do mundo e, por outro, a alteração e a transformação material e prática da agência e da interagência? 61 Ontological Innovation in Art, 2010.
O conceito de plasmabilidade ontológica aqui sugerido, como base para se pensar a transformação artística das obras de arte, indica, por um lado, que o artístico é um efeito de uma ação e, por outro, que esse efeito implica uma alteração material da interagência, e não apenas uma transformação do sentido e do olhar. Mas, também, em nada se esclarece a conversa, em termos de “ser” e de “ontológico”, se por isso se indica apenas a mudança de significado. Por isso, a proposta aqui é que ao explicitar a ação e a alteração implicadas no conceito de artístico, evoca se numa direção para os atos de fazer da arte e noutra para os efeitos desses atos como afecções de um material ou suporte que tornam possível outras agências e interagências. Ao contrário do que diz Gadamer, a pedra não deixa de ser pedra ao vir a ser escultura. Nisso Danto tem razão. A obra de arte, primariamente, é uma coisa feita que, se bem executada e bem sucedida, produz ela mesma efeitos de arte, estéticos, semânticos, formais e performativos; mas, o faz apoiada, por um lado, naquilo de que ela foi feita, a pedra, e por outro, na alteração feita nela. Por isso, o foco da apreciação que nos entrega a arte e o artístico não pode ser um recorte abstraído da experiência completa da arte que inclui a formação do artista, a preparação dos materiais, a execução, a experimentação e a realização, bem como a ação de exposição e a própria ação de fruição, nas quais participam efetivamente os apreciadores de arte. A apreciação de algo como arte implica, não uma abstração ou suspensão deste agenciamento e experimentação, mas antes o desvio pelo compreender, proposto por Dilthey, que não isola e separa a obra das circunstâncias de sua efetivação e atuação. No caso de obras do tipo de Invenção da cor, de Oiticica, se não tivermos conhecimentos das teorias da arte, das interlocuções e disputas, da situação histórica e do percurso de ação do artista em interagência com outros artistas, talvez fiquemos na dúvida quanto ao artístico dessa obra, pois ela não se oferece para nós nos conformes de um conteúdo e de uma forma já estabelecidos como arte. Parece mais uma obra de arquitetura inacabada, parece uma ruína novinha em folha, mas é isso e também outras coisas. Um dos nomes desse
Atos e Artefatos 109
110 Atos e Artefatos tipo de obra é “instalação” e faz parte da série de instalações penetráveis que Oiticica experimentou e desenvolveu ao longo de sua trajetória. Então, é uma obra da arte da arquitetura? Sim, e não. O nome da obra, “Invenção da cor” nos leva a pensar na arte da pintura e, sem dúvida, um dos propósitos da obra é oferecer uma experiência de formas e cores. Mas, o termo “invenção” não está ali de graça. Ou melhor, é nessa palavra que está a graça ou a arte. Do mesmo modo, o avião de Santos Dumont também é algo inédito que não se encaixa nas categorias prévias. Não havia avião, até então. Esse artefato é também uma invenção que emerge de uma situação e de cursos efetivos de ação. O seu nome também faz uma graça, pois remete ao ser natural voador (Libellule), embora seja um artefato técnico. Em casos como estes, a circunscrição da apreciação teórica, seja por aphaeresis, abstraction, aufhebung ou epoché, elimina a ação fundadora e a interagência efetiva, a hermeta, que sustenta e fornece o sentido para a obra, a herma. Com efeito, é o olhar suspenso que faz diferir a obra artística e a obra técnica, pois no mundo e na experiência das práticas vivas o artesão e o artífice se reconhecem mutuamente e são reconhecidos como fazendo arte. Para se recusar essa diferença, faz se necessário admitir que a arte e a técnica produzem transformações e isso pressupõe admitir uma certa indiferença ontológica como matriz da transformabilidade e da plasticidade da natureza, e como base da possibilidade da ação técnica e artística. A efetividade da ação tecno artística pressupõe que as entidades e o ser sejam ambos maleáveis e plasmáveis de modo a se transformarem em outras entidades e outros seres. Tanto o ser quanto o ente são alteráveis no sentido mais radical: um como o outro pode vir a ser outra coisa. Por conseguinte, ao focarem a transfiguração instantânea, mágica, Danto e Gadamer deixam de ver a transformação efetiva que está na base tanto da arte quanto da técnica, enquanto efeito da efetividade da ação e da Estainteragência.ideiadeplasmabilidade, de transmutabilidade, de mutação que faz transitar entes e seres, tanto a entidade quanto o ser, ou de plasticidade, foi introduzida como conceito ontológico básico na
A minha sugestão aqui consiste então em dizer que na base da arte e da técnica estão também operando uma diferenciação e uma alteração que produzem inovações ontológicas. Não sou, obviamente, o primeiro a dizer isso, mas quero ao menos fazer o esforço de dizer isso claramente. Entre os juristas romanos antigos, se fazia uma distinção importante, entre uma demanda clara, sobre a qual se podia dar um veredicto, e uma causa não clara, non liquet, sobre a qual não era possível julgar, ou seja, sobre qual não se podia nem dizer sim nem dizer não. A distinção sugerida por Heidegger e Gadamer entre obra artística e obra técnica, tal como foi proposta, está longe de ser clara, nesse sentido. O meu diagnóstico acerca dessa obscuridade indica que se trata de um efeito do método por eles
Nada de mágico e de instantâneo, contudo. Com Darwin, nós entramos no contemporâneo e assim nos despedimos de um modo de agir e pensar fundados na repetição da mesmidade e na conformação essencial prévia do mundo pelas formas extramundanas e transcendentais. No regime clássico, as diferenças eram desprezíveis, as alterações eram percebidas como desvios e erros, e as transformações eram efeitos de algo imaterial. A partir de Darwin as diferenças são o que há de mais relevante e as alterações materiais são as bases que fundam o surgimento de outras entidades e tipos de entidades. Contudo, estes conceitos supõem a preeminência da agência e da produtoras de efeitos. Longe da efetividade da forma, aqui estamos diante dos efeitos da efetividade material da agência e da interagência, cifrados nas palavras “adaptação” e “mutação”.
interagência
Diferenciação
Atos e Artefatos 111 modernidade por Lavoisier, ao mostrar que tudo se transforma e que nada se perde com isso, mas é o conceito de transformação como mutação introduzido por Charles Darwin que dita as nossas suposições metafísicas atuais. Com efeito, o conceito de mutação sugerido por Darwin é aquele que faz de toda alteração uma fonte de inovação ontológica, no sentido de que por meio dela uma nova entidade passa a existir e também um novo tipo de ser passa a haver.
dissociações
112 Atos e Artefatos usado, pois de modo muitas vezes tácito, eles empregam uma epoché que se pretende também uma aufhebung, e que exclui a efetividade material e agencial que faz ser e sustenta na sua consistência a entidade considerada.Empalavras simples, eles fazem esta distinção com base em um procedimento de abstração injustificado e injusto para com a coisa em questão, e tomam o abstrato, ou o formal no dizer de Heidegger, ou a idealidade no dizer de Gadamer, como o real efetivo. Com efeito, diferentes formas de abstrair são usadas para justificar e hierarquias ontológicas: ascese, êxtase, abstração, transcendentalização, logicização, diferenciação ontológica, suspensão e redução eidética, formalização, ideação, dialetização etc. Nessas operações, o quid e o quem, efetivos e eficazes, são substituídos por formações conceituais que deixam para trás, ou de lado, ou abaixo, as efetividades e materialidades, a situação real, para operarem nas malhas finas e exangues de uma estrutura sem as constrições do mundo real e da experiência viva. O exemplo mais claro disso está na passagem para a gramática em detrimento das línguas e seus usos concretos. Essa operação não é problemática, mas sim é a suposição de que a gramática precede e condiciona a efetividade da língua, ou a suposição de que o formal e a idealidade são efetivos. Do mesmo modo nas ciências, quando se tomam os modelos como efetivos e a empiria como ilusória. Nesses casos, o que é efetivo é substituído por aquilo que dele foi abstraído por alguma operação de redução, depuração e elevação teórica. Depois, o que é abstraído é posto como vigorando previamente e condicionando aquilo de que ele foi abstraído. As formas, as fórmulas, a lógica, a gramática, a estrutura, o modelo, o ser, o conceito, são tomadas como a única realidade efetiva, e então o real é posto como uma ilusão transitória ou como sendo apenas um efeito dos sentidos.
De minha parte, entendo que se há transformação ontológica no fazer artístico, então é inevitável que aceitemos que também há transformação ontológica no fazer técnico. Pois, em ambos os casos, entidades que não existiam passaram a existir e tipos de ser que antes não havia agora há. Afinal, o Abaporu existe e também existem
Na base de obras como Invenção da cor e Demoiselle, e também das vacinas contra a Covid-19, e alguns sugerem também que na base do próprio vírus que causa essa doença, assim como na engenharia genética e nos transplantes de órgãos, estão operando e sendo efetivos dois conceitos para os quais pouco se dá atenção. Primeiro, em obras, artefatos e artifícios desse tipo, o que se mostra e se faz efe-
Atos e Artefatos 113 coisas que são do tipo do Abaporu, isto é, pinturas modernistas. Não existia, antes, o Abaporu, e um dia também não havia o tipo de ser que é o ser desse objeto, pinturas modernistas. Mas, também um dia o 14 bis passou a existir e assim esse tipo de coisa, o ser do 14 bis, o ser uma aeronave, passou a haver. Entidade e ser, então, parecem passar a existir e haver por atos artísticos e atos técnicos. Atos, todavia, que atuam e interagem com e na materialidade das coisas prévias e térreas, bem antes de fazerem efeitos no plano da intencionalidade e da significatividade. Não se trata aí, porém, de um jogo, e menos ainda de uma mera transfiguração, mas antes de um campo de ação e de práticas que instauram situações, entidades e propriedades que efetivamente conformam as ações e as escolhas dos interagentes, que são eficazes em alterar o próprio ser das coisas e dos partícipes, de alterarem o sentido mesmo da interagência. Longe estamos aqui do mero improviso, como no Choro e no Futebol, pelo qual se introduzem variações e se inventam estilos, sem que se saia do jogo, pois nesses improvisos continua se a chorar e a jogar o mesmo jogo. Na base da arte e da técnica está uma ação de transformação, uma ação propriamente performativa, que faz transitar o próprio jogo, que faz vir a ser e se instaurar um outro sentido de jogar, portanto, um outro jogo. Nesse ato performativo instaurador, as coisas se transformam assim como os partícipes. Oiticica e Dumont não eram ilusionistas e improvisadores: eles eram fazedores e construtores de outras coisas, efetivas e eficazes. Do ponto de vista do observador, fenomênico e abstrato, theoretikos, essa mutação das coisas aparece como um passe de mágica, pois, daí, desse lugar estético e semântico, não se pode ver a ação de interação em curso e menos ainda participar e atuar nela.
114 Atos e Artefatos tivo é um tipo básico de ação e de interação primeiramente desenvolvido no campo das ciências e técnicas modernas e que assombrou para sempre as mentalidades antigas e medievais, qual seja, o de experimentação, aquele tipo de ação e de interação que se faz nos de ciências, ciências estas que se predicam como ciência experimental, aquela mesma que estava na base da química de Lavoisier. Segundo, e mais importante, a efetividade desses objetos e também a sua eficácia, pois não podemos negar que essas obras, artefatos e artifícios são efetivos e eficazes, está relacionada com uma ação de transformação, ou seja, uma ação de alteração que transforma o ser das coisas sobre as quais ela incide. Importa, de saída, pensarmos essa alteração no sentido do conceito de mutação proposto por Darwin: alterações materiais e particulares, às vezes pequenas e imperceptíveis, que transformam uma entidade em outra, ou que transformam o ser da entidade e dão origem a um novo tipo ou espécie de ser ao modificarem a interagência e a eficácia de sua agência. Portanto, alterações que fazem a entidade e o ser transitarem. Nenhum desses conceitos é apreendido, seja pelo conceito de transfiguração de Danto, seja pelo conceito de transformação de Gadamer. Libertação Disse no início que uma abordagem hermenêutica designa uma ação complexa de explicitação das armações que tornam evidentes as verdades estabelecidas e consistentes os fatos objetivos, ao apresentar sua proveniência e sobretudo as forças atuantes em sua instauração. Pois bem, penso que é possível fazer uma ponte entre a nossa condição atual, a arte contemporânea e a técnica atual. Se Íon sabia tudo de Homero e nada de Hesíodo, isto não era uma falta ou ausência de ciência, mas sim a plenitude e a maestria de uma ciência artística e técnica. Quem sabe apenas o genérico, que vale tanto para Homero quanto para Hesíodo, a ponto de poder falar a priori de qualquer poeta, de fato e de direito, por um lado, é um incompetente em Homero e Hesíodo e, por outro, sabe meramente
laboratórios
Atos e Artefatos 115 aquilo que se alcança ao se abstrair e anular o que torna Homero e Hesíodo poetas diferentes e relevantes como poetas enquanto criadores de obras distintas. Uma atitude hermenêutica se perfaz no atendimento às diferenças e na compreensão omniabrangente que não deixa nada de lado, principalmente as (in)distinções efetivas.
Com efeito, nessas três obras, de arte, de técnica e de tecnologia, a agência humana se mostra eficaz e se torna efetiva, com base na experimentação e na transformação, e, assim, produz efeitos libertários e emancipatórios. Dito nas belas palavras de Mário Pedrosa, esses três casos mostram o que é a ação humana quando ela é um exercício experimental de liberdade. Com efeito, a obra Invenção da Cor nos libera para pensarmos e agirmos de modo a reconhecer que
Na base da obra de arte Invenção da Cor, do aparelho técnico de voar Demoiselle, mas também da vacina artificial Coronavac, estas duas ações, de experimentação e de transformação, estão operando conjuntamente e se fazendo efetivas e eficazes enquanto são ações de instauração de sentido: elas fazem sentido e fazem um outro sentido; elas têm sentido e dão sentido enquanto liberam outras ações e outros modos de agir e interagir. Dizemos que elas são sensacionais e inteligentes, pois elas ativam tanto os sentidos quanto a nossa capacidade de apreender sentido. A peste do Coronavírus nos acontece, mas a vacina é coisa feita, e feita por nós. Mas, a vacina é o produto de um curso de ações de experimentação e de transformações, não no sentido de que aquilo que foi transformado passe a ser outra coisa de modo mágico ou simbólico, e também sem que se transforme inteiramente em outra coisa. A efetividade desse curso de ação se efetiva na vacina e no contexto de interações efetivas. A eficácia da vacina, assim como a do avião, exige e libera uma outra forma de interagência e nos retira da passividade do ser, natural ou destinal, e nos transforma e coloca num curso de ação que adquire outro sentido, um sentido que interage com a natureza sem estar preso a seus limites. O sentido desses artefatos é dado pela conjugação dessas ações, e esse sentido libera novas ações e interações, e tem, entre outros, o significado de emancipação ou de libertação, para nós.
inescapável.
116 Atos e Artefatos a cor não é um dado natural e um destino a que devemos subserviência; o avião Demoiselle nos libera para pensarmos e agirmos de modo a reconhecer que o ar, o céu e o espaço vazio também são um caminho e um meio de locomoção e ação para nós; as vacinas, todas elas, nos libertam da fatalidade das pestes e da história biológica e social como destino inexorável do deixar morrer. Nesses três casos, o agir é efetivo, e as obras, produtos do agir e do interagir experimental, têm eficácia. Essa efetividade e essa eficácia fazem sentido, um sentido outro que aquele da natureza inexorável e do destino Dadas essas obras, a nossa vida se libera e se emancipa para uma outra forma de vida, uma outra forma de existência que projeta um outro modo de ser humano.
A dança cobra um outro pensamento que aquele pelo qual a filosofia a tem pensado, na exata proporção de sua distância em relação à linguagem escrita. A dança exige um pensamento do corpo ativo e interagente no plano do sentido. Agora, o que é um corpo, para além de peso e afetabilidade? A resposta é que o corpo, a despeito do que disseram os filósofos, pensa e tem senso próprio. Agora, dizer que o corpo pensa e faz sentido é já uma heresia. Mas, o que faz o corpo, ao dançar? O corpo, penso e tenso, suspenso, pensa e faz sentido, sem por isso soletrar ou falar. Que esse corpo pese, que ele só pese, não faz sentido. Sopese um pouco, o corpo tenso e penso, pendido, suspenso, ao dançar, repensa e dispensa o próprio peso; dispensa o, ou o pensa de outro modo, lhe dá outro sentido, desfazendo o pensamento que antes o tencionava. O que ele faz, o faz ao atuar. Não faz um artefato, não faz uma imagem, não inscreve um signo: dança.
Atos e Artefatos 117 6 A ARTE DA DANÇA
E o que é isto, a dança que o corpo faz ao atuar sem produzir nada? A dança é uma ação que se perfaz nela mesma e cujo sentido se apreende ao se participar dela. Ao dançar, um corpo se expõe para outro corpo e apresenta uma oportunidade de interagência ao se fazer sentido e ao expor um sentido. Entrar na dança, apreender o sentido dessa ação, consiste apenas em dançar a dança que ali se dança. Dançar é se fazer livre nas constrições de uma situação, é fazer da condição situada um espaço de liberação para o agir e o interagir.
118 Atos e Artefatos Estético e semântico
A obra de arte tem sido pensada como um objeto cuja potência primária é estética ou semântica, ou ainda, estética e semântica. Os seus efeitos não seriam primariamente efeitos físicos, biológicos ou materiais, mas sim e somente de afecção e de significação. Este é o estado da arte sobre a arte. Ou, ao menos, assim a arte tem sido pensada no seu peso e também no seu pensum: se é arte, tem de significar e tem de causar sensações. As alternativas clássicas a esta equação deslocam o artístico para o metafísico ou para o ilusório.
Na raiz dessa equação e muitas vezes também das suas alternativas está a apreensão redutora do artístico e das obras de arte pensadas como artefatos manufaturados expostos para serem apreciados como objetos sensíveis e sensoriais. A ideia de pensar a arte como uma atividade de fazer objetos estéticos é bem antiga. Por essa ideia, artista é quem produz (poiesis) uma obra (ergon) que nos afeta (pathein, aphein) no plano da sensibilidade (aisthesis) por ter certas qualidade (poiótes). E esta obra, ou artefato, embora seja um objeto material, as mais das vezes, tem propriedades secundárias de tal modo configuradas sob uma forma (morphe) indutora de experiências estéticas, também elas secundárias, pois, embora dadas na sensibilidade, implicam a mente (psyche) e a inteligência (nous). A apreciação de obras de arte mobiliza conceitos e parâmetros de construção, composição e forma, mas é no objeto estético onde está propriamente o dado de arte da obra de arte. O deslocamento para a dimensão semântica, ou hermenêutica, da obra de arte, também é antigo e sempre esteve de algum modo presente nas concepções tradicionais, pois o sentido de uma obra em geral ultrapassava o plano estético e alcançava o âmbito do dizer e do significar, no sentido preciso de que, para além dos efeitos estéticos, uma obra de arte enunciava algo e não apenas produzia uma imagem (eídolon, phantasía tês aisthetikés). Sob esta maneira de ver, as obras de arte são objetos ou artefatos significantes, dotados de sentido e propiciadores de experiências de sentido. Uma obra de arte
Atos e Artefatos 119 significa alguma coisa (semainen ti), diz algo (delonei), comunica (epikoinonei). Nos seus efeitos, uma obra de arte seria também semântica e simbólica (semantikos, simbolikos).
Assim se estabeleceram as apreensões filosóficas do artístico desde os gregos antigos, ora a submetendo ao conceito de imagem sensível, ora ao conceito de linguagem representativa, o que culmina nos conceitos principais do século XX, quando o artístico é pensado como emoção, como forma, como linguagem, como símbolo, como imagem, como sensação. O fato de que nessa longa história, o cerne do artístico tenha sido deslocado para a mente divina ou para a mente geral ou individual das gentes, nada muda no principal. As artes são apreendidas nas atividades poéticas e as obras de arte são enquadradas no conceito de artefato particular com propriedades estéticas e semânticas.
A arte da dança como problema A arte da dança não foi pensada pela filosofia a não ser como arte marginal e secundária, e isto justamente porque a dança dificilmente se deixava apreender como representação imagética ou como representação discursiva. Ainda assim, muitos propuseram a sua apreensão estética ao transformá la em arte visual e plástica e muitos tentaram a sua apreensão semântica ao transformá la em escrita muda.Todavia, a arte da dança não é somente um evento estético e muito menos apenas semântico, embora seja efetiva nisso também.
Além disso, também não é um ato poético que produz um artefato e menos ainda apenas um evento cinético. Por isso, as filosofias da arte e as estéticas filosóficas pouco falam da dança, mesmo ali onde se reconhece que ela é uma arte. O cume e o acúmulo dessa apreensão estão sintetizados na tese de A. Badiou (2002), que termina por dizer que a dança não é uma arte, nisso seguindo as indicações antigas de Aristóteles e modernas de Kant. Com efeito, ao alocarem a arte no plano da ação técnica e poética, aquele tipo de ação que se
120 Atos e Artefatos realiza fora dela mesma, isto é, na produção de um artefato, Aristóteles e Kant já haviam descartado a dança do espectro da arte. As dificuldades da filosofia com a arte da dança advêm no fundo do ascetismo e da abstração que caracterizam ainda hoje as práticas filosóficas. Na arte da dança, com efeitos nada ascéticos, a arte não se separa do corpo do artista e assim também não se constitui como um corpo objeto para a apreciação soberana do ver e do perceber. A obra de arte não se separa do corpo do artista, e o corpo do artista está presente na obra como o seu material e seu veículo. E os sentidos da obra, os pensamentos que ela perfaz, são sentidos do corpo e apenas se deixam sentir (aísthesin) e inteligir (synesis) por uma intimidade sensível, não em relação a uma obra objeto (ergon) e menos ainda a uma substância (ousia), mas a algo semovente, intimante e incoativo. A obra de arte, com efeito, no caso da dança, não se separa sequer da ação que a perfaz. Três teorias Se a dança é arte, então é preciso pensar uma ação artística que não se realiza e concretiza como um artefato. Além disso, se a dança é arte, então é preciso pensar uma obra de arte que não se diferencie em relação ao corpo do artista e também em relação à ação que esse corpo realiza. A dança seria, então, uma ação que se completa nela mesma ao se realizar. Mas, este é o conceito de práxis, que Aristóteles e Kant reservavam para a ética e a política. Deixemos então esses dois de lado e façamos um outro passo, pensemos a arte da dança, ou a dança como arte, como uma ação sem obra, seguindo Poiullaude62 , como uma ação cujo fim é a própria ocorrência, portanto, pensemos que a dança é antes, e muito mais, arte, mas uma arte que se realiza como práxis no plano mesmo do corpo sentido e do sentido do corpo.
62 Le désouevrement chorégraphique: étude sur la notion d’oeuvre en danse , 2014.
Atos e Artefatos 121
Com efeitos ainda pouco percebidos e menos ainda pensados, os livros Arte como performance63 e Estética do performativo64 introduzem conceitos e esquemas de inteligibilidade capazes de apreender o artístico da dança de um modo inteiramente apropriado, mas que, por isso mesmo, põe sob suspeita as teorias filosóficas tradicionais. Nessas teorias o artístico emerge de atos geracionais que instauram sensitividade e sentido sem necessitar da intermediação de um artefato.
O ato de dançar, a atividade da arte da dança, não é um dizer, mas um executar; não é um fazer, mas um atuar. A arte de dançar não é poética, nem produtiva, nem narrativa, nem figurativa, nem semântica e menos ainda imagética, embora possa também ser mobilizada para ter esses efeitos e as mais das vezes os tem todos eles. Porém, na sua base, o corpo que dança enquanto faz isso como arte prescinde desses efeitos e pode se efetivar como arte apenas dançando. Dançar é uma atividade perfectiva que pode se realizar no âmbito minimal da modulação da agência: agência capaz de coordenar sua motricidade e sua potência, enquanto capaz de fazer e apreender sentido na dimensão prático agencial, que faz e tem mundo nessa dimensão, a qual é um plexo complexo instaurador de sentido, modulação que não está dada de antemão, mas precisa ser aberta e feita a cada vez por meio de ações e interações ativas de performa-
65 J. Féral, Além dos Limites, 2015, p. 154.
63 D. Davies, Art as Performance, 2004. 64 E. Fischer Lichte, Ästhetik des performativen, 2004.
O artístico se realiza como proposição feita por meio de um veículo performático e performativo, ou seja, por uma ação perfectiva, pois se realiza e completa ao ser executada. Quem dança não faz alguma coisa, apenas dança. Não há uma obra (ergon) que instanciaria uma configuração e uma unidade de sentido. O ato de dançar realiza o artístico sem nenhuma mediação. Esse ato não incorpora sentido, antes e mais, faz sentido, embora, sob um olhar teorético, estético ou semântico, tenhamos que dizer que esse ato acontece na ausência de sentido65 .
122 Atos e Artefatos ção. Nem sequer é necessário que o corpo se mova, pois a imobilidade já é um ato complexo, que faz sentido, como o demonstra a obra de dançaVestígios, de Marta Soares (2010). Enquanto ato, já faz sentido: um sentido que sempre já é da ordem do fazer e do perfazer. Os conceitos de performance e de performativo, contudo, não se referem apenas ao fato de que na base da arte está o conceito de agir e de fazer, visto que eles também indicam que este agir e fazer são instauradores de diferenças as quais sem eles não se realizariam e que são também implementações artefatuais. O ato de dançar, por conseguinte, se é arte, é performático e performativo no sentido de ser um ato de ficção. Todavia, como compreender o ficcional na dança quando ela é pensada como pura presença, corpo e movimento, e diferida em relação aos atos de representação, de simulação e sobretudo aos atos linguístico discursivos? Seria a dança, então, não ficcional? E, assim, um ato ineficaz e não artístico? A resposta é que, enquanto se realiza como arte, a dança faz sentido um sentido ali onde não há, e nisso está a ficção da dança.Contudo, se a dança faz e tem sentido, nem sempre ela significa alguma coisa. Fazer sentido ainda não é, e também não necessita de, significar (Braida, 2021). Os signos, símbolos e palavras, as linguagens são dispensáveis para o corpo que sabe dançar, do mesmo modo que os artefatos, instrumentos e apetrechos. A dança se faz no corpo minimal, se faz, portanto, nos deslimites do corpo. A dança não precisa ser signo para ter sentido, pois o ato de dançar pode ser apreendido e compreendido sem que seja tomado como signo e muito menos como sendo significativo, mas isto exige um outro corpo disposto a suspender os seus próprios aparatos de proteção e ascese, que aceite a intimação para a intimidade, a saber, que aceite atuar em co ação e assim ser copartícipe, ao abdicar da posição de espectador, de uma ação de dança.
Fiquemos com isso, dançar é pensar; sem mais, mas também sem menos. A dança é um pensar efetivo e pleno, embora não sígnico, não imagético e não discursivo. Se dançar é pensar, então, ela nem por isso se confunde com a filosofia, muitas vezes dita a arte de pensar. A filosofia é a arte de pensar em palavras; a dança, pensa antes da palavra, melhor dito, pensa sem palavras. Diria mais até, a dança pensa sem palavras, sem imagens e sem signos. Nisso ela é a antípoda da filosofia e do teatro, mas também assim se distingue de
O acontecimento da dança Claro, um gesto de dança, ou uma peça de dança, ou uma performance de dança, sim, pode e é, às vezes, signo, imagem, símbolo ou enunciado com significações bem delimitadas, portanto, que é sinal de uma outra coisa. Porém, o que a articulação teórica aqui desdobrada quer mostrar é que muito da arte da dança contemporânea se deixa compreender justamente como a recusa do imagético, do simbólico e do semântico. Por isso, nessa articulação, a ação artística da dança não é analisada como um significar, mas sim e antes como um pensar. Nessa visada, dançar não é um dizer, e muito menos um fazer figuração, mas antes um agir pensando e um atuar no plano do sentido, tal como se entrevê na dança Last Work, de Ohad Naharin. Alguém que assista Last Work, sem pensar pode supor que a moça vestida de azul que simplesmente corre no fundo do palco não está a dançar e que apenas outras dançarinas e dançarinos propriamente dançam. Afinal, os seus movimentos são “naturais” e ela simplesmente corre. Mas, a dança dos outros ganha nitidez e distinção apenas por ela fazer o que faz; por sua dança ser como é, a dos outros é o que é. Se usamos o conceito de movimento, todos no palco dançam. Se distinguimos o natural e o artefatual, então a moça que corre seria a natureza, os outros o artefatual. Porém, todos no palco participam da mesma ação artística, todos dançam uma única dança. A ação da moça vestida de azul dá o tom e o ritmo por sobre o qual os gestos, posições e movimentos dos outros emergem como modulações e estilizações do agir. Todos estão a correr, todos estão a dançar as variações do corpo que pensa.
Atos e Artefatos 123
124 Atos e Artefatos todas as demais artes. Com efeito, qual outra arte é tão exígua em meios e suportes? Não é a dança a única arte que dispensa tudo, menos o corpo pensante? Muitos diriam, inclusive dançarinas e dançarinos, que a dança vai além, pois exige apenas um corpo sentido.
A arte da dança parece não precisar de meios e instrumentos ou suportes, ao se instaurar como ato cuja obra é o seu próprio acontecimento e sentido. Dançar é um ficcionar sentido que se mostra no atuar e que precisa ser apreendido no plano mesmo da inteligibilidade da agência. Muitos hoje, nesses tempos de pensamento apressado, retrucariam dizendo que a dança não dispensa o corpo, tanto como meio quanto como suporte, diriam também que o corpo é o instrumento e o artefato da dançarina, que ela o molda e o utiliza do mesmo modo que o escultor faz com a pedra e o pintor com a tinta. Sim, de fato, faz sentido dizer: a arte da dança dispensa o corpo. Todavia, a dança dispensa o corpo, no sentido de tirar do corpo os pensamentos que o presidem, para o repensar sob a orientação de um outro sentido. O que implica dizer que a arte de dançar é a arte de retirar a fixidez do nous que preside o corpo, de modificá lo, transformá lo. Todavia, esse repensar não é um substituir, mas um perfazer, um ato performativo de pensar que se realiza ao se executar, portanto, um ato performativo do corpo que se refaz como corpo diferente ao se pensar num outro sentido. A dança, enquanto arte, constitui se como um exercício de ficção na dimensão prime da agência. A dança, por isso, dispensa o corpo, no sentido de que a arte de dançar é o ato de ficcionar o corpo para o fazer se corporificar sob o regime de outras direções e sentidos. Um corpo que dança exibe o que pensa sem nenhuma mediação. Dito de modo simples: a arte de dançar é a arte de pensar com o corpo, de fazer do corpo um pensamento, de fazer e dar corpo a ficções, sem que para isso tais pensamentos e ficções sejam representadas, simuladas, figuradas com o corpo66. O corpo próprio se perfaz sentido, um sentido que ele não significa, mas é. Pois, aí o 66 J. Féral, 2015, p. 155.
Atos e Artefatos 125 pensar e o ser corpo são indistinguíveis: o pensar se efetiva enquanto corpo sentido, e isso nomeamos “dançar”.
A composição do corpo Entende se a composição como o esforço de artificialização intrínseco ao fazer artístico. A arte é sempre a negação do natural, e o termo composição indica o ato de realização do artificial. O artificial, no seu extremo, é o extranatural enquanto realiza o que é impossível para a natureza. Especificamente, na ação artística o impossível torna se não apenas possível, mas real. O que não é, o fictício, é realizado pela composição. No caso humano, a cada vez o corpo cultural precisa ser composto, fabricado, para deixar de ser bicho. Cada povo, cada cultura, enfim, cada forma de sociabilidade se conforma como corporeidade e gestualidade, como atitude que, na base, configura um jeito do corpo atuar, sentir e fazer sentido. O corpo que somos não é mais o corpo natural, mas sim o corpo composto pelos atos de incorporação da cultura. Não por acaso usamos a expressão “recompor se” para justamente indicar a ação de retomada do corpo cultural após o termos perdido por algum evento natural que nos tira da cultura e nos joga abandonados às forças naturais. A dança é a ação de composição corporal. Ao dançar se aprende uma atitude corporal e uma forma corporal de atuar como humano. Na dança, reiteram se os atos pelos quais o humano se assegura como humano ao se afastar da animalidade no plano mesmo do corpo. Ao dançar tanto nos fazemos humanos quanto mostramos que já não somos meros animais. Enquanto arte, é composição, portanto, é uma forma de ficção do corpo para além do corpo natural. A composição, na dança, inflete o corpo em direção ao impossível, ao ficcional, para assim retirá lo da natureza. A composição do corpo é um ato necessário para qualquer comunidade e sociabilidade, por isso a dança, como forma de composição, é um universal humano. Mas, como todo gesto cultural, como todo artifício e artefato, ela tem dupla face: ela tanto reitera o modo
Não se trata nunca de corpos, mas sempre já de pessoas vivas em estado de performance de si para outrem. Pessoas, ou seja, entidades cuja corporeidade precisa a cada vez ser composta e reiterada, isto é, recomposta, pois não são natureza, mas sim artifício. O corpo semovente, isso se mostra na dança: uma semovência autoreferida que instaura sentidos cujos significados apenas são sugeridos e sempre ultrapassados. O corpo em êxtase, mas que se retém em si, sem se passar para a produção e para a palavra, portanto, semovência livre de produtos e palavras, puro ato; pura performance de si, pura ficção de Comsi.esta articulação o que se visa é fazer ver que a arte, e sobretudo em relação à dança isso precisa ser sempre dito, é, antes de tudo, ato e atitude. O corpo ficcional que vemos no palco não é primariamente estético, não é linguístico e não é representacional: é ato e atuação e atitude a instaurar sentido ao se situar e se ritmar. Ao dançar o agente se põe como ato e compõe o lugar e o tempo no qual um sentido de orientação é mais sugerido do que representado ou expresso.Oatode dançar estabelece um âmbito de atuação, um ambiente e um clima, que solicita o outro como agente e exige uma co ação copartícipe. A partir dessa percepção, que dança é ação que solicita uma co ação, podemos compreender a composição, no seu sentido convencional como um pôr se junto às coisas e aos outros agentes; porém, no seu sentido primário, a composição é a co ação ou interagência que faz um agente ao instaurar uma ação que solicita
126 Atos e Artefatos de conformação do corpo e da gestualidade típicas de uma sociabilidade quanto reitera os atos pelos quais essa gestualidade e sociabilidade se conformaram, abrindo assim o corpo para outras formas de composição. Por isso mesmo, toda dança radical exibe e realiza uma projeção de novas formas de ser e atuar. Ao dançar, por conseguinte, exercemos essa dupla potência: tanto nos recompomos, no sentido de retomar por afinação a forma cultural na sua base de sustentação, quanto nos recompomos no sentido de nos fazermos outros em relação a nossa cultura, nos reinventando no plano mesmo do corpo e do gesto.
Atos e Artefatos 127 a participação dos demais agentes para se perfazerem livres. O corpo dançarino solicita os outros corpos para dançar, os intima, e se é uma dança arte, então desintimida ao instaurar um ambiente de intimidade. A composição é antes de tudo um ato que se conjuga a outros atos e assim instaura uma âmbito de liberdade e criatividade: um âmbito em que se experimenta a imediação, a não distancia, portanto, um ambiente no qual a vida insólita, ali mesmo na extrema solidão de estar só no palco, como é o caso da dançarina em Vestígios, é sinal de solicitude. A insurgência do corpo dançante O corpo humano, conquanto seja um corpo vivo e material, perfaz se todavia em relação interativa e cooperativa com outros corpos na dimensão de sentido na qual um movimento sempre já é um gesto e uma ação com e para outrem. O corpo humano, por conseguinte, não é o corpo natural. O que não implica que esse corpo seja um corpo sempre já perpassado e constituído nos planos dos significados e das imagens. Significação e imagem são já artefatos produzidos por atos corporais, e apenas vigem quando uma forma corporal já está operando como base e como estilo de corporificação. Fala se daí em construção prévia do corpo, e até mesmo de fabricação do corpo, como um traço basal das diferentes culturas. Esta construção propicia ao corpo da criança aquilo que ela não tem ao nascer: uma postura, um modo de se pôr na relação com o entorno e sobretudo na interação cooperativa com os outros. A postura basal, aquilo que um dia se chamou ethos, pelo qual um corpo é reconhecido como um humano específico e até singular, que tanto o constitui como humano quanto constitui o outro como humano, nesse sentido, é uma ficção, pois a cada vez tem de ser novamente construída e reiterada. Apenas então, enquanto reiteração reiterada, é que se torna possível a determinação da significação do gesto e a estilização da imagem corporal. A partir desta visada, a arte da dança ganha uma relevância central no plano das artes e da própria cultura. Nela se reiteram,
128 Atos e Artefatos refinam se e adensam se os gestos inaugurais pelos quais o corpo natural perfaz se como corpo humano através da ficção de uma corporeidade cultural específica. A cultura e a civilização, a sociabilidade mesma, naquilo em que ela se torna diversa e múltipla, é um a mais em relação à natureza e primeiramente se exibe como postura corporal. Nas artes o que se exercita é justamente esse a mais, enquanto é revelador da presença de espírito, ou seja, da presença de sentido. Aquilo em que se exercita é o atuar na dimensão do artifício e do artificial cuja raiz é a ficção de uma especificidade por sobre a generalidade natural. A arte da dança retoma ativamente a construção daquela postura e propõe outras articulações, outras corporificações, liberando o corpo para outras atitudes e gestos, ao retomar o corpo sentido. A composição, pela qual um evento de arte é articulado e materializado, indica o esforço de artificialização intrínseco ao fazer artístico que modifica e reestrutura o dado habitual ou natural pela sua articulação diferencial. Com efeito, a arte é sempre a negação do natural, e assim a composição indica o ato de realização do artificial e do ficcional. Em particular, na realização da ação artística o impossível torna se não apenas possível, mas real, isto é, disponível para a experiência. O que não é, o fictício, é realizado pela composição; esta, então, se constitui como o artifício pelo qual algo que não é vem a ser. Na composição em dança, o que se compõe é um corpo semovente na sua singularidade, enquanto este corpo, com essa e não outra postura. Esse corpo, o corpo dançante, por conseguinte, realiza o ficcional, realiza se como corpo ficcionado, ao atuar e perfazer um sentido previamente inexistente e irreal. Todavia, esta atividade de composição e recomposição tem de ser exercida como negação e artificialização de si, ou melhor, de negação do si mesmo natural e próprio. Pois, na base está um corpo vivo que pode viver por si mesmo no modo do automaton, no modo do autismo vegetal. Na dança, enquanto ela é arte, exercita se o gesto de saída de si em direção ao outro, mas sobretudo também à outridade. Não se trata nunca de corpos, membros e objetos, mas sempre já de agentes conscientes em estado de performance de si
Atos e Artefatos 129 para outrem. Agentes, isto é, entidades cujas corporeidades precisam a cada vez serem compostas e reiteradas, isto é, recompostas, pois não são natureza, mas sim artifício e intentio. Por não ser natureza, a corporeidade que nos toca, determina e afeta é a corporeidade como postura e atitude. Até mesmo no choque de uma pedra, e tanto mais no toque de outro corpo, o agente identifica uma atividade que o atinge, ou um ato que o agride, ou um aceno no plano da atitude, sua ou de outrem em relação a ele; o “toque” da pedra assim é modalizado no plano mesmo de seu movimento, a depender da projeção de sua origem: avalanche, agressão ou aviso.
O corpo semovente, por isso mesmo, não é como uma pedra que simplesmente rola, mesmo quando ele rola e rodopia no ar e no chão. O corpo ficcional que vemos no palco não é primariamente estético, não é já linguístico e representacional: é ato, é atuação, é atitude que instaura sentido ao se posicionar, e isso não por produzir algo ou ter uma função fora dele mesmo. Ao dançar, o agente se põe como ato e compõe o lugar no qual esse ato realiza um sentido de orientação sem que isso precise ser representado ou expresso. O ato de dançar estabelece um âmbito de atuação, um ambiente e um clima, que primariamente solicita o outro enquanto agente, exigindo uma co ação a partir da interação participativa relativa a uma postura. A performance de Alejandro Ahmed, na peça Sobre expectativas e promessas67, ilustra essa construção, no palco, de uma outra corporeidade, de um corpo que é outro que o corpo natural e que o corpo habitual. O atuador faz emergir e se realizar no palco um corpo ficcional que nos intima e solicita na dimensão mesma da postura e da atitude, ao instaurar um ambiente de intimidade e cumplicidade por meio de atos e movimentos de interação corporal ativa. Ele não diz e não precisa dizer nada, nem significa. A performance se exercita no destemor, na não timidez, em relação a si mesmo, em relação ao si mesmo mais próprio, aquele que é o outro em relação ao habitual. Ao se intimar, ele se desintimida para devir outro: instaura um am67 Grupo Cena 11, 2013.
130 Atos e Artefatos biente de intimação, que lhe permite se abrir para uma outra corporeidade, a qual solicita do espectador um corpo sentido e uma ação recíproca.Apartir dessa percepção, que dança é ação que solicita uma co ação, podemos compreender a composição como um pôr se junto das coisas; compor seria então por junto com, isto é, co intimar, portanto, uma ação primariamente de des intimidar, de criar ambientes de intimidade. Composição como ato de eliminar o medo de agir e de atuar, de liberar o destemor. A composição na dança libera o corpo semovente para o destemor. Pois, para dançar, para se dançar, é preciso superar o medo atávico que toda cultura disfarça sob a forma de esquematismos corporais e mentais fixos que presidem agora o contato com o outro e com o ambiente. A composição antes de tudo é o instaurar uma intimidade ou mundo: um ambiente em que se experimenta a imediação, a não distância. Compor, por junto, tornar a vida insólita, mesmo que para isso se tenha de ficcionar uma presença artefatual. Pois, claro está que o animal e a natureza não são nada íntimos, apenas o olhar no olhar de quem se tornou um si requer um espaço de intimidade como condição de vivência plena. Na natureza, a intimidade não se faz necessária, mas também não ocorre porque cada elemento está já conectado; por isso, a conexão natural nem é nem não é uma relação íntima. A própria intimidade é um artifício daqueles que abandonaram a vinculação natural. Na composição do corpo que dança, então, o passo primário é o de desintimidar, de modo a que a própria timidez seja bloqueada e superada. Nina Simone, perguntada sobre o que era a liberdade, respondeu “Nenhum temor!”, ao mesmo tempo que dizia que poucas vezes se sentiu livre, e essas vezes foram no palco. A arte, enquanto também é um pôr se junto às coisas de que no dia a dia nos afastamos e das quais não queremos saber, traz para junto de nós aquilo que temos de afastar para nos garantirmos na nossa identidade habitual. Por isso, muito da arte atual é chocante, pois a intimidade que ela instaura é com aquilo que gostaríamos de não saber e não ser. O que ela propõe é o destemor, não em relação ao desconhecido, mas antes em relação ao que somos e sabemos,
Atos e Artefatos 131 mas precisamos manter escondido. Um sintonizar se com a real, um recusar as mediações, mas também um fazer insistente novas mediações. Um prestar atenção ao que acontece, e também um prestar se ao acontecimento sem reservas, por absoluta impossibilidade de se distanciar. A arte da composição artística então emerge como o exercício de doação e entrega totais ao momento de atuação, como única alternativa à submissão. A ação artística de dançar exige que se deixe de lado todos os aparatos e artefatos, pois neles está a maior submissão do corpo. E qual é a nossa condição atual? O que é isso que requer intimidade, isso que de modo insólito se faz presente por meio do ato artístico insolente? Por um lado, a condição da conformidade ao bom gosto e ao bom senso das propagandas e dos produtos comerciais. Tudo tem de ser formatado e maquiado como um docinho diet sintético, tudo tem de ser muito asséptico como um sorriso comercial de creme dental. Essa condição, artificiosa e mentirosa por completo, agora perfaz as próprias pessoas, elas se pensam assim, elas se querem assim, limpas, retocadas, sem marcas e sem as rugas que caracterizam uma vida plena. Por outro, a nossa condição é a da violência explícita, da morte e da destruição como espetáculo diário e constantemente transmitido, sobretudo da violência contra a intimidade, que os olhos mecânicos, como lâminas de aço perpassando a carne, perpetram aos corpos desnudos. Assim, nos acostumamos e somos conformados ao convívio diário com a intimidação e com a destruição da intimidade. Sabemos ainda, experimentamos ainda a intimidade? Temos ainda uma intimidade, uma vida íntima, que não seja configurada pela estética do bom gosto e que não esteja preparada para o close do olhar maquínico e para o slogan digital? Talvez, se pensarmos bem até o cerne de nossa vida atual, tenhamos que concluir que a composição artística hoje não faz mais do que fazer emergir a postura corporal pela qual a condição de compositos, de híbridos corpos máquinas, tal como é articulado de modo exemplar na peça Pinokio, de Roberto Alvim (2010), seja enfim incorporada como natural para então ser possível sua superação por um ato de ficção de si para além dessa natureza sintética. A
132 Atos e Artefatos dança ainda se faz sem as mediações, todavia. A arte da dança, assim, ganha o lugar primal no inteiro panteão das artes, pois nela e somente por meio dela ainda é possível a imediação e a intimidade corporal. Embora passe pelo artifício e se instaure no plano ficcional, o corpo dançante não se torna assim artificializado e menos ainda produz um artefato. Apenas a dança, e mais nenhuma outra arte, está em posição de instaurar uma postura insurgente frente ao império dos artefatos. O primado da ação poética, matriz das demais artes, cuja finalidade e sentido está inteiramente na produção de um objeto artefatual, seja ele estético ou semântico, pode ser abandonado sem medo na arte da dança, pois nela está em exercício o ato que se plenifica e realiza inteiramente na sua própria execução, e ainda assim perfaz um corpo como corpo sentido e de sentido pleno.
Atos e Artefatos 133 7 ATOS DE FICÇÃO
O ato de dançar é um evento complexo, embora possa se realizar sem nenhum instrumento, signo ou suporte. O corpo basta, se basta. Com efeito, o mais simples dos gestos, até mesmo a simples ação da inação, enquanto ato, implica já atitudes, posicionamentos, sensações, pensamentos e intenções. Enquanto ato, faz sentido; um sentido que sempre já é da ordem do feito e do fictício, pois não apenas está para além do dado natural, mas também é indicação de direção e aceno para outrem numa situação, e jamais apenas um evento causal. O ato de dançar, por conseguinte, é um ato de ficção de sentido. Contudo, embora algum autor francês o tenha afirmado, a arte da dança não é uma forma de escrita; ao dançar, apresenta um sentido, mas não inscreve nem escreve. Uma peça do Grupo Corpo ou de Pina Bausch não é texto, não é inscrição, embora faça sentido. A dança é uma apresentação de sentido sem letra, pois ela não é uma forma de literatura e menos ainda de caligrafia. A direção a ser seguida, que a dança é arte conquanto seja ficcional, ampara se no fato de que atribuímos agência e sentido a todo movimento e a todo ato, pois projetamos intenção, direção, e o vemos como atitude e ação proposital. Mas, sobretudo, o ficcional na dança se constitui na própria execução do ato, pois tanto a execução quanto o ato são eventos cuja consistência emerge na sua efetividade apenas enquanto se realizam como algo feito por alguém, portanto, como ação.
Diz se que na dança se trata do corpo e do movimento do corpo. Por isso, alguém poderia pensar que o ficcional está na coreografia e que a dança seria a pura presença real. Todavia, esse pensamento pressupõe que o corpo possa ser o que é sem o concurso do artifício e do coreográfico. Aqui, porém, resiste se a essa ideia, insistindo se que tanto na dança quanto na coreografia e, sobretudo, no corpo dançante, o que se dá são atos de ficção, ou seja, de artifício, que aí se trata daquilo que propriamente vem a ser apenas por meio de um perfazer cuja eficácia é ela mesma da ordem do que nem ocorre naturalmente nem existe por si e em si. Nesse sentido, o que se propõe é a dança em sua condição artefatual, condição essa que nos constitui e atormenta, mas também nos libera e desassombra para outrasNospossibilidades.eventoscontemporâneos
de dança, sobretudo naqueles mais representativos do que é propriamente a arte de dançar hoje, a condição da presença efetiva está perpassada por mídias e mediações, o lugar mesmo está repleto de ausências cujas presenças virtuais são efetivas e atuantes, pois estar presente não implica não estar ausente ou não atuar noutro lugar. Dançar, todavia, resta como o que se faz aquém ou além das mídias e mediações. Dança se ao falar, representar e figurar, mas a dança acontece plenamente também e mais sem isso. A dança pode recusar as mídias e mediações, pois o ato de dançar, de só dançar, mesmo sem coreografia, é já dança efetiva, pois é a base a partir da qual coreografias, figuras e sinalizações se tornam possíveis. O ato de dançar é efetivo, é eficaz, mesmo quando nu, sem signo, sem imagem e sem mediações e artefatos. Na sua plenitude, o ato de dançar des significa e des realiza, ao se efetivar como sentido coetâneo ao corpo, como um pensar que dis pensa as mediações artefatuais ao se fazer outro sentido. Enquanto é arte, a dança faz sentido um sentido ali onde não havia nenhum nisso está a ficção da dança: ela é instauração de sentido. Agora, considere se o que diz o coreógrafo: No projeto SKR aplicamos a ideia de experiência científica para investigar, através do estudo de determinadas variáveis (um grupo de bailarinos, uma coreografia, figurino, o público) e estimulados por determinadas ideias (homem e máquina, sujeito e objeto, controle e comunicação), as possibilidades de entendimento de
134 Atos e Artefatos
Atos e Artefatos 135 Liberdade e o que surgiria deste experimento. É a ideia de Liberdade que fundamenta Skinnerbox. Não saberia definir abstração em dança, partindo do pressuposto que estamos utilizando o corpo e ele, de uma forma ou outra, evoca ao figurativo. A abstração não sobrevive neste contexto. Ao mesmo tempo, não há uma preocupação com uma mensagem… Minha linha de trabalho é proporcionar maneiras para que determinadas ideias aconteçam no corpo.68 Nesta fala, Ahmed usa as palavras “ideia”, “possibilidade”, “mensagem”, “figurativo” e “abstração” para indicar o que é que há na dança para além dos corpos e dos movimentos reais que se vê no palco. Ele recusa as palavras “abstração” e “mensagem”, e valoriza as palavras “ideia”, “possibilidade” e “figura” para descrever aquilo que é a sua obra, ou melhor, o que caracteriza a dança proposta no seu grupo. A frase “proporcionar maneiras para que determinadas ideias aconteçam no corpo” resume o principal. A ficção na dança poderia, então, ser pensada como essa ideia que se faz acontecer no corpo, mas que não é corpo. Agora, o que é isso uma ideia? Uma possibilidade? Uma abstração? Uma ideia é uma ficção. E como ficção uma ideia sempre é da ordem do que não é, da ordem do impossível, ao menos na arte, mas que, contudo, se perfaz. Ao fazer uma ideia acontecer como corpo, o dançador se exercita na ficção. A realização da ficção tanto exige quanto abre uma zona na qual as forças naturais ou são suspensas ou são reinterpretadas de modo a que emerja como presença efetiva algo inexistente. O que emerge e é assim efetivo é um sentido, uma configuração efêmera de sentido, mas o que se realiza é um ato.Contudo, se a dança faz e tem sentido, nem sempre ela significa alguma coisa69. A diferença entre fazer sentido e significar nem sempre é percebida, pois na língua as palavras “sentido” e “significado” são usadas como sinônimas. Todavia, um sinal ou signo não precisa ter sentido para ser realizado, e por outro, um ato pode ter sentido sem ser um sinal ou um signo. O que tem sentido nem sempre é significado, mas ter significado implica um ter sido algo dotado de signo; algo ser significável, ser nomeável, portanto, ser apreensível e 68 J. Xavier, 2006, p. 104. 69 J. Gil, 2002, p. 79.
Atos e Artefatos expressável por um sistema de significação, talvez implique que antes esse algo tenha sentido, ou não. O que tem sentido pode até ser aquilo que vem a ser significado. Dizemos que a morte e o nascimento têm sentido, que têm muito sentido para nós, e por isso temos palavras, signos, sinais e discursos, e até linguagens e gestualidades apropriadas para essas ocasiões e eventos. Rimos nos nascimentos, choramos nas mortes. Mas, ainda assim, é inteligível dizer que o sentido da morte e do nascimento está para além ou aquém do que se pode indicar por sinais e palavras. Diante disso, a atitude do silêncio, do não fazer sinais nem dizer nada vale muito mais. Ainda assim significamos e sinalizamos esses eventos, os marcamos com signos e sinais, os imaginamos, os assinalamos e os inscrevemos. Então, dizemos sem pensar “isso e aquilo tem significado” quando o que queríamos dizer é que “isso e aquilo tem sentido”.
Dançar faz sentido e pode ter sentidos diversos, mas outra coisa é o dançar que faz signo e sinaliza alguma coisa, o dançar que significa e também o dançar que foi significado. Alguém pode dançar como sinal de impaciência, ou para significar, isto é, dotar de signo uma coisa ou evento. Outras vezes uma dança ou evento de dança é apreendido como tendo significado, como as ações O banho (2004) e Vestígios (2010), de Marta Soares, são às vezes descritas como representações e signos de alguma outra coisa ou evento. Contudo, a proposição consiste em pensar a dança como não precisando ser signo para ter sentido, pois o ato de dançar pode ser apreendido e compreendido sem que seja tomado como signo e muito menos como sendo significativo. Nesse ponto, os filosofemas sobre a arte interferem e em geral impõem a regra de que se é arte, então é símbolo, é linguagem, etc. Mas, os filosofemas são ideias tão somente, ficções que nos podem orientar ou desorientar em meio aos acontecimentos; essas ideias são sobre a dança, e não são a dança e muito menos o seu sentido.
A análise dos fatos mostra que a arte da dança contemporânea se deixa compreender justamente como a recusa do simbólico e do semântico, por meio de um movimento análogo a aquele que trans-
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A dança da filosofia A filosofia tem uma longa história com a dança; talvez uma história de mal entendidos e descompassos, sobretudo pela mania da filosofia de querer sempre ser a condutora. Parafraseando o poeta, posso dizer que a dança sobre a qual se pensa na filosofia não é a dança que se dança no tablado. Bem se poderia iniciar assim essa conversa, citando o poeta quando ele canta: Noite de S. João para além do muro do meu quintal. Do lado de cá, eu sem noite de S. João. Porque há S. João onde o festejam. Para mim há uma sombra de luz de fogueiras na noite, Um ruído de gargalhadas, os baques dos saltos.
Atos e Artefatos 137 formou a pintura no início do século passado de uma atitude figurativa e representacional para ser simplesmente pintura, como na obra exemplar de Kasimir Malevich, Quadrado negro (1915). A dança contemporânea sequer dança, às vezes, como é o caso da performance de Michelle Moura, Fole (2013), pois faz outra coisa que dança que dança alguma coisa para significar ou dizer outra coisa. Nessa ação, Michelle se desfaz de signos e de mediações e perfaz se corpo efetivo que se faz sentido por e em si, um sentido não disponível previamente ou por outros meios. A dança, quando ela é arte, hoje, se quer apenas dança que acontece enquanto se dança e que se realiza apenas como dança e nada mais. A dança que se dança por dançar, e não para significar ou simbolizar outra coisa. Ao dançar, o atuador dá corpo a pensamentos, mas isso não implica que ele signifique esses pensamentos. Antes e mais propriamente dito, ele perfaz um corpo pensante. Dito a contrario, o dançador perfaz, ao dançar, um corpo efetivo ao se encorpar como um sentido incoativo que se realiza corporalmente. O corpo que dança é um corpo pensante, um corpo que faz sentido e assim se faz sentido; que ele, além disso, signifique, é secundário e desnecessário.
138 Atos e Artefatos E um grito casual de quem não sabe que eu existo.70 A dança da filosofia não é a dança do lado de lá, onde há dança, mas a dança do lado de cá, onde dança não há, apenas imaginação e abstração. O pensador, no papel de filósofo, não dança, ao menos não dança a dança que é a dança que se dança do lado de lá. Com efeito, é preciso dizer assim: do lado de cá, na filosofia, não há dança, porque dança há apenas onde se dança. Na consideração reiterada dos filósofos, de Platão a Heidegger, de Aristóteles a Badiou, há apenas uma sombra de luz, uma ideia de corpos semoventes. Fiquemos com isso, que a dança da qual fala a filosofia não é a dança que se dança. Pois, muito do que disse a filosofia sobre a dança é apenas conversa sobre a sombra e não sobre o efetivo. Os aspectos deficitários e até negativos, em relação ao artístico, apontados pela filosofia em relação à arte da dança, indicam isso claramente. Esta condição da dança da filosofia revela mais sobre a precariedade da filosofia frente à efetividade da dança e sobretudo da arte da dança. A filosofia, arte da palavra, pouco tem e menos pode dizer da arte que mais prescinde da palavra, a da dança. Conforme já se disse, dançar não é dizer, mas pensar; dançar não é mostrar, e muito menos fazer figuração, mas fazer sentido. O lugar de encontro dessas duas artes é o pensar, esse é o mínimo denominador comum, o pensar, isso que todos fazemos o tempo todo mas que não sabemos senão pelos nossos atos e gestos e signos. A dança é um problema para a filosofia apenas quando esta se autocompreende como imagem estática do puro pensamento descorpado. Esta condição é que é propriamente negativa e deficitária, pois não sabe a dança. Não há como dispensar o corpo, pois somos todos e cada um corpo tão somente e corpo por baixo e por cima de tudo o mais, inclusive das artes e da filosofia. O corpo é o que há, isso que somos antes de sermos e termos e fazermos qualquer outra coisa, mesmo as ideias e os pensamentos. Portanto, dizer que o suporte da dança é o corpo e que a dança não dispensa tudo, pois faz do corpo o seu 70 Alberto Caeiro, “Poemas Inconjuntos”, heterônimo de Fernando Pessoa.
Por conseguinte, faz sentido dizer que a arte da dança dispensa o corpo, mas isso num sentido muito particular. De um ponto de vista, o corpo não é um instrumento e muito menos um suporte para a arte da dança, pois o corpo se realiza como o corpo que é enquanto dança; de outro ponto, a dança não é representada ou significada pelo corpo, mas sim realizada enquanto corpo penso. Por isso, enquanto arte, a dança exige apenas a sua execução, a sua efetividade, a qual, não é outra coisa senão um corpo que pensa sem recorrer a nenhuma mediação, signo ou imagem ou artefato, ou seja, um corpo que pensa em ato. A dança, enquanto arte, constitui se como um exercício de ficção. À primeira vista, a dança não se diferencia das outras artes senão pelo material e o suporte usados como meio de apresentação de uma proposição artística. A proposição artística, ou seja, o pensamento, no caso da dança, apresentar se ia apenas por meio do próprio corpo, e não por meio de um material ou instrumento externo. Examinemos essa opinião. Todas as artes têm como característica principal serem uma atividade realizada pelo corpo do artista ou deferida para outro corpo. Até mesmo o poeta, que medita ou dita sua poesia, ainda assim a perfaz no e com o próprio corpo ao pensá la e dizê la; também o músico e o dramaturgo. Então, como teorema, a arte sempre é uma atividade do corpo do artista. Todavia, embora seja uma atividade do corpo, portanto, que às vezes necessita de uma inscrição do corpo na matéria usada como suporte, nem toda arte
Atos e Artefatos 139 meio e instrumento, não a distingue de nenhuma outra arte e muito menos indica a sua especificidade, pois nenhuma arte dispensa o corpo, o corpo é o indispensável, pois apenas ele é o dispensante. Segundo, e o mais importante, se a dança não pode dispensar isso não é porque a dança precise de uma matéria para realizar suas proposições artísticas. As propostas e experimentações artísticas em dança dispensam todos os meios, instrumentos e artefatos, como nenhuma outra arte o pode fazer. Sem nada, até mesmo sem sinais e signos, a dança se efetiva e se instaura. Sim, o dançador é corpo e não pode não o ser. Mas, como indica Ahmed, o que interessa na dança é a ideia sentido que acontece no corpo quando ele dança.
Andrei Tarkovski71 falou do cinema como um esculpir o tempo, e do mesmo modo poderíamos dizer que a arquitetura é a escultura do espaço por meio da submissão da matéria a uma ideia. E assim poderíamos se perguntar se a dança não é um esculpir o tempo e o espaço, conjuntamente, por meio da inscrição de um pensamento através do próprio corpo. Essa imagem, embora sublime, confunde a dança com a arte da escultura. E, com efeito, se tomarmos o esculpir como o gesto primário de introdução de uma ficção 71 1998, p. 144.
distinguidos
140 Atos e Artefatos tem como matéria o próprio corpo do artista, pois as mais das vezes o artista inscreve seu pensamento noutro corpo que não o próprio. Nesses casos, o que temos é um corpo que se inscreve noutro corpo. O teatro, o canto e a dança, enquanto artes de execução, têm a peculiaridade de que a proposição artística se inscreve primariamente com e no corpo próprio e por meio da atividade do corpo humano. Todavia, o teatro e o canto podem ainda ser ditas artes produtivas, pois a atividade do corpo do artista aí está orientada para a produção de um objeto artístico e estético, distinto do próprio corpo, a saber, um bloco de sons e um personagem, que podem ser do corpo próprio a ponto de serem executados por outro artista. Nesses casos, embora o corpo do artista esteja presente, a sua presença se anula em prol do objeto artístico. O que é posto para apreciação pelo cantor e pelo ator não é o próprio corpo, mas sim outra coisa, coisa essa que ele faz ao atuar. No caso da dança, todavia, caso se queira separar o que é dançado, a dança, em relação ao corpo que dança, tem se que definir o que é a dança que é dançada para além do corpo que dança. Vários quase objetos são candidatos: a imagem movimento, a figura semovente, a atitude dinâmica, a postura móvil, o símbolo signo, a escritura inscrição, a escultura esquema, etc. Essas são metáforas que se apoiam em outras atividades, como pintar, desenhar, dizer, escrever, esculpir, na tentativa de dizer o que é que é dançado para além do corpo sentido e semovente; porém, o que há mesmo, sem metáforas, é o corpo dançante: a dança é isso, um corpo que se perfaz sentido enquanto atua.
Atos e Artefatos 141 na realidade, bem poderíamos pensar todas as artes, inclusive a dança, como sendo modulações e expansões dessa atividade de esculpir. Todavia, o caráter incoativo da dança, para o espectador, não pode ser negligenciado. E se tomamos o gesto de pintar como primário, então seria pensável a dança como uma pintura no espaço tempo por meio do gesto e do corpo. O dançarino pintaria imagens e figuras e formas usando o próprio corpo. Em relação ao pintor, ele seria minimal, pois não precisaria de pincel, nem tinta nem tela, para pintar seus pensamentos. Não é esta uma bela imagem, a arte como pintura estendida, e a dança como um pintar com o corpo no espaçoContudo,tempo?
se as figuras primais do escultor e do pintor são atraentes como imagens da atividade da dança, ainda assim uma outra figura parece se impor no imaginário sobre a arte. Com efeitos ainda efetivos, a figura do narrador e do escritor também requerem para si o sentido literal da palavra “arte”. Heidegger (2010) e Gadamer (2005) são intransigentes nisso, que arte seja antes de tudo arte poética, no sentido de ser a linguagem e sobretudo a linguagem da palavra escrita o meio primário de expressão do espírito e do pensamento. Nesse sentido, a dança seria uma forma de narração e de inscrição. Ao dançar, o dançarino narraria uma saga; mais ainda, ao dançar, ele inscreveria com o próprio corpo a saga que ele narra. O esculpir, o pintar e o narrar são atos exemplares primais pelos quais nós podemos compreender o ato de dançar como um ato artístico, justamente porque eles são atos pelos quais a ficção se torna presente e o que não é vem a ser, inclusive no sentido maximal do ficcionar, a saber, o de tornar real o impossível e o não ser.
Porém, seguindo a direção da articulação teórica em andamento, estas metáforas sobre a ação artística da dança apenas nos desviam do principal, a saber, que dançar não é esculpir, nem pintar e muito menos narrar e escrever, embora possa ser executada e vista com propósitos análogos. O ponto é que a dança não precisa ser nada disso para ser dança e para se realizar como arte. O passo a fazer é o de pensar a dança como ação que se realiza em si mesma e não em outra coisa diferente. Isto é, a tese, dita de modo negativo,
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Em outras palavras, dança e arte são feitos ou atos, e não simplesmente dados e fatos naturais. Enquanto feitos e atos, elas fazem ou não sentido; enquanto feitos e atos, elas constituem realizações de pensamentos ou ideias e, por isso, são a efetivação de ficções, no sentido de instaurarem o que propriamente não existe e não é, pois isso que há é corpo tão somente; ideias e pensamentos é o que propriamente não há. A arte da dança é a efetivação de uma ficção, ou seja, trata se de um feito, e não de um dado, mas um feito que não precisava ter sido, portanto, que é dom e não fado. Por ser arte e dádiva, a dança não é uma determinação única e nem tem uma regra universal, o que se mostra na diversidade e na variedade das danças humanas.
Exercício da ficção De fato, a dança está entre nós e, talvez, se possa dizer com mais rigor, ela está em nós. Pode se dizer que nós, primariamente, somos animais dançantes. Com um pouco mais de acuidade, não apenas a dança é uma prática nativa das comunidades, mas ela é uma prática ou ação artística básica. A questão aqui então diz respeito tanto ao sentido dessa prática, a dança, quanto dessa outra, a arte. A pergunta pelo sentido da dança e da arte, pelo sentido da arte da dança, embora genérica, não é abstrata, pois o que está em questão é uma prática e uma instituição concreta e efetiva. A questão do sentido, contudo, se impõe pelo fato de que dança e arte são aqui pensadas como podendo não ser e também podendo ser diferentes.
Atos e Artefatos consiste em afirmar que a arte da dança não é poética em duplo sentido; primeiro, no sentido de não ser produção de artefatos a partir de um suporte material, portanto, como uma arte que não produz objetos e artefatos; segundo, a dança não é poética no sentido de que ela não é linguística e muito menos narrativa. Dita de modo positivo, a proposição consiste em afirmar que a dança, como uma arte cujo suporte e cujo resultado sempre é uma ação, é uma modulação do agir segundo um sentido que se mostra imediatamente na atitude e na postura corporal.
Atos e Artefatos 143 Nesse ponto, uma confusão pode fazer seus efeitos e eliminar o cerne da arte. Ideias, pensamentos, ficções são as mais das vezes pensadas como possibilidades que já estão aí desde sempre. O artista seria aquele que percebe essas possibilidades e as apresenta por meio de um suporte. No caso da dança, por meio do corpo os dançarinos realizariam tão somente possibilidades que preexistiriam ao próprio corpo e aos próprios movimentos. Todavia, o que são essas possibilidades quando ainda não foram realizadas? Ficções, talvez. Uma outra maneira de pensar se faz necessária. O artista não realiza possibilidades já existentes. Ele torna possível o que antes não era. Dançar não é apenas realizar uma possibilidade já dada no próprio corpo. Essa seria uma dança que apenas repetiria esquemas e corporeidades já realizadas e fixadas, ou que se faz num sentido premeditado, típica de quem não sabe dançar. A arte da dança, ao contrário, é a arte de inventar possibilidades e de tornar possível outros modos de corporificação, de se fazer corpo noutro sentido. Uma realização criativa em dança instaura possibilidades corporais antes não disponíveis, mas também inesperadas e insólitas. Em suma, a dança dispensa o signo e a imagem, pois não é representação nem simulação, mas sim apresentação72 de um corpo pensante que se instaura perfazendo sentido. Ela dispensa os objetos e os artefatos. A sua base é o corpo agente pensante, a sua obra uma ação. Daí a dificuldade filosófica da arte da dança: ela não produz um artefato, ela não faz um significante. Apenas uma estética do performático e do performativo73 pode fazer justiça ao específico da arte da dança; apenas uma teoria da arte como performance74 pode reconhecer a dança como arte sem relegá la a uma posição secundária. Pois, diante de uma ação artística, cabe sempre a pergunta “qual o sentido?”, pergunta essa que sempre pode ser substituída por “o que se faz aí ?”. No caso da dança, a resposta “isso é dança” ou “dança se” encerra a questão.
72 H. G. Gadamer, 2005. 73 E. Fischer Lichte, 2004. 74 D. Davies, 2004.
E justamente nisso está o admirável de sua existência. Há dança, há dançares e bailares, e isso é uma surpresa, um inesperado; que haja dança, que se dance, isso sobrevém ao existente. Dados todos os dados naturais, ainda assim um simples ato de dança seria, enquanto ele fosse arte, imprevisível, porque não inferível, ainda que dada a inteira natureza e ciência. A arte está inteira nesse “não inferível” e nesse “inesperado” que, todavia, se faz presente, atual e efetivo. A dança contemporânea, mais do que a de outros tempos, por ter se liberado do simbólico e do imaginário, e também da obrigação de produzir um artefato, excede se em nos apresentar o insólito inesperado e inaudito, perfazendo o irrepetível através do corpo despojado de todo signo e artefato. E, todavia, ainda assim esse corpo não se torna movimento (kinesis) total, pois nesse instante acontece o propriamente imprevisto, uma ação (práxis) que é um bem (eupraxia) e tem sentido por e em si mesma 1992, 1140a, p. 117.
144 Atos e Artefatos A arte, enquanto efeito da liberdade, é aquilo que tem sentido enquanto algo feito, embora pudesse não ser. A dança, enquanto se faz como arte, é aquele gesto que não precisa ser realizado, que não tem de ser feito, e que não se dá por si e nem acontece por natureza.
75 . 75 Aristóteles,
As artes se apresentam e são efetivas no contexto da ação e da interação de agentes livres e inteligentes com base em materiais e estruturas instauradoras de experiências de sentido e imbricadoras de interagências. No contexto do mundo e da experiência, das práticas humanas, um esquema de atuação se distingue em relação aos demais a ponto de ser isolado como “arte” e de se reconhecerem pessoas e grupos como “artistas”; depois se delineiam modos de atuar e de executar esse esquema de atuação que se ramifica em diferentes habilidades e campos de ação. As palavras “dança”, “música”, “pintura”, “escultura”, “teatro” já a muito tempo indicam nas línguas neolatinas essa variedade. “Arte” indica primariamente um modo de atuar e fazer e arranjar. Um músico é alguém que sabe e tem uma habilidade distinta de arranjar, fazer e atuar no âmbito sonoro; uma pintora é alguém que sabe e tem uma habilidade distinta de arranjar, fazer e atuar no plano pictórico de formas e cores. Uma obra de arte sempre é uma formação complexa que se realiza pelo imbricamento de uma constituição de sentido, de uma estruturalidade inteligível e seguidamente de uma composição material. Nesses três planos, a arte se refere a um fazer (atuar, agir) e exige como contrapartida também um fazer (atuar, agir) para ser apreciada como efetuação do artístico, pois se apenas vemos ou sentimos não compreendemos como aquilo é uma “coisa feita”, e não apenas um “dado natural”. No reconhecimento do artístico está implícito o reconhecimento de um modo de atuar, de agir, de fazer. Nesse
Atos e Artefatos 145 8 A VARIEDADE DO ARTÍSTICO
Os dados de arte e as formas de ocorrência do artístico são múltiplos e diversos, o que revela a sua proveniência de atividades livres em algum grau. Primeiro, existem várias formas diferentes de arte. Segundo, em cada forma de arte, como a música e a dança, existem vários modos diferentes de os realizar. Terceiro, em cada forma e em cada modo, existem várias pessoas e grupos diferentes fazendo e atuando de modo distinto enquanto artistas. Quarto, no âmbito da arte e do artístico, existem múltiplos e diversos eventos e objetos reconhecidos como genuinamente exemplares de arte. Quinto, diferentes pessoas e grupos experimentam, interpretam, avaliam e compreendem de diversos modos as ações e as obras de arte; sexto, as artes e as obras de arte têm origem em diferentes centros civilizatórios e assim diferentes histórias de formação. As artes têm as mesmas raízes que as línguas e assim tantas versões, variações e histórias76. Na arte, assim como nas línguas e na filosofia, não há como haver um ponto final ou um único ponto de vista, ou uma solução última. Dada uma situação estabilizada e consensual do tipo “isso e assim é que se fala”, ou “isso é o que é a verdadeira arte” ou “isso é o que é a verdadeira filosofia”, a espontaneidade e a inventividade mostram sempre que há outras formas e modos de falar, fazer arte e de filosofar. As conexões e as formações artísticas e técnicas têm a estrutura aberta da “wood wide web” de fungos, bactérias e raízes, e não a das árvores isoladas da superfície. Na figura do artista reflexivo Joseph Kosuth, nós podemos ver a conexão direta entre o âmbito do artístico e o âmbito da filosofia, embora nada na reflexão artística imponha esta ou aquela atitude filosófica. O filme Stalker (1979), de Andrei Tarkovsky, estará sempre aí para mostrar que o artista e o técnico não conseguem sozinhos 76 L. Storto, 2019; M. Dryer & M. Haspelmath, 2013.
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Atos e Artefatos sentido, a arte se diferencia em relação à natureza e ao natural, mas também em relação ao místico, pois nesses casos a atitude apropriada é de passividade e receptividade. Isso revela a proximidade da arte com a ciência e a técnica, pois estas também emergem da atividade e da operosidade humana.
Atos e Artefatos 147 nem entrar, nem se orientar e menos ainda sair da Zona onde o insólito tem lugar e vez. A figura da reflexão, todavia, não tem um caminho e uma fórmula, muito menos o busca e encontra algo ali que o satisfaça. A metáfora do cineasta, assim como a história da novela em que ele se baseou para seu roteiro, sugerem a precariedade e a efemeridade dos eventos inaugurais, eventos esses cuja força e produtividade se mostram e se tornam efetivas apenas em múltiplas retrospectivas e retomadas imprevisíveis a partir do próprio evento. No texto “A arte depois da filosofia”, publicado em 1969, tal como Lygia Clark em 1965, Kosuth tinha plena clareza acerca, primeiro, da separação entre arte e estética; segundo, da não necessidade de um objeto para o artístico se efetivar; terceiro, de que o formalismo não é o critério da arte. Todavia, do mesmo modo como aconteceu com Lygia, que se autocompreendeu equívoca com os conceitos fenomenológicos e psicanalíticos em voga na época, Kosuth se autocompreende equívoco com conceitos retirados da filosofia da análise conceitual em voga no seu entorno. Estas equivocações são recorrentes e em nada alteram as proposições e as realizações artísticas. Afinal, a variedade da filosofia e das figuras de reflexão somente é menor do que a ilimitada plural variedade das atitudes artísticas e técnicas. Kosuth reclama para sua arte e sua postura artística, corretamente, a linhagem de Marcel Duchamp, enquanto este teria feito a passagem da forma para a função e da obra para a concepção em arte. Todavia, o fascínio pela analítica conceitual o leva a compreender os feitos artísticos de Duchamp como implicando e demonstrando que “toda arte (depois de Duchamp) é conceitual (por natureza) porque a arte só existe conceitualmente”77, o que obviamente é um equívoco idealista e falso para a maior parte das artes existentes. Se Lygia se iludia sobre sua própria arte com tiradas pseudofilosóficas, ao dizer que arte para ela só era válida em sentido ético 77 2006, p. 217.
148 Atos e Artefatos religioso78 e, depois, como um rito terapêutico, na fase da estruturação do self e do objeto relacional79, Kosuth também se desvia do principal ao submeter o seu pensamento a uma filosofia estéril e abstrata.Ocurso de ação que enreda Lygia, Kosuth e Duchamp está determinado pela ação disruptiva com a arte moderna: se libertar do lugar cativo da produção de artefatos “belos”, se libertar da ideia de obra de arte que o mercantilismo moderno impôs ao mundo sob a ideia de “belas artes” e “bom gosto”. Nesse curso de ação, o primeiro obstáculo consiste na indistinção entre propriedades estéticas e propriedades e funções artísticas num contexto de arte, tal como proposto por Hume e Kant ao autonomizarem o artístico apenas enquanto este fosse puramente “estético”. Uma vez superada esta indistinção, ainda havia o obstáculo do objeto ou artefato como finalidade da ação artística. Sem um artefato, posto como objeto isolado para ser apreciado a distância, não haveria arte e menos ainda artistas. Na trajetória de Duchamp até Lygia Clark e Kosuth, não houve uma passagem da arte objetal para a arte conceitual, e menos ainda da arte abstrata pura para a arte terapêutica, mas sim o trânsito de uma arte pensada como produtora de artefatos estéticos e semânticos para uma arte pensada como ação e como proposição de ações.
O próprio conceito de objeto, de artefato, perde a sua posição proeminente. O que importa é a proposição artística que ele veicula, ou seja, a ação que ele realiza ou desencadeia. Nisso Lygia tem razão; não se trata de conceito, mas de vida, de atividade e de instauração de situações e eventos. Não se trata mais de mais artefatos, mas sim de atos. Que ela utilize os conceitos de “ritual” e de “processo terapêutico”, não é relevante para se pensar o artístico que assim se mostra. Que Kosuth fale em proposições analíticas e tautológicas para dizer o que a arte é, também é irrelevante, pois suas obras, como One and Three Chairs, não são fórmulas lógicas, sobretudo nos seus efeitos. Todavia, ao indicar que toda obra ou evento de arte é uma definição de arte, o que ele indica é que as obras de arte não são mais 78 1998, p. 111. 79 1998, pp. 320 326.
Esta condição pluriversal foi reconhecida pelo filósofo George Dickie, ao definir o que é arte implicando nessa definição um fazer premeditado de uma obra de arte, cuja consistência está em ser feita para ser apresentada a um público apreciador de arte em um mundo ou instituição artística. O artístico das obras de arte, o pelo que elas são aceitas, apreciadas ou recusadas como arte, nessa definição, provém de um fazer premeditado que busca ser validado por um público apreciador de coisas feitas. Aqui, o filósofo introduz a ideia de circularidade ali onde o artista havia pensado em termos de analiticidade. Em todo caso, Dickie indica com clareza que o artístico está marcado pela dependência em relação a um ato que se propõe efetivo diante de um outro que o valida, outro esse que se diversifica e multiplica. A autoridade, tal como havia indicado Kosuth, em relação ao que é arte ou não, está inteiramente nos fazedores de obras de arte. Quem diz o que a arte é, é quem faz arte, ou seja, quem faz coisas que são reconhecidas como obras de arte. Contudo, se a arte fosse uma questão de autoridade do artista e da comunidade de artistas, então, segundo Danto, isso excluiria a possibilidade de haver “descobrimento” histórico, no sentido de que algo fosse arte sem que alguém tivesse acreditado ou dito isso previamente; e isso excluiria também a possibilidade de que algo fosse tido erroneamente como arte, isto é, fosse considerado arte por alguém ou por uma comunidade sem que de fato alguém o tivesse proposto como arte. Note se que esse problema se aplica também caso se aceite uma concepção historicista e relativista de arte, no sentido de considerar arte aquilo que um período ou uma comunidade, e até um indivíduo particular, considera como sendo arte. Se a arte é assim definida e identificada, parece que não há objetividade na atribuição do predicado “arte” e que então não há critérios razoáveis para dizer que algo não é arte. Que este seja um problema real, mostra se na dúvida que ataca artistas de todos os gêneros quanto
Atos e Artefatos 149 feitas para serem vistas como instâncias particulares de um conceito universal de arte. Se a única exigência da arte é com o artístico, então o pluralismo está restaurado, embora isso ele não possa dizer com seus termos metafilosóficos, embora o mostre com sua obra.
150 Atos e Artefatos ao terem ou não realizado algo artístico. O número de obras realizadas e depois descartadas como fracassos ou equívocos artísticos não é menor, afinal, do que o número de obras de artes existentes! Todavia, uma outra faceta deste problema está em que a consideração dessa questão já constitui uma tomada de posição normativista e prejulgadora acerca da pluralidade e da diversidade de formas e modos de fazer arte. Desse modo, já se sugere que nem tudo pode ser arte e que certas obras de arte são mais artísticas do que outras. De fato, uma saída possível é admitir que se possa estar correto e ainda assim contradizer a opinião de outros, mesmo que sejam a maioria; que se possa aplicar o predicado “equívoco” a outrem e até a uma inteira comunidade ou época. Ou seja, para sairmos do subjetivismo, do historicismo e do relativismo teria que ser possível distinguir entre “ser arte” e “ser tido como arte”, tanto em relação a indivíduos quanto em relação à comunidades. Uma saída clássica foi postular uma essência ideal única, transistórica e transcomunitária, da arte, que permitiria reconhecer como arte mesmo aquilo que não é tido como arte e também recusar como arte mesmo aquilo que muitos reconhecem como arte. Duas posições implementam esta estratégia. A primeira diz que a forma ou essência da arte é algo ideal ou transcendental, fora do tempo e do espaço, independente da experiência individual ou comunitária, e que eventualmente uma obra instancia e então se torna uma verdadeira obra de arte (vide os platonismos, idealismos e transcendentalismos).
Uma solução geral para esse problema, embora sempre provisória e aberta à revisão e correção, consiste em aceitar como arte aquilo que assim é reconhecido no contexto de práticas, atividades e ações concretas e admitidas por comunidades. Esta restrição prá-
A segunda diz que a forma ou essência da arte é algo material ou interno à própria obra, independente da experiência individual ou comunitária, ínsita nas obras de arte verdadeiras (vide aristotelismos, realismos, fenomenologismos). Nesses dois casos, algo é arte mesmo que não seja reconhecido como “arte”, e o ser tido como arte não é decisivo também.
Atos e Artefatos 151 tica se justifica porque não temos acesso à arte (ao sentido, ao significado, ao valor etc.) fora de práticas interativas e interagenciais comunitárias e, também, porque isoladamente indivíduos e comunidades sempre podem errar e se equivocar. Se uma comunidade realiza atividades, reconhece as ações de indivíduos e grupos, valoriza e desvaloriza, estabelece graus de profundidade e de excelência, fixa histórias de sucessos e insucessos, e assim por diante, digamos, para partidas, campeonatos, jogadoras e jogadores de futebol, não é razoável se perguntar se existe ou não eventos e ações futebolísticas e menos ainda se perguntar por critérios, conceitos e regras para validar algo como caso de futebol, estranhos e extrínsecos as essas práticas. De modo análogo, “arte”, “artístico”, “obra de arte” e expressões correlatas têm seu sentido e significado estabelecido nas atividades, práticas e ações que perfazem o ambiente em que algo é admitido como tendo sido feito com “arte”, como sendo um exemplar de “obra de arte” e como sendo um evento “artístico”. Claro está que desse modo, várias questões e problemas não têm solução a priori e muito menos por estipulação, além do que conflitos e disputas serão inevitáveis. O pluralismo é uma festa sem festeiro mor e sem porteiro. Nesse ponto, faz sentido recorrer à tese de Arthur Danto, de que os predicados “arte” e “artístico” são dependentes e determinados por uma “teoria”. Apenas com uma correção, a saber, que se perceba que essa teoria toma como dado aquilo que é já admitido como arte e como artístico nas práticas estabelecidas. A “teoria” de Danto, assim como o “conceito” de Kosuth, não advém às obras de arte proveniente de um lugar transcendente, mas sim da própria ação que as premedita. Desse modo, não são as artes e as obras de arte, e as práticas que as embasam, que têm de responder e oferecer credenciais diante da teoria (científica, filosófica?), mas sim exatamente o contrário: as teorias da arte precisam ser validadas no confronto com os dados e as práticas de arte de todas as comunidades atuais e passadas. O que significa dizer que há uma ambiguidade nas expressões “isso é arte” e “isso é artístico”. No seu uso cotidiano e prático, têm seu sentido no contexto das práticas e discursos nas quais se fazem
152 Atos e Artefatos e reconhecem artes e obras de arte. Nesse uso, os seus sentidos são tão múltiplos e diversos quanto o são as práticas e as tradições comunitárias. No seu uso teórico, têm seu sentido no contexto do debate entre teorias que disputam a inteligibilidade e a validade de explanações metadiscursivas sobre as obras e as práticas artísticas. Nesse uso, pelo mania exclusivista do pensamento monológico, a pluralidade está excluída por definição. Em outras palavras, a equivocidade das expressões “arte” e “artístico” revela a duplicidade de sentido da expressão “história da arte”, pois esta também tem dois sentidos bem diferenciados. Nenhuma arte ou tipo de obra de arte tem uma história universal única pela qual todas as obras dessa arte, digamos a música, se deixariam articular numa sequência progressiva. As práticas e obras artísticas têm múltiplas histórias de formação, provêm de diversos centros de difusão e são já na antiguidade a conformação de formas e modos de fazer nos quais se sintetizam e conjugam diferentes enraizamentos culturais. Apenas as histórias da arte articuladas sob um ou outro conceito previamente fixado permitem que se fale da história universal e única de todas as artes e obras de arte. Mas, esse conceito, além de ser uma ficção, necessariamente exclui mais do que inclui os dados reais da arte. A arte e o artístico O problema da arte, na filosofia, sempre exigiu mais do que os filósofos podiam conceber. Porém, nesse caso, eles não procedem fazendo concessões, tal como o fazem frente ao político e ao religioso, eles prescrevem. A arte contemporânea aguçou este problema, provocando reações extremadas, nas quais as artes e as obras de arte ora são trombetas do ser e da verdade, ora são apenas fetiches ideológicos, ora resquícios dos traumas da infância e das mazelas do desejo, ora mercadorias precificadas, ora mensagens cifradas em linguagem equívoca. No plano mesmo do conceito, e não da arte e menos ainda das obras de arte, a posição metafilosófica se concede
80 Cf. N. Ramme, 2009; A. Almeida, 2014; S. Davies, 1991. 81 Definitions of Art, 1991.
Atos e Artefatos 153 o ceticismo e o agnosticismo ascéticos, e se disputa apenas se é ou não possível fornecer uma definição de arte80 . Ramme e Almeida ilustram bem o problema da definição de arte. Se argumentos contra a definibilidade da arte são recorrentes na filosofia da mera análise conceitual, a tentação de fornecer uma definição definitiva é constante entre os filósofos, pois muitos deles se como definidores e prescritores de conceitos. Definições nominais, como é o caso das definições não essencialistas de Danto e de Dickie, buscam estabelecer um critério mínimo para circunscrever o domínio do artístico, ao indicarem propriedades que toda e qualquer obra de arte precisa ter para ser arte, mesmo que seja uma propriedade extrínseca. As definições recursivas partem dos dados e práticas históricas de reconhecimento de objetos artísticos, mas assim dependem de um começo abrupto e arbitrário para poderem se estabelecer. As definições da arte e do artístico em termos essencialistas, como aquelas que subsumem a arte ao estético ou ao semântico estritamente, mostram que a precompreensão do ser e da identidade como essência fixa e única ainda está operante. Uma alternativa a essa disputa analítica e hermenêutica, que está presa à falsa escolha entre não definibilidade, definibilidade apenas nominal ou definibilidade essencialista, consiste em propor a distinção entre abordagens funcionalistas e procedimentais81. Uma definição funcionalista estabelece propriedades unificadoras relevantes com base nas funções da arte que as obras de arte cumprem ou preenchem; a definição procedimentalista o faz por meio de regras e procedimentos que fornecem um modo de identificação de obras de arte. A distinção entre funcional e procedimental, de certo modo, espelha a atitude do vendedor de obras de arte, ao convencer alguém a comprar uma, e a atitude do comprador que precisa estar certo de que comprou realmente uma obra de arte. Na sua base, estas abordagens supõem a indefinibilidade, ou seja, o desconhecimento do que seja arte, mas ainda assim estabelecem uma estratégia indireta para corretamente se reconhecer uma obra de arte. Que elas não
autoconcebem
154 Atos e Artefatos sirvam para artistas, isso fica claro pela pressuposição comum a ambas, qual seja, de que há arte lá fora. As chamadas definições historicistas, caracterizadas por destacarem a relação das obras de arte com uma determinada tradição histórica no interior da qual algo pode vir a ser reconhecido como arte, as quais repõe no debate conceitual aquilo que Droysen e Dilthey haviam estabelecido há mais de um século, ou seja, que a consistência e a identidade de algo são efeitos de sua localização num curso histórico, também partem desse desconhecimento. O ponto diferencial está na restrição pragmática que consiste em tomar as práticas comunitárias de fazer, apreciar, consumir e experimentar algo como arte. Nessa perspectiva, a arte e o artístico são remetidos a contextos de práticas e tradições nas quais a distinção entre arte e não arte emerge como cogente, e a definição recolhe as regras dessa prática, sobretudo a estrutura ou conexão que se estabelece entre uma obra ao ser posta como obra de arte por estar ligada a outras obras já reconhecidas como sendo obras de arte típicas, diante das quais uma obra pode ser aceita ou recusada como bem sucedida em reiterar a arte da qual elas são exemplares. Tal como na biologia, onde reconstruímos frequentemente a linhagem de um ser vivo exótico para determinar a pertença a uma espécie, também na arte se decide sobre a classificação de novos candidatos recorrendo se à reconstrução da linhagem genealógica por meio de narrativas históricas que descrevam adequadamente sequências de eventos e de estados de coisas até chegar à obra geradora de desacordo. Adotando a mesma estratégia no caso da arte, Carroll82 alega ser possível ter sucesso em identificar arte sem precisarmos de definições, sejam elas reais ou nominais. Desse modo, a filosofia teórica reconhece que o problema da arte está, na verdade, mais no procedimento filosófico do que na própria coisa e nas práticas que dão origem à coisa. A discussão conceitual, o pensum filosófico, as mais das vezes nada tem a ver com as artes e as obras de arte, sobretudo se essa discussão for feita sem a devida descrição e 82 Beyond Aesthetics: philosophical essays, 2001.
A apreensão no conceito implica sempre a abstração e a exclusão do que se dá como arte no domínio de referência. A extensão de qualquer conceito de arte não permanece fixa, como a de qualquer outro conceito que se aplica a uma matéria viva e semovente. Este não é o problema e não traz nenhum dificuldade teórica relevante. Este fato não implica a inadequação ou a impossibilidade do conceito, pois todo conceito requer circunscrição e impõe restrições. A inadequação está na própria confusão entre o “conceptus” e a “ res” cuja fonte é a própria pretensão filosófica de prescrever o que é e o que não é “arte” a despeito das próprias artes e obras de arte.
Atos e Artefatos 155 apresentação acurada do objeto e do campo de ação ao qual o conceito precisa ser apropriado.
Desse modo, a arte é posicionada na dimensão técnica poética das atividades humanas. A obra é uma composição ficcional, um artefato, e a ação artística é um produzir e criar artefatos. Depois, já na modernidade, a arte é concebida por meio da ideia de gosto e de sentimento de prazer, como em Hume, Baumgarten e Kant. O artístico da arte é uma forma de prazer intelectual, de senso comum, que comunica e faz comunidade. Esta é a posição estética e hedônica da arte. A obra é um objeto de sensação e de emoção cujos efeitos são estados de ânimo, e a ação artística é uma configuração e construção de formas sensíveis por meio de materiais e suportes, os quais então são veículos que comunicam estados afetivos e estéticos.
Desta perspectiva, apriorista e idealista, embora se autoconceba como conceitual pura, a filosofia tem estabelecido conceitos conteudísticos pelos quais apreende, compreende e prescreve a arte. Primeiro, o conceito de imagem e de aparência, como em Platão e no Cristianismo, pelo qual a arte é julgada em termos de veracidade e verdade. Trata se de uma posição ética sobre o artístico. As obras de arte são percebidas como cópias, simulacros, e a ação artística concebida como a de produzir aparências e fingir realidades. Numa outra vertente, a arte é pensada por meio da ideia de representação e imitação criativa, como em Aristóteles e no Medievo, sendo então julgada em termos de verossimilhança, finalidade e adequação.
156 Atos e Artefatos Depois, a arte foi pensada por meio da ideia de intuição e expressão, como sintoma, como em Nietzsche, Freud e Dilthey: o critério do artístico é a autenticidade, o testemunho singular. Trata se do posicionamento da arte na dimensão sintomática e expressiva, ora mais psicológica, ora mais somática, ora mais social. A obra é uma projeção imaginária singular, um sintoma, e o artista um testemunho. Ainda uma quinta imagem da arte foi estabelecida por meio da ideia de linguagem e forma significativa. A obra de arte é uma configuração de sentido e significados, e a ação artística é uma forma de significar. As obras de arte têm sentido, referência e formam sistemas simbólicos. Esta é a posição semântica da arte. A experiência da arte é uma experiência de leitura. Ainda no século XIX, uma outra forma de apreensão conceitual da arte foi articulada em torno da ideia de relação e processo social, na esteira do marxismo filosófico. As obras de arte são apreciadas em termos de valor social, justiça política e indício de verdade cultural. Esta é a típica posição política da arte. A obra é uma figuração de relações sociais de poder e de troca; a ação artística é sempre uma ação política. Uma alternativa a esta posição, muitas vezes em contraposição a ela e reclamando prioridade, foi estabelecida por meio da ideia de ser e de acontecimento da verdade, no contexto da fenomenologia hermenêutica. O conceito ontológico de fenômeno permite apreender a arte e as obras de arte no âmbito de uma teoria do ser, como uma entidade e uma efetuação ontológica, sobretudo como revelação do sentido do ser e da existência. Esta é a posição ontológica da arte. A obra é um acontecimento, um jogo ontológico, e a ação artística é um deixar ser e deixar vir a existir o que é.
Todos esses conceitos filosóficos têm em comum o fato de submeterem as artes, as ações artísticas e as obras de arte a uma apreensão redutora e localizadora que prescreve um lugar particular e ao mesmo tempo assim faz prescrever a arte em favor da própria filosofia. Esta variedade de apreensões mostra já que a arte, o artístico e as obras de arte sobram em relação aos conceitos filosóficos.
O fato é que diferentes conceitos são mobilizados para se localizar e submeter o artístico ao conceito e assim o subsumir na articulação
Atos e Artefatos 157 teórica proposta por esse ou aquele pensamento filosófico. O artístico faz problema justamente porque sempre exibe um a mais em relação aos conceitos aplicados a ele. Esta sobra, este resto, esse a mais é, por um lado, insuportável para o conceito, por isso ele o deixa de lado, e, por outro, insustentável para a atitude filosófica, pois ela não pode admitir que algo escape de seu enlace. A conclusão, todavia, não é o niilismo teórico, pois a realidade se mostra claramente na própria variedade e multiplicidade de apreensões teóricas. A indefinibilidade da arte e a insolubilidade da localização do artístico são problemas apenas sob a suposição de uma essência e de uma origem únicas para todas as artes e todas as obras de arte. Esta suposição, seja ela concebida em termos de “natureza” da arte, seja em termos de “conceito” de arte, pressupõe que a arte e as obras de arte não sejam coisas feitas e ações realizadas a partir de um agir com algum grau de liberdade. No fundo, a suposição é que a arte é um traço da Natureza, do Ser ou do Divino, e não algo que nós mesmos fazemos. A simples alocação das artes e obras de arte no âmbito do agir e do fazer, ou seja, que arte é uma forma de agência, e não de paciência e subserviência, já liberaria o pensamento para o pluralismo efetivo e para a diversidade irrestrita. Gênese, formação e reiteração A articulação teórica elaborada nos primeiros capítulos parte do fato deste pluralismo e desta diversidade. As artes e as obras de arte são reconhecidas e concebidas enquanto formações temporais e históricas, resultantes de cursos e campos de ações que se enraízam nos engajamentos práticos, corpóreos e cognitivos das diferentes comunidades humanas. Do mesmo modo, e se deveria dizer também, da mesma raiz que as línguas, as artes e as obras de arte são como aquelas árvores de manguezais e pântanos cujo galhos, troncos e raízes se entrelaçam e se misturam, e assim o que era galho vira raiz e o que era raiz vira tronco. Ainda assim, o surgimento, a formação e a fixação de padrões e modelos se deixa facilmente notar, mas o verdor e o vigor vivos não são uma replicação, mas uma
Apenas depois desse momento é que propriamente começa a formação da intenção e da meta de reiterar e agir e fazer conforme a esse esquema de ação e esse tipo de evento ou objeto. Nesse ponto surge propriamente a arte. Aqui se configura a intenção de fazer como se faz, tendo já exemplares em vista e também tendo em vista o reconhecimento do outro de que se está fazendo aquilo também
158
Atos e Artefatos emergência a partir do que é outra coisa, o lodo do pântano onde dissolução, morte e apodrecimento, vida e matéria se indistinguem. As artes e as obras de arte não são essências sempiternas e formas universais, mas fases de um processo incessante de transformação. O primeiro movimento consiste na seleção, fixação e configuração de um modo, padrão ou forma de fazer e atuar num campo de ação mais ou menos delimitado, a partir de urgências, necessidades e fatores “não artísticos”, p. ex. “culto”, “ensino”, “guerra”, “memorização e homenagem”, “cura” etc. Aqui começa o vir a ser da arte, a existência de esquemas, de técnicas e de modos de fazer e atuar. Todavia, trata se de começo, mas ainda não é, pois esses movimentos muitas vezes se perdem, ou se tornam um modo funcional e prático de lidar com certas constrições, ou seja, hábitos regulares e repetitivos. Ao contrário dos hábitos, as habilidades que estão na base de toda arte mantêm intacta a folga ou a liberdade no próprio agir premeditado.Opassoseguinte consiste na realização de exemplares, casos ou obras típicas que fixam um modelo para outras realizações, nas quais se exibe uma dimensão de liberdade e um espaço de jogo que indique um modo de fazer que pode ser reiterado. A primeira música de um gênero, o primeiro Choro, o primeiro Samba. Estes primeiros exemplares sempre já são reconhecidos por retrospectiva às práticas e experiências recorrentes. Por conseguinte, o que é fixado por esses exemplares originais é mais o reconhecimento do modo de fazer, da arte ou da técnica, ou seja, da modulação que libera o agir e o fazer, do que propriamente os seus resultados, pois os primeiros exemplares em geral são incipientes, mas já configurados a ponto de explicitarem um tipo ou padrão a ser seguido e aprimorado, padrão que liberta o agir e libera uma dimensão de atuação.
Atos e Artefatos 159 com a mesma liberdade. Nesse ponto “começa” propriamente a arte: a arte de fazer e dançar o Maracatu, de fazer um Choro, a arte do Samba. Simultaneamente a esta fase, pois se trata sempre de uma fase efêmera, de um trânsito, surgem as disputas sobre as normas, as regras, os padrões de correção e de aceitabilidade, cuja finalidade está em garantir o espaço de jogo e ao mesmo tempo fixar limites para o trânsito e a liberdade de agir e transformar que estão na base de toda arte.
O passo seguinte é o surgimento da instituição, o estabelecimento ou a entrada no sistema de reconhecimentos recíprocos, de concorrências, enfim, o surgimento ou o ingresso no mundo da arte (do Choro, do Samba). Desta instituição pública, mesmo que tácita e apenas existente nas práticas e tradições de um pequeno número de sabedores e fazedores, surge o nome da arte e a fixação de um padrão, de uma normatividade, ou seja, de critérios de pertença e de identidade: a identidade do Choro, do Maracatu, do Samba, da Milonga. Agora é, está aí, existe a arte e as obras dessa arte. O momento é já do reconhecimento previamente garantido. O ofício espontâneo se torna oficial e oficioso. Se Téspis inicia a arte do teatro, Ésquilo e Sófocles fixam a forma dessa arte na Grécia antiga. Porém, nada é para sempre, mesmo esta fase é apenas um ponto de transição e ramificação, pois querelas e cismas é o que há em todas as artes. Apenas depois desses momentos já terem sido fixados é que surge a história da arte que, no geral, consiste na síntese discursiva e articulada desses momentos. Nesse ponto é que se recolhe como unidade os momentos anteriores, que se fixam parâmetros, os estilos, as formas, a partir da identificação do tipo e dos exemplares paradigmáticos e fundadores. A historiografia estabelece e ao mesmo tempo propicia o olhar panorâmico, teórico, dominador, a partir do qual se inicia a meditação reflexiva sobre o sentido desse tipo de ação. A historia e a theoria são flores temporãs da mesma árvore. Que Danto estabeleça que ambas são condições de possibilidade para se atribuir o predicado “arte” a alguma coisa, mostra o quão distante da coisa mesma e o quão contrário aos fatos a filosofia pode pensar.
160 Atos e Artefatos Toda arte é um modo de agir, fazer e lidar com um certo veículo e suporte para atos e artefatos. Arte, por conseguinte, indica uma interação entre um modo de agir apropriado para um certo meio de ação. A fixação de padrões reiteráveis, no caso da arte musical, ou seja, de uma ação sonora, mostra se na construção, seleção e disposição de instrumentos, na fixação de ritmos e escalas de notas, além da adestração dos corpos e mentes dos executantes. Tudo isso é anterior ao surgimento das próprias obras de arte musical. A primeira música registrada como “choro”, “A flor amorosa”, de Joaquim Antônio Callado, apenas pode receber esta classificação porque esse “gênero” já nomeava um modo diferenciado de fazer e executar a arte musical. No Choro se entrecruzam de modo inovador, produtivo e também disruptivo, ou seja, com liberdade, diferentes histórias de formação da arte de fazer música. Com efeito, a cidade do Rio de Janeiro, mas sobretudo o ambiente ou campo de ação no qual atuavam Joaquim Callado (1848 1880), Chiquinha Gonzaga (1847 1935), Ernesto Nazareth (1863 1934) e Pixinguinha (1897 1973), estava atravessado pelas tradições musicais europeias, africanas e indígenas brasileiras, mas com ligações e ressonâncias com os principais centros de formação e produção musical do mundo. O gênero musical denominado “Choro”, por estas origens, se enraíza nas diferentes formações humanas que se fundiram no território brasileiro no século XIX. As raízes do Choro são tão complexas quanto as mais complexas das suas peças musicais. Além disso, o próprio gênero musical que se denomina “Choro” é ele mesmo complexo e semovente.
Ele é uma reconfiguração resultante de uma fusão transformadora e disruptiva da arte musical e ele está em transformação, reconfigurando se a cada nova fase e assim se mantendo efetivo como modo de se fazer música, como espaço de ação no qual se pode criar e fazer música. Pode se dizer também que o Choro de Callado e de Chiquinha Gonzaga já não existe mais, que isso que ouvimos e fazemos como choro hoje não é aquilo que eles faziam, e ao mesmo tempo constatar que, na verdade, o choro está bem vivo, mas como raiz principal de outros gêneros musicais.
Atos e Artefatos 161
Por ser ato premeditado, artifício e artefato, toda e qualquer arte tem um fundamento intencional, e por ser intencional pode vir a ser institucional; por isso, um mundo da arte ou campo de ação no qual certas ações são apropriadas e outras inapropriadas, no qual certos atos têm sentido e outros não, adquire consistência e se estabiliza. Por ser intencional, por haver institucionalidade e por existir um campo de ação e de apropriação, são dadas condições de avaliação, crítica, história e teoria da arte. Todavia, por estar fundada numa folga que o agir livre proporcionou, a intencionalidade e a institucionalidade não determinam uma essencialidade, pois o “é assim que se faz” nomeia sempre, em todas as artes, um espaço de jogo livre. Se olharmos para o estado das artes, em qualquer feira ou metrópole, o que se mostra aí não é uma unidade e uma essência, mas sim fases de uma plural diversidade. Se rastreamos as proveniências das artes e dos tipos de obras de arte que hoje se mostram em todos os lugares, o mapa que se desenhará será um emaranhado de caminhos polifurcados que se entrecruzam em vários pontos. As únicas imagens que não encontraremos são a da escadinha unidirecional e a da tabela periódica fechada e fixa. O que é, então, uma obra ou evento de arte? A resposta de Anderson83, em termos de um sentido cultural relevante, cifrado com habilidade num medium sensorial capaz de produzir afecções, ou ainda as respostas em termos de sentido incorporado (embodied meanings), símbolo, bloco de sensações, imagem de sentido (Sinnbild), indicam que isso tem a ver com o sentido (sens, Sinn). Todavia, este modo de responder a questão já premedita o artístico subsumindo o ao perceber e ao significar. As obras de arte seriam significantes, veículos de sentido. Com os conceitos de ato, ação e campo de ação, porém, o que vimos sugerindo é que a arte é primariamente ato e modo de atuação. Portanto, com essas indicações, o que se propõe é que a arte seja percebida enquanto uma atividade de fazer sentido (making sense), de ativa apreensão e ficção de sentido.
monogênica
83 Calliope’s Sisters. A Comparative Study of Philosophy of Art, 2004.
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A resposta mais apropriada precisa reconhecer e dizer que uma arte e também uma obra de arte faz, atua, interagencia coisas e agentes, perfaz um campo de ação no qual sentidos se instauram e se explicitam. O sentido não é algo dado previamente e independente da ação artística, ele é feito por ela, ele se faz nela. Além disso, este sentido não é apenas para sentir, mas também para pensar. Sentidos, mais do que sentido. E eles não se dão primariamente no plano da sensibilidade, mas sim no plano da interagência, ou seja, implicam agentes ativos dispostos a interagir na consecução de uma ação cuja realização apenas tem lugar por meio de várias ações conjugadas, exemplarmente ilustrada pelo Choro. Nisso está a primariedade das obras de arte, enquanto imbricantes de interagência, uma vez que o mundo humano é na sua base um mundo de sentido compartilhado a partir de uma multiplicidade diferencial de sentidos e agências.
A expressão “Isso é arte”, ou “Isso é Choro”, por conseguinte, designa sempre algo complexo e pluriversal. Algo, ato, artefato ou evento, que direciona o corpo, o agir, os sentidos, os sentimentos, os pensamentos e os faz interagir ao participarem de um campo de ação no qual ações são desencadeadas e entrelaçadas. Se algo é artístico, isso indica uma potência ou capacidade de fazer efeitos.
Atos e Artefatos
“Arte”, porém, não é natureza, mas sim ficção, artifício, o que implica premeditação, intenção, enfim, que é um artefato, um ludíbrio, que é um truque, um jogo, ou melhor, um drible que exige espontaneidade e liberdade, portanto, que é jogo jogável, que é gracioso, mas também perigoso e azaroso, no preciso sentido de que produz e provoca a surpresa e a emergência, que implica a disposição para o inesperado. Esse aspecto indica que se trata de algo que por natureza exige a iteração, e impossibilita a simples repetição, o que significa dizer que enquanto significante, é expressão ou proposição de uma virtualidade cuja atualização se faz por diferenciação, melhor dizendo, a repetição, ou revisitação, produz novos sentidos e outros dados. Por ser antes de tudo ato, e não objeto, as artes e as obras de arte agenciam e interagenciam, coagem ao jogo livre. Artes, sempre no plural, mesmo ali onde se nomeia a arte prime, a Dança, indicam a ação dirigida ao sentido, antes que aos sentidos,
Atos e Artefatos 163 por serem atos reflexivos na e da liberdade alcançada, e não ato reflexo. Um ato que se faz por espelhamento, ao ser sempre uma amostra do humano, ou de seja lá qual for o agente que paute sua ação pela libertas; ato esse que revela, não um ente, mas um quem, que o faz, percebe, executa, compreende, como humano, como mais humano. Porém, jamais o humano aí implicado é um genérico ou comum, pois “arte” diz sobretudo uma estilização, ou seja, uma fixação de limites, que estabelece modos e jeitos, enfim, que diz “é assim que se faz”, “é desse modo que se é livre nisso”, e que exclui, separa, seleciona, estabelecendo balizas e parâmetros. O fracasso na ação artística está associado ao falhanço no exercício de uma liberdade e no fechamento de um espaço de jogo. Seja o Abaporu, o Carinhoso ou o Catatau, diante disso, ao dizermos “Isso é arte”, queremos dizer que faz sentido, que faz ser o que não é, que é um ludíbrio liberalizante, que exige reiteração com folga, que é reflexivo, que modula e estiliza, em suma, frente a isso estamos diante de coisa feita para atuar no curso de ações pelos quais o humano se distingue do inumano ao se libertar da natureza e das determinações da matéria bruta. A variedade e a multiplicidade do artístico não é um problema, mas sim uma virtude. Se os conceitos são incapazes de lidar com isso, então cumpre aceitar esta limitação sem transferi la para a coisa. Agora, o conceito é também uma formação a partir do agir livre e ele também deveria se pautar pela preservação da multirealizabilidade e da variedade desse agir e ainda mais as promover. “Sem samba não dá”, canta o artista, e assim atua e faz ver que uma vida humana “sem arte não dá”. Mas, ainda assim, é preciso corrigi lo nisso, e fazer ver que nessas frases “samba” e “arte” são indicações plurais, ou melhor, são indicações indefinidas, pois há muitos sambas e várias artes; com mais razão temos de dizer que sem Milonga, sem Tango, sem Tule não dá. O samba é tanto um entrelaçamento de muitos troncos a partir de muitas raízes quanto um tronco que se multiplica continuamente. A primeira gravação de um samba carnavalesco em 1915, a música Pelo telefone, era apenas a fixação de uma prática num novo veículo, conforme um certo padrão, o qual de modo algum extinguiu ou substituiu as outras formas de samba. De
164 Atos e Artefatos primeiro, ele não tinha nada. E, se ele nasce da mesma matriz cultural, o terreiro afrodescendente, de onde nascerá também o álbum Afro sambas de Baden Powell e Vinícius de Moraes, nem por isso esses sambas são a mesma música. Entre um e outro não passa apenas um, mas vários rios e cursos de ações. Com efeito, se um rio passa na avenida quando passa uma escola de samba, esse rio se perfaz de muitas cores e águas. Assim como nas artes, assim também no samba, e mais ainda no humano, vale a plural variedade de raiz. O humano não apenas se diz de muitas maneiras, ele é plural: os Wayãpi e os Kamayurás passam bem sem samba, afinal.
Gottlob Frege, em 1879, inventou uma linguagem visual, impronunciável, para servir de meio de exposição dos esquemas e fórmulas da nova lógica por ele criada. A razão para este artifício, ele argumentou, estava na inadequação das línguas naturais para a exposição precisa do sentido a ser expresso e assim evitar mal entendidos e incompreensões. Poucas décadas depois, com os aprimoramentos de Kurt Gödel e Alan Turing, a linguagem artificial construída por Frege se transformou na linguagem das máquinas cibernéticas recém inventadas. Esta linguagem artificial não se tornou apenas a linguagem das máquinas computacionais, mas a própria linguagem pela qual a mente humana pode se fazer entender por uma entidade não orgânica e não mental, e também compreender o sentido que elas fazem. A matriz dessa linguagem, todavia, não é outra que a linguagem escrita cuja invenção remonta à civilização suméria.
A arte da literatura, a arte de fazer sentido com arranjos de letras, emerge dessa invenção, tendo como exemplar fundador o texto Ele que o abismo viu, ou Poema de Gilgámesh, atribuído a Sin léqi unnínni, para muitos o mais antigo texto literário. Esse texto mostra que as letras, cuja função inicial era técnica e prática, foram reapropriadas para fazer um outro sentido. A linguagem escrita veio a ser a própria presença do espírito, a própria exibição da ação espiritual.
Atos e Artefatos 165 9 VOZ SEM CORPO – LETRA SEM VOZ
No século XX, uma certa vanguarda da arte literária se confundiu com a exploração da escrita a despeito da legibilidade e da elocução. Desde o Lance de Dados de Mallarmé, o Finnegans Wake de
166 Atos e Artefatos Joyce, e o Catatau de Leminski, a arte explora formações linguísticas que já não são para serem lidas e pronunciadas, e que também já não são narrativas e falas do eu, do tu e do nós. As palavras e frases são ainda linguagem, mas não mais línguas, pois se elas simulam o francês, o inglês e o português, elas não são vozes de pessoas e os próprios narradores talvez não existam. Mais ainda, não há drama e atos, não há intriga: o texto é um artefato semântico. E mesmo essas obras podem ser vistas como tão somente balbucios da nova linguagem maquínica e da nova condição da escrita na era das linguagens de programação e da realidade digital. Leminski percebeu que seu Catatau já não podia se inscrever na tradição literária do romance e da narrativa do drama existencial que o poema de Sin léqi unnínni já exercitava, e também não na da poesia lírica. Embora exista um personagem, Cartésio, um coadjuvante, Artiscewsky, e um inimigo, Occam, o texto não é uma narrativa e sobretudo não é uma imitação da fala ou do diálogo; não há um drama ou uma história sendo narrada e desenvolvida, e também nenhuma saga, embora simulemos isso para poder ler como uma novela. Não se trata de novela, menos ainda de uma epopeia. O texto como que se envolve em si mesmo, não comunica, não narra, não informa nada. O que há, isso que faz sentido, é um dispositivo, uma máquina linguística. O texto está ali, não para ser lido e falado, mas para ser soletrado por um hiperletrado, ou por uma máquina de Turing, como um artefato a ser manipulado, como um artifício de sentido. O próprio Leminski resume: “pretendi realizar um dos postulados básicos da cibernética: a informação absoluta coincide com a redundância absoluta”, o Catatau simultaneamente é “o texto mais informativo e, por isso mesmo, o texto de maior redundância. 0 = 0. Tese de base da Teoria da Informação. A informação máxima coincide com a redundância máxima.”84. Nessa obra literária, por conseguinte, ainda é o caso de Literatura, mas não mais de imitação da voz e da 84 1989: pp. 210 211.
Atos e Artefatos 167 ação humana. A palavra escrita, cujo sentido e significado provinham da fala humana sempre pessoal e comunitária, indexada a um corpo particular, mesmo quando se quisesse como fala coletiva, agora se libera no gesto literário contemporâneo para vir a ser uma linguagem que se instaura como significativa na exata medida em que produz a ausência de sentido humano, ao ser máxima informação cibernética impessoal. A letra agora dispensa a voz e o drama antropológico, dispensa o corpo e a mente biológica. Esse “dispensar” significa antes de tudo a recusa da submissão à fala egóica e também a libertação da obrigação da reiteração da imagem que o humano delineou de si mesmo desde a invenção da escrita.
A situação crítica da literatura contemporânea, cujo norte é a exploração da letra para além de sua função conversacional, comunicativa e narrativa, aparece como uma das figuras dos falsos fins da arte. Mas, não se trata de fim, muito pelo contrário, pois assim a arte literária se liberta de sua origem. A dissociação entre fala e escrita desmonta o modelo do abecedário como dispositivo de reprodução dos sons vocais e de estados mentais. A linguagem escrita está no cerne das novas tecnologias e das máquinas inteligentes na qual tudo se deixa transcrever e expor. A arte literária, ao se liberar para isso, se encaminha para a sua resolução como códice maquínico para assim apropriar se para a situação das máquinas de tradução simultânea. Com efeito, a principal transformação diversificante está na alteração da função e do papel da linguagem quando ela deixa de ser a emissão de um eu, ou a intermediação entre duas consciências, de modo que agora convivemos com emissões e mensagens que não são falas de alguém, embora exijam respostas e direcionem nossos pensamentos e ações. Se Voltaire ainda podia dizer que “escrever é a pintura da voz”, hoje a linguagem escrita se libertou dessa posição cativa, que ela na verdade nunca realmente ocupou, para se projetar na sua condição artefatual. Se é prematuro dizer que a linguagem escrita, na sua versão maquínica e cibernética, já opera sem a mediação humana como afirma Fischer, temos de concordar com ele que a arte de escrever
As palavras mais simples e cotidianas, e as formas de combinação, ao serem agenciadas por um ato poético, são deslocadas no seu sentido, mesmo quando usadas para falar das mesmas coisas de sempre. Porém, o estranhamento da palavra constitui apenas um aspecto, o qual tem de ser apreendido como sintoma de outro ainda mais insidioso, qual seja, o gesto de ficção de si por meio da palavra. A sugestão é que o gesto literário assim seja compreendido como um gesto de constituição de um si que é outro em relação ao si que escreve: o gesto instaura um sentido outro de si, e por isso mesmo estranha a palavra. Na literatura contemporânea, o estranhamento verbal é agenciado para mostrar a presença de uma outra inteligibilidade, para fazer vir à presença, não o espírito, mas outra coisa, que não mais se restringe ao humano que inventou a si mesmo ao inventar a Nessaescrita.mutação
disruptiva se mostra a emergência que a arte é, que a literatura exemplifica em particular, emergência esta que consiste no agir que atua para instaurar uma outra existência diversa da natural. A escrita não é outra coisa que o efeito dessa emergência 85 S. R. Fischer, 2001, pp. 294, 316.
A inscrição muda O ato poético literário ainda assim é fonte de pensamentos, seja porque configura proposições, seja porque exige o pensamento e faz pensar. A exigência do pensamento, todavia, ali se faz pela palavra que solicita uma dimensão de sentido não dada de antemão, pois é instaurada concomitantemente com o ato de inscrição. Não é que a linguagem fale, mas antes que o ato linguístico, não importa qual o agente, faz o sentido ao ser realizado. Este ato pode ser concreto, realista, subjetivo, idealista ou imaginário, não importa, visto que é antes de tudo um ato de ficção de sentido. A forma de aproximação à literatura aqui em exercício compreende a ficção de sentido como um gesto de estranhamento da palavra.
168 Atos e Artefatos foi transformada, assim como a arte de calcular, e já não está mais circunscrita à função de expressão da voz mental humana85 .
Atos e Artefatos 169 instauradora de possibilidades e constrições não biológicas. Com efeito, a escrita tem sido reconhecida como a mais importante arte, artefato ou tecnologia da história da formação humana no seu processo de liberação em relação à natureza. O que era natureza se torna artifício. Se a fala pode ser considerada um aspecto da determinação natural do animal humano, a escrita não é mais natureza, mas sim articulação artefatual. As civilizações históricas cujas vigências se dão em nós, com efeito, identificam se pela escrita, pela palavra escrita, assim como as grandes religiões estão fundadas em textos. O que nós reconhecemos como literatura não é outra coisa que o acervo dos textos escritos, que o registro escrito do pensamento e do espírito. A partir da invenção da escrita, mais precisamente dos alfabetos e silabários, o ideal de formação humana e de civilidade se confunde com o letramento. Não basta falar bem para ser um humano civilizado, há que se escrever, que se inscrever. Isso se deve ao fato de que a escrita é o primeiro artefato que efetivamente escapa da natureza. O indivíduo letrado, capaz de escrever e ler, está como que fora dos ciclos naturais. Não por acaso ainda hoje se identifica a espiritualidade com a palavra escrita. O cume da formação humana é o letramento: a cultura, a civilização, o saber, as leis, tudo é letra, embora essa projeção seja ilusória, pois a humanidade do humano passa bem apenas com aSevoz.aLiteratura é a arte da palavra escrita, também é ela que anuncia a vigência de si mesma para além do humano. Embora não possa se desprender da letra, o corpo vivo já não é seu suporte. O que se apresenta agora é um texto impronunciável, ou também uma voz sem eu. A letra, enquanto artefato, desde sua invenção, continha no seu âmago algo estranho e independente que escapava ao domínio do falante e do ouvinte; os primeiros escritos já prefiguravam os códigos maquínicos e sua lógica, os quais, embora feitos pelos homens, são para a inteligibilidade das máquinas. Veja se o caso dos números primos, números que a linguagem escrita da matemática
170 Atos e Artefatos permite calcular; hoje, porém, nós operamos muitos desses números, mas não mais os podemos dizer e pensar, produtos que são dos cálculos que somente as máquinas cibernéticas podem fazer e aferir. A questão consiste em pensar a condição da Literatura em tempos de linguagens cibernéticas e de interações linguísticas não mais pautadas pela fala de um eu e pelo diálogo entre pessoas. O mais refinado artefato humano, a linguagem escrita, funda a mais espiritual das artes, a Literatura, enquanto uso mais refinado do mais refinado dos artefatos. Nos últimos cem anos, o acontecimento inesperado que nos faz pensar é o evento da fusão da linguagem escrita com a máquina. Dos alfabetos capazes de reproduzir todos os sons de todas as línguas humanas e serem assim o veículo do espírito e da razão, emergiram os alfabetos capazes de serem lidos por máquinas, capazes de serem a própria linguagem das máquinas, máquinas que são agora cognitivas, inteligentes e “falantes”. Nós mesmos, no dia a dia, cada vez com mais intensidade, lemos e falamos, com e para as máquinas. Todavia, a essência das novas linguagens está no fato de que nelas se realiza uma inteligibilidade muda cuja base é a linguagem escrita uma linguagem da qual nós somos na grande maioria analfabetos e incapazes de operar.
A figura dramática A Literatura, na sua imagem mais cotidiana, confunde se com as narrativas da formação e dos dramas do herói, do santo e do homem político. Em termos modernos, a figura dominante é a do sujeito e sua consciência, dos conflitos da pessoa consigo mesma e com as demais. O assim chamado “personagem”, seja ele solitário ou em confronto com a sociedade, constitui a figura mesma do texto literário e ainda predomina como imagem comum: Ulisses, Antígona, Dante, Dom Quixote, Hamlet, Fausto, Ivan Illich, Niels Lyhne, Adrian, Ulrich, Mahood, Diadorim, Hilé. Na dramaturgia não foi diferente: a figura do herói ou do indivíduo em conflito, consigo ou com os outros, predomina no palco ainda hoje. Diz se que essa imagem soçobra no século XX, que a literatura de um
Atos e Artefatos 171 Beckett, seja em prosa ou dramaturgia, apresenta o fim da ideia mesma de indivíduo, dissolvendo o drama e o sujeito, a narrativa e o personagem. Sófocles, Dante, Shakespeare, Goethe, Dostoievski, entre tantos outros, exploraram a condição humana, tanto nas suas amplidões, beirando o nada, quanto nos seus limites e impossibilidades. A beleza, o sublime, o amor, o trágico, o horror, de Édipo a Ivan Illich, sempre eram reflexos de humanidade em busca de sua configuraçãoPodemosplena.julgar a literatura contemporânea, pós histórica e pós dramática, como a reprodução danificada, fragmentária, do humano. Mas, também, podemos considerar essa situação como indicativo de que a literatura agora expande sua capacidade expressiva e ficcional para além do drama, do épico e do lírico, para se abrir para a dimensão inumana de sentido, sem que isso seja uma história natural ou divina, mas antes maquínica. Agora não mais temos o personagem central como sendo a pessoa principal. Se tomamos a sequência de romances de Beckett, Molloy, Malone Morre, Inominável e A companhia, como uma indicação dessa nova situação, o que ela mostra é a dissolução do eu e da voz dramática. Se o que resta é ainda uma fala, ela propriamente provém já ali de algo que propriamente tem de ser denominado “sem nome”, pois não possui as condições de identidade e de existência humanas. O leitor espectador não está sozinho, porém, pois algo lhe faz companhia.
Lukács ainda podia dizer que o Romance era a forma artística de sua época; nós, hoje, temos nossas dúvidas, justamente pela impossibilidade, ao menos nas obras paradigmáticas, por um lado, de reduzir o enredo a apenas assuntos humanos e, por outro, pelo predomínio da imagem digital na vida hodierna. A Literatura pode ser compreendida, a meu ver, a partir de uma visada mais radical, qual seja, aquela que considera o próprio ato de inscrição, de letramento do humano, como formação do próprio espírito e razão a partir da escrita. Antes do advento da escrita o espírito se apresenta sobretudo sob a figura de animais e de fenômenos naturais; depois, o espírito se faz presente na forma de uma voz que exige a sua própria inscrição e escritura. Não bastava ouvir, era preciso escrever; não
172 Atos e Artefatos bastava mais apenas sentir, era preciso ler. Nessa perspectiva, a Literatura se mostra como efetiva mesmo ali onde a narratividade deixou de ser o eixo da arte literária, isto é, no momento em que as linguagens artificiais dos códigos de programação e linguagens maquínicas emergem como a realidade da letra e da escritura enquanto suportes da cultura e da civilidade. Desse modo, o texto, a letra inscrita, independente da narração e da personagem, enquanto objeto e fim das artes literárias, aparece agora ele mesmo como a própria substância e alma da cultura: uma letra que se torna independente do seu criador e que agora significa um espírito pós humano. Com isso quero repetir o que já se disse, que uma obra literária nem sempre oferece uma interpretação ou uma imagem do humano, do mundo, da vida ou da sociedade. Uma obra de arte literária é também a tentativa de nos oferecer uma visão do que não é, do que nem é nem não é humano. De veras, uma obra literária, como a de Hilda Hilst, exemplifica a derrelição do humano em direção à sua dissolução, nesse sentido prosseguindo a obra de Beckett, mas, tal como nesse autor, sem ainda indicar uma saída e sem nomear o que agora quer participar da ação e tomar a palavra. Nesses dois autores, trata se ainda sempre do humano, mesmo ali onde ele se animaliza, onde ele, como Hilé, em A obscena senhora D, abandona a forma humana como única forma de não perder a razão. Uma vez atingido esse ponto, no qual o humano encontra os limites de sua forma, sem ter qualquer ilusão de transcendências divinas e retornos naturalistas, emerge a figura do transumano como única alternativa: seja a máquina consciente seja a fusão homem máquina. A dita literatura de ficção científica esconde esse segredo: o fim da ilusão da imagem divina do homem abriu a época, não do homem, mas da perfeição maquínica como a nova imagem ideal do humano. A ideia do supra humano, do além do homem, está já fixada, mas ainda não se sabe como será e o que vai ser essa nova figura do espírito, e por isso mesmo ela é inominável. No entanto, a arte literária tem já apresentado aspectos dessa figura. Duas ima-
Com efeito, se até bem pouco tempo, como nos casos de Frankenstein de Mary Shelley, de Eva Futura, de Villiers de L'Isle Adam, Pinocchio de Carlo Collodi, e Metrópolis de Thea von Harbou e Fritz Lang, o personagem principal é já maquínico, pode se, contudo, dizer que se trata ainda de aparatos mecânicos, mas não ainda inteligentes. A situação dramática ainda é humana na sua totalidade, pois esses personagens emulam o humano e apenas atuam à medida que simulam com perfeição as características antropomórficas, sugerindo assim que os próprios humanos estão aquém de si mesmos, embora ainda sejam os modelos. A transformação nesse imaginário ocorre a partir do surgimento das máquinas inteligentes ou computadores cuja diferença essencial está em que elas operam já no plano linguístico e são propriamente máquinas semânticas. Embora tenha sido no cinema que essa forma de literatura ganhou popularidade, na sua origem estão contos e romances no formato tradicional.
Atos e Artefatos 173 gens são recorrentes: uma é a linguagem cibernética, a outra é o homem máquina. Em ambas a questão do sentido não pode mais ser posta em termos meramente humanos e dramáticos, ou seja, históricos e existenciais. Projeta se uma presença e inscreve se uma letra, aleatória e alienígena. Que se fale então de pós humano ou transumano é indício de que em termos literários não se trata agora de reproduzir e interpretar a condição humana, mas antes de apresentar uma realidade outra que humana, mais que humana.
Desde o início, o cinema tem explorado com afinco essa nova paisagem do imaginário atual. Desde Metrópolis, passando por 2001: uma odisseia no espaço, O caçador de andróides, até Matrix e o recente Inteligência Artificial, o tema da realidade ex machina na qual os dramas humanos não mais propriamente estão no centro dos conflitos e a lógica da vontade e da razão humana não determinam mais a ação adquire a posição central como figura do espírito e personagem literário. O fim da arte, poética e literária na sua base, mostra se assim como apenas um outro começo!
Todavia, nesses casos, o conteúdo ou tema é que é inumano, mas a forma ainda é aquela introduzida pela palavra escrita a mais de cinco mil anos. A letra, a linguagem escrita, ainda é o cerne da
174 Atos e Artefatos inteligência que se compreende a si mesma como inteligência transumana. Mas, se no início a palavra escrita era o símbolo maior da espiritualidade humana, e o letramento a condição prévia do reconhecimento como parte do mundo civilizado, no cenário atual, da rede mundial de computadores e do sistema internacional de telecomunicações, a linguagem escrita representa muito mais a linguagem das máquinas do que a linguagem humana. O fluxo movimento de informação agora ocorre muito mais na forma de linguagem de máquina do que na forma da fala humana. Essa condição já se mostra na literatura como uma situação incontornável, que, embora impronunciável, é passível de inscrição. Além do homem O tema da condição pós humana (übermenschlich) é em geral um mal entendido. Nietzsche falou do que viria através do homem e se instauraria como finalidade do homem. A literatura contemporânea explora essa temática na forma daquilo que sobrevém ao homem por meio de suas próprias criações. O supra humano é o que se torna possível pela realização do humano e que o supera; do mesmo modo que a flora é condição para a fauna, o homem agora ocupa o papel de condição para a atuação da máquina. A máquina inteligente e a fusão do homem com a máquina, o cyborgue, já estão entre nós, mesmo que apenas de modo fragmentado. Dois casos paradigmáticos na arte literária dramática contemporânea, que se fez pós dramática, isto é, que se colocou na perspectiva do para além de Édipo, de Hamlet e de Fausto, são as realizações textuais e cenográficas Hamlet Machine de Heiner Müller e Pinokio de Roberto Alvim. Em ambas, se trata de superar a condição de acabamento e esvaziamento do drama representado por Beckett, na qual o sujeito, o humano, que era sempre o pivô da ação dramática, desmorona sem possibilidades de se reerguer; nos dois casos, o humano se recusa exatamente no que ainda resta da imagem do homem configurada pelas figuras de Édipo, Hamlet e Fausto; todavia, agora essa recusa não permanece na negatividade característica do século passado, pois uma
86 1980, p.31. 87 Idem, p. 30. 88 B. Brecht, Um homem é um homem, 1953.
E conclui logo depois: “Quero ser uma máquina. Braços para agarrar pernas para andar nenhuma dor nenhum pensamento”, enfim, o humano se imagina uma “máquina de escrever”
Atos e Artefatos 175 nova imagem indica a possibilidade de um outro modo de existência e um outro horizonte de sentido. Hamlet quer ser máquina; a fábula agora é outra: não mais um boneco que deseja se tornar humano, mas o próprio humano quer ser um boneco.
Hamlet Machine é uma imagem condensada do desmoronamento catastrófico, apocalíptico da civilização iniciada pela invenção da escrita. O próprio texto de Heiner Müller exemplifica essa condição, estando mais próximo do programa de computador do que do diálogo. O desejo de se transformar em uma máquina sem dor ou pensamentos, ilustra o novo paradigma literário: a própria palavra quer agora ser uma palavra de máquina, a própria máquina quer ter a palavra. Hamlet é para muitos o ícone do homem moderno, ele fornece o modelo do drama humano. Hamlet vindo a ser máquina indica que estamos numa situação pós dramática. Por isso, na peça, o ator Hamlet proclama: Eu não sou Hamlet. Eu não tenho mais papel. Minhas palavras não têm mais nada para dizer para mim. Meus pensamentos sugam o sangue de imagens. Meu drama está cancelado. Atrás de mim o cenário está sendo desmontado. Por pessoas que não estão interessadas no meu drama, por pessoas para quem ele não interessa. Ele não interessa mais para mim também. Eu não estou atuando mais. Eu não quero mais comer beber respirar amar uma mulher um homem uma criança um animal. Eu não quero mais morrer. Eu não quero mais matar.86
87. Com esse ato de escritura, Heiner Müller dispensa Hamlet e também o drama moderno. O drama está acabado, o drama que era sempre o drama do homem em conflito consigo mesmo e com outros homens. A equação “um homem é um homem”88 já se mostrara não ser uma tautologia. Todavia, não é apenas isso, pois o texto de Müller mostra uma outra coisa também: a literatura, enquanto imitação da voz e da ação humana, acabou. O texto Hamlet Machine é ele mesmo um aparato semântico que não mais é uma imitação da voz e do diálogo.
176 Atos e Artefatos Na forma e no sentido, o texto emula e exige a ação maquínica que está para além da ação humana, embora a tenha como condição. No final, Hamlet Ofélia restam sobre uma máquina de andar, uma cadeira de rodas, e ressoa a voz de Electra, sepulcral, metálica, necropolítica.Estaríamos, então, na condição de espectadores do “fim do jogo” da história humana? Ou esse final, ao contrário, indica o começo de uma outra dispensação ontológica e não mais antropológica? Seria isso os primeiros raios da aurora de um mundo não mais antropomórfico?
A voz sem corpo (humano) e a letra sem voz (humana), ao aparecerem no palco, no lugar antes ocupado por Édipo, Antígona, Hamlet, Fausto, Hamm, Clov, Nagg e Nell, atuam inicialmente anônimas sob a cifra do Inominável. Essa situação pós humana é o ponto de partida da peça Pinokio de Roberto Alvim. Ao escolher o personagem Pinokio, Alvim indica claramente que se trata de um artefato, mas também desse modo indica o caráter mentiroso, e sugere assim que talvez o homem moderno, o sujeito soberano, nunca tenha passado de um engodo, de um construto artificial. Com efeito, no século XX encenou se repetidamente o fim do homem, ao se fazer falar e aparecer no palco o homem fragmento, os restos de Hamlet, sem ousar mostrar o homem híbrido, o transhumano. O tema do hibridismo entre corpos e máquinas, essa realidade agora emerge no palco na peça Pinokio como o personagem principal. A referência a isso, a essa personagem, suas falas e ações, indica a dificuldade, pois não estamos diante de um eu dramático, de uma pessoa, e no entanto isso atua, fala, age: O que estava lá tinha a ver com ação e carne, nervos e motores, expostos. Sangue e óleo, circulando em tubos infinitos. Pedaços acoplados, em cicatrizes, ligados uns aos outros, os pedaços, costurados, nascendo, brotando uns dos outros, glândulas e metal, músculos, tendões, circuítos. Mas não uma cabeça, não, cabeça não, nenhum rosto, só partes. De um corpo. Uma criança? E os tubos, os fios, e o sangue, espécie de sangue, negro, sangue negro, óleo e sangue, circulando nos tubos, pelos canos, misturados em dutos.89 89 2012, p. 127.
Atos e Artefatos 177 Como no quadro Pilot de H. R. Giger, mostram se traços e partes humanos, mas o todo é algo para o qual não temos nome. Não é propriamente um robô individual que imita uma pessoa individual, mas uma situação inclusiva que se revela da ordem da máquina, do espiritual inorgânico e cibernético. A inteira conversa texto contém falas humanas, mas estas se constituem como significativas apenas enquanto mensagens cibernéticas e códigos no fluxo interno de interações maquínicas. No portfólio da peça, Roberto Alvim indica o problema como sendo um desafio para a dramaturgia de transformar a ideia de trama, de conflito, de personagem, enquanto pilares da visão hegemônica acerca da condição humana, em busca de outras bases, de instaurar “uma experiência estética inaugural que amplie nossas vivências”. A peça Pinókio seria a continuação da busca da “criação de alteridades radicais em cena”. A partir da fábula de Carlo Collodi, na qual um boneco se transforma em ser humano, Alvim põe em cena seres humanos que se metamorfoseiam em algo transumano. Diz ele, a “ação se dá em um mundo inteiramente inventado, habitado por criaturas que existem através de outras lógicas linguísticas, propondo a instauração de mitos imprevisíveis”90. Que, depois, o autor tenha buscado implementar essa visão na política real, repetindo assim os equívocos de tantos outros, evidencia a fragilidade da mente orgânica que se autoconcebe como já superada.Édemito que se trata, portanto, de literatura, mas uma literatura que se quer indicação da alteridade inumana, embora ainda não alienígena. Hamlet máquina e Pinokio já não são mais humanos: as suas falas e frases já não são mais a expressão do homem, a sua lógica não é mais antropológica, a sua ação não é mais política. A fusão homem máquina e o privilégio da linguagem escrita, que não mais representa a fala humana, reconfiguram a arte literária e nos fazem pensar na tensão que agora se expande entre o espírito da letra e o espírito humano. Uma vez dissociados, carne e espírito, 90 2012: p. 107 8.
178 Atos e Artefatos humanidade e letra, a realidade transumana, enquanto fruto do acabamento do projeto de humanização que se iniciou com as sociedades letradas, aparece como fascinante e horrorosa, no mesmo grau de espanto proporcionado pelas ideias da possível separação entre consciência e vida, e humano e organismo biológico, tal como proposto pelos novos profetas da biotecnologia e da cyberpolítica. O que é isso que se apresenta, que atua e fala, que contracena com os eus humanos? O humano, o eu dramático, já não está sozinho, a situação é insólita. Que presença é essa, que fala e ação é a sua, na qual e para a qual o gesto humano é tão somente uma cifra codificada incipiente? No lugar do fuzil, máquina de matar homens, emerge um algorítimo digital. O que a literatura contemporânea, exemplificada aqui por Hamlet Machine e Pinokio, apresenta é uma situação em que a co ação ocorre entre agentes que não mais são humanos ou apenas humanos. A interação mesma é pós humana, no sentido de que a sua lógica é maquínica por não ser dirigida e centrada na figura do sujeito autoconsciente e falante. E, no entanto, a presença da linguagem, não como fala, mas como inscrição e código é decisiva. A palavra estranha à fala, torna se impronunciável, não é mais a mediação de uma conversa, indica a emergência do outro do humano no plano mesmo de sua ação. O transumano, o übermenschlich, é outro, embora seja a continuação do humano por outros meios. Não se trata de uma realidade alienígena, mas sim de algo que advém por meio da ação humana, isto é, pela realização do humano. Ao se realizar, o humano instaura as condições de emergência do além do humano. Tudo se transforma, nada se perde. O humano agora se percebe em trânsito para outra coisa. Que esse se mostre sob a forma do maquínico indica apenas a sua primeira aparição imperfeita, do mesmo modo que o foram os primeiros usos da linguagem escrita. Essa prefiguração é o que a literatura nos apresenta com mais e mais insistência, e assim ela mesma se liberta da lógica da voz e do drama humano, ao dar letra ao que não tem voz, e mesmo assim está aí.
A ficção literária, enquanto é arte, reitera o gesto de constituição de si que configurou o humano como não mais mera natureza.
Atos e Artefatos 179 Inscrição
A primeira frase de Rútilo Nada, de Hilda Hilst, “Os sentimentos vastos não têm nome”, impõe à leitora uma reflexão momentânea, ao fazer lembrar aqueles momentos em que a palavra faltou e a mão vacilou. Com efeito, no dia a dia tudo parece nomeável e dizível, e essa frase nos faz pensar naquilo que não tem nome e ainda assim está aí. A sequência do texto mostra de que se trata. Não é apenas a tentativa de dizer o não dito e de trazer à palavra aquilo que ainda não foi denominado. Trata se antes de dizer o outro de si, o outro de nós mesmos; ou ainda, de modo mais preciso, de dizer um outro modo de ser um si mesmo; modo esse que não é apenas outro, mas que é, propriamente falando, alternativo ao humano que nós mesmos somos e com o qual nos identificamos, a tal ponto que se mostra como inumano. O final diz isso explicitamente, na frase retrospectiva do inteiro texto, no momento de reconhecimento de si do narrador: “Tudo o que é humano me foi estranho”. Quem fala essa fala? Não se trata propriamente de uma narrativa, e também não de um narrador humano, mas, como em Beckett, Müller e Alvim, de uma voz que não se diferencia da palavra que se inscreve sem ser o registro de uma voz. Apenas o apressamento do nosso pensamento ainda projeta aí uma figura humana.
Os atos pelos quais o humano se instaurou como diferente a partir da natureza são propriamente falando míticos e sempre restam fora da história. A história alcança apenas o humano, ou a contrario, o si humano é a própria história, como o disse Droysen. Todavia, o humano é uma entidade processual, não é algo que permaneça na identidade através dos tempos e transformações, não está inteiro em cada momento. Isto implica que, a cada instante, ele mesmo se instaura como humano por meio de seus atos, entre os quais, para o homem histórico, é essencial o ato da escrita e da dicção. O modo não poético de auto instauração é o da repetição de gestos e hábitos e formas já estabelecidos. O modo poético reitera o próprio ato de
91 L. Kay, 2000. 92 A. Zeiliger, 2005.
180 Atos e Artefatos ficção de si, mesmo quando repete formas e conteúdos. Sim, o gesto literário repete e reutiliza as palavras e formas linguísticas, mas pela via do excesso, do exagero, do estranhamento. O ato de sentido que se perfaz como poesia e prosa reitera o ato que estranha o humano na natureza, justamente por ser a inscrição do pensamento por meio de um artefato que tem sua própria lógica cujo nexo não é o liame natural. No gesto literário contemporâneo, o humano estranha a si mesmo, duplamente, ao se querer ato semântico inumano e ao querer dar vida e consciência à máquina, isto é, ao significar como máquina enquanto uma entidade mais que humana. A arte das letras projeta uma entidade cuja identidade não é humana. Se, para os primeiros, as letras eram coisas dos deuses, agora, para os contemporâneos, elas são coisas de máquina.
A vida e a matéria não são linguagem e não se deixam pensar como texto, mas a imagem da literalidade do humano nos faz, por metáfora e metonímia, dizer que a vida se deixa descrever como uma estrutura que é o efeito de um código e de um conjunto de caracteres91, e que a matéria não é outra coisa que uma estrutura informacional92. Nessas imagens da ciência, a arte literária visualiza a sua fase de arte metafísica, a arte da ficção da realidade, ao ser exercida como arte de reinscrição do texto vital e do códice da matéria. A velha imagem da linguagem do livro da natureza, nessa figuração, já instrui os novos artistas literários que já não escrevem livros em línguas humanas, mas antes escrevem outros códigos genéticos e outras escalas atômicas, que são ficções, mas ficções que perfazem novas entidades e novos seres extranaturais, e assim fazem a natureza se sobrepassar para o extranatural para muito além do que já faziam as técnicas de polinização artificial, de enxertia, de vacina e de transplantes de órgãos. Agora, os atos de ficção não produzem meros artifícios e artefatos, pois reinscrevem a cifra da natureza e instauram entidades que a evolução natural não produz e nem dirige.
POLICÊNTRICA
A pluralidade das artes hoje praticadas não se deixa reduzir a uma única forma de arte primitiva. A pluralidade das obras de arte não se deixa reconduzir a uma única obra primitiva. Além disso, se as artes e as obras de arte são pensadas como modulações da agência e exercícios de liberdade, como é aqui proposto, modulações e exercícios sempre históricos, elas não se deixam remeter retroativamente a uma única proveniência, pois esta retroação tem sempre a estrutura de um enraizamento múltiplo. Se imaginarmos a totalidade das artes e das obras de arte como uma árvore espaçotemporal, esta seria uma planta rizofórica com uma pluralidade de raízes, troncos, galhos, folhas e flores. Mesmo que se admita que um dia os humanos atuais pertenceram e estiveram unidos numa única comunidade, ainda assim, tal como nas línguas, a plural diversidade não poderia ser eliminada. Se as línguas humanas são um sintoma da diferença que nos habita, aquela diferença que fez Gilgámesh dizer “como calar, como ficar eu em silêncio”, as artes e as obras de arte são ainda mais o indício de uma diversidade incontornável.
Atos e Artefatos 181 10 PLURALIDADE
Indiferença ontológica Todavia, esta imagem de uma árvore que se ramifica no tempo e no espaço, nas raízes e nos galhos, tem sido reiteradamente recusada em nome de uma origem única e de uma essência da arte e
A partir dessa visagem podemos repensar a arte, tendo os conceitos de pluralismo ontológico, de transformação, de policentrismo e de experimentação como básicos. Artes e histórias da arte se oferecem para nós sempre no plural, este é o fato, isto é o que há. Que esta constatação soe herética, isso se deve ao primado das histórias políticas e teológicas eurocêntricas cujo monismo monológico faz parte dos armamentos e dispositivos de dominação e expropriação.
Com efeito, esta é a prática fundante já entre os filósofos gregos, na sua tentativa de autolegitimação, como também entre os teólogos cristãos, mas sobretudo a partir do iluminismo moderno, que se autoconcebeu como o cume da humanidade, estabelecendo, na base do canhão e da espada, a superioridade de seus conceitos e instituições, e sempre escondendo o fato de que o que ali fora sintetizado justamente era também uma resultante da confluência de uma pluralidade de heranças e civilizações. Desse modo, torna se uma tarefa preliminar urgente a revisão desse modelo de historiografia da arte (e da cultura) que supõe que
182 Atos e Artefatos também de um fim único. Os conceitos e teorias principais do pensamento ocidental estão orientados pela interpretação platônico aristotélica da ideia basal de Heráclito, expressa na fórmula “synpheromenon diapheromenon”, interpretação esta que remete toda a multiplicidade a uma unidade original e essencial. A frase de Heráclito, todavia, permite e talvez tenha de ser lida como dizendo que a unidade e a pluralidade são coetâneas, no preciso sentido de que tudo o que há é sempre já uma multiplicidade. Se deixamos as questões da origem e da essência como fatos perdidos para sempre no tempo de outrora, o que temos no plano histórico, por mais que se recue no tempo, sempre já é uma multiplicidade cuja unidade apenas pode ser suposta e também sempre já é uma diversidade cuja identidade apenas pode ser alcançada nominalmente e formalmente, ou seja, por meio de ficções regulativas abstratas. Assim como a vida que está na sua base, as artes e as obras de arte, do mesmo modo que os artefatos técnicos e as línguas e linguagens, o que está dado aí são sempre dados, no plural, não como uma multiplicidade de galhos de uma árvore, mas sim como uma multiplicidade de raízes.
Atos e Artefatos 183 todas as formações, escolas, períodos e civilizações se alinhem numa única linha temporal, e admitir a pluralidade de centros de formação artística e de histórias da arte. Esta revisão implica praticar francamente o policentrismo, metodológico e ontológico, político, ético, antropológico, artístico, ou seja, significa recusar a tese de um único centro doador de sentido e de inteligibilidade, recusar a tese de um único conceito de ser como critério e meta das existências. A partir desse ato de recusa do pensamento único e da única história da arte, impõe se a tarefa de revisar o dado, o conceito e o critério de avaliação, eventualmente propondo mais dados ou menos, por meio de um novo conceito e outras balizas e exemplares. O ponto metodológico da prática do pluralismo, do policentrismo e da multirealizabilidade, enquanto metaconceitos e metacritérios, consiste na evitação sistemática do falso universalismo que exclui a priori o diferente, ou o inclui, mas o subsumindo apenas como incipiente e ultrapassado.Os conceitos e histórias da arte no geral sucumbem ao monismo essencialista eurocêntrico, ao submeterem os dados de arte a uma única ação em curso, a história universal cujo degrau máximo é a modernidade europeia. Não importa de que época, cultura ou região do globo terrestre, as obras de arte são teoricamente e teatralmente postas uma em relação às outras na forma de uma escada única que chega até a França, a Inglaterra e a Alemanha do século XIX. Depois, essa escala do ser da arte se ramifica novamente para todos os continentes por meio dos navios, aviões e estradas de ferro e de asfalto, lideradas pelas bombas e tanques de guerra. O pressuposto teórico dessas teorias e histórias da arte é o monismo e o essencialismo ontológicos pelos quais todas as obras de arte pertencem, enquanto são arte, a uma única essência que se realiza numa única história. A ideia de universal conduz o pensamento filosófico a esta forclusão, mesmo ali onde se reconhece a multiplicidade de fato, e também ali onde, como muitos espíritos céticos e agnósticos do século XX concluíram, se opta pela teoria negativa e pela indefinibilidade do conceito.
184 Atos e Artefatos
O viés cognitivo da dominação excludente implica a afirmação de uma diferença ontológica ali mesmo onde se reconhece a pluralidade e a diversidade, como forma de se garantir uma posição privilegiada. Esta diferença força uma divisão hierárquica, como é o caso da divisão entre “arte” e “artesanato”, entre “arte” e “técnica”, ou ainda entre “belas artes” e “arte”, ou então, a mais perversa, entre “arte civilizada” e “arte primitiva”, pela qual se faz refletir nas artes uma distinção antropológica fictícia. O único contraceptivo eficaz para se fazer abortar ab initio este monstro antropofágico e genocida, consiste em reconhecer a indiferença ontológica da arte, do mesmo modo que se reconhece a indiferença antropológica das línguas humanas, no sentido preciso de que qualquer uma delas perfaz o humano igualmente. Com este dispositivo, simultaneamente valida se o pluralismo ontológico, pelo qual as artes e as obras de arte são liberadas de essência única e da história monogênica.
Além do universalismo abstrato As teses de Erika Fischer Lichte (2004) e de David Davies (2004) indicam a direção para se superar os preconceitos das filosofias e estéticas da arte do século XX, sobretudo para além de Gadamer e Danto, mas também de Benjamin e Adorno, ao reporem a agência e a ação na base da arte. Ao recuperarem o agir e o atuar como base do artístico, essas duas propostas teóricas se libertam do pressuposto monista e ao mesmo tempo se liberam para o pluralismo e o policentrismo da arte e da história da arte. Dito de modo explícito, o recurso aos conceitos de ação e de campos de ação expõe a indiferença ontológica, como a outra face da liberdade, da indeterminação e do não essencialismo, enquanto abertura para a pluralidade. As entidades sem história, mesmo que em evolução natural, estão determinadas a serem o que são e a existirem nos conformes de sua natureza e essência material. Os acidentes e as diferenças são para elas sempre negativas, pois indicam a decadência e até a morte, e que sua agência é ontologicamente ine-
Trata se então de aceitar que nos cabe uma certa indiferença ontológica quanto ao próprio ser (natureza, identidade) e quanto à própria forma de existir (condição, existência): os seres humanos se caracterizam por uma pluralidade de identidades e de formas de existência em contínua diversificação e diferenciação. Embora em cada época e em cada comunidade haja sempre forças conservadoras preservadoras da identidade e do modo de vida, não há comunidade viva e duradoura que não seja perpassada e transformada por forças inovadoras e transformadoras. Isso se reflete sobretudo nas artes e nas técnicas, pois elas são o âmbito da inovação e da experimentação de inovações e de diferenciações disruptivas. Por esta condição, os universais abstratos são apenas fixações efêmeras com vistas à dominação e à exclusão. Não há arte universal e muito menos genérica, do mesmo modo que não há obra de arte universal e não local. E até mesmo as filosofias universalistas são proposições
Se alocamos a arte no plano da ação e da realidade histórica, como bem viram Droysen e Dilthey, torna se incontornável reconhecer o seu caráter múltiplo e transitório. Contudo, transformações e diversificações fundadas na agência e livre projeção seriam inúteis sem a atitude e a ação de experimentação. Fazer experiências implica supor a transformabilidade e a multirealizabilidade de si e das coisas. A ideia de ser histórico indica o ser afetado por transformações e experimentações em relação à própria identidade (ser) e às próprias condições de existência (ente) cujos efeitos são a diversidade e a pluralidade de formas de vida e modos de ser características da espécie humana atual.
Atos e Artefatos 185 fetiva em garantir a consistência do próprio ser. No caso das entidades históricas, as transformações e mutações são a base para a inovação criadora e para a diferenciação multiplicadora e diversificante, mas também para as libertações e emancipações. O que significa dizer que essas entidades têm agência em relação ao próprio ser e existir. Ser histórico não é apenas sofrer os efeitos do tempo e do lugar, mas também e sobretudo ser agente das próprias transformações, ou seja, ser ativo quanto à própria identidade e existência.
186
Atos e Artefatos dominantes com vistas a fixar um modo de ser e uma forma de existência como a única válida para todos. Não há filosofia universal; se isto parece contradizer o bom senso, isso se deve a que esse “bom” tem um sentido particular excludente.
Os conceitos de pluralismo, de policentrismo e de multirealizabilidade, por conseguinte, implicam duas consequências que põem em questão o modelo padrão de historiografia da arte e também os modelos teóricos das filosofias da arte mais difundidas, os quais seguem implicitamente o esquema da história única, progressiva, com uma única origem, um único percurso e um único final, pelos quais toda e qualquer forma de arte e todas e quaisquer obras de arte necessariamente ocupam uma posição única na série e na hierarquia93. O sofisma, ou melhor, a imposição, consiste em pensar todas as manifestações artísticas humanas, de todas as culturas e civilizações, como pertencendo a esta única história cujo parâmetro de plenitude e de efetividade é dado pela história que se desenrola no território europeu e que tem o Egito e a Índia como antecessores e Nova Iorque como ponto de chegada.
93 E. Shohat & R. Stam, 2006; 1998; D. Carrier, 2008.
Tanto Danto quanto Gadamer, assim como Heidegger antes deles, implicitamente seguem esse modelo, ao pensarem e julgarem toda e qualquer arte e obra de arte a partir de um ponto de vista unificador pelo qual os múltiplos centros culturais antropomórficos e as múltiplas histórias de formação de tradições artísticas e culturais são submetidas, subsumidas e hierarquizadas, primeiro, numa única série temporal; depois, num único esquema de construção; e, por fim, avaliadas por uma única baliza de complexidade e plenitude, baliza esta que constitui seja a essência pura seja a forma original e originante da arte, nisso seguindo a ideia platônica e doutrina da história ao modo cristão hegeliano. Que este modelo mais exclua e menos compreenda, qualquer iletrado culto o pode ver, pois se verá como dali excluído.
de arte no qual a experiência estética não separa os agentes em artistas e espectadores, ao mesmo tempo em que a obra, pensada como evento e como agenciamento, se efetiva como uma experiência de liminaridade na qual os partícipes são transformados ao participarem do agenciamento que é a obra94. A arte e os seus efeitos estéticos são então pensados como sendo na base transformações transformadoras, o que permite a Erika revisar a história das teorias da arte e assim recuperar a dimensão ativa da arte, mas com o adendo que esta atividade e eficácia, enquanto provocam transformações, são propriamente efeitos emergentes e não apenas realizações de possibilidades já dadas.
Atos e Artefatos 187 Experimentação e performação
Diretamente articulado a estes conceitos, na estética do performativo, pensada como estética do poder transformador da arte, introduz se o reconhecimento de que a atividade artística é mais policêntrica do que a imagem eurocentrada pode mostrar. Com efeito, ao revisar a história da arte do teatro, tal como essa arte se estabeleceu na modernidade e na contemporaneidade europeia, Erika mostra que a arte do teatro europeu está perpassada e transformada por suas conexões e reapropriações de tradições artísticas e teatrais de todos os continentes. O policentrismo da arte é tanto geográfico quanto histórico, ou seja, antropológico. A imagem da arte do teatro nada tem a ver com as imagens que Heidegger, Gadamer e Danto 94
O diferencial das teorizações que são sintetizadas nas obras de Erika Fischer Lichte e David Davies, enquanto consumam uma analítica e também um paradigma capaz de compreender a arte contemporânea sem renegar seus aspectos não clássicos e não modernos, está em reconhecer de saída e em incluir no conceito os aspectos agenciais, experimentais e performativos das artes e sobretudo das próprias obras de arte. No caso de Erika, a experimentabilidade e a transformatividade da arte é tematizada explicitamente e associada à Erikaperformatividade.projetaumconceito
The Politics of Interweaving Performance Cultures: Beyond Postcolonialism. 2014.
Santos Dumont e de Hélio Oiticica, um técnico e um artista, as suas ações não são apenas ações técnicas e ações artísticas que fornecem objetos conforme a possibilidades já fixadas do fazer técnico e do fazer artístico prévio. As suas ações e performances transformaram o “estado da arte”, as suas obras foram e ainda são “disruptivas” no sentido de que tornaram obsoleto o que antes havia e era possível. Eles fizeram objetos que antes não existiam e até então eram impossíveis. Na base da ação deles está a prática da experimentação e da transformação em relação aos agentes e as coisas. Mais ainda, o seu fazer técnico e artístico experimenta e transforma, ou seja, faz variar, a própria tecno arte, os modos e formas de agir e fazer. Além disso, ambos, ao fazerem seus experimentos e obras, fizeram a si mesmos diferentes, se alteraram para se apropriarem para a condição exigida pela efetividade de suas próprias obras. Ilude se quem pensa que eles já estavam prontos para suas ações e obras. Santos Dumont não apenas fez um objeto que antes não existia, um avião, e assim tornou possível a arte de voar efetiva e eficaz, ele também se transformou e se tornou um aviador, experimentou, aprendeu e se tornou um homem capaz de voar. Ele fez um avião e se fez aviador no mesmo processo geracional e criativo. Porém, isto
188 Atos e Artefatos supõem como válida para a arte em geral, que pressupunham sempre a originalidade e unicidade autocontida da arte moderna europeia, espelhadas que são na falsa imagem metafísica e teológica da causa sui Os. conceitos de agência e de performance têm um papel decisivo na revisão das teorias da arte e estéticas filosóficas, sobretudo por delimitarem negativamente o primado do complexo estético, perceptivo e passivo atribuído à experiência da arte desde Kant. A partir desses conceitos, tal como Davies e Erika os elaboram, a arte e o artístico, mas também as obras de arte, têm a ver primariamente com o atuar, com o agir, com o fazer e o perfazer, tanto em relação ao mundo quanto em relação aos artistas e espectadores. Que esta seja uma característica intrínseca aos objetos técnicos, fica evidente ao justapormos as obras de arte contemporâneas e as obras técnicas e tecnológicas.Nocasode
A base prática e pragmática são as atividades nas quais entidades são identificadas e reconhecidas, as quais, elas mesmas, enquanto unidades são já coletivos e aglomerados e fases de atividades. Os conceitos de natureza e de artefato, nos quais se entrecruzam arte e técnica, humano e cultura, são perpassados pela multirealizabilidade. Aqui interessa pensar nessa ação (Tätigkeit) enquanto ela é a própria transição e mutação em curso (Aktivität)95. Não apenas no 95 F. Nietzsche, 1988; W. Humboldt, 2006.
Um exemplo atual está na ação e nas performances artísticas de Mariana Manhães. Nela é a própria arte que é transformada e suas obras de arte são tais que não podem ser classificadas nas formas e nos gêneros de arte anteriores: as suas obras são disruptivas no plano mesmo da arte e também exigem de nós uma recategorização transformadora. Na ação artística de Mariana Manhães a indiferença e a experimentação ontológica é trabalhada de maneira explícita, pois suas instalações e objetos artísticos não se deixam mais categorizar como isto ou aquilo: nenhum tipo ou gênero de obra de arte lhes cabe. As suas obras são outra coisa, ou melhor, sobre coisas. As obras e instalações, ou experimentações, como Fissuras (2009), Thisthose (2011), Era #1 + Toda palavra tem uma gruta dentro de si #1 (2017), escapam dos enquadramentos categóricos do tipo é isto e não é aquilo, é deste tipo e não daquele outro etc. É arte, mas não é uma produção de meros artefatos; é técnica, mas não é uma produção de meros instrumentos e apetrechos, e é também tecnologia cibernética. O que a artista faz e premedita, ao reiterar diversificando as experiências de Dumont e Oiticica, implica uma outra ontologia e exige assim uma outra antropologia, pois é nisso e em relação a isso o em que o seu agir se mostra liberto.
Multirealizabilidade
Atos e Artefatos 189 não foi um salto e menos ainda implicou a anulação do que era antes, como mal entendem Heidegger, Gadamer e Danto, pois, para isso ele fez experiências e se fez apropriado na reiteração das experiências na sua experiência construtiva.
190 Atos e Artefatos sentido de uma alteração que faz com que não nos possamos banhar duas vezes na mesma água do rio da existência, como disse Heráclito, mas antes no sentido de uma alteração que transforma um rio fazendo o se ramificar em vários, como ilustra o delta do Lena, na Rússia.Os conceitos de experimentabilidade e de transformatividade são insuficientes para apreender este tipo de arte e de obra de arte.
O fundo que é explorado e trazido à tona nas obras de Dumont, Oiticica e Manhães, apenas para mencionar alguns contemporâneos, se deixa apreender pelos conceitos de realização múltipla e multirealizabilidade, os quais elaboram e sintetizam o princípio da indiferença ontológica que se expõe e realiza na diversidade e na pluralidade ôntica e ontológica. Com efeito, a tese do pluralismo ontológico, enquanto implica a indiferença ontológica entre ser e ente, com base no conceito de multirealizabilidade, tem como implicação imediata o fato e a exequibilidade de um mesmo ente suportar diferentes seres e um mesmo ser se efetivar em entes diferentes. Os técnicos e os artista exploram este aspecto de fundo e o trazem para frente, o revelam: uma arte e uma técnica tornam efetiva a realização múltipla dos entes e dos seres; uma obra de arte e uma obra de técnica são implementações da multirealizabilidade das coisas e dos seres das coisas; e as próprias artes e técnicas se realizam múltipla e diversamente. A experimentabilidade, portanto, explicita a multirealizabidade ontológica, a indiferença quanto à essência e à origem. Esta conexão dos conceitos de pluralidade, experimentabilidade, transformabilidade e de multirealizabilidade, entendida como articulação ontológica de fundo e, por isso, indicadora das condições de existência e de identidade para entidades, permite pensar a condição da arte e da técnica contemporânea como uma transformação ontologicamente diversificante do artístico que leva o mundo e o humano, mas também a natureza, para além dos seus limites estéticos e semânticos. A experimentabilidade e o agir na direção da liminaridade exploram a multirealizabilidade e a diversificabilidade das entidade e do ser das entidades, sobretudo do seres e das entidades humanas.
A multirealizabilidade ontológica inclui quatro conceitos: o conceito de ser (identidade) que se realiza de múltiplos modos ou em múltiplas entidades diferentes; o conceito de entidade que se realiza (existência) em múltiplas formas ou modos de ser; o conceito de transição e transformação ontológica ou de entidades (entes) que transitam entre identidades (ser); e, por fim, o conceito de transição e transformação ôntica ou de identidades (seres) que transitam entre entidades (entes). Em outros termos: o ser identidade de uma entidade é indiferente a matéria que a realiza; e, vice versa, a entidade é indiferente ao ser que nela se instancia. Indiferente no preciso sentido de que isso varia ou isso é variável sem perdas, ao se exacerbar o que havia proposto Lavoisier ao dizer que tudo se transforma e nada se perde. A partir dessas ideias podemos pensar o vir a ser arte de objetos naturais e de artefatos, e também o seu deixar de ser arte, de modo naturalizado, destranscendentalizado, desidealizado e não essencialista.Nãoé
Atos e Artefatos 191
A realização múltipla, depois de Lavoisier e Darwin, não é aquela de um universal que se instancia em muitos particulares. Depois de Schleiermacher e Frege, este par conceitual universal particular foi eliminado das teorias lógicas e ontológicas de fundo. Esta eliminação nos libera para pensar a variação e a transição dos entes e sobretudo do ser dos entes, com a ideia de que o próprio conceito, ou universal, varia e transita, tal como foi explicitado no parágrafo §9 da Begriffsschrift 96 de Frege e nos parágrafos §§ 139 144 da Dialektik de Schleiermacher97 .
apenas uma tese ontológica, mas sim também e prioritariamente hermenêutica: a apreensão e a compreensão da arte e das obras de arte implicam a apreensão e a exposição de enraizamentos filogenéticos e ontogenéticos multitemporais, multihistóricos e policêntricos. Daí que as definições monológicas e monocêntricas das artes sejam ineptas para a crítica, para a heurística, para a interpretação e sobretudo para a experiência artística das obras de arte, sem falar da sua incapacidade em apreender a história da formação da 96 G. Frege, 2007. 97 F. Schleiermacher, 1988.
192 Atos e Artefatos arte e das obras de arte. O conceito de multirealizabilidade é explanatório nesse ponto. Este conceito é um corolário dos conceitos de pluralismo ontológico e de policentrismo histórico genealógico, pois admitidos esses dois conceitos é uma consequência necessária que as artes se realizam de modo múltiplo e, também, que uma arte e uma obra de arte sejam multirealizáveis. Isso parece se contrapor a ideia de unicidade e de singularidade da obra de arte, mas é tão somente a consequência da ausência de essência, seja genérica seja individual, e da liberdade em relação à origem, que vigora nas obras técnicas e artísticas, mas também no próprio humano. O pluralismo e o policentrismo implicam, por exemplo, que Música e Dança se realizem multiplamente, ou seja, que haja múltiplas realizações de Música e de Dança. Porém, isto não apenas no sentido de haverem várias obras musicais e coreográficas. O pluralismo e o policentrismo implicam que Música e Dança sejam elas mesmas múltiplas, para além ou independentemente de haverem muitas obras de dança e de música. Não é que haja várias entidades músicas, mas sim que há vários seres música. Em termos histórico genealógicos, isso implica admitir se a poligenia das artes e o policentrismo na história das artes. O ponto empírico é a admissão da poligenia para as artes. O ponto conceitual é o pluralismo ontológico. Note se que a poligenia é compatível com o monismo conceitual, pois se o conceito fosse a priori, ideal ou transcendental e até mesmo natural, as múltiplas gêneses e realizações poderiam ainda ser reiterações do mesmo conceito. Por conseguinte, em seu sentido forte, o ponto ontológico e hermenêutico consiste na formulação de um pluralismo ontológico associado à poligenia e à multirealizabilidade, ou seja, na recusa do essencialismo. A analogia aqui é com o relativismo linguístico, pela qual as línguas e gramáticas são singularidades. A hipótese contrária seria a ideia de uma lógica estrutura universal multirealizável, como é o caso da hipótese da gramática universal de Chomsky98 e da lógica universal Husserl99. Nesse caso, a pluralidade seria redutível à unidade desde que se demonstrasse a 98 Linguagem e Mente, 1998, p. 67. 99 Investigações Lógicas, vol. 2, 2007, § 14, pp 367 69.
Insubstituibilidade
Na teoria madura de Gadamer, uma obra de arte é algo único e insubstituível, embora seja como qualquer outra obra de arte, ou seja, um objeto que porta um sentido e que resultou de uma transformação ontológica. As obras de arte, em seu caráter insubstituível, não são meros suportes de sentido “de modo que o sentido também poderia ser colocado sobre outros portadores. O sentido de uma obra de arte repousa muito mais no fato de ela estar presente”100 . Esta insubstituibilidade é determinada pelo fato de “nela estar propriamente presente aquilo ao que ela se refere” , o que a torna não “repetível” e assim não “substituível”101. O ponto de Gadamer é que uma obra de arte é insubstituível porque apresenta “algo de modo que ele esteja dessa maneira presente em sua plenitude sensível”, 100 2010, p. 174. 101 Idem, p. 178.
Apenas o nada é a mesma coisa. A existência implica o pluralismo e a não equivalência. De fato, uma consequência imediata do pluralismo ontológico, e nisso está a diferença em relação ao relativismo e ao igualitarismo, está em que as diferentes entidades (entes) e os distintos seres (identidades) não são intersubstituíveis e menos ainda equivalentes. Uma cultura não é substituível por outra; uma obra de arte não é substituível por outra, do mesmo modo que um bebê não é substituível por outro. Admitir essa insubstituibilidade generalizada, ao menos para os humanos, mas também para as espécies vivas, é introduzir o pluralismo e a multirealizabilidade no cerne ontológico da vida e da existência. Na teoria clássica, cada entidade tinha valor porque realizava o mesmo universal, mas esse valor era exclusivo do universal; sob uma teoria pluralista, o valor está na diferença própria a cada individualidade.
Atos e Artefatos 193 monogenia. A condição histórica, naquilo que ela indica que fatores constituintes e compositores, em termos ontológicos, advém de externalidades aleatórias, se sobrepõe e faz caducar a monogenia como também sendo apenas mais uma contingência.
Atos e Artefatos mas de tal modo que seja impossível “que este algo aí apresentado” possa “ser apreendido e estaria ‘presente’ de uma forma diversa da que se dá por meio do fato de ela se apresentar de um modo tão eloquente.” A obra de arte resulta de uma “ação configuradora” que condensa “um construto que veio a ser apenas assim e que se tornou uma figura única”
194
102 .
A articulação teórica aqui em curso pressupõe que isso se aplica ao humano, individual e coletivo, mas sobretudo às formações e histórias culturais e artísticas das diversas comunidades humanas. As múltiplas culturas humanas (línguas, técnicas, estilos) são realizações da humanidade ontologicamente plenas e por isso mesmo insubstituíveis e únicas. As artes yanomami, yorubá e japonesas são “configurações” que realizam o artístico e apresentam sentidos de modo único e irrepetível. Se é única e insubstituível, então não é equivalente e menos ainda mera repetição da mesma coisa. A compreensão dessa consequência é decisiva para a revisão dos conceitos clássicos de “universal” e de “particular”, mas também de global e local. Na tese pluralista e policêntrica, as entidades não são repetições particulares de um mesmo universal, mas sim realizam de modo especial e frutífero um universal que sempre se realiza diversamente.Do ponto de vista apenas material e biológico, um embrião humano já é único e insubstituível. Um embrião humano pode em tese vir a ser um bebê humano em todos os úteros humanos, ele não recusa nenhum, eles não recusam nenhum. Um bebê humano pode aprender qualquer uma das mais de 7000 línguas e culturas humanas, ele não recusa nenhuma, elas não recusam nenhum. Assim como um embrião humano é insubstituível, as línguas e culturas também são únicas e insubstituíveis, mas são generosas e hospitaleiras e não fazem distinções para quem chega aberto à diferença. Um embrião yanomami criado entre yanomamis será um yanomami, falará e pensará e agirá yanomami, mas se for criado entre japoneses será um 102 2010, p. 177.
Atos e Artefatos 195 japonês, falará e pensará e agirá japonês. E poderia ser francês, alemão, yorubá. Um embrião humano se realiza como humano de tantas formas quantas há de se ser humano. E os múltiplos modos de ser humano não recusam nenhum embrião humano. O ser (humano) se realiza multiplamente, o ente (humano) se realiza multiplamente, pois um Yanomami pode conversar e entender uma Japonesa e vice versa, eles podem aprender como se é um humano um com o outro, embora sejam insubstituíveis, o ente (indivíduo) e o ser (cultura). Cada realização é única e vale por e em si mesma, não substitui ninguém, mas é também passível de transição e transformação, pois essências fixas é que não são, visto que isso que é nomeado por esses nomes de identidades é a confluência e a síntese de uma pluralidade com muitas raízes. Levar a sério a diversidade e a pluralidade é conceder a plenitude ontológica às diferenças e localidades, recusando assim toda mesmidade que se sobreponha às diferenças: a mesmidade e a universalidade são projeções do reconhecimento das diferenças e de seu poder realizador. Em outras palavras, é pela diferença que o universal se realiza. Não há humano genérico ou universal: há apenas humanos particulares e locais. O mesmo vale para as artes e para as obras de arte: não há arte genérica e universal: o que há em termos artísticos é sempre particular e local, mesmo quando seja de alcance e reconhecimento globalizado. Modos de se fazer Com efeito, ser yanomami, ser yorubá e ser japonês são modos ou formas de ser e se realizar como humanos. O humano se realiza plenamente como yanomami, yorubá e como japonês sem nenhum resto, sem nenhuma falta. E uma pessoa particular yanomami ou de qualquer outra cultura, se realiza plenamente como humana tanto quanto uma japonesa. E, ainda assim, ser japonês não é a mesma coisa, não é igual, não equivale a ser yanomani e yorubá, e vice versa. Ser yorubá, ser japonês e ser yanomami são únicos insubstituíveis. Ser um e ser outro realiza o humano plenamente, mas distintamente.
196 Atos e Artefatos Ser yanomami é ser humano integralmente, ser japonês é ser humano integralmente. Nenhuma falta. Todavia, ser yanomami é não ser japonês, e vice versa. Como indicou Balibar103, a negatividade ou finitude humana implica a multiplicidade. Se um yanomami for forçado a ser japonês, isso será a sua morte em vida, e vice versa; se a forma de vida japonesa for forçada a adotar as características e propriedades da forma de vida yanomami, isso seria a sua morte, e vice versa. A humanidade yanomami não é substituível pela humanidade japonesa, yorubá ou grega. Assim, embora Hipátia de Alexandria, Maria Escolástica da Conceição Nazaré, Davi Kopenawa e Yayoi Kusama tenham sido e sejam pessoas humanas e sábias, exemplos de vida e de dignidade, o foram em contextos culturais, sociais e civilizatórios muito diversos, de modo que os sentidos e significados, as heranças e os propósitos, os passados e futuros pelos quais elas pautaram e orientaram suas vidas, são muito distintos. Mas, não se trata de relativismo: antes, se trata do pluralismo policêntrico multirealizável, antropológico e ontológico, que é a condição humana e também a condição do artístico. O pluralismo e o policentrismo, ontológicos e antropológicos, têm uma única implicação direta: a não substituibilidade e a não equivalência das pessoas (entes) e dos modos e formas de vida (ser) humanas. Todos são humanos, mas não são o mesmo humano e a mesma pessoa. A multirealizabilidade é intrínseca ao humano e assim a multiplicidade e a variedade. Além disso, o pluralismo e o policentrismo implicam a impossibilidade de se estabelecerem hierarquias entre as pessoas e as formas de vida humana. O yanomami não é superior ou inferior ou igual ao japonês ou ao yorubá, enquanto humano. Dizer isso é fácil, mas praticamente não há nenhuma cultura ou civilização que não se considere a melhor e a mais avançada realização do humano, eis aqui um tabu difícil de vencer, o preconceito da superioridade e do progresso. O racismo, o etnocentrismo, o sexismo, o elitismo etc., todos bebem na ideia de que 103 Universels: Essais et conférences, 2016.
Atos e Artefatos 197 alguns são mais e outros menos humanos e sobretudo recusam o pluralismo e o policentrismo, enfeitiçados pela própria imagem.
A consequência incontornável é o pressuposto da tese da mutação das espécies, tal como Darwin formulou, a saber, o não essencialismo. Ou, dito em termos positivos, nietzschianos, a generosidade liberdade da vida e do real, seja lá o que isso seja. A vida, a energia, a matéria, transforma se e perfaz se multiplamente sempre diferindo de si mesma e sempre mutando se e multiplicando se. Nenhuma forma, nenhuma essência é capaz de segurar a coisa. A vida, o humano, a arte isso muda, difere se, multiplica se. Mas, o essencialismo é apenas a outra face do universalismo. Um exige o outro.
Por isso, Husserl e Chomsky, universalistas estritos, defenderam a tese da existência de uma essência da linguagem, uma linguagem universal, ou de uma gramática universal, que presidiria todas as línguas particulares e seria o universal comum a todas elas e também a sua essência última. Chomsky implica nesta tese a existência de uma natureza humana, sem perceber que supõe uma natureza intransitiva. Pensar de modo não essencialista é pensar de modo não universalista. E aí novamente estamos diante de um tabu, pois o argumento da remissão ao universal está na base da validade em filosofia e ciência.Uma abordagem pluralista admite de saída uma multiplicidade de formações artísticas, uma multiplicidade de histórias e gêneses diferentes para artes e obras de arte, ou seja, pressupõe que a variedade e a diversidade da arte e das obras de arte seja um dado ontológico e não um aspecto negativo ou decadente. Em outras palavras, “arte” e “obra de arte” não são como os “dinheiros” e as partículas subatômicas que são sempre intercambiáveis em termos de valores idênticos e, assim, embora tenham um valor particular e local, são universais e intersubstituíveis sem perdas. As diferentes artes, históricas de formação artísticas e obras de arte são, ao contrário, insubstituíveis por serem universais em outro sentido: elas são únicas e irrepetíveis, elas têm valor por si e em si mesmas, tanto quanto uma forma de vida particular.
No caso da arte, este posto de paradigma universal e global, diante do qual todas as artes e todas as obras de arte são medidas e julgadas, tem sido ocupado pelo conceito de “belas artes” configurado na modernidade europeia, tendo como modelos anteriores a arte egípcia e a arte grega clássicas. Seja qual for o aspecto da arte, das práticas e das técnicas, da matéria e da forma das obra de arte, o tema, o padrão, a gênese, o esquematismo ou o conteúdo, tudo sempre é apenas mais ou menos particular, mais ou menos global, mas nada é universal e normativo a ponto de ser a baliza e o modelo para todas as demais. A normatividade provém de fora da arte tanto quanto a normalidade, pois se originam da recusa e da abstração do fundo transitório e múltiplo do real e da vida.
198 Atos e Artefatos Todavia, o principal de uma abordagem pluralista está na eliminação de um modelo universal e final para a arte e sobretudo para as obras de arte, ou seja, a pluralidade policêntrica elimina a ideia de que toda arte e toda obra de arte seja um estágio de um único processo em direção a uma perfeição que finalizaria a atividade artística por completar a sua tarefa ao executá la de vez. O argumento para essa eliminação é análogo aos argumentos contra o racismo, o sexismo e o etnocentrismo: o ser e a existência postos como perfeição e como universal normativo para todos os seres e existências é tão somente um ente particular forçado como ser universal e imposto por meio de violência como modelo da perfeição e de acabamento.
Já faz tempo que sabemos que o planeta Terra era diferente a poucos milhares de anos, que sua flora e fauna eram outras, que havia espécies hoje inexistentes e que as atuais espécies são tanto o resultado da diversificação progressiva quanto acidental das que antes havia. No caso da espécie humana, sabemos que os nossos antepassados não eram assim como somos hoje, biologicamente e mentalmente, mais ainda, que havia outras espécies e que somos o resultado de entrecruzamentos e diversificações progressivas e acidentais. Deste saber facilmente se inferem duas consequências óbvias mas quase insuportáveis: o que somos e o que aí está é uma fase de uma transição semovente; e esta transição não vai em direção a uma
Exercícios experimentais Na formulação impecável de Jean Luc Nancy, no livro Être singulier pluriel, ser humano é ser singular, cada um e cada forma de vida humana é única e insubstituível, ou seja, não são cópias ou repetições de uma mesmidade, e por isso mesmo, ser humano e ser uma pessoa humana é ser plural, de modo incontornável. Não somos, enquanto indivíduos, repetições ou clones de uma mesma entidade ou de um ser, e também nenhuma forma de vida ou cultura é uma repetição ou cópia de outra. Uma outra maneira de pensar isso é a partir da distinção entre possível e virtual, e real e atual104 . Esta distinção é aplicável integralmente às artes e às obras de arte. Todavia, com o advento da ciência e da técnica modernas, esse pluralismo policêntrico multirealizável foi potencializado e expandido com a aceitação explícita da transformabilidade e mutabilidade generalizada, mas sobretudo pela ideia e prática da experimentabilidade. A expressão “exercício experimental da liberdade”, com que Mário Pedrosa procurou apreender a arte contemporânea de Lygia Clark, Oiticica e outros, indica com clareza essas teses. Dito ao contrário: os conceitos de transformabilidade, de pluralismo, de policentrismo, de multirealizabilidade e de experimentabilidade explanam e premeditam o conceito de exercício experimental da liberdade associado à arte contemporânea, ao explicitarem a ideia de atualização de uma virtualidade por diferenciação, recusando assim a ideia de que nas artes apenas se realizam possibilidades já dadas. 104 G. Deleuze, 1968; P. Levy, 1996.
Atos e Artefatos 199 perfeição ou fim que seria o acabamento e a realização do inteiro passado. Não estamos indo do pior ao melhor, nem nós e nossos artefatos técnicos e artísticos são degraus e ramos de uma única árvore que se completa com um único fruto. Não é necessário dizer Worstward Ho, como disse Beckett, mas temos que reconhecer que, se o nada não nos espera, isso se deve ao fato de que, quando acabarmos isso, já não seremos os mesmos.
106 As relações naturais e outras comédias, 1976.
200 Atos e Artefatos A arte contemporânea, e também a tecnociência contemporânea, consiste no exercício da experimentação com a própria liberdade (transformabilidade, multirealizabilidade) da natureza (matéria, energia, vida). Nesse sentido, o contemporâneo é esse estar “Brincando nos Campos do Senhor”, é este “jogar livre” com as entidades e o ser das entidades, quer isso seja visto como uma ação positiva ou negativa, construtiva ou disruptiva. Que a arte tenha a ver com experimentação e com performação já está bem estabelecido105, mas que ela por isso seja também um exercício de transformação ontológica ainda precisa ser explicitado e reiterado. A ciência atual e as artes atuais, enquanto práticas e cursos de ações, são experimentais de ponta a ponta, fundadas que estão no princípio da transformabilidade das coisas. No caso da arte brasileira, esta experimentabilidade já era operante antes das transformações do pós guerra, pois Flávio de Carvalho já na década de 30 denominava de “Experiência”, e as numerava em séries abertas, tal como Dumont, as suas intervenções mais ousadas. No campo das artes poéticas, as figuras de Guimarães Rosa, com seu Grande Sertão: Veredas, de 1956, e Paulo Leminski, com seu Catatau de 1975, embora mostrem o que a língua e a letra podem aos serem submetidas à experimentação que as faz transitar, têm ambas como antecessor não menos experimental nas figuras únicas do poeta Sousândrade, que na obra O guesa já havia brincado e feito folguedo da língua mátria com maestria, e do polimata transgressor Qorpo Santo e suas experimentações antecipatórias do futuro106, que já indicava no próprio nome artefatual que era “Uma certa entidade em busca de outra”, figuras essas que não recuaram da tarefa de fazer transitar a própria língua. Nessas obras, do mesmo modo que nas experiências de Flávio de Carvalho, estava em curso o mesmo processo de experimentação e de transformação que se vê na artesania de Santos Dumont e nas artes de Hélio Oiticica.
105 R. Cohen, 2009; R. Melim, 2008; E. Mostaço, 2009; N. Ramme, 2007.
Atos e Artefatos 201 Indexação e enraizamento
A experimentação transformadora das técnicas e das artes ganha efetividade ao ser legitimada como forma fundamental e incontornável do conhecimento. Se Galileu podia já proclamar que apenas aceitava como conhecimento aquilo que passava no teste da experiência e da experimentação, foi no século XX que este princípio se fez produtivo, quando também no plano das matemáticas e das lógicas se aceitou experimentar outros procedimentos e invenções. A arte contemporânea, assim como a técnica e a ciência, são os frutos maduros da liberdade que é a base e também o efeito da experimentabilidade.Tudooque
está implicado nos eventos artísticos está indexado cultural e antropologicamente: a arte, como conceito; as atividades artísticas, como práticas; as obras de arte, como artefatos; os materiais, como suportes e meios; as linguagens, como intermediadores; os instrumentos, como utensílios; e os temas e conteúdos, como significados.
Tudo na arte está historicamente e geograficamente localizado e indexado a culturas e comunidades particulares. Não há arte e menos ainda obra de arte universal ou genérica desvinculada de qualquer origem e modo de produção. Toda arte é de uma época e toda obra de arte tem uma gênese específica. Enquanto são artefatos e mercadorias, as obras de arte obviamente circulam e transitam entre culturas e épocas, mas ainda assim elas não são “universais” atemporais, pois tanto seu conteúdo quanto seu sentido se alteram nesses translados. Nós ainda apreciamos as esculturas e tragédias gregas, mas apenas porque nossa cultura e língua estão vinculadas àquele começo diferencial. E mesmo assim, o sentido e o significado, mesmo como arte, já não é o mesmo; o mundo é outro, a função é distinta, o sentido de sua vigência mudou. O que é universal é a ação construtiva e expressiva humana que está na base de toda e qualquer arte, mas ela é um indeterminado ou, em outros termos, uma pulsão multirealizável e por isso sempre plural. E apenas enquanto prática, produto e expressão humana, é
202 Atos e Artefatos que obras de arte valem e transitam entre diferentes épocas e culturas. Com o advento das técnicas industriais e das ciências experimentais e sua disseminação e implementação em todos os domínios e práticas de nossa existência, conformando o que se denomina civilização industrial e científica, também as artes sofreram uma transformação que vincula a arte moderna e sobretudo a arte contemporânea a esta época de modo incontornável. Muito da arte moderna e da arte contemporânea ainda é medieval e antigo, no sentido de que certas práticas, conteúdos e formatos artísticos são resquícios ou retomadas de formas e hábitos cuja origem é medieval e antiga. Afinal, pintar e esculpir corpos e rostos humanos é algo que fazemos desde a pré história; tirar sons ritmados e conforme a uma escala também. Então, na análise e na interpretação é preciso distinguir o que é simples reiteração de formas e hábitos tradicionais daquilo que é inovação e prática moderna e contemporânea, ou seja, daquilo que é arte nova. O que marca a arte contemporânea é a apropriação de conteúdos, de formatos, de materiais e de práticas cuja existência é derivada da condição humana fundada na técnica industrial e na ciência experimental que tem como pressuposto de fundo a transformabilidade, a readaptabilidade e a transitoriedades de todas as coisas. Técnicas industriais estão no cerne de instrumentos musicais, tintas, tecidos, papéis, enfim, utensílios e suportes das artes. Os trens, os navios, o telefone, o rádio, o gravador de sons e de imagens, a eletricidade e o automóvel, a televisão e o cinema, o avião e a bomba atômica, as viagens espaciais, os transplantes de órgãos etc., tudo isso está entrelaçado com o sentir, pensar e o fazer artístico contemporâneo, mesmo ali onde a arte se quer primitiva e antiga, como é o caso de Angélica Liddell. Todavia, estas seriam apenas associações externas. A minha hipótese principal é que a arte connão é apenas contemporânea das técnicas e ciências contemporâneas, mas antes que é uma irmã gêmea delas e uma gêmea univitelina, no exato sentido de que elas têm sua origem na mesma célula matriz. Pasteur e Dostoievski, Joyce e Turing, Santos
temporânea
Muito do que chamamos de ambiente e cena artística contemporânea e também de obras de arte contemporânea, são situações, práticas e produtos de experimentação no exato sentido em que essa palavra designa as situações, práticas e produtos de laboratórios técnicos e científicos típicos de centros de pesquisa e universidades. Todavia, a criação livre, independente de teoria, mas agora baseada na experimentação, constitui o cerne contemporâneo da arte contemporânea. E é nesse contexto e situação que o conceito de “experiência”, de “experimentação”, ganha relevância ao liberarem as artes para sua autocompreensão pluralista e policêntrica. O pluralismo e o policentrismo alcançam um outro patamar ao serem tanto o efeito quanto a condição da experimentação livre. Mas, o que é mais acentuado e explicitado é o não essencialismo. Com efeito, “experimentar” e “fazer experiências” significa a variação das condições de existência de uma entidade, a alteração de sua composição, estrutura ou a situação, a introdução de elementos estranhos, a retirada de partes, a submissão dela a novas situações e condições, o seu isolamento ou aglomeração forçada com outras entidades, sob a suposição de que com isso serão instauradas outras situações e entidades, sobretudo outras identidades antes não dadas, ou seja, sob a suposição de que isso provocará uma transformação e novas
Atos e Artefatos 203 Dumont e Mário de Andrade, João Gurgel e Hélio Oiticica, Guimarães Rosa, Lygia Clark e César Lattes, Tunga e Newton da Costa não são apenas “contemporâneos”, eles compartilham a mentalidade, o espírito da experimentação como base do conhecimento e como guia para a ação e a construção. Não apenas o contexto da arte atual, mas também o seu pretexto é técnico científico: a arte contemporânea é uma ação e uma expressão do humano da civilização industrial e científica.Aarte contemporânea é o efeito da experimentação no plano estético e artístico, tal como a ciência e a técnica contemporâneas são o efeito e o resultado da experimentação livre com as entidades e as forças naturais. Com efeito, a arte contemporânea é a arte da teorização, ao ser introduzida e desenvolvida também em cursos universitários com os mesmos aparatos e recursos que as ciências.
204 Atos e Artefatos e outras realidades podem emergir. Estas operações são todas elas atividades que visam alterar, transformar e variar as condições de existência e de identidade de uma entidade, seja um particular seja um tipo. Fazer experiências implica alterar. Mais ainda, a experimentação implica supor que as coisas sejam alteráveis e transformáveis.
Na base da experimentabilidade está a ideia de atividade e de performatividade. Por um lado, fazer uma experiência implica uma atitude ativa, uma ação de alteração ativa em relação a entidades, tipos de entidade, situações e condições de existência. Por outro, fazer uma experiência implica a suposição da plasticidade e da moldabilidade das entidades e dos tipos de entidade. Experimentação e transformação, contudo, podem ser pensadas como apenas de superfície, ou seja, como arranjos e rearranjos que não afetam o ser e o existir das coisas. Mas, assim, não se explicariam os efeitos e as eficácias das artes e das técnicas na instauração e também na extinção de
Pararealidades.issoépreciso supor a experimentação como intervindo no plano ontológico, no sentido da diferenciação entre observação e experimentação, ou seja, da passagem de uma atitude de contemplação ou relação passiva, seja do artista seja do espectador, para uma atitude de participação e intervenção ativas, aos se reconhecer que nas artes se fazem experimentos em busca de novas experiências e novas entidades. As próprias obras de arte são experimentos e o que se busca não é apenas propiciar outras experiências, mas sim instaurar outras situações e outros modos de ser. Fazer experimentos implica supor a transformabilidade das coisas e que as transformações são efetivas no sentido de produzirem alterações nas coisas. Experimentabilidade e transformabilidade se complementam, mas ainda assim é preciso introduzir uma outra suposição ou mudança de atitude: de passiva contemplativa (perceptiva) para ativa construtiva (performativa). No modelo clássico, a arte seria não apenas uma criação de ficções, mas propriamente uma ação fictícia. No plano epistêmico, as proposições artísticas seriam proposições falsas e, no plano ético, mentirosas. Não foi assim
Atos e Artefatos 205 que dela falaram os metafísicos, os cientistas, os moralistas e os religiosos, afinal? Não foi assim que Sólon tratou Téspis e não foi assim que Platão e Agostinho pensaram as artes? Não era esse o argumento de fundo de Hegel para afirmar que a filosofia supera a arte?
Todavia, se abandonamos o plano metafísico, moral e epistemológico, e abordamos a arte do ponto de vista praxeológico e prático, a partir do conceito de agir e de perfomatividade, uma outra imagem pode ser delineada: as artes pensadas como agência e performance de transformação experimental do mundo e dos agentes, como intervenção ontológica em si e no mundo.
Todavia, esse experimentar e fazer experiências pode ser capturado e anulado com conceitos como os de relatividade e de jogo. O conceito de jogo (e também o de transfiguração enquanto ação, de Danto) proposto por Gadamer não apanha o essencial de uma teoria experimental experiencial da arte. A “experiência” implica justamente um caráter ativo e construtivo, portanto, performativo, que o conceito de “jogo” não apreende. Participar de um jogo em geral não implica em se transformar, muito pelo contrário. Participar de uma experiência e fazer uma experimentação sim, nos casos mais radicais, implica em risco e em transformação. O jogo de Gadamer é pensado nos termos de uma música ou peça de teatro que uma vez iniciado se faz necessário seguir suas regras, mesmo no improviso, e no qual se é jogado mais do que se é jogador. A peça, a música, tem início meio e fim e estrutura a ação e os acontecimentos. Ao ator e também ao espectador cabe seguir o jogo e deixar o jogo seguir a sua própria configuração. No jogo da arte, então, algo vem a ser e é, algo a que se deve atender e deixar ser, que é uma verdade, que é o que deve valer, nas palavras de Gadamer. Heidegger vai ainda mais longe com a ideia de que na arte algo vem a ser de modo impositivo e a despeito de nossas ações e decisões. Nenhuma dessas ideias e metáforas estão presentes nos conceitos de experiência e de experimentação, seja na ciência seja na arte contemporânea. A experiência não é propriamente de submissão e de desvelamento: antes, a experiência é uma transformação e uma alteração cujos resultados são imprevisíveis e novidades, ou
antropológica Com efeitos ainda atuantes em nosso pensamento, a pluralidade e a policentralidade foram sistematicamente apreendidas como aspectos negativos desde a fundação da episteme que espelhava e justificava o imperialismo dominador e expropriador da bela eticidade grega antiga. Esta negatividade, ao ser exposta em termos positivos, denomina se simplesmente “multiplicidade” e “transformatividade”. O que foi e ainda hoje é renegado com todas as forças é a diversidade do humano e a pluralidade que o afeta e constitui. Nas artes e nas técnicas essa plural diversidade se mostra efetiva e incontrolável e de tal monta que ela se reflete e passa a constituir o próprio humano e assim amplia a sua diversidade e pluralidade. Sousândrade, afinal, no seu Guesa Errante, não recuou diante da variedade das línguas; ao contrário, experimentou, brincou e perfez a mistura e a miscigenação das várias línguas que nele atuavam. Nas artes e nas técnicas, o humano se experimenta na alteridade e na transição para outras formas de existência e modos de ser. Um centro de poder aprecia as artes e as técnicas que lhe reafirmam o poder e o projetam como dominante. Esta visada fixa a si mesma como a baliza de avaliação do que é e do que não é arte e técnica, e ao mesmo tempo se estabelece como o último degrau da escala de perfeição e como o primeiro degrau de todo o futuro. Moscou e Berlim na década de trinta assim procederam, mas também
206 Atos e Artefatos seja, outras possibilidades e outras verdades, são esperadas. A experiência, enquanto atividade e enquanto construção, não é a reposição de algo, menos ainda a representação ou a reapresentação, mas sim a instauração e a ficção ontológica de entidades e possibilidades. Daí que as ações e obras de Flávio de Carvalho, de Lygia Clark, Lygia Pape, Hélio Oiticica, assim como as de Qorpo Santo e Santos Dumont, são “experiências” e “experimentações” e não são de modo algum “jogos”. A diferença está na passagem da “passividade” para a “atividade”, do “deixar ser” para o “fazer e performar ser”, do perceber para o intervir, do descobrir para o atuar perfazendo.
Experimentação
Atos e Artefatos 207 antes delas Paris, Roma e Atenas. Porém, do ponto de vista de uma pluralidade de centros de poder, as artes e as técnicas são pensadas muito mais como intermediadoras e comunicizadoras, ou seja, como formas de interação e interagência franca que permite a mútua convivência.
Todavia, a arte não é reapresentação da verdade do poder e menos ainda apenas uma sua mediadora. Isto se mostra sempre e repetidamente ali onde artistas e técnicos instauram práticas, formas e modos de ser e pensar insubmissos e insurgentes em relação aos poderes dominantes. Este aspecto ativo e liberto da arte é apreendido pelas palavras “experimentação” e “performação” que em geral é pensado apenas em relação a coisas e situações, mas que na arte contemporânea se explicita como força performativa reflexiva, no sentido de que se aplica primariamente aos agentes partícipes da ação artística. O caráter experimental e performativo da arte, agora, sobretudo a partir da autonomização da “arte de performance”, incide nos seus efeitos no próprio humano visando o transformar.
Atos e Artefatos 209 11 ARTES, ARTEFATOS E METAFÍSICA
A ideia a ser explicitada a seguir está dada na equação que faz se implicarem umas nas outras, a arte, o artificial e a metafísica, enquanto são os efeitos e os produtos da introdução dos artefatos na natureza, os quais instauram e também exigem um âmbito de atuação que extrapola o âmbito natural. As artes e as metafísicas são os instrumentos que mostram a realidade que se abre e é tornada possível e disponível pelo aparecimento dos artefatos. O âmbito dos artefatos, o mundo da cultura, precisa ser reiterado e ensinado continuamente, pois do contrário desaparece. Artes e metafísicas são os veículos pelos quais nós passamos adiante esta descoberta ao educar as novas gerações para atuarem nesse campo de atuação. Nossos corpos estão agora adaptados e conformados a esse âmbito, embora ainda sejamos integralmente corpos biológicos capazes de viver naturalmente. A animalidade e a vegetalidade estão em nós e ao nosso redor e não precisamos de nenhuma chave para viver nos seus conformes, embora essa condição apareça para nós como o tabu dos tabus, o horror dos horrores. Quem nos salva dessa atração mortal da existência animal, vegetal e mineral, pois se trata aí de um polo de atração necrológico para a cultura, é isso que denominamos técnica, arte e também metafísica.
o artifício e o artefatual constituem as primeiras manifestações do espírito. Presença de espírito e presença do espírito se mostram ambas pela emergência de ficções, artifícios e artefatos. Hegel e Nietzsche concordam nesse ponto, o espírito é o negativo em relação à natureza, embora concebessem a espiritualidade de modo distinto. De qualquer modo, o espírito é a natureza que corta a própria natureza (“a carne que corta a própria carne”) para se apropriar para o extranatural. Se associamos “natureza” com a inteira physis ou apenas com a inteira bios, não importa, pois o espírito nós o colocamos em outro lugar porquanto se rege por um reisado, um
As ficções que fazem ver O máximo da artificialidade e também da metafísica se oferece para nós como teoria, como proposição e como conceito; esses são os nossos mais sofisticados artefatos e artifícios, os quais são, de ponta a ponta, ficções que permitem ver o que há para além da sensibilidade natural e também nos liberam das constrições da natureza.
210 Atos e Artefatos
A palavra “teoria” tem a mesma raiz semântica da palavra “teatro” e ambas designam aparatos para ver, instrumentos de fazer ver algo que não se mostra por si mesmo tal como é. Porém, esse lugar para ver é um lugar em que se mostra o que se faz, o que nos faz ser o que somos. Na base estão as técnicas e as artes que esquematizam e articulam o corpo, depois estão os artifícios e artefatos que se articulam entre si e ao corpo treinado e ao ambiente, conformando um âmbito retificado de atuação e de articulação. Conceitos, regras, teorias e doutrinas metafísicas constituem uma articulação e uma retificação de segundo nível que instauram um âmbito de sentido no plano mental e discursivo. Com efeito, as metafísicas se estabelecem a partir da ideia de que o inteiro âmbito de atuação é articulado e reticulado de modo análogo ao âmbito de atuação dos artefatos e das técnicas, ou seja, com base na ideia de que a natureza está articulada a partir de fatores não dados e não visíveis provenientes de um agente eficaz transmundano. Uma metafísica faz ver essa articulação do mesmo modo que um jogo teatral faz ver o humano e suas ordenações.Aficção,
Porque a vida não basta, então a arte. “A arte existe porque a vida não basta”, diz o poeta Gullar. Antes, muito antes, disse Fernando Pessoa, “A literatura, como toda arte, é uma confissão de que a vida não basta”. A frase de Pessoa é mais poética e por isso mesmo mais verdadeira. A de Gullar chega tarde e é simplesmente, enquanto tal, falsa, pois soa como artifício, sem ser. A arte existe porque a vida, a natureza, não apenas não se basta, mas se diversifica e diferencia para além de si, exagera e se excede, a ponto de se abastar com a arte. A prova dos nove está no fato de que artistas querem viver, querem mais viver e por isso fazem arte. A arte, assim como a técnica e a metafísica, é o exagero da vida, o gerar para além de si, que, no seu excessivo, nega se a si mesma na busca de um a mais. A vida pode negar a arte; a arte e a metafísica, apenas renegam a vida. O domínio do artefatual A ideia é que na metafísica, antes que ciência, se trata de arte de mostrar e de artifícios para fazer ver, com base em artefatos e métodos ou regras extranaturais. O oposto da atitude metafísica é a mística, cuja marca característica é o silêncio e a paciência ante o natural justamente ali onde fala e constrói o metafísico. A atitude filosófica, que Dilthey denominava “Besinnung”, palavra que indica uma atenção ao sentido, nós a temos praticado desde sempre oscilando entre o campo das artes, das ciências e da mística. Hoje, a falsa opção é entre arte e filosofia, já que escondemos e relegamos para os incivilizados a atitude mística. Todavia, a autocompreensão da filosofia e da metafísica em especial como ciência implica, no fundo, a pretensão de ser uma exposição do que é
A consciência artística há muito reconhece este fato. A frase de Ferreira Gullar, que reitera a frase de Fernando Pessoa, faz ressoar ainda certas tonalidades das teses de Hegel e de Nietzsche, respectivamente.
Atos e Artefatos 211 folguedo, que se liberta do liame natural. Este estar liberto do liame da natureza se apresenta como artifício e como artefato, os quais têm na sua base alguma forma de ação de ficção e técnica.
Mas, como bem percebeu Dilthey, a filosofia e a metafísica, assim como as artes e as técnicas, são artifícios passageiros e transitórios, isto é, históricos, irredutivelmente múltiplos e vários. Os diferentes conceitos chave, tais como “logos”, “ousia”, “esse”, “ratio” e “forma”, são artefatos cuja fábrica apenas em grau e nível se diferencia da fábrica que produz belas estátuas, desenhos, liras e sonoridades, e da fábrica que produz arados, cangas, casas e arcos e flechas. Os conceitos, proposições e teorias metafísicas são artefatos abstratos, portanto, artifícios e ficções para fazer ver o que não se mostra por si mesmo. Isso que não se mostra por si mesmo é o extranatural, ou seja, o esquema e a regra que presidem um campo de ação e instauram o espaço de jogo no qual os artefatos têm papel e função. A natureza é o que se mostra e realiza; o extranatural é o que precisa ser instaurado e reiterado por um curso de ações premeditado.Com efeito, a metafísica e também a filosofia apenas podem ser concebidas como artes, mesmo que de níveis superiores, pois ciência e técnica elas não são. Se as práticas e técnicas são o chão da fábrica, as ciências e as instituições o primeiro andar, as metafísicas e filosofias não estão em outro lugar lá fora, pois são as escadas e os andaimes de inspeção. Os seus conceitos não são naturais e ainda menos universais. Eles incidem sobre o sentido, não sobre a energia; eles apreendem direções e articulações, e não matérias e substâncias; eles articulam significações e não forças; enfim, as proposições filosóficas e metafísicas são semânticas e não causais. Ao se compreenderem como ciências, a filosofia e a metafísica, falseiam a própria condição, ao se pensarem como aspectos da realidade natural quando pertencem ao artefatual.
212 Atos e Artefatos o natural. A pretensão de ser, enfim, uma teoria natural fundada em conceitos e esquematismos que pertenceriam, não ao fazer teórico, mas ao vigir da própria natureza, portanto, de serem apenas espelhos puros e neutros, sem nenhum sentido em si mesmos.
Atos e Artefatos 213 O artifício da filosofia A filosofia consiste na atenção e na reflexão no sentido (Sens, Sinn, Nous), o que nunca é uma propriedade de coisas ou uma coisa dada na natureza. O auto engano dos filósofos e filósofas, ao se pensarem como descobridores de verdades, é do tamanho do auto engano dos artistas quando estes se autoconcebem como representantes da verdadeira realidade. A filosofia e a metafísica não apreendem o natural e o imediato, pois isso se faz a despeito delas. As categorias filosóficas e metafísicas não são tipos naturais, não são por isso mesmo verdadeiras. Os pensamentos metafísicos e filosóficos são da ordem do artificial e do artístico, pois apreendem a instauração do dar se do sentido e dos significados, instauração esta que é da ordem do artefatual e do irreal. A metafísica de Platão nisso não é diferente da “metafísica” das regras que perfazem o jogo de futebol: ambas instauram um espaço de jogo no qual um campo de ação estabelece sentidos para gestos, objetos, atos e eventos.
Deveras, a filosofia e a metafísica são continuações e derivações da introdução de artefatos na constituição de uma vida humana. Na sua base está o mesmo impulso artificializador que está na base das artes e das técnicas. Este impulso é o da autoconstituição do humano enquanto entidade cuja identidade não é natural. Com efeito, o humano em nós se constituiu por arte e técnica, pelo uso de artefatos e pela submissão do corpo e da mente às regras e a esquemas artificiais e ficcionais. A arte, então, é a única imagem que configura a metafísica e a filosofia que não se enganam quanto à própria natureza, ou seja, que não se enganam em relação a si mesmas ao se pensarem como ciência e como técnica. Os conceitos clássicos, como “logos”, “ousia”, “esse”, “ratio”, “veritas”, “bem”, “belo”, “consciência”, “linguagem”, “estrutura” etc., são ficções regulativas, esquemas de inteligibilidade no plano do sentido, e de modo algum podem ser confundidos com tipos naturais. Trata se sempre aí de construtos e de artefatos abstratos de orientação e de compreensão que fazem sentido e jamais expõem proprieda-
Atos e Artefatos des e entidades naturais. Eles têm o mesmo estatuto e a mesma consistência dos teatros e dos atos teatrais, são artifícios para fazer ver o sentido enquanto isso é o que a natureza não tem e não mostra. Quando os portugueses atravessaram o oceano e chegaram nas terras dos Tupinambás e dos Guaranis, o que eles viram e o sobre o que eles se apoiavam e dependiam para viver era natureza por baixo e por cima, mas o sentido que eles davam ao que viam e ao que sentiam se estabelecia na sua consistência e provinha da metafísica que eles traziam nos livros e nas mentes, nos gestos, nos modos e regras de seu agir.
A fixação nessa contraposição, que torna sem sentido o pensamento principal desses pensadores, deve se ao fato de que eles, assim como Platão e Aristóteles, seus mestres, recusam o ficcional e o artístico como falso e como inefetivo. Todavia, as pontes que ligam a ilha Meiembipe ao continente são artefatos e artifícios, elas de modo algum são falsas e menos ainda inefetivas. As metafísicas também não são falsas, mas ficções; mas uma ficção é tão eficaz no fazer efeitos de realidade quanto uma explosão atômica. Se uma transformação revolucionária, disruptiva, ocorreu no plano do pensamento e do sentido no século XIX, esta foi a transformação da filosofia e da arte ao incorporarem na meditação reflexiva (Besinnung), no plano do sentido e da inteligibilidade, os efeitos das tecnologias e das técnicas modernas fundadas nos princípios de Lavoisier e Darwin. O pensamento de que tudo se transforma e de que tudo muda, sem perdas e com ganhos, agora incide sobre o próprio pensar. A conclusão não tarda e diz: tudo o que é possível pensar é ficção. O dizer teórico é um artifício, não uma fotografia. O pensar mesmo é um fazer, um construir, e jamais um intuir e um consentir. O pensamento e a linguagem metafísico filosófica não 107 M. Scheler, 2003; M. Heidegger, 2003; Puntel, 2008.
214
O contrassenso do pensamento metafísico clássico que chega em Schopenhauer e Hegel, mas também em Scheler, Heidegger e Puntel, está na contraposição entre a ficção que nos arranca da natureza e a ficção que nos insere no fundamento de todas as coisas107 .
Atos e Artefatos 215 são espelhos da natureza e menos ainda imitação da forma e da estrutura do real, enfim, não são natureza. O seu efeito não é a verdade, mas o sentido de realidade, seguidamente um sentido de outra realidade. Artes de teatro
O ato de Téspis não cabia na ordem da cidade antiga. Se, depois, este ato foi marcado como a invenção do Teatro, isto apenas revela uma parte da história efetiva. O que se inventava ali era o palco e a exposição pública, o “teatron”, não mais como um ritual sagrado e hierático, pois se sabia fictício e ao mesmo tempo autoral. O espaço do sagrado fora profanado por Téspis, foi o que Sólon bem viu; mas, o sábio não percebeu que assim nascia o “teatro” e o “anfiteatro”, a instituição e a construção que irão marcar a civilização grega e depois a romana e permeia ainda as nossas cidades futuristas.
Onde foram os gregos e os romanos, lá eles construíram anfiteatros e lá reiteraram o ato teatral de Téspis. Que Platão tenha ficado do lado de Sólon não explica tudo, pois ele praticou e expôs a filosofia tal como Téspis havia praticado e apresentado os mitos gregos, subvertendo o rito. O ato teatral se sabe, da raiz às suas mais belas flores, a artefato e artifício. Apenas Sócrates insiste em perguntar, depois de cada evento teatral, mas “o que isso tem a ver com Dionísio?”. O filósofo ainda esperava ver o deus sem nenhum artifício. No seu delírio, forjou um demônio de foro íntimo, e assim recuperava em pensamento o lugar do sagrado! O gesto de Téspis deslocava o mito, libertando o dos lugares sagrados fixos. O anfiteatro é o próprio lugar dos atos irreais ou fictícios pelos quais a realidade se mostra naquilo que ela é e não mais como ela aparece no habitual e no costumeiro. O que incomodou Sólon foi justamente o fato de Téspis mostrar em público o 108 R. Kannicht, Musa Trágica. Die griechische Tragödie von Thespis bis Ezechiel, 1991.
O ato de Téspis108 assombrou Sólon a ponto de este o expulsar da cidade. A antiga sabedoria, aliada que era da mística e do mítico, não suportou a sua própria apresentação pública como simulação.
.
O ato do ator, enquanto agência de ficção efetiva, torna o real e o irreal, o fatual e o artefatual, indistinguíveis. Ao se voltar para o público e confrontá lo, Téspis fez ver aos gregos as suas crendices e realidades. Em vez de seguir o rito, ele desnudou o mito naquilo que era a sua verdade mais profunda: invenção, imaginação, brinquedo e folguedo109. O ato de Téspis, o ato do ator, reafirma o reisado da criança, desloca o mito e também o rito para uma outra função; esta nova função exige um outro lugar, lugar este que não é o local fixo dos cultos. Téspis percebe o poder do lugar por ele descoberto e imediatamente reconstrói esse lugar de forma a dar a ele a mobilidade e a liberdade que ele tanto exige quanto propicia. A partir do palco móvel da soleira de sua carroça, desse pequeno palco improvisado, Téspis jogava para o domínio do fictício a profunda realidade da vida grega, instaurando assim a sua verdade como arte, libertando a e liberando a para vir a ser a arte que funda a cultura ocidental. A libertação do mito grego de sua indexação a lugares fixos e sua liberação para ser atuante em outros lugares, está na raiz mesma da construção de anfiteatros até os confins do mundo. Se hoje vamos ao Teatro Ubro e ao Teatro Álvares de Carvalho, o fazemos seguindo a abertura que o ato de Téspis tornou oportuna. O desassossego de Sólon e de Platão tinha sua raiz nesse pensamento desassombrado diante da arte e da técnica, de uma arte e de uma técnica que se libertava ela mesma de suas amarras serviçais ao culto do sagrado e se liberava para outras funções e outros espaços.
216 Atos e Artefatos fundamento ficcional dos ritos e mitos sagrados, e isto também era o incômodo de Platão diante do esclarecimento sofístico que solapou de vez a sabedoria antiga. Sócrates e Platão, todavia, souberam bem que o lugar que Téspis descobriu também era apropriado para o exercício experimental do próprio saber e conhecimento, portanto, um lugar no qual a sacralidade do saber era passível de ser exibida publicamente como uma farsa. E nisso foram mestres e ases.
109 Heráclito, frag. 52: ain paĩs esti paízōn, pesseúōn: paidòs hē basilēíē
Atos e Artefatos 217 Voz dramática – Linguagem de Máquina
da peça Hamlet Machine, de Heiner Müller, de 1977, embora não seja a primeira, faz ressoar no palco vozes inumanas, vozes que não são mais o efeito de um ato linguístico de um agente humano. Nessa peça se reitera o ato de Téspis, embora agora seja o ator protagonista, a invenção de Téspis, que se recusa a fazer o rito do ator e se volta para público e diz, eu não sou o personagem, eu quero ser uma máquina. Do mesmo modo que hoje se fala em pós humano, em mente pós orgânica e agentes cibernéticos, também os agentes do drama, os atores e atrizes que perfazem uma peça de arte teatral, já não são apenas entidades biológicas do tipo homo sapiens sapiens, sem por isso serem animais e plantas, ou demônios e deuses. O ato disruptivo e insurgente de Téspis, de fazer as vezes e tomar o lugar de Dionísio, em vez de apenas se dirigir a ele, ou seja, o ato de se apresentar na posição de agente, e não mais de suplicante,
O teatro da voz, que a peça de Beckett (1973), Not I, exemplifica, realiza plenamente certa tendência moderna da dramaturgia espelhada no conceito teórico que aloca a arte do teatro no âmbito das artes literárias. Ao colocar em cena uma boca falante sem corpo, Beckett cumpre o conceito e ao mesmo tempo denuncia a abstração que o embasa. O teatro sempre foi o lugar do corpo atuante, do gesto e da ação. A consideração abstrativa que elide o corpo e a ação e preserva apenas a fala, e desta tão somente o texto escrito, quer a todo custo, ou seja, ao custo do corpo, purificar a arte dramática ao pensá la como uma arte literária. A ironia dessa história é que a voz dramática torna se autônoma justamente quando a voz e a escrita se tornam elas mesmas autônomas e libertas em relação ao corpo biológico e a atores e atrizes de carne e osso. Na peça de Beckett, nós ainda reconhecemos a voz de um ser humano, pois o recurso material pela qual ela se faz presente e atuante no palco é ainda uma boca de um corpo biológico. Todavia, esse recurso material já não se fazia mais necessário, pois já era efetivo o uso de máquinas para emitir vozes e textos e também de vozes e textos pronunciados por personagensAmaquínicos.montagem
218 Atos e Artefatos hoje está superado. As próprias máquinas agora nos substituem: na emissão da voz e na apresentação da linguagem escrita.
Se a arte dramática é tão somente literatura e poesia reduzidas para serem emitidas como voz no palco, se atores e atrizes são apenas emissores de vozes dramáticas, então o truque de Beckett realiza o teatro plenamente e sem restos e sem perdas. Mas, se é assim, então a voz sintética de Electra na peça de Müller é a plenificação da linguagem escrita, do drama como obra de arte literária. Ainda assim, essas bocas e vozes sem corpo ainda são vozes humanas. O que restava então era um passo já previsível, dado o fato histórico de que a linguagem escrita e também a sonora já a muito são instrumentos de comunicação de máquinas e de agentes cibernéticos. Na literatura, no teatro e no cinema, personagens maquínicos, ou robôs, sempre estiveram em cena. A questão, portanto, não é de essência e nem de estrutura formal. O ponto de reflexão está em pensarmos sobre e refletirmos na condição ontológica dessa voz e dessa linguagem escrita que não são mais vozes de personagens e escritas de autores humanos. Com efeito, desde o século XIX, como o surgimento das máquinas eletro eletrônicas e informáticas, capazes de se auto controlarem e de se auto ajustarem, torna se crescente a condição humana de auxiliar e de operador de máquinas. A máquina assume o controle e a diretriz de nossas ações e percepções. As nossas vidas passam, a nossa capacidade de pensar e agir um dia definharão, mas a máquina e os aparatos tecnológicos precisam continuar funcionando. Pensamos, a máquina não pode parar; se “the machine stops”, isso é o nosso fim. Que ela continue, então, pois esse é o nosso fim.
Vida liberta e emancipada Apresentou se até aqui a arte e a técnica sempre em sentido positivo, ao explicitar seu caráter agentivo e performativo. As atividades técnicas e artísticas incidem sobre a natureza, as mais das vezes rompendo seus ciclos, deteriorando seus processos, desviando suas derivas, enfim, provocando disrupções irreversíveis. A cultura,
Atos e Artefatos 219 não importa se industrial ou se indígena, se japonesa ou yanomami, estabelece uma lógica extranatural. Esta condição, todavia, não é uma imposição ou um destino. As artes e as técnicas são modulações da agência humana na busca por um ajuste que estabilize a sua existência cuja direção sempre tem dois sentidos: forçar a natureza a se adaptar ao humano, ou forçar o humano a se adaptar às condições naturais. Uma cultura sofisticada em geral é uma teia complexa na qual estão em tensão esses dois sentidos. Contudo, as sociedades manufatureiras, comerciais e industriais impõem um regime de submissão da natureza aos propósitos humanos. Ainda podemos conviver com outras formações humanas nas quais o regime está invertido, pois nelas é o humano que se submete aos imperativos da natureza. Nos dois casos, o regime é uma forma de existência que implica um modo de ser pelo qual o humano se humaniza advindo portador de cultura. Seja o indígena no meio da floresta, seja o industrial de alta tecnologia, o que os torna humanos é um regime impositor de modulações das ações e de um ajuste das interagências que não é mais natural. As artes e as técnicas fazem do humano o que ele é e também o seu ambiente e mundo. O humano perfaz se, na sua existência e na sua identidade, nas suas diversas formas de existir e nos seus diferentes modos de ser, por meio de seus próprios atos. As artes e as técnicas são, enquanto atividades, a reiteração dos atos inaugurais propositores e instauradores da própria humanidade dos humanos. Todavia, o que se exercita e é instado a se exercitar, nelas, denomina se “liberdade”.Oqualificador
“contemporâneo”, aplicado à arte, denota um conceito que pretende circunscrever uma forma ou um tipo contrastante em relação a outros qualificadores. No caso, o contraste é com o modernismo e também com o vanguardismo, não sendo, portanto, um marcador temporal. Mas, o que caracteriza e identifica a arte contemporânea está indicado na frase de Mário Pedrosa, mas sobretudo no tipo de arte que Lygia Clark e Hélio Oiticica e outras pessoas faziam, objeto de análise de Pedrosa. A frase “exercício experimental de liberdade” sugere, em primeiro lugar, que se trata de
220 Atos e Artefatos uma arte fundada na experimentação; segundo, que se trata de uma experimentação com a liberdade. Experimentar já é um exercício de liberdade, mas exercer a liberdade experimentalmente significa redobrar tanto esse experimentar quanto essa liberdade. A arte coné o tipo ou forma de arte no qual o fazer artístico foi liberado e emancipado. Como bem indicou Duchamp, se trata de fazer arte e não mais de fazer coisas belas. Desde o século XIX, no contexto das sociedades republicanas e democráticas, nas quais as liberdades individuais, sobretudo a liberdade de expressão, estão garantidas pelo estado de direito, e também a livre investigação e pesquisa experimental, posta como a base dos centros de pesquisas e universidades, mas também no contexto do capitalismo baseado na livre iniciativa, com efeito, as artes foram não apenas libertadas das constrições religiosas, políticas e econômicas, mas também emancipadas, social e antropologicamente, no sentido de que indivíduos e grupos são incentivados a inovar e a buscar novos meios de expressão sem o compromisso prévio com temas e práticas. Téspis vive, Sólon está morto. Nesse contexto emerge um modelo de artista e um tipo de obra de arte que, por um lado, são experimentais, pois não têm o compromisso de reiterar tradições ou práticas estabelecidas e, por outro, são transformações das formas tradicionais de fazer arte, seja nos materiais usados, seja nas técnicas e nas temáticas.
O exercício da liberdade é um dos critérios pelos quais se mede o quão humano e o quão digno é uma existência. Mais liberdade, em qualquer dimensão, significa sempre mais justiça, mais dignidade e mais plenificação para indivíduos e comunidades. A experimentação é a forma de alterar e transformar o estabelecido em busca de novos conhecimentos e de inovações técnicas e materiais. Mais experimentação implica menos poder às autoridades e às tradições. Por isso mesmo, o exercício da liberdade e da experimentação, ao mesmo tempo que constituem os vetores que orientam as artes contemporâneas, assim como também as ciências e as filosofias, constituem o perigo e o excesso por muitos apontados. Quando um artista põe em risco a própria vida, ou expõe ao perigo a vida de outros, pessoas
temporânea
Em todos os campos artísticos, o século XX mostrou que se podia ultrapassar limites tradicionais e também mostrou que outras formas de arte eram possíveis. Em grande medida isso foi uma consequência da adoção do modelo experimental das ciências e da inovação das técnicas, ao serem ensinadas e praticadas nas mesmas instituições de ensino secundário e superior. O campo da arte se expandiu interna e externamente, diversificando se e multiplicando se em vários níveis e graus, ao se libertar dos cerceamentos e cânones que a oficializavam como atividade permitida dentro de certos limites.
A questão filosófica e antropológica que se impõe diante dessa liberdade, experimentabilidade e inovatividade emancipadas e desinibidas é quanto ao sentido de seu exercício e ao significado de seus efeitos. A partir de visadas enraizadas em modos tradicionais e dogmáticos de agir e pensar, as artes contemporâneas são extrapolações
Atos e Artefatos 221 ou animais, quando a ação artística se torna destrutiva, seja em qual for a dimensão, psicológica, sociológica, cultural, vital, estamos diante de um excesso de liberdade e de experimentação. Este aspecto está presente em muitas ações e obras contemporâneas. Muitos dizem que esse perigo e esse risco são inerentes à pesquisa livre e ao exercício da liberdade. Sim, a arte e a ciência não são propriamente atividades prudentes e bondosas. Ainda assim, a arte contemporânea tem suscitado questionamentos éticos, políticos e religiosos por suas agressões e transgressões. Todavia, recuar à condição anterior de cerceamento e de falta de liberdade significa abdicar da condição espiritual humana, significa admitir se que não se está à altura da vida livre e emancipada. A arte contemporânea, assim como a ciência e a filosofia, não são o máximo e o fim da existência humana, mas elas sim representam o máximo de liberdade e de existência emancipada que jamais foram alcançadas no passado. Neste sentido, a arte contemporânea nos dignifica e liberta. Nos dignifica ao mostrar que somos capazes de agir de modo livre em relação a medos e tabus ilusórios; e nos liberta em relação a tradições enganosas e falsas. Mas, ainda assim, resta a questão: este se libertar de seria para o que mesmo?
Ainda assim, a pergunta pelo sentido do exercício experimental da liberdade permanece sem resposta clara. Uma resposta seria a defesa incondicional da liberdade e da emancipação individual e coletiva. Outra, mais comedida, seria a defesa condicional da liberdade e da emancipação na forma da arte enquanto um recurso pedagógico para a formação de pessoas e comunidades autônomas e conscientes no uso das liberdades. A arte, nesse sentido, estaria limitada pelos mesmo limites que são aceitos para qualquer outra atividade humana; mas, no contexto da arte e na forma de arte, o exercício da liberdade, da experimentação e da inovação, seriam incentivadas e exercitadas. Isso faz sentido. Por exemplo, ao mostrar os horrores e sofrimentos da violência, na forma de arte, nos educamos para possibilidades e sensibilidades que nos levam a recusar a violência real. Pensar assim implicaria em conceber a arte como uma prática terapêutica.
222 Atos e Artefatos indevidas a serem renegadas. Nesse coro dos descontentes se juntam atitudes e juízos religiosos, políticos, policiais e estatais, além dos moralistas de plantão. Mas, apesar dessas vozes e gritos, poucas razões são apresentadas, pois em geral as condenações da arte contemporânea são simplesmente tentativas de cerceamento da liberdade humana por falsas autoridades com base em falsos princípios. Um exemplo claro disso é o tópico da nudez e da sexualidade. Nascemos nus e nenhuma roupa evita a morte. Qualquer interdito à nudez e à sexualidade provém sempre de falsas doutrinas e tabus, pois não há nada intrínseco à nudez e à sexualidade que seja por si um mal e uma injustiça. Ainda assim, autoridades religiosas, morais e políticas, recorrem a esta estratégia de condenar a arte por pensarem a nudez e a sexualidade como males a serem extirpados. Muito diferente é a atitude, seguidamente dessas mesmas “autoridades”, em relação à propaganda e ao culto das armas e da violência étnica e racial, quando obviamente isso sempre está associado ao mal e ao injusto. Usar uma pistola, torturar alguém, isso é imoral, herético, indevido, o abuso a ser combatido e condenado.
A proposta já encaminhada pelas reflexões anteriores é retomar a ideia de exercício experimental de liberdade, tanto para pensar a arte contemporânea como para um fazer artístico liberto dos conceitos e padrões de gosto e beleza, mas também dos padrões de enunciação e dicção de frases com sentido, assim como dos padrões formais dos objetos perfeitos. Tais padrões não são da arte, mas de alguma instância que quer dominar a arte e submetê la ao seu regime. Na direção de pensar o sentido da atividade artística como enraizado no engajamento prático, corpóreo e histórico pelo qual uma comunidade modula sua agência e ajusta sua interagência ao ambiente, a libertação e a emancipação que a experimentação no exercício da liberdade proporcionam incide primariamente com uma forma de um fazer sentido no plano da agência autoperformativa. Nessa direção, a arte é essencialmente uma atividade política e ontológica, pois a atividade artística libera e emancipa formas de existência e modos de ser, de agir e de interagir, pelos quais o humano, individual e coletivo, adquire consistência e configuração.
A liberdade e a emancipação, enquanto assunção da própria atividade e saída da passividade em relação ao próprio ser e existir, cuja fórmula Mário Pedrosa fixou na frase “exercício experimental de liberdade”, não se deixam apreender inteiramente pela ideia de jogo (game, spiel), sendo melhor designadas pelas palavras “folguedo” e “brinquedo” (to play), sobretudo como elas são sintetizadas no uso da palavra “brincante” para designar quem participa dos festejos e eventos artísticos populares, cujo interpretante aqui sugerido, no plano metafísico, é a frase de Heráclito. O ponto diferencial está em pensar a noção de jogo e de improviso na arte. Ao redobrar o brincar, o experimentar, como verbo básico, indica se que na arte se trata de uma ação que é mais do que jogo e do que improviso, pois o que emerge das experiências de Lygia Clark e de Hélio Oiticica, que ao pintar fizeram outra coisa que quadros e pinturas, que ao esculpir fizeram arte que não é mais escultura, mas também daquilo que emerge das experiências de Santos Dumont, pois esse também ao montar e arranjar fez ser algo que antes não havia.
Atos e Artefatos 223
224 Atos e Artefatos A diferença é que no jogar e no improvisar, como no Choro e no Jazz, não se faz sair do Choro e do Jazz, assim como o drible e o improviso no jogo de futebol não nos tira do futebol. Agora, a obra Invenção da Cor e os Parangolés são pintura, mas não mais quadro, retrato ou mural; elas já não são mais apenas esculturas, e não menos elas são arquitetura, mas não mais casas, prédios ou monumentos. Não se trata apenas de pintura ou escultura ou arquitetura em campo expandido, como disse Roselind Krauss110, pois se trata antes de uma experimentação no plano mesmo da liberdade artística: ao se realizar, faz arte, mas uma arte que é outra em relação a que antes existia. Por esses exercícios, uma outra arte torna se possível, inaugura se e instaura se um outro campo de ação. No caso de Santos Dumont, a arte de voar emerge como uma novidade, a emergência de uma outra coisa, uma máquina de voar. Isso foi o que percebeu e fez Qorpo Santo no texto de 1868, “Sobre a ortografia”111, que no seu transcorrer faz transitar a própria língua na qual se inscreve, constituindo se como ato performativo perfeito.
Agora, um dia não havia ainda nem Choro nem futebol, e também a vida e a tradição eram outras, e se chegamos a isso não foi por 110 Sculpture in the Expanded Field. 1979.
Nesse conceito está inscrita a transformabilidade ou plasticidade e também a agência liberta e emancipada, mas sobretudo o agir livre para além de regras e para além do enquadramento prévio, ou seja, para além das precompreensões e antecipações de sentido embutidas nas heranças e pertenças. Por isso, o conceito de improvisação, seja na vida seja na arte, não é suficiente, pois a improvisação se mantém no arcabouço do ter sido que está aí, enquanto que o exercício experimental de liberdade avança para a outra margem, para a outra coisa. Pode se improvisar infinitamente no Choro, sem sair do Choro; o Choro, contudo, nasce de um exercício de atividade e liberdade musical; pode se improvisar na vida e permanecer no enquadramento cultural e ontológico da tradição; pode se improvisar à vontade no futebol sem nunca chegar ao basquete e ao vôlei.
111 As relações naturais e outras comédias, 1976, pp. 26 27.
112 .
112 T. Botz Bornstein, Place and Dream, Japan and the Virtual., 2004, p. 20.
Atos e Artefatos 225 meio de um salto e também não foi por continuarmos a fazer e assim ser os mesmos.
O que precisa ser explicitado é o tipo de ato pelo qual a própria arte e as próprias transformações da arte vêm a existir e ganham consistência. Não se trata de repetição de uma configuração, mas de reiteração de atos experimentais de liberdade. O brincante do Maracatu e do Carnaval retomam esta reiteração, mas a grande arte faz dessa reiteração a própria diretriz de sua ação e atuação. No caso das artes de execução, o improviso faz aparecer, no interior das constrições prévias e das configurações premeditadas da obra inscrita, esse brincar livre. Mas, as artes são elas mesmas um campo de ação que se instaurou por um jogar com o próprio jogar, ou seja, com um ato que ao jogar brinca um outro jogo. A arte contemporânea se caracteriza por propiciar ambientes nos quais esses atos brincantes são instados a acontecer. E isso se mostra naquele tipo de arte que é típico das artes contemporâneas, a performance pura. Uma performance não é um jogo com regras prévias num espaço de jogo previamente estabelecido. Uma performance é um atuar e uma ação que se perfaz e configura enquanto é executada e enquanto instaura um campo de ação na qual ela virá a ter lugar e consistência. O atuar instaura o espaço e o lineamento pelo qual ele se torna um ato
Atos e Artefatos 227 12 O FIM DA ARTE É A FILOSOFIA?
No século XX, a ideia de fim se tornou um recurso teórico muito produtivo. No caso da reflexão filosófica sobre as artes, Arthur Danto (2006), e antes dele Kojève (1979), Flusser (1983) e Belting (2012), seguidos por Agamben (2013), reiteraram este filosofema, com a ideia de que a arte, enquanto belas artes, e enquanto processo progressivo de expressão metafísica e cultural, chega ao seu apogeu, ao realizar o máximo de progresso possível e assim esgotar todas as possibilidades. A partir da visão que a segunda década do século XXI propicia, esse ponto, embora ainda um filosofema sedutor, já aparece como apenas uma figura da imaginação fantasiosa a que a reflexão teórica costuma se entregar. A tese do fim da arte, já em Hegel, não era uma fantasia sobre a arte, mas sim uma tentativa de autoafirmação da própria filosofia por meio de uma ficção regulativa.Aideiade que a arte moderna (Hegel), a arte modernista (Kojève) e a arte contemporânea (Danto) chegam ao fim de sua história evolutiva, no sentido de realizar o que tinha que ser realizado e, também, a ideia do fim da história da arte, enquanto história de um progresso sob uma lógica monocrática (Belting, Flusser), ou seja, a ideia de que a arte teve um começo, uma vida média e um fim, portanto, de que havia uma história em curso, de que havia um percurso com início, meio e fim, e que a arte moderna, depois, a arte modernista, e depois a arte contemporânea, representam o acabamento desse percurso, de modo que o que resta como arte ou já não é mais arte
228 Atos e Artefatos ou então é arte pós histórica, parece hoje ter também chegado ao fim. Todavia, sob uma avaliação sociológica e histórica, talvez fosse o caso de se pensar que uma certa concepção de arte e de função da arte foi abandonada e superada, portanto, que nesse passo reflexivo negativo se refletia uma transformação efetiva no próprio pensamento artístico. O fato é que os “fins da arte”, como a morte dos deuses e o fim dos mundos, sempre vêm associados ao fim de uma dominância e a uma libertação para outras formas e modos de ser. No caso da filosofia da arte, talvez essa cifra indique que a concepção esteticista eurocêntrica, que está na base do conceito mesmo de belas artes, tenha perdido a posição predominante. Se em Hegel a ideia de fim da arte era um passo lógico necessário para a autonomização do conceito em relação ao material, ao sensível e ao imagético, no século XX essa ideia é contemporânea das guerras de libertação em relação ao colonialismo europeu e à explosão das artes provenientes de todos os continentes e etnias que concorrem nas ruas de Londres e Nova Iorque, as capitais dos vencedores, depois do fim da Segunda Guerra europeia. Não seria o caso, então, de dizer que uma certa civilização e cultura deixou de ser dominante e que formas, estilos e histórias da arte de outras culturas agora são aceitas e até impositivas? O fim das metanarrativas (Lyotard) parece mais com o surgimento da ideia de que a narrativa da história europeia e eurocêntrica deixou de ser convincente, e isso também vale para aquela história da arte que faz do modernismo europeu o cume e o fim da própria arte.
O avanço do pluralismo Na sua reflexão sobre a arte, Martin Heidegger se submetia a esta história monocentrada, ao erigir seu pensamento com base no esquema da escada única cujo último degrau seria a Alemanha do início do século XX, tendo começado no mundo Grego, passado pelo Medievo cristão e se transformado na Modernidade europeia113 . 113 2010, § 177.
Atos e Artefatos 229 Esta sequência aparece em outros documentos centrais para se compreender o pensamento heideggeriano, como é o caso da conferência “Tempo e ser”114 e do curso “Die Geschichte des Seyns” (1938/40), nos quais uma sequência de conceitos que vai dos gregos até aos alemães é mobilizada para se falar do ser enquanto tal, da filosofia, da verdade e sobretudo da arte. Se o comentador da conferência “Tempo e ser” percebe e nomeia esta sequência como “multiplicidade de transformações do ser”115, isto apenas reconhece a pluralidade de degraus internos, pois em nenhum momento se alude ao fato de que esta própria sequência é uma dentre várias outras sequências históricas de pensamento a adquirirem consistência e consciência nas diferentes comunidades humanas. De fato, a formulação das ideias de fim da arte e de fim da história da arte coincidem com as primeiras formações de sistemas globalizados de comércio e cultura, bem como do reconhecimento, mesmo que incipiente, da diferença de matriz conceitual e ideal das diferentes culturas e civilizações, com o surgimento das ciências comparadas na História, na Linguística, na Teologia, no Direito no início do século XIX, no contexto da nova universidade politécnica e multicientífica, como bem lembra o brasão da UFSC (Ars et Scientia). O fim da arte é um ressoar do fim do mundo, no caso, de um mundo em particular que se autoconcebia como o próprio mundo universal.Depois das duas grandes guerras europeias do século XX, novamente a impressão de que o mundo havia acabado se torna incontornável. As obras de arte, de teatro, de poesia e de literatura, de Samuel Beckett, a trilogia Molloy (1951), Malone Meurt (1951) e L'innommable (1953), e também as peças de teatro como En attendant Godot (1948) e Fin de partie (1957), exibem isso de modo a não se deixar dúvidas. Mas, os fins, os acabamentos e as disrupções que aí se apresentam têm todas a logomarca “Made in Europa”. Outros mundos continuaram a existir intactos e indenes; outros se transformaram e 114 1979, p. 260. 115 1979, “Protocolo”, redigido por A. Guzoni, p. 291.
Gadamereurocêntrico.eDanto
230 Atos e Artefatos se potenciaram e se tornaram dominantes. Apenas o monocentrismo e a autoglorificação como “universal” é que faz parecer que esse fim é o fim de todos os mundos e de todas as artes. A arte contemporânea se enraíza no século XIX, mas é na década de sessenta do século XX, no auge da euforia do pós guerra europeu, mas sobretudo nos rastilhos de pólvora revolucionária das guerras de libertação nacional, libertação em relação ao domínio genocida europeu, que o termo “contemporâneo” ganha precisão justamente para se evitar o que se fazia como “não arte”, pois já não era “arte” no sentido das “belas artes” que o domínio europeu impunha como cânone. A emergência de centros de arte ao redor do globo e a sua convergência em mostras no formato das bienais internacionais, como a Bienal Internacional de Arte de São Paulo, de 1951, e a Documenta 1, de 1955, em Kassel, fazem valer uma pluralidade policêntrica de artes e de histórias das artes, para além do enquadramento
Em nenhum momento esses filósofos levantam a hipótese de várias histórias e várias temporalidades diferentes por detrás disso
reconhecem nos seus livros de filosofia da arte a nova situação, percebem a multiplicidade da arte nova e reagem como bons filósofos clássicos: trabalham com afinco na construção de uma teoria que reponha a unidade perdida e permita reconstruir uma história da arte única. Com efeito, dadas as teorias de Gadamer e Danto, um pluralismo quanto à arte e quanto às obras de arte se torna problemático: afinal, todas as obras de arte são “sentidos incorporados” e “configurações de sentido”, e essencialmente ligadas a um período histórico no qual elas têm seu lugar. Além disso, e mais problemático, ambos, Danto e Gadamer, apesar de reconhecerem a historicidade da arte, pensam essa história, humana e da arte, como uma única história na qual as obras, as ideias, os pensamentos, os povos e as culturas têm um lugar determinado, como degraus de uma escada com um único sentido.
Atos e Artefatos 231 que chamamos “arte” e “humano”
117 A. Danto, Após o Fim da Arte: A Arte Contemporânea e os Limites da História, 2006.
117. O que o filósofo não vê, mas tem de ser pensado, é que a existência de um único medium e de uma única função da arte, pelas quais todas as obras de arte podiam ser perfiladas num monotrilho lógico, sempre foi apenas o efeito de uma ficção para fins de dominância política. Uma vez pensado este pensamento, o que fica claro é que a arte contemporânea se liberta desse monotrilho e se abre para a pluralidade policêntrica, como bem reconhece o próprio Danto, pluralidade esta que sempre foi e é atuante.
Obras de arte e mundos Ainda assim, na filosofia atual as artes são encaixadas no esquema geral da história única, que vai do nada ao pleno, tal como prefigurado no modelo teológico cristão e no modelo metafísico hegeliano. Heidegger, Gadamer, Kojève e Danto, nas suas teses principais, subscrevem esse esquema sem pensar. As artes tem seu acabamento e a história das artes, de todo o mundo e de todos os tempos, culmina no mundo da arte moderna de Paris, Londres e Nova Iorque do século XX. Esta história é como uma árvore com um ramo guia e também com uma raiz axial pivotante: duplamente monológica, monogênica e monotélica, tal como era a scala naturae pré darwiniana.
116. Ambos são, nesse ponto, idealistas e cristãos, ou seja, no fundo, sem pensar, aderem à tese teológica da história com um início único e como um processo único no qual todas as coisas têm uma posição determinada e se consumam num ajuizamento final único. Danto sintetiza este enquadramento ao reduzir a situação contemporânea como sendo o fim da transformação do medium, de modo que agora não haveria mais nenhuma base para “pensar na arte como tendo uma história progressiva”, pois a ideia de uma sequência de desenvolvimento implodiu porque não haveria “nenhuma tecnologia mediadora da expressão”
116 F. Hartog, Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo, 2014.
232 Atos e Artefatos Na arte dita arte contemporânea, este estado de coisas já não é mais cogente. As artes se multiplicaram e as formas de se fazer arte, sobretudo os critérios do artístico, se tornam policêntricas e também multitemporais, já que a sua proveniência não pode mais ser remetida a um único centro referidor e também sua direção de futuro não é mais a de chegar ao ápice do mundo da arte de Paris ou de Nova Iorque. Há outras origens e outros destinos à vista. Por isso, cada arte e até cada obra de arte contemporânea “define um mundo diferente, e esses são os mundos que são incomensuráveis”, reconhece Danto118, e termina por concluir: “Assim, a arte terá um futuro; apenas a nossa arte não terá. A nossa é uma forma de vida que se tornou velha”119. Todavia, ainda assim Danto, tal como os outros filósofos mencionados antes, fala apenas em termos de passado, presente ou futuro, e de algo que pertence necessariamente a uma dessas estâncias, sem jamais cogitar de uma pluralidade de tempos e de histórias simultâneas. Nesse esquema, o pluralismo teórico, antropológico e ontológico, está excluído sem maiores argumentos como possibilidade de compreensão do contemporâneo. Agora, se Danto tem razão em anunciar que “a idade do pluralismo está conosco”, que o que fazemos agora é irrelevante, pois o pluralismo não pode mais ser medido por uma única régua, de modo que “uma direção é tão boa quanto outra”, pois já não existe mais um único “conceito de direção a se aplicar”120, ele confunde um pouco as coisas ao dizer que assim também termina a liberdade. Não se trata apenas de uma falha no raciocínio, mas sim na inferência do consequente ao antecedente pressuposto e reafirmado, a saber, que a história, inclusive a história da arte, tem unicamente sentido se for um exercício de liberdade dentro de um único enquadramento. Danto escreve como se ele estivesse no cume da história da civilização e não houvesse outros modos de viver, de pensar e de projetar futuros: ao não ver mais nenhum futuro, pensa no fim de uma era, mas não vê a pluralidade já existente de formas de vida e 118 2006, p 143. 119 Idem, p. 143. 120 2014, p. 152.
Atos e Artefatos 233 de arte. Ele concebe a história da arte como uma única linha pontilhada na qual cada ponto é uma estação do espírito em direção à liberdade burguesa, como diria Marx, se é que temos ainda o direito de falarMas,assim.aera do pluralismo é apenas a ante sala da filosofia? Ou se abre essa porta e se passa para o outro, ou então se retorna aos começos pré filosóficos? Com efeito, Danto enxerga, na pluralidade policêntrica da arte contemporânea, algo que lhe parece um retorno à pré história, sem perceber que assim ele confirma que a arte estava cativa de pautas que não eram dela. Em vez disso, Danto acusa o desvio dessa arte que se recusa a se encaminhar “para sua transfiguração em filosofia”121. A arte da performance é colocada sob a rubrica da disturbação, ou seja, como uma arte que visa transformar o público em direção de uma condição pré teatral, ou seja, pré política e pré filosófica. A arte de Marina Abramovic, como em Lips of Thomas (1975), a arte de Angélica Liddell, como em Eu não sou bonita (2004) e a arte do grupo Cena 11, como em Violência, (2000), nessa apreensão apreensiva do filósofo do fim da arte, apenas provocam nele uma perturbação “que advém da subpercepção difusa de que uma dimensão de nosso ser está sendo colocado num nível ainda mais baixo que o nível mais baixo da civilização”122. Nesse ponto, se esta é a conclusão do raciocínio filosófico, talvez seja o caso de negarmos a consequência por percebermos que ela é absurda, mas esse absurdo, se está na conclusão, também já estava nas premissas do filósofo.Ora, as premissas são a tese da história única e a tese de que o fim da arte é o degrau depois do qual vem a filosofia. Arte e História da arte são pensadas como fases de uma transformação e de uma evolução em direção a um único ponto, qual seja, o ponto de passagem para o pensamento filosófico, para o conceito, como diria Hegel. Com efeito, o esforço de Danto estava orientado para “mostrar como a arte tem sido o meio para a filosofia em ambas as extremidades de sua história, mas aqui, especialmente, ao se transformar em 121 2006, p. 155. 122 2006, pp. 168 169.
O pensamento moderno está, em todas as suas dimensões, perspectivado pela ideia de progresso e superação, até mesmo ali onde ele é conservador. Esta ideia implica a suposição de um percurso de um ponto A até um ponto B, com escalas intermediárias, sendo o ponto B pensado como a culminância e a realização do melhor e a efetivação do ser daquilo que era em A. Seja qual for a entidade, o processo ou o acontecimento, a sua análise o distribui como uma extensão no tempo e o divide em fases sequenciais. Poucas ideias foram e são tão eficazes e produtivas para o conhecimento da realidade e também para a construção de realidades. Os termos “evolução” e “transformação”, respectivamente usados por Darwin e Lavoisier, aludem a esta ideia, mas ao mesmo tempo lhe impõem 123 2006, p. 249.
234
Evolução e transformação
Atos e Artefatos seu próprio objeto, ela transformou o todo da cultura, tornando possível uma filosofia final”123. Ah, a velha ilusão apocalíptica! Ao pensar a arte na sua condição pós histórica, o que parecia ser o reconhecimento de sua libertação em relação aos enquadramentos exclusivos da filosofia e sua liberação pluriversal, Danto ainda assim reafirma a velha tese de que a arte é da ordem do falso, pois, diferentemente da filosofia, que não tem uma fase pós histórica, visto que ao encontrar a verdade nada mais há para se fazer, a arte pode continuar indefinidamente e sobretudo fazendo o que bem quiser. Nessa descrição esconde se um olhar ressentido, não há dúvida. O filósofo, embora não tenha a verdade, sabe que se ela foi, ou for, ou já tenha sido, encontrada, isso faria dançar todo o seu pensamento, e que isso não afetaria em nada as obras de arte. Não podendo aceitar o pluralismo policêntrico que se apresenta, e tendo uma visão monológica exclusivista e universal da filosofia como verdade, ele não pode ver a “variedade estonteante” como um exercício espiritual de liberdade, tal como se mostrou capaz Lygia Clark diante da mesma situação.
Atos e Artefatos 235 uma revisão disruptiva. Quando se diz hoje que houve uma evolução ou uma transformação, embora se conote a passagem de fase e de tempo, não necessariamente se denota um progresso e também não um aproximar se do fim e da plenitude. Por isso, para se evitarem os mal entendidos, se distingue entre desenvolvimento e evolução, entre progresso em direção a um ponto de chegada e transformação, pois uma coisa é o desenvolvimento de uma entidade até a sua completude enquanto tipo, outra é a transformação dela em outraAcoisa.questão é: a humanidade e as artes, realmente, podem ser pensadas segundo o esquema do progresso e do desenvolvimento? Mais ainda, todas as artes, culturas e comunidades estão encadeadas como fases de um mesmo percurso histórico em direção a um fim e finalidade únicos? Todas as culturas e artes podem mesmo ser dispostas e hierarquizadas numa série entre um ponto A e um ponto B, no qual o ponto B, digamos a modernidade europeia e eurocêntrica é o acabamento e a plenitude? A resposta positiva a estas questões pressupõe uma tese ontológica sobre o humano, a saber, que o humano é um processo histórico, que há uma única forma de realização do humano e um único modo de ser humano, para o qual convergem todas as suas habilidades, técnicas e artes. Que a filosofia e a ciência tenham defendido esta resposta, sobretudo como forma de recusa da divisão da população humana em grupos distintos, com base na verdade biológica da sua unidade de espécie, não evitou a sua apropriação para a tese cultural oposta, qual seja, da evolução cultural e civilizatória diferenciada entre as diferentes etnias e nações. De fato, o racismo e o suprematismo são teses baseadas na suposição de que há raças humanas biológicas, as quais poderiam ser hierarquizadas em termos de mais ou menos evoluídas, no sentido de serem mais ou menos desenvolvidas em relação a um padrão de excelência. Todavia, mesmo ali onde se nega o racismo e o suprematismo biológico, insiste se em aplicar o esquema da hierarquia desenvolvimental no plano cultural e civilizatório, moral e político, religioso e filosófico, sobretudo técnico e artístico. Nas análises de
O fim da arte e o fim da história da arte, sob esta apreensão eurocêntrica, coincide com o esgotamento da arte europeia enquanto cânone universal. Visto a partir da vista dos outros povos e culturas, o que aí se esgotou foi a dominação pela força. Este fim, então, consiste, na verdade, na libertação e na emancipação da arte e das técnicas em relação a uma tirania política, cultural e estética. O pluralismo insuportável, de que Danto (2006) e Gadamer (1974) se ressentem, não é a destruição dos padrões universais e humanistas, mas sim a emergência de formas e estilos artísticos e técnicos de várias e diferentes culturas e humanidades outras que a europeia, a partir do qual Sousândrade soube fazer arte e língua.
236 Atos e Artefatos Hegel, Heidegger e Danto, este esquema ainda está presente, malgrado suas conotações impróprias e diferenças. As artes e as técnicas europeias modernas são postas como o ponto final a partir do qual todas as obras artísticas e técnicas de todas as formações humanas são avaliadas. As diferentes histórias de formação de artes e técnicas nas múltiplas etnias e comunidades humanas são subsumidas pelo conceito de arte e técnica moderna europeia e dispostas nas fases de uma história universal, fases estas estabelecidas a partir da história particular de uma certa sequência de eventos que os europeus costumam tomar como a sua história de formação. As obras de arte e de técnica, por sua vez, independente de suas histórias e culturas particulares, são submetidas na escala universal cuja matriz é dada pela sequência histórica do progresso artístico e técnico europeu.
Historicidade e temporalidade
O que caracteriza os teóricos que recorrem ao conceito de fim da arte e de fim da história da arte é a suposição de uma certa historicidade e uma certa temporalidade de fundo. Poucos, como é o caso de Gadamer, implicam nisso também uma certa trans historicidade da arte, no sentido de que artes e obras de arte seriam desenraizáveis e dotadas de valência transtemporal. O que permite a Gadamer pensar que a arte e as obras de arte escapam do seu local e tempo de origem é justamente sua concepção da arte como configuração e
124 F. Hartog, 2014.
Atos e Artefatos 237 obra como unidade de sentido, o que lhe franqueia pensar que o local e original, embora inalienáveis, não são determinantes para a história efetiva de uma obra de arte. Por sua vez, Danto, mostra se mais reticente e afirma a caducidade da arte, mas de seus conceitos se depreende uma transistoricidade ainda mais radical, nietzschiana, a saber, a da reinterpretabilidade de sentido e não apenas de significado, como é em Gadamer. Com efeito, o conceito de obra de arte como “sentido incorporado” fornece a base para se pensar a mobilidade radical da arte e das obras de arte. Contudo, se pode dizer seguramente que eles ainda assim pensam a historicidade e a temporalidade da arte como localização numa única série temporal e numa única história universal a la Hegel. Uma vez introduzidas as ideias de múltiplos regimes de temporalidade e de multi historicidade124, os conceitos de historicidade e temporalidade já não são suficientes para se pensar a transformatividade e a plural variedade da arte, sobretudo, porque não implicam a acidentalidade e a aleatoriedade. Uma vez introduzidos conceitos de acidentalidade e de aleatoriedade, portanto, de historicidade como contingencialidade, sobretudo como alteração acidental constitutiva, o policentrismo e o pluralismo são implicados necessariamente, e também a impossibilidade de se fazer uma história única. De direito, a história única e o direcionamento progressivo em direção a um único fim pressupõem que uma certa essência ou estrutura preside e unifica todos os processos e todos os eventos artísticos sob uma única articulação correlacional temporal. Tudo precisa ser alocado numa única articulação temporal e também espacial, não importando se há ou não conexões efetivas, causais e materiais, entre os eventos. Assim, a arte cerâmica marajoara estaria em relação hierárquica de antes e depois, de mais e de menos, com a arte cerâmica bantu e ambas com arte cerâmica japonesa, e todas elas com a arte cerâmica francesa do século XIX, a qual seria o critério de perfeição ao qual todas as demais se aproximam assintoticamente.
238 Atos e Artefatos Seja a arte brasileira do século XX, seja a arte europeia ou norte americana, nenhuma delas se deixa reduzir e encaixar no plano de uma escada e de uma escala natural125. A polifonia e a multiplicidade não são efeitos de dissolução ou perda de essência, ou em relação ao ser, mas sim o efeito da própria efetividade do artístico e sobretudo de seu enraizamento plural. Se um livro tão sagaz como o é Etapas da Arte Contemporânea, de Ferreira Gullar, estabelece uma linha única de evolução do Cubismo à Pop Art, isso é feito por elisão e deleção de inúmeras outras linhas; se o belo livro de Benedito Nunes, Introdução à Filosofia da Arte, segue Hegel e reduz tanto a arte quanto a filosofia da arte e as encaixota no monotrilho de um certo esquema que exclui tudo o que não é eurodescendente, isso não é apenas um sintoma de um vício escolar, mas sim a ação afirmativa de exclusão dos componentes indígenas, africanos e asiáticos, embora esses elementos estejam fazendo efeitos já na constituição da arte europeia e sejam efetivos e impositivos desde o século XIX também no plano reflexivo da arte brasileira.
afastamento
Estes pensadores, tal como os que eles repetem e imitam, os quais têm suas razões paroquiais para assim proceder, conformam suas categorias e gêneros de arte, e também as próprias concepções de arte, de tal modo que elas apreendam e sejam apropriadas a períodos e movimentos artísticos no contexto europeu, sobretudo no eixo Veneza Paris Amsterdã Viena Berlim Londres Nova York.
125 E. Shohat & R. Stam, 1998; D. Carrier, 2008.
Esta condição torna esses conceitos e concepções inapropriados para se pensar a arte mundial, sobretudo para se pensar o conjunto de obras de arte e de artes que unifica as comunidades humanas como capazes de arte em seu sentido pleno. A intervenção de Arthur Danto, que reconhece o pluralismo e busca superá lo, não é uma renegação desse vício eurocêntrico, mas sim o fato de que Nova York, que começa a predominar como centro difusor de movimentos e gêneros artísticos, fornecendo a direção e o sentido das ações artísticas, no seu tempo. Ainda assim, o seu modo de pensar a arte é tributário do esquema cristão e hegeliano.
Da mutação à multiplicação
Atos e Artefatos 239 O que é escondido e renegado nesse esquema é a existência de vários centros de formação e modulação das ações artísticas. Se seguimos o mapa no qual se representam as diferentes e plurais linhagens do Homo sapiens sapiens, o que se vê é que a população contemporânea e as culturas e etnias atuais são já uma pluralidade irredutível a um esquema do tipo hegeliano cristão. Uma simples olhadela no mapa das línguas humanas, de suas conexões e sobreposições, já demonstra o policentrismo e o pluralismo de base das culturas, sobretudo da europeia, mas com ainda mais evidência para as línguas modernas. As artes e as obras de arte são ainda mais artefatuais e supervenientes do que as línguas, pois são mais livres tanto para se disseminarem quanto para se misturarem. Por isso, uma história das artes e das obras de arte não pode ser menos complexa do que a história da formação da população humana atual e do que a história da formação das línguas, históricas e artificiais. A estrutura da história da arte que seria apropriada ao seu objeto será ainda mais complexa, diferenciada e entrelaçada, não apenas plural, mas policêntrica e multitemporal.
Os conceitos de transformação, de mutação, de transição, em geral indicam a passagem de um estado A para um estado B, ou de uma forma A para uma forma B, com ou sem perdas e ganhos, mas que implica o desaparecimento de A no exato momento de aparição de B. Assim é a transição de uma floresta para uma fazenda de gado, ou a transição do dia para a noite. Até mesmo as passagens de uma época para outra seguidamente são pensadas como transições de uma forma de existência para outra forma. Além disso, em função da regularidade dos processos naturais e também da predominância de formas de pensar idealistas, em geral se supõe que os estados e as formas são já dadas e a transformação consiste na passagem de uma forma A para uma forma B, repetidamente. Isto é, se concebe a transformação como a repetição de um processo, ou estado, ou forma, de modo a que, em última instância, as coisas permaneçam
É preciso distinguir, contudo, o vir à existência de entidades diferentes, como é o caso das novas espécies surgidas por evolução natural, que preservam uma formação ontológica, como é o caso da vida celular, e o vir à existência de formas ou tipos diferentes de entidades. Não é claro que haja novidade ontológica nesse último sentido. As mais da vezes, as transformações são apenas modificações de uma mesma forma ou categoria ontológica de fundo. Um novo vírus ou uma nova floresta, e mesmo um novo elemento químico, constituem casos de entidades e identidades da mesma categoria ontológica. Nesses casos, a diversificação e a multiplicação é
240 Atos e Artefatos as mesmas. Nesses casos, o movimento ou transição é inócuo, de um ponto de vista tanto analítico explanatório quanto existencial ontológico.Porém, os conceitos de transformação e de mutação nem sempre implicam a extinção de A e também são compatíveis com o aparecimento de B, de C e D, ou seja, estes conceitos podem ser pensados como indicando a diversificação e assim a multiplicação. As ideias de deriva e de diversificação sugerem a aparição de diferenças e de novidades, portanto, de não repetição, o que significa que seriam processos de emergência de novas entidades e novas identidades. Em termos ontológicos básicos: a transformação e a mutação implicariam “acréscimos de ser” e o “vir à existência” de entidades irrepetíveis. Os conceitos de multitemporalidade e de múltiplos regimes de historicidade, assim como os conceitos de multirealizabilidade e de pluralismo ontológico, constituem a tentativa teórica de pensar as transformações e as mutações como multiplicadores e diversificadores ontológicos, e não apenas como repetições segundo esquemas e categorias fixas.
Esses últimos conceitos são polêmicos e há vários debates em torno de sua definição e aplicação em diferentes áreas da filosofia.
Interessa aqui a sua potência teórica complementar aos conceitos de transformação, adaptação e mutação ontológica que, por si sós, não garantem o pluralismo, mas tão somente a transição do mesmo para o outro, e não a transição do um para os muitos e para os diversos.
126 Phylogenetic Systematic, 1966.
Atos e Artefatos 241 existencial ou ôntica, no sentido de que não houve aí nenhum acréscimo de ser, mas apenas de entes.
Também os conceitos de realização múltipla e de multirealizabilidade, de diversidade e de pluralidade são comuns e emergem como relevantes em vários debates nas ciências, nas filosofias e nas práticas. Todavia, aqui trata se de pensar esses conceitos na sua potência máxima, qual seja, como base teórica em Política e Ontologia. Pois, é nesses dois campos que a sua integração e consistência pode ser comensurada com os grandes problemas humanos, sobretudo os problemas advindos da crise política e ambiental que nos assola. Política e Ontologia é o que está em jogo desde o século XIX, quando justamente esses conceitos se tornaram a base da concepção e da metodologia de conhecimento e de ação, portanto, do pensamento moderno contemporâneo.
O ponto relevante do conceito de multirealizabilidade é a ligação com o conceito de mutação ontológica não excludente, no sentido de que uma nova ontologia não precisa ser a superação ou a eliminação de outra, de que uma nova entidade ou novo tipo de entidade não necessariamente implique a extinção ou eliminação das já existentes, mas sobretudo no sentido de uma mesma entidade poder ser diferente, e um mesmo ser (tipo, modo) se realizar em entidades diferentes. O ponto teórico, então, não é apenas o de reconhecer a transformabilidade e a mutabilidade das entidades e processos, pois também assim se pode permanecer na mesmidade e na compatibilidade com a repetibilidade. A ideia nova de Darwin está antes na transformabilidade que implica a novidade e a irreversibilidade que, conjuntamente, instauram a pluralidade diversa, no sentido do conceito usado por Willi Hennig126 de uma multiplicidade multidimensional. Não há exemplo, contudo, mais apropriado para este conceito que o inteiro conjunto das obras de arte, que, ainda assim, é menos diverso do que o conjunto das coisas vivas sobre a Terra.
Os conceitos de transformação, de mutação, de transição, diversificação e plurificação são hoje correntes no pensamento social e científico.
A ideia de que a base material, cerebral e biológica, da mente, da consciência e da cultura, não determina e não elimina a diversidade e a pluralidade, constitui o cerne das teses da epigênese e da emergência. Estas teses se ancoram no postulado da realização múltipla pelo qual uma mesma base material é compatível com diferentes realizações mentais ou, dito de modo inverso, que diferentes estados mentais (consciência, sociedade, cultura) ocorrem com base
242 Atos e Artefatos Mas, se a multirealizabilidade afeta a vida, ainda assim se pode dizer e postular que todas as formas de vida na Terra estão conectadas a uma única história por serem descendentes de uma única forma de vida inicial. No caso das artes, assim como no caso das línguas, esta hipótese já não é mais necessária e nem sequer pode ser aplicada como modelo heurístico.
Realização múltipla e diferença ontológica
A ideia de realização múltipla é a base atual para se pensar a especialidade das ciências humanas, sobretudo a Psicologia e a Sociologia. Com esse conceito procurou se negar o reducionismo e o determinismo associados ao fecho causal das ciências da natureza: uma mesma base material ou microestrutura realizaria diferentes e múltiplas funções ou papéis; e, inversamente, uma mesma função ou propriedade se realizaria por diferentes bases materiais ou mico estruturas. Contudo, a vida consciente, social e cultural, se mostra como uma realidade polimorfa, diversa e em constante modificação, como é o caso das línguas e das cidades. A diversidade, todavia, não é sem padrões e regularidades, mas ainda assim a diversificação e as diferenças são evidentes. Este fato reforça a ideia de que a mente e a consciência, embora ligadas aos processos cerebrais, constituem um plano ou dimensão de realidade distinta do corporal e do cerebral. Pois, diferentes corpos e cérebros têm estruturas e conexões similares na espécie, mas línguas e artes divergem e se diversificam como que aleatoriamente e acidentalmente.
A ideia de multirealizabilidade é central para a argumentação em prol de um pluralismo ontológico capaz de libertar e emancipar a diversidade e a pluralidade. Se houvesse um único modo de se realizar como humano, de se ser humano, então a diversidade e a pluralidade dos humanos seria um problema a se resolver. Entre outras coisas, a ideia de história universal é utilizada para encadear e articular os diferentes tipos humanos e formas de vida em uma sequência em termos de estarem mais próximos ou mais afastados em relação ao modo único. O critério usado por Hegel, o da liberdade, é um bom exemplo disso. Embora tivesse um propósito libertário e emancipador, as consequências de seu uso foram e ainda são desastrosas, ao enfileirar as diferentes culturas e civilizações em termos de mais ou menos em relação ao critério, quando deveria ser a libertação de todo e qualquer critério, em direção a diversidade e a pluralidade. Agora, se há múltiplas formas de realização do humano, de saída todas as formas existentes são dignas de proteção e até de incentivo. Tanto o francês e seu terroir quanto o yanomami e sua aldeia são formas e modos de ser humano plenas. Ambos realizam o humano, ambos são humanos. Cada um tem sua história, seu tempo e ritmo. O francês e o yanomami são o que são e existem como existem enquanto fases de uma transição e diversificação do humano.
Uma tal multirealizabilidade, expandida para o ontológico, fundaria uma liberação e uma emancipação radical, e implicaria um universal aberto para as diferenças e compatível com a pluralidade e a diversidade. Longe de excluir e negar, o universal seria aquela forma ou ser que abrigaria e faria conviventes e coniventes o máximo de diferença, tal como a vida, que não cessa de se abrir para outras formas e outras matérias, generosa e graciosa que é. A vida, ou a natureza, ou o universo, não impede a alteração e a diferenciação, não restringe a diversificação e a multiplicação, embora tome tempo e exija atenção para os múltiplos cursos e regimes e ritmos de temporalização.
Atos e Artefatos 243 em uma mesma estrutura corporal ou cerebral. Desse modo, se estabelece uma forma de conciliar a pluralidade e a diversidade psicológica com a regularidade e a similaridade cerebral e material.
127
127 Eudoro de Sousa, História e Mito, p. 9.
Pluralismo antropológico e político Se não posso provar que depois de época de um homem vem a de outro, quem me provará que o mesmo, sempre o mesmo, é o homem de qualquer época? O saber triunfante desdenha das metamorfoses. Mas a metamorfose é precisamente o trânsito (ou transe), descontínuo, Uma época define se por um regime de fascinação, por uma fulguração ofuscante, pela luz de um raio desferido por aquele que “quer e não quer chamar se pelo nome de Zeus”. A fulguração que fascina, diacosmiza de cada vez a seu modo: configura homem e cosmo, co pertinentes um a outro, e ambos, a uma época que assim se determinou, pela diferença que, decerto, não afeta apenas o circunstancial.
244 Atos e Artefatos Em suma, a natureza da coisa se altera conforme o contexto relacional e a perspectiva de agenciamento. Ora pato, ora coelho, a figura se realiza multiplamente. Ora obra de arte, ora objeto ordinário, a louça de Duchamp se realiza, tem ser, multiplamente. Ela é indiferente ao ser que nela se realiza. A arte, ora se realiza como pintura ora como dança; o ser arte da arte é indiferente às entidades que o realizam. Tanto a biosfera quanto a noosfera (cultura, arte, técnica) seriam polimorfas e afetadas pelas relações porque são a exploração ontológica ativa da multirealizabilidade e da mutação adaptativa liberadora de novas formas de existência e novos modos de ser.
As artes fazem parte da ação de autotransformação e transição ontológica do ser humano. Embora seja um tabu, o fato é que uma entidade pode ser ativa quanto ao próprio ser, no sentido de alterar o seu ser e existir por meio de suas próprias ações. Em termos biológicos, os seres vivos são entidades agentes que realizam ações que alteram a sua própria constituição ontológica ao alterarem o seu ambiente. A ação humana, nesse sentido, é tal que altera o ser das coisas, e não apenas as modifica, inclusive o seu próprio.
denomina com os nomes das artes e também das obras de arte são formações ou fases de um processo cujas raízes são as atividades de engajamento e ajuste prático, corpóreo e cognitivo a um território de comunidades dotadas de uma forma de existência e um modo de ser. As artes e as obras de arte, tanto quanto as línguas, fazem parte da ação de conformação e configuração dessas formas de existir e modos de ser, sendo plurais e diversas ab initio. O processo geracional que culmina na estabilização de uma arte, como arte musical yanomami, a partir da qual uma obra de arte musical pode ser feita e uma ação artística musical pode ser executada, tem uma estrutura bem característica, como foi mostrado antes.
Atos e Artefatos 245
A suma do que vimos articulando é que o fazer técnico e artístico é um tipo de ação com potencial ontológico, no sentido de ser uma ação ontologicamente performativa. Não quer dizer isso que sempre é assim. O que está sendo aqui indicado é o fato de que o ser humano vem transitando quanto à sua forma de existência e modo de ser, e que essa transição se ramifica e se realiza multiplamente. Nas artes e nas técnicas esta transformação de si e do ambiente se mostra em todas as culturas, pois nelas e por meio delas os humanos apresentam as coisas e se apresentam em modo alterado e diferenciado.Oquese
Na base está a seleção e a fixação de um modo padronizado de fazer e executar uma certa ação. A partir de urgências, necessidades e fatores não artísticos. Este é apenas o começo, mas ainda não é arte e sobretudo pode derivar para um comportamento rígido. Depois, surgem as formações exemplares, os casos e as obras típicas por diferenciação em relação a coisas já feitas e práticas estabelecidas. As obras inaugurais, porém, sempre já se dizem assim por retrospectiva. Essas obras exemplificam o modo de se fazer, especificamente exibem como é que se faz com arte, isto é, com liberdade.
A partir desse momento é que se formam a intenção e a meta de reiterar e agir e fazer conforme a esse modo, surge a intenção de fazer como se faz, tendo já exemplares em vista e também tendo em
246 Atos e Artefatos vista o reconhecimento do outro de que se está fazendo aquilo também. A existência de normas e padrões de correção e de aceitabilidade são usados e propostos de modo plural e caótico, não institucional e não oficial, até que surja, e isso nem sempre ocorre, a instituição, o estabelecimento do ofício e o reconhecimento recíproco e público. Então, vem a fase de fixação de um padrão e de critérios de identidade e de excelência no tipo ou gênero. Mas, na base estão os feitos e as coisas feitas na urgência da hora e nas necessidades da vida de alguém e de um grupamento humano na lida da existência concreta.Nenhum
desses momentos é único e nenhuma única linha azul pode enlaçar o inteiro processo, pois na sua base e nos seus efeitos está algo que se realiza multiplamente e que se transforma e diversifica continuamente. Do mesmo modo que a língua humana é sempre já uma pluralidade, sendo a língua universal ou a língua única apenas ficções e projeções imaginárias, também uma língua humana particular, como a língua portuguesa, sempre já é uma pluralidade, os termos “arte” e “artístico” são predicados logicamente plurais. Embora as obras Red Square, de Malevich (1905), True Rouge, de Tunga (1997) e True Blue, de Madonna (1986), se interreferem hoje nos livros de arte e de história da arte, por pertencerem à arte dita contemporânea, nem por isso elas estão no mesmo tempo e são flores do mesmo galho. A obra À luz de dois mundos, de Tunga (2005), por sua vez, embora enrede e galvanize dois mundos diferentes, não perfaz assim a unificação deles e muito menos faz desaparecer a pluralidade de histórias que nela se imbricam, cujo número é bem mais do que dois. E, se uma mente, distraída para a arte, supõe que um conceito é capaz de subsumir (aufheben) e submeter (verstehen) essa plural diversidade que aí se faz presente, isso mostra apenas o quanto ela se equivoca acerca da abstração (aphaeresis) que a constitui.
Artes, técnicas e tecnologias, na sua base, são modos estilizados e adquiridos de agir de agentes ativos e interativos. No caso das entidades humanas, individuais e coletivas, todavia, essa estilização a muito tempo ultrapassou o nível da mera adaptação efêmera e se tornou constituinte dos seus próprios modos de ser e de suas formas de existência, os quais são por isso sempre plurais. Os conceitos que estas palavras indicam, por conseguinte, implicam, para além de uma mera mobilidade ôntica, uma efetividade ontológica da agência cuja eficácia se mostra nos efeitos artísticos, técnicos e tecnológicos. As diversas artes, técnicas e tecnologias têm eficácia ontológica e isto se mostra na distância entre o modo de ser natural e os modos de ser humano que a História, a Sociologia e a Antropologia descrevem. Os termos “performativo” e “performance” nomeiam esta potência e eficácia ontológica, ao designarem o aspecto ativo e reflexivo de ações pelas quais uma entidade altera a própria identidade e impõe se outras formas de existência. A efetividade ontológica das artes e das técnicas atinge o cerne da natureza humana e também da biosfera terrestre, sendo, por conseguinte, um fator ativo e material cujo sentido excede o plano descritivo no qual operam as injunções estético fenomenológicas e semântico hermenêuticas.
Atos e Artefatos 247 13 M
ODULAÇÕES DA AGÊNCIA E TRANSIÇÃO ONTOLÓGICA
248 Atos e Artefatos Arte como performance
128 Ästhetik des Performativen, 2004; Transformative Aesthetics, 2014.
Os conceitos de “performativo” e de “performance” estão na base da ideia de uma estética transformativa que busca explicitar o caráter ativo da arte. A principal defensora desta perspectiva é Erika Fischer Lichte128, em cujos textos se estabelece um quadro de análise conceitual para se compreender as artes performativas e performáticas cujo cerne está no agir (atuar, operar, fazer), sobretudo as artes do Teatro e da Dança, mas principalmente o gênero ou modalidade de ação artística denominado “Performance” que inclui também as modalidades “Happening”, “Body Art” e “Street Art”, e outras. O ponto principal dessa abordagem está na explicitação do fato de que muitas formas de arte se realizam como ações, atuações e interações cujo propósito primário não é a confecção de um artefato, mas antes se efetivam como transformações dos partícipes e também do próprio mundo. Em outras palavras, estas são formas de ação artística em que o resultado visado não é uma imagem, representação, encenação ou simulação de algo, menos ainda uma afecção estética. O que a ação artística faz é perfazer um evento ou situação que produz uma alteração dos agentes envolvidos e de seu campo de ação. Nesse ponto, a teorização de Erika entra em consonância com a proposta de D. Davies129, pois este elaborou uma teoria da arte como performance, a qual, no seu aspecto mínimo se constitui numa ação efetiva no plano da realidade. Desse modo, ambos sintetizam e reconhecem no plano do conceito que a categoria da ação (agir, perfazer, atuar) é a base minimal da arte, ao mostrarem que diferentes manifestações artísticas do século XX se realizaram e se perfizeram como arte embora não cumprissem os requisitos canônicos: ambos mostram que a arte se realiza enquanto ação sem que seja necessária a produção de um objeto ou um artefato, estético, formal ou semântico, separado dos atos artísticos. Já a arte conceitual havia posto isto, pois, como melhor dizia L. Clark, as suas proposições implicavam um agente e não mais um espectador. E a arte
129 D. Davies, Art as Performance, 2004.
Erika e David estabelecem no plano mesmo do conceito e da teoria, não apenas o primado do agir e da ação em arte, mas sobretudo dispensam (ou repensam) o papel da “poiesis” e da “mimesis”, ao mostrarem que uma ação artística pode se realizar sem a produção de um artefato (ergon), objeto estético (aestheton) ou semântico (semainon), seja de uma forma ou regra (canon), tese indiretamente confirmada pelo trabalho de Frédéric Pouillaude130. Todavia, ao explicitar esse conceito agentivo e performativo de arte, Erika e David não deixam de mostrar aquilo que ficava oculto e até anulado nas concepções estéticas, formalistas e semânticas, da arte e da obra de arte, a saber, que arte (forma) e obra de arte (matéria) sempre são o efeito e o resultado de uma ação de agenciamento, portanto, de um processo geracional desencadeado por um agente, sendo a própria arte uma atividade, um curso de ação ou uma ação em curso vincada por uma materialidade e sobretudo vinculada ou indexada a uma localidade ou mundo de interação e interagência. A arte deixa de ser pensada como ação poética e estética, produtora de objetos e artefatos, para vir a ser concebida como uma atividade performativa. Além disso, torna se claro também que a atividade artística é uma forma de agenciamento de agentes e suas ações, portanto, não apenas de interação entre objetos e agentes, mas antes de interação entre ações e seus agentes, portanto, de interagência. A descrição desse tipo de arte exige, por conseguinte, uma visada para além do fenomenológico e também do hermenêutico.
131 F. Kittler, Die Wahrheit der technischen Welt: Essays zur Genealogie der Gegenwart, 2014.
Atos e Artefatos 249 de performance, ao ser destilada e isolada das artes de execução e de simulação, vem coroar e realizar plenamente este conceito agencial e agentivo, performático e performativo, de arte, ao dispensar inclusive o conceito ou proposição prévia (o texto, o roteiro, a instrução etc.).
Que a arte se deixe agora descrever em termos mais próximos à técnica e à tecnologia não é um fato sem consequências, tal como já mostrara Kittler131 . 130 Le désoeuvrement chorégraphique, 2014.
Modulação da ação e da interação
Este aspecto sempre foi percebido quase que de imediato pelas mulheres e homens de ação, no campo prático, o que se mostra pelo constante aliciamento, positivo ou negativo, das artes e das obras de arte, para fins religiosos, éticos e políticos. O que a arte pode, o poder das artes e das obras de arte, mostra se nas transformações políticas e ontológicas que elas promovem e não apenas representam ou simulam. A performance artística de Geraldo Vandré e sua obra de arte musical, Pra não dizer que não falei das flores (1968), não foi percebida como mera representação, estética e significativa. O seu poder de agenciamento, não apenas os efeitos, mas de agência, no sentido proposto por Gell132, e de efeitos de realidade, como pensa Black133, abalou os poderes ditatoriais e suas armas. Desse modo, Vandré, reitera apropriadamente a resposta artística à pergunta final da peça Na solidão dos campos de algodão.
250 Atos e Artefatos
A ação artística sempre foi pensada como uma ação de composição de formas e materiais. Com os conceitos de “performance” e “performativo”, David e Erika explicitam aquilo que sempre esteve presente na ação e na atuação artísticas, a saber, o fato de que elas instauram e efetivam outros agenciamentos e interagências.
133 J. Black, The reality effect: film culture and the graphic imperative, 2002.
O ponto principal na arte contemporânea está na superação do conceito de obra de arte como um objeto ou artefato, pressuposto por todas as filosofias da arte e estéticas filosóficas, cujo propósito final era concebido, portanto, como um objeto inativo que atuaria nos sujeitos por meio da sensibilidade e apenas enquanto esse sujeito fosse passivo também, no sentido de ser um receptor, seja estético seja semântico. A direção dessa superação a ser explicitada aqui consiste em recuar do objeto para a ação, e da representação para a agência, no sentido de que a atividade artística, no lugar 132 Alfred Gell, Arte e Agência;, 2018.
de Marina Abramovic, Lips of Thomas, (1975) era já uma ação que fazia desaparecer a fronteira entre ficção e realidade, pois representação ela já não era, uma vez que os efeitos de sua ação atingiam e alteravam o próprio real da performer e da audiência, no caso da performance de Yoko Ono, Cut Piece (1962), a ação já não está sob o controle da artista, mas os efeitos lhe atingem efetivamente. O que Yoko fez foi reiterar o gesto de Duchamp, mas 134 F. Gullar, Etapas da arte contemporânea: do cubismo à arte neoconcreta, 1985. 135 V. Flusser, O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação, 2007.
Atos e Artefatos 251 de produzir um artefato, agora modula o agir e o interagir e, também, instaura e articula um espaço de jogo ou campo de ação no qual o artístico emerge e se faz efetivo. Primeiro, a obra de arte mesma passou a ser um fator de interação e de interagência, como é o caso do Diálogo de mãos de L. Clark e dos Parangolés de Oiticica, nas quais ainda o artista produz um objeto, mas esse objeto é para ser manipulado, agenciado e reelaborado por um agente ativo, e não apenas um espectador. A arte ali apenas se mostra por uma ação e o artefato está ali como uma oportunidade de interação. Nesse contexto, esse tipo de obra de arte foi denominado por F. Gullar de “Não Objeto”134 e por Flusser de “Não Coisa”135, ambas expressões (infelizes) que mais indicavam o desconforto em relação aos conceitos clássicos de “obra” e de “objeto estético”, “símbolo” e “signo”, com os quais as obras de arte até então foram apreendidas no plano do conceito. Segundo, a obra de arte mesma passa a ser uma instrução para ação, uma proposição como diz Clark, e é o espectador, agora agente ativo, que perfaz o objeto final. Portanto, na cifra “arte conceitual” esconde se novamente o principal, desde que se perceba que “conceitual” significa “instrução para uma ação”, ou seja, o fato de que a arte agora requer um agente ativo capaz de atuar por si mesmo no plano da realidade e não mais apenas capaz de elaboração mental. Terceiro, a obra de arte mesma passa a ser uma ação, atuação, performance. Não é apenas que a arte exija agentes ativos, mas as próprias obras são ativas, interativas e performativas.Seaperformance
252 Atos e Artefatos o radicaliza ao abandonar o artefato como suporte ao expor se enquanto corpo e lugar da ação artística do outro. Ainda assim, essas duas ações artísticas, embora fossem já da ordem do atual e da agência efetiva, não mais simulações e representações, as implicações, ou seja, suas pressuposições e consequências, a efetividade dessa arte, vai se mostrar propriamente nas atuações Carnal Art de Orlan (1990), que assumem a transformação e a transição como seu objetivo explícito. Não é preciso enumerar todas as ações artísticas desse tipo para se perceber que elas têm uma consistência impérvia aos conceitos tradicionais da filosofia da arte.
contemporânea,
O que estas ações artísticas ilustram não é uma irrealidade e um mundo fictício; também não é uma formação sígnica e simbólica, e menos ainda um bloco linguístico ou de sensações. De fato, o que se apresenta aí não é diferente do que se apresenta nos laboratórios científicos e nas oficinas técnicas, onde, desde o século XVIII, a “realidade” se mostra como uma variável cujo valor efetivo é dado pela função dos agenciamentos e armações que os humanos implementam experimentalmente. O que se mostra assim é algo que sempre esteve presente e atuante nos ateliês artísticos, a saber, o exercício experimental e o fazer livre. Esta desinibição da ação artística porém, foi alcançada pela transformação cultural que a ciência e a técnica moderna implementaram. A arte e a técnica contemporâneas se constituem, com efeito, a partir da experimentação livre no plano mesmo da interagência e da liberação de outras realidades, de outras materialidades e agências, ao serem praticadas e desenvolvidas no contexto da nova universidade politécnica e multicientífica. O que se mostra na arte dita contemporânea é da mesma ordem daquilo que se mostra nos laboratórios científicos e oficinas técnicas, a multirealizabilidade das entidades e a realização múltipla dos seres.
Experimentação transformadora Uma vez alcançada esta visada em relação à arte, torna se perceptível a sua geminilidade com a técnica e a tecnologia. As artes e
Atos e Artefatos 253 as técnicas modulam, afinam e ajustam a agência humana. A base é a capacidade de agir, tanto de desencadear cursos causais quanto de os controlar, mas sobretudo de instaurar outras formas de agir e modos de interagir. Os seres humanos, individuais e coletivos, são entidades capazes de agir conscientes dessa capacidade, o que se revela na fabricação rotineira e continuada de artefatos e apetrechos os mais variados, algo que remonta aos primeiros hominídeos, mas sobretudo na constante transformação, adaptação e aperfeiçoamento desses artefatos e apetrechos. Porém, se isso fosse tudo, a cultura seria redutível ao conjunto de artefatos. A cultura não é apenas isso e o principal está noutro lugar. Com efeito, o principal de uma cultura está na conformação e na modulação do agir e do interagir, o plano das instituições, das práticas e dos padrões de ação, ali onde estão as artes e as técnicas que constituem o mundo de uma comunidade, que a liberam e emancipam para ser outra coisa que repetição e deriva natural. As atuais obras de arte e obras técnicas são artefatos cuja genealogia remonta à pré história: música e instrumentos musicais, pinturas e instrumentos e materiais de pintura, esculturas e instrumentos de esculpir, etc, tudo isso é tão antigo quanto antigas são as comunidades humanas. Na sua origem estão modos alterados, por meio de regras e esquemas, de agir e de interagir. As obra de arte e de técnica são transformações implementadas elas mesmas por comportamentos transformados, são já efeitos das transformações do agir e do interagir. E um olhar mais atento verá na sua base, das artes e das obras, um experimentar insistente, pervasivo e brincante que alcança uma consistência quando instaura uma disrupção que faz emergir um modo de agir e de fazer diferenciado que pode ser reiterado e assim liberar um espaço de jogo livre. Esta experimentação e transformação têm relevância antropológica e ontológica, e também ética e política, pois perfazem alterações que instauram entidades e identidades alternativas, ou seja, elas performam outros modos de ser e outras formas de existir que multiplicam e diversificam o ser humano e o mundo, ao quebrarem as
254 Atos e Artefatos constrições materiais e naturais. A experimentação, sobretudo, técnica ou artística, implica a agência ativa em relação ao ambiente e também em relação às próprias entidades agentes. Não transformamos ativamente apenas as coisas, mas antes de tudo nos autotransformamos. Por isso, as artes e as técnicas, ao modularem o agir e o interagir constituem um processo de autoperformação ontológica de entidades individuais e coletivas que se autoperfazem por meio das próprias ações. O que se mostra nelas é a postura ontogenética ativa, pois o nosso ser e o nosso existir não são determinações passivas.O ponto está em pensar a arte e a técnica como o modo mesmo pelo qual o humano perfaz seu mundo e também o modo pelo qual o humano perfaz a si mesmo, ou seja, em se perceber que o humano não é um dado natural, ontologicamente constrito pelas regularidades materiais e energéticas do contexto em que vive. O humano da espécie humana é um efeito da sua própria agência, e o sentido da expressão “arte técnica” indica justamente tanto sua agenciabilidade quanto sua artefatualidade. A máquina de voar, assim como a vacina e a energia elétrica, não são fenômenos ou significações: esses termos indicam a efetividade, no plano da natureza e da matéria, de agenciamentos que atingem a própria fábrica da realidade. Por conseguinte, a sua efetividade não é apenas do âmbito da percepção e da significação, mas sim também enquanto ação ontologicamente ativa em relação aos próprios agentes, não apenas artistas, mas sim incluindo a comunidade na qual eles emergem e atuam. Nas artes e nas técnicas, o que está em ação é a agência, mas o que se visa aí é a transformação e o aprimoramento dessa agência. Na verdade, as características que distinguem os humanos entre si e também em relação aos outros animais são todas elas ligadas à agência: aos modos de agir, aos modos de fazer e fabricar, aos modos de interagir e cooperar.
Desse ponto de vista, aquilo que se denomina com as palavras “arte” e “técnica” são já fixações conscientes, reflexivas até, da capacidade de alterar e de variar os modos de agir e de interagir, seja em relação à interação com o ambiente, seja em relação à interagência com outros agentes. A arte de pegar peixes, a arte de pegar ondas e a arte de dançar, ali onde elas já são nomeadas, são formações tardias, por sobre as quais outras artes e técnicas são experimentadas e aprimoradas. Na base, todavia, está sempre a modulação da agência. Por isso, nas reflexões precedentes procuramos mostrar a dança como a matriz de todas as artes e técnicas, embora a arte da dança seja uma formação apurada e sofisticada por muitas camadas reflexivas sobre o dançar primário. Experimentar e variar a própria agência, experimentar e variar a própria habilidade de experimentar e de variar a própria agência, reiterar isso, fazer essa habilidade refletir se nela mesma, eis a raiz das artes e técnicas, e se usássemos a palavra “dançar” para indicar esse experimentar não erraríamos em nada. Esta raiz é a matriz da transformação e da diversificação dos modos de ser e das formas de existir que agora se mostram na forma de estilos, etnias, culturas e civilizações, onde quer que haja espécimes humanos. O humano é a formação do animal homo sapiens sapiens, esta abertura para a pluralidade e para a diversidade extranaturais. O humano, não enquanto conceito abstrato, mas enquanto forma de existência e modo de ser, somente pode ser pensado como o efeito da agência que se transforma ao se experimentar e variar se
Atos e Artefatos 255 Efetuações ontológicas Sem as artes e as técnicas, seríamos tão somente entidades naturais de uma espécie numa fase de sua derivação. A alteração (alloiosis) que abre a cultura também abre a diferenciação e a multiplicação da própria cultura, das artes e das técnicas. Na liberação em relação às derivas naturais, o que se abriu como entidade cultural foi a multirealizabilidade e a realização múltipla. Ser cultural, ser histórico, como bem notou Dilthey, é ser de saída e de raiz múltiplo e liberto para a plural diversidade.
256 Atos e Artefatos realizando multiplamente. A efetividade dessa agência está na alteração do ser das coisas e na alteração das próprias coisas, ou seja, na sua plurificação e na sua diversificação. Isso se mostra no fato de que todo nome de arte ou de técnica sempre indica uma diferença, seja em relação ao comportamento natural seja em relação a outros comportamentos culturais. Variar, transformar, introduzir diferenças, nisso consiste o experimentar, o fazer experiências, que incide em primeiro lugar sobre as coisas, mas depois sobre os tipos e estruturas das coisas. Experimentar é fazer alterações nas coisas e no ser das coisas. Dessa atividade nascem as artes e as técnicas, as quais têm, de saída, efeitos ontológicos, sobretudo em relação ao agente que as desencadeia. Além disso, o caráter experimental das artes e das técnicas revela um outro aspecto ontológico, para o qual Nietzsche chamou a atenção, ao dizer que a arte é a própria atividade metafísica. Pois, o experimentar e o transformar que nelas se torna efetivo estão fundados no fato de que não se trata apenas de implementar e realizar possibilidades prévias ou formas preexistentes, mas sempre de ousar e tentar outras possibilidades ainda não dadas e outras formas inéditas, portanto, de instauração e de construção de possibilidades e formas, isto é, dito em tom maior, de fazer possível o que é impossível. O Choro e Samba não eram possibilidades e formas dadas apenas ainda não realizadas. Muito pelo contrário, essas formas ou gêneros musicais foram construídas e instauradas pela atividade e ação de músicos na busca de uma outra forma de expressão musical. Eles conheciam as possibilidades musicais já existentes, mas eles fizeram outra coisa: experimentaram, transformaram, aumentaram o ser da música e fizeram novas e diferentes músicas: multiplicaram o ser e o ente musical. Dito em termos técnicos: eles experimentaram e jogaram com a própria multirealizabilidade da música. O Choro e o Samba, apenas para uma visão encurtada pela abstração, realizam possibilidades musicais já existentes. E, por outro lado, enquanto fixações da multirealizabilidade da música, elas indicam, por contraste, a plasmabilidade ontológica ínsita no ser das coisas.
Atos e Artefatos 257 De veras, Arte e Técnica designam primariamente modulações de ações e modos de agir: objetos, eventos e instalações artísticas e técnicas são já o produto e o efeito do agir artístico e do agir técnico. O mundo humano, em qualquer lugar onde há humanos, se constitui e perfaz por esta modulação. Tais ações técnicas e artísticas se caracterizam por uma alteração transformadora de materiais, estruturas e também de modos de agir, e elas mesmas exigem para serem executadas uma alteração transformadora dos próprios agentes executantes em seu modo de ser e existir. Lygia Clark e Santos Dumont, dois exemplos da grande arte e da grande técnica, inaugurais que foram, não apenas transformaram a arte e a técnica modernas, eles para isso se transformaram também, eles fizeram diferente e assim também foram humanos diferentes. As suas angústias e dores eram sintomas de uma inadequação ao humano de seu tempo; as suas artes e técnicas, uma indicação de outra humanidade. O principal da ação humana em relação ao ambiente natural, à primeira vista, parece ser a produção de objetos artefatuais, como mesas e cadeiras. Todavia, este tipo de produção praticamente não altera o ambiente e não se diferencia muito do que plantas e animais, enquanto agentes biológicos, implementam em seus nichos ecológicos, como é o caso da maior estrutura construída por um agente biológico, a colônia de cupins na Bahia136. A ação humana, propriamente impactante, que transforma e impõe mutações à natureza, com impactos extranaturais e até antinaturais, está na manipulação forçada de propriedades naturais para alcançar uma formação que a natureza não produz e ao mesmo tempo não recusa, como é o caso das técnicas de enxertia e de polinização forçada para os vegetais e de seleção artificial por cruzamento forçado e ultimamente de inseminação artificial para animais. Essas técnicas promovem um acréscimo de ser, pois produzem entidades e atividades cuja lógica não é mais natural e cuja estrutura material não deriva da imanência da natureza. Por outro lado, a engenharia moderna, sobretudo a partir 136 R. Fuch, Termite mounds as dominant land forms in semiarid northeastern. 2015.
258 Atos e Artefatos do uso da energia elétrica, de corrente contínua e de corrente alternada, e da invenção dos motores à vapor, à combustão interna, tem de ser vista como técnica de enxerto também, mas aplicada diretamente na realidade inorgânica. Os motores elétricos e os motores à combustão, desenvolvidos no século XIX, alteraram a condição humana, ao lhe permitir operar em situações e condições de energia, matéria e força antes impossíveis. Se consideramos a trajetória dos primeiros voos no entorno de 1900 até o pouso na Lua em 1969, passando pelo primeiro satélite artificial, o Sputinik, e pelo primeiro voo fora da atmosfera terrestre, de Iuri Gagarin, em 1961, e depois a primeira estação espacial, o Skylab, em 1973, parece inacreditável que isso tenha acontecido em tão pouco tempo. Se acrescentamos a isso as tecnologias atômicas, o primeiro bebê de proveta, em 1978, e o primeiro transplante de coração, em 1964, bem como a primeira pílula anticoncepcional, em 1960, e uma série de outras invenções e criações, pouco espaço há para diferenciar o potencial criativo tecem relação ao artístico. A disrupção em relação aos dados naturais, que no passado remoto nos fez humanos, ainda reitera se nesses atos técnicos e artísticos. Esta condição e a situação que ela instaura não são apenas da ordem do estético e do simbólico, e menos ainda da ordem do imagético e do linguístico. Por isso, a hermenêutica aqui desenvolvida busca explicitar o caráter ontológico das invenções e instaurações artísticas e técnicas, com especial ênfase para o fato de que o próprio humano, no seu ser e no seu existir, assim se constitui como uma entidade artefatual. A base das invenções, das técnicas e dos artefatos é a multirealizabilidade ontológica, seja em relação ao ser das entidades, seja em relação às entidades que instanciam um tipo de ser. Tanto o ser quanto o ente são variantes e estão em trânsito. A partir dos primeiros artefatos, mas sobretudo a partir das técnicas modernas, os animais humanos foram aos poucos explorando esta multirealizabilidade. Que isto apareça como perda de essência e como abandono do ser não nos deve enganar, pois esse tipo de aparência apenas assombra quem ainda pensa em termos de essências
nocientífico
A espécie humana é uma entidade plural cujas condições de existência se constituíram por meio de transformações diversificantes das condições naturais. Isso já se mostra pelo fato de suas habitações serem tão diversas, frente as quais os cupinzeiros aparecem como repetições sem variação. Em termos ontológicos, a identidade do ser humano se estabelece por meio de afastamentos e alterações artefatuais em relação à própria natureza e pela alteração reiterada do ambiente natural. Em todos os eixos de sustentação da vida humana (alimentação, habitação, reprodução, socialização, comunicação, locomoção, comportamento, proteção, etc.), estão operando constitutivamente transformações e modificações que tornam a existência humana e o mundo humano, ou seja, o mundo humano no qual ações e percepções têm sentido e são eficazes, realidades extranaturais, ou artefatuais, que necessitam de construção, reiteração e ensino ostensivos. O mundo e a identidade humana são por isso construtos artefatuais. As artes e as técnicas, tanto objetos quanto ações, são a base por sobre a qual esse mundo e essa identidade são performadas. O agir técnico e o agir artístico perfazem o humano multiplamente. O humano se faz ao fazer artefatos; e os artefatos implicam o humano enquanto humano na sua confecção, execução e operação, e não como uma entidade natural. De modo algum a ação humana é uma ação de uma entidade que permanece inalterada e indene. A ação humana é efetiva ao ser ontologicamente ativa e performativa, sobretudo em relação ao seu próprio ser e existir. Assim, dançar, cantar, sonorizar, esculpir, pintar, construir, imaginar, gravar, escrever, organizar, regrar, etc. são já elaborações reflexivas do atuar primário pelo qual a espécie se perfaz como humana adaptando e alterando os materiais, forças e estruturas naturais. As línguas e os costumes das diferentes culturas são já produtos de uma longa história de
Atos e Artefatos 259 fixas e destinos metafísicos, ou seja, em termos de passividade ontológica. Transição do humano
260 Atos e Artefatos transformações, a ponto de apenas poderem ser adquiridas por meio de um ensinamento continuado, mas também a culinária, a habitação e a organização social. Esta condição implica uma transformação e transfiguração materiais e efetivas, no plano do ser, e não apenas simbólicas e imagéticas. Os conceitos de “transformação em configuração” e de “transfiguração”, usados respectivamente por Gadamer e Danto para pensar a alteração que está na base da arte, precisam ser estendidos também ao caso dos objetos técnicos. Todavia, estes dois conceitos não apreendem tudo o que há para se compreender no agir artístico e no agir técnico, pois na base dessas ações está em andamento uma transformação material do agente e do meio de ação que extrapola a dimensão estética e também a semântica. Outro aspecto a ser revisado nas teorias que culminam nas propostas de Gadamer e Danto é que a transformação da arte e da técnica não é apenas no plano semântico do sentido e do significado dos atos e dos artefatos: na ação artística, assim como na ação técnica, ocorre uma transformação ontológica que altera a natureza do agente e do objeto, mas antes ainda altera a própria intencionalidade ou pensamento. A própria mente é tocada e alterada por estas ações137 . Uma instalação, como a Invenção da Cor, não é um dado natural; a sua proveniência e existência decorrem de um processo geracional, baseado em transformações materiais, desencadeado, executado e controlado pelo agir artístico criado e proposto por H. Oiticica, do mesmo modo uma máquina como o avião experimental 14 bis. Na base de ambas está uma experimentação com a própria maleabilidade e alterabilidade da natureza, ou seja, uma dança com o próprio ser das coisas. As transformações materiais perfazem um redirecionamento de fluxos energéticos e uma reestruturação dos componentes e das forças, ao serem reconfiguradas a partir de sentidos diferentes. A lógica da instalação, de arte e de técnica, não é mais a lógica natural. A ação artística e a ação técnica instauram diferenças 137 C. R. Braida, 2020; 2014b.
Yuk Hui138 denomina “cosmotécnicas” o conjunto das ações técnicas e artísticas justamente por elas constituírem a base dos mundos e das existências humanas, as quais podem ser enumeradas na sua pluralidade minimal pelo número de línguas humanas. De acordo com a Ethnologue (2020), a maior enciclopédia de línguas, ainda existem cerca de 7102 línguas no mundo. No Brasil de 500 anos atrás havia mais de 1500 línguas faladas no território, mas hoje restam pouco mais de 200 e a maioria delas em risco de extinção. Cada língua é uma cultura, cada língua é uma forma de viver e fazer mundo, de pensar e de sentir, de agir e de se comunicar. O fenômeno humano é na verdade e na realidade um fenômeno que apenas se deixa dizer no plural, pois se realiza multiplamente. A multirealizabilidade do humano não é apenas uma questão de instanciação múltipla de um mesmo universal, mas sim de uma realização diversificante e diferenciante sem retorno a um original e sem preservação de um uni138 Y. Hui, Cosmotechnics: For a Renewed Concept of Technology in the Anthropocene, 2021.
Atos e Artefatos 261 ontológicas e por isso mesmo implicam uma certa indiferença ontológica daquilo sobre o que incidem. Porém, não é apenas o material que é ontologicamente alterado por essas ações, pois os efeitos destas retroagem sobre o agente também. O que ali se alcança é uma alteração diversificante no próprio agir e atuar. O que Dumont e Oiticica fizeram, enquanto ação técnica e artística, não está nos objetos ou artefatos por eles produzidos, mas antes e mais efetivamente na própria técnica e arte que eles tornaram viáveis, ao tornar possível outro modo de agir e de interagir, ao “usar o vento para navegar contra o vento”, como nos lembra Frege. Não se trata apenas de alterações de sentido no plano comunicacional e sensitivo. Com efeito, as ações técnicas e artísticas estabelecem um ambiente material artificial histórico, que Hegel e Dilthey denominaram “espírito objetivo”, que é o solo e a condição vital e mental para as novas gerações. As origens e os fundamentos dessa “segunda natureza”, como diz Gadamer, estão lá nos antepassados do homo sapiens, na outra hora anterior a história registrada.
262 Atos e Artefatos versal. Como bem percebeu Schleiermacher, não há uma língua adâmica, não há uma gramática universal e menos ainda uma língua universal: o que há são línguas e gramáticas humanas. Tal como a vida na Terra, bem pode ser que tenha havido uma origem única da qual todas as formas de vida descendem, assim como bem pode ter havido uma única língua da qual todas as atuais línguas humanas são flores, como sugere o epíteto “a última flor do Lácio” atribuído à língua portuguesa, que já agora é na verdade a penúltima, pois está aí o português brasileiro, mas o fato é que não há mais essa origem, pois ela não existe como atualidade atuante. A pluralidade e as múltiplas realizações das formas de vida e das línguas são agora a única efetividade e elas não estão unidas e unificadas por um elo material ou formal efetivo. A efetividade é uma complexidade diferencial e plural absoluta. Daí que aquela condição denunciada com nostalgia por Heidegger, do esquecimento do ser e da perda da essência, que ele nota na cultura moderna, na era da técnica e da arte autônomas, na verdade é a condição do humano, da cultura e da língua, mas também da vida, nos sentidos de “zoe” e de “bios”, visto que apenas por artifícios e intermediações artefatuais podemos reencontrar os elos de copertinência dessa realidade múltipla e diferenciada. Assim também é para as artes e as técnicas, que, diferentemente do postulado para as formas de vida e para as línguas humanas, gozam de saída da poligenia e das múltiplas realizações simultâneas e independentes. Longe de casa, fora do ser e sem essência comum, eis a condição que se mostra na potência da arte e da técnica. As artes e as técnicas, enquanto sejam pensadas como modulações da agência, constituem o comportamento pelo qual os animais humanos buscam dar à sua existência um sentido, uma direção, um brilho, uma diferença. E nesse agir técnico e artístico esse animal natural se torna e perfaz uma vida artefatual plural e diversificada.
Atos e Artefatos 263 Seres da dança Uma vez aceito que a arte e a técnica introduzem entidades e tipos de uma consistência ontológica diferente em relação às entidades e tipos dados na natureza, uma questão emerge como cogente: uma entidade natural poderia se tornar artificial? Uma entidade poderia transitar de uma categoria ontológica para outra? Não é isso o que acontece com a pedra que vira estátua? Não é isso o que acontece com uma espécie que em todos os aspectos de sua existência e vida depende agora de intermediadores e próteses e fontes de energia não dadas na natureza? A hipótese aqui desdobrada está baseada na ideia de que a arte e a técnica introduzem acréscimos ontológicos e fazem aumentar a quantidade lógica do ser e do existir. Um tabuleiro de xadrez não é um produto e menos ainda um dado natural, e do mesmo modo um computador e uma sinfonia de Mozart, e também a constituição brasileira e a língua portuguesa. Com a arte e a técnica emerge um âmbito ontológico que, embora fundado no âmbito natural, pode ser como extranatural e até antinatural, mas que não é, todavia, supranatural. Não há fora da natureza; mas há entidades, condições, propriedades e situações cuja consistência ôntica está fundada na vigência e na articulação de correlações e estruturas de princípios e mecanismos construídos e mantidos por práticas e ações que diferem radicalmente do modo de produção e articulação naturais. Uma lavoura de soja transgênica e um satélite artificial, mas também a inteira malha das redes e usinas elétricas são exemplos de instalações e mecanismos cuja gênese, dinâmica e estruturação estão baseadas em correlações extranaturais, no sentido de que as derivas imanentes contínuas e contíguas das forças, processos e entidades naturais não produzem por si mesma esta efetividade e também não a impedem.Acrise ecológica, a extinção de espécies naturais e as mudanças climáticas expõem os aspectos negativos desse avanço do artificial sobre o natural. Com efeito, uma coisa é uma entidade ou um tipo de entidades surgir ou desaparecer por meio de mecanismos e
conceituado
A arte e a técnica apenas explorariam a plasticidade e a reconfigurabilidade da natureza (matéria, energia), explicitando a sua indiferença quanto ao surgimento e ao perecimento, ou seja, explorando e tornando efetiva a sua não resistência à transformação e à mutação. Afinal, todos os produtos artificiais e todos os mecanismos sintéticos são configurações de matéria e energia e apenas têm consistência efetiva enquanto não contrariam as dinâmicas e estruturalidades ínsitas na matéria e na energia de fundo. Nesse sentido, as artes e as técnicas são atividades de uma espécie natural análogas às atividades de outras espécies naturais. Sob
264 Atos e Artefatos processos imanentes à natureza, mesmo que fortuitos ou acidentais, como é o caso da queda de um meteorito ou do ressecamento de um lago. Outra bem diferente é quando isso acontece pela introdução de processos e produtos artificiais, como é o caso dos derivados do refinamento de petróleo e dos resíduos da indústria química e atômica. Ainda assim, se poderia pensar que tais alterações seriam produtos da natureza, pois o surgimento ou o desaparecimento seriam efeitos de encadeamentos das forças e fatores naturais. Afinal, qual é a diferença ontológica entre um lago secar e o seu bioma desaparecer por causa de um terremoto e isso acontecer por causa de uma canalização feita com máquinas, projetos técnicos e trabalho assalariado? O surgir e o desaparecer de um bioma, e das entidades e espécies vivas que o compõem, é um fato natural que em nada altera a consistência ontológica do ser em seu todo. Dada a atual teorização sobre a física, a química e a biologia da biosfera terrestre e o sistema planetário no qual ela se localiza, as transformações e mutações, o surgir e o desaparecer de entidades e tipos é o real efetivo e constante da sua natureza. O surgir e o desaparecer de entidades e tipos é um aspecto da multirealizabilidade e da multifuncionalidade da natureza pensada como desdobramento e deriva da matéria ou da energia de fundo. Tudo se transforma, nada se perde. Se essa consideração for correta, então o surgimento de entidades e tipos de entidades artificiais não é uma surpresa, mas sim o aspecto ativo dessa multirealizabilidade e multifuncionalidade.
consistência
Atos e Artefatos 265 uma visada liberada de qualquer tabu, os produtos artísticos e técnicos são eventos, configurações, arranjos e entidades materiais e energéticas tanto quanto o são um arco íris, o estriado ondulante das dunas no deserto, as listras do pelo das zebras e as grandes pedras da praia de Itaguaçu. Com efeito, considere se essas duas imagens, uma da praia de Itaguaçu, em Florianópolis, e a outra da obra Invenção da cor, em Inhotim. Essas duas imagens captam duas realidades materiais e energéticas, duas objetidades, dois ambientes, enfim, duas estruturações que fazem parte do universo, do ser em seu todo. Obviamente, qualquer cético e qualquer deflacionista de tigela furada pode armar um discurso e uma teorização que faz ambas essas objetidades perderem sua efetividade e sua identidade ontológica, usando alguma estratégia análoga a daquele argumento que faz desaparecerem montanhas e vales, ou então a daquele que faz desaparecem os navios na praia para o olhar indígena. Afinal, alguns patos viram coelhos num piscar de olhos; então, porque essas configurações da matéria não seriam também elas projeções de um olhar se deixamos os céticos e os deflacionistas falando sozinhos não é porque desgostamos de suas conversas bem arranjadas, mas antes porque as grandes pedras, embora belas ao entardecer, se não cuidamos, nosso barco pode se despedaçar contra elas num dia de vento sul; e as paredes planejadas por Oiticica, com sua composição material e sua cor, ocupam um lugar no espaço e refletem a luz do sol e nelas os pássaros, distraídos que são para o vidro, se chocam e morrem. Elas existem e têm identidade, elas são e têm ontológica, caso qualquer outro objeto que possamos nomear as tenha. A partir desse tipo de consideração, franco e liberado de constrições ascéticas e assépticas, a praia de Itaguaçu e a obra Invenção da Cor são entidades bona fide e objetidades objetivas. Mas, mesmo que isso fosse concedido, ainda restaria a questão de sua “natureza” ou do tipo de sua consistência ontológica. Não temos outra alternativa senão a de dizer que a praia é uma conformação natural e que a obra é uma conformação artefatual,
enviesado?Agora,
266 Atos e Artefatos que as pedras da praia são estruturas formadas por dinâmicas e processos geológicos e biológicos imanentes, e que as paredes da obra são estruturas formadas por dinâmicas e processos culturais e sociais transcendentes. A palavra “imanentes” significando apenas que a configuração atual é uma fase de uma transformação contínua sem ruptura energético causal; “transcendentes”, por sua vez, significa que a configuração atual é uma fase de uma transformação com rupturas e desvios energético causais provocados pela intervenção de estruturas e forças externas ao ambiente de emergência daquela configuração. Em outras palavras, a praia e a obra diferem entre si no processo geracional. Desconsiderado esse processo, que é uma sequência de transformações, não resta diferença ontológica entre uma construção e outra. Aliás, nesse exato momento, a praia e suas pedras, e a obra e suas paredes, estão em processo de transformação segundo as mesmas “leis” naturais. A natureza, ou o universo, é duplamente indiferente à praia e à obra: por um lado, porque ambas são fases e aspectos de sua transformação sem perdas, ambas são projeções de sua plasticidade; por outro, porque ambas não retêm ou impedem essa transformação, pois não eliminam a multirealizabilidade e a multifuncionalidade de fundo. Nada nas pedras e nas paredes pode impedir a transformação em areia. O tempo, ou seja, a medida e o ritmo da transformação, pode tardar, mas não falha. Tudo muda, tudo se transforma, nada escapa à efemeridade, por mais longo que seja o seu dia. O que quer que seja isso, a natureza, o ser em seu todo, a matéria, isso não resiste à mudança: tanto se deixa alterar quanto se altera sem cessar. Longe da necessidade pétrea e da fixidez, isso muda. O conjunto atual de coisas naturais é uma fase dessa mudança incessante; o conjunto atual de artefatos técnicos é uma fase dessa mudança incessante, e também o conjunto atual de obras de arte e a mentalidade que as preside e interpreta. Tudo se transforma, tudo muda, sem perdas, eis a graça. Não haver perdas é a chave para se compreender a generosidade da natureza. E, embora associemos à técnica a ideia de transformação negativa e destrutiva, isso também não é verdade. Pois também as transformações naturais e artísticas são destrutivas
Logo, a sua fase e face atuais não são nada a ser conservado e menos ainda essa ou aquela direção de sua deriva. Apenas se indexamos a um tempo, a um lugar e a uma entidade determinada e suas condições de identidade e existência, forçadas como “essência” e “ser”, é que podemos fixar algo como uma configuração a ser preservada.
Atos e Artefatos 267 e negativas, pois não pode haver transformação sem destruição e negação, e também não construção e produção sem transformação destrutiva e negativa. Tudo se transforma, nada se perde. A técnica e a arte são extranaturais e até antinaturais, mas isso apenas no sentido de que são modulações da transformabilidade e da plasticidade ontológica não imanentes e não sequentes. De certo modo, a técnica e a arte são explorações parciais da transformabilidade inerente ao ser, frente à exploração natural. Todavia, a técnica e a arte são também extrapolações da transformabilidade natural ali onde a natureza se contém em certas constrições temporais. Um transplante de um órgão é uma transformação que é conforme as constrições da natureza biológica, mas que perfaz uma alteração impossível para a própria natureza. Os meios, mecanismos e dinâmicas da biosfera tornam impossível a ocorrência natural de um transplante imanente de coração, embora em níveis mais simples e básicos ocorram trespasses análogos. Porém, a natureza ou o ser não resiste a essas inovações e transformações, ela as acata e as toma como oportunidade de ação e de outras transformações. Afinal, o cérebro se ajusta aí nisso também e o coração alienígena bate como dantes.Não é que as transformações artísticas e técnicas, as alterações produzidas pela cultura, não sejam destrutivas em relação à natureza e às entidades e espécies naturalmente dadas. Ao contrário, elas sempre o serão; todavia, há transformações e transformações. O excessivo e o disruptivo são bem visíveis nisso que chamamos hoje de crise ecológica, extinção de espécies e biomas e mudanças climáticas. Mas, disso não se pode inferir que seria melhor então nenhuma mudança, ou que toda mudança é um mal, como querem os conservadores de todas as matizes. A natureza é no fundo uma metamorfose semovente e incessante sem direção ou ponto de chegada.
268 Atos e Artefatos
Esse é o caso da espécie humana atual: ela quer se conservar tal como ela é hoje e por isso deseja e projeta esta “natureza” como sua condição de existência e identidade. Mas, nem a natureza sempre foi assim ou se projetou para ser fixada assim como ela está, nem o ser humano atual é a última e figura final da transformação que veio dar nisso que ele é hoje. As ontologias clássicas reconhecem ser apenas para o naturalmente dado, excluindo as coisas feitas. Todavia, ao procederem assim elas excluem também a própria agência do seu universo. A agência era pensada como efeito de superfície e até às vezes posta como ilusão e erro. O inteiro domínio das coisas feitas eram assim relegado ao não efetivo e ao falso. Obras de arte e artefatos práticos obviamente existem e estão aí, talvez desde os primórdios das comunidades humanas. O problema está em como reconhecer sua posição ontológica. Uma forma de se manter a tese clássica é reconhecer a existência dos artefatos e negar que essas entidades tenham uma identidade ou essência. Outra é reconhecer a existência, mas negar a efetividade ontológica. E uma terceira forma consiste em simplesmente negar a existência dos artefatos. A posição esboçada neste livro consiste em reconhecer a existência e a identidade plenas aos artefatos e obras de arte sob uma posição meta ontológica pluralista com base nas ideias de multirealizabilidade e de diferentes modos de existência. Diferentes artefatos existem de modos diferentes e uma mesma identidade artefatual se realiza multiplamente. Com isso, o problema da falta de essência é resolvido e também a questão da diferença ontológica entre entidades naturais e entidades artificiais. Não ser natural não implica não ter ser e, por sua vez, ser artificial não implica em ter uma essência. O pensamento de uma natureza alterada, diferente do que ela é hoje, e de um humano alterado, diferente do que ele é hoje, nos assusta e faz vacilar as nossas melhores luzes. Ainda assim, tudo se transforma e nada se perde com isso. A dança continua e precisa continuar. A rigidez, a repetição, a fixação numa identidade é a doença, é a desordem. A monocultura, a reticulação, o tempo linear, a
Atos e Artefatos 269 serialidade, é a insanidade. Apenas a diferença salva, apenas a diversidade cura, apenas a multiplicação emancipa. A natureza estará sã enquanto não se retiver na mesmidade e se transformar, o espírito está são enquanto não se contém na identidade e aceita entrar na dança de Macunaima. Nada se perde ao se transformar, diversificar e multiplicar. O ser das coisas não resiste à mudança, nem quer nem não quer mudar de repente, muda. De graça, com generosidade, deixa vir a ser a diferença, diversifica se sempre que não é impedido, multiplica se por nada. Dança.
ABRAMOVIC,
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