3 minute read

Como sobrevivemos (mais uma vez) ao fim do mundo / Mariana Almeida

ESPAÇO DO SÓCIO

Como sobrevivemos (mais uma vez) ao fim do mundo

Advertisement

Mariana Almeida*

Dezembro de 2019. Acompanhamos os primeiros casos de COVID-19 na cidade de Wuhan, na China, com o distanciamento geográfico e afetivo de quem viu outras ameaças sanitárias surgirem, como a SARS e a H1N1, sem força suficiente para tirar-nos do nosso eixo. Celebramos as festas de final de ano e tocamos nossa vida normalmente. Em 13 de Janeiro de 2020, a primeira notificação da doença fora da China é reportada pela Organização Mundial da Saúde, na Tailândia. A partir de então, o cenário piora, com o surgimento de contaminações em pessoas que não haviam visitado o país asiático e a disseminação da doença pelo mundo. No Brasil, o primeiro caso de COVID-19 é detectado em 26 de fevereiro, quando o continente europeu já registrava centenas de contaminações. Março de 2020. A OMS declara que vivemos uma pandemia, e os primeiros casos de transmissão comunitária em solo brasileiro começam a surgir. Tomados de medo, sem entendermos muito bem o vírus e toda a sua gama de sinais e sintomas, passamos a adotar o distanciamento social, a lavar as mãos frequentemente, a usar máscara como acessório indispensável, a preferir, sempre quando possível, o home office e a adaptar uma série de atividades para a modalidade online. As escolas e as universidades recorrem ao ensino à distância, seja com aulas online, seja através de atividades remotas; a telemedicina se impõe como uma realidade incontornável; atividades de toda espécie, dos exercícios físicos às aulas de música, são feitas através de plataformas como Zoom, Google Meet e Hangouts, que muitos de nós pouco usávamos ou sequer conhecíamos. Ao longo do ano, veremos o avanço no número de contágios e de mortes, as vacinas surgirem no horizonte como uma esperança, e o termo “novo normal” tornar-se tão corriqueiro que todo o resto nos parece uma memória distante, quase impalpável. De toda forma, acreditamos que 2021 será melhor. Abril de 2021. Com a vacinação em curso, a passos muito mais lentos do que gostaríamos e do que seria o ideal, vemos o Brasil bater recordes diários de mortes. O cenário mundial ainda é incerto, embora traga notas positivas aqui e acolá. Adaptados às inúmeras telas que passaram a fazer parte das nossas vidas, porém carentes de calor humano, estamos todos muito cansados de viver a maior pandemia desde a Gripe Espanhola, que ceifou mais de 50 milhões de vidas entre 1918 e 1920. Se prever o futuro sempre foi uma ilusão de controle, isso, hoje, é mais verdadeiro do que nunca.

Para nós, psiquiatras, os tempos pandêmicos trouxeram experiências muito distintas, mesmo antagônicas. Se, por um lado, observamos uma piora dos sintomas em muitos de nossos pacientes, ou mesmo um aumento na incidência dos casos de depressão e de ansiedade, por outro, não deixa de ser espantoso observar como, apenas um ano após o começo disso tudo, muitos de nós nos encontramos adaptados a uma realidade que jamais poderíamos ter vislumbrado. O teleatendimento, antes objeto de bastante controvérsia, tornou-se corriqueiro; os congressos e eventos científicos à distância são, hoje, uma realidade que veio para ficar, possivelmente com a adoção de modelos híbridos após o término da pandemia; vários de nossos pacientes, e mesmo nós mesmos, embora estejamos todos inegavelmente cansados do “novo normal”, seguimos com nossas vidas, ousando mesmo sonhar com um retorno a tempos de abraços e aglomerações.

É fato: não temos como prever quando este pesadelo acabará. Entre inúmeras perdas e lutos, no entanto, como tantos antes de nós que viveram tempos muito difíceis, como guerras, desastres naturais e catástrofes de toda sorte, adaptamo-nos da melhor forma que conseguimos às circunstâncias, e perseveramos, num exercício diário de resiliência. A capacidade humana de sobreviver a toda sorte de adversidade deve ser celebrada, e, certamente, estudada sempre, pois pode nos dar valiosas ferramentas para nossa prática clínica.

* Mariana Almeida

Médica (PUCRS). Residência em Psiquiatria e Psiquiatria Forense pelo HCPA. Perita Médico-Legista/Psiquiatra do Instituto Geral de Perícias do Rio Grande do Sul.

This article is from: