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Perdemos Marlene de repente, não mais que de repente / Paulo Berél Sukiennik
from JA - Julho/2021
by APRS
HOMENAGEM À MARLENE SILVEIRA
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Paulo Berél Sukiennik*
Inevitável evocar Rubem Braga no seu texto “Despedida” ao homenagear a querida Marlene Silveira Araújo: ”E no meio dessa confusão alguém partiu sem se despedir; foi triste. Se houvesse uma despedida talvez fosse mais triste, talvez tenha sido melhor assim… Creio que será permitido guardar uma leve tristeza, e também uma lembrança boa; que não será proibido confessar que se tem saudades…”.
Psicanalista de crianças, psicanalista de crianças dentro dos adultos, professora, supervisora, amiga, pioneira.
Partida abrupta, traumática, impactante, absurda. Faleceu da forma que a vida é: enigmática e inominável por vezes, mas com muita vida dentro de si. Modelo de identificação, mestre do acolhimento, apaixonada por alunos, pelo ensino, pelos pacientes e pela psicanálise. Difícil de acreditar que se foi porque não se foi. Está viva nos corações e mentes de quem a conheceu, de quem teve o privilégio, como eu, de ter sido supervisionado e aprendido com ela , antes de tudo, a ser. Obrigado por tudo Marlene. Por deixar essa herança cheia de pulsão de vida que segue existindo dentro de cada um que conviveu contigo.
O “Estar com” o paciente descrito por Sándor Ferenczi, ensinava-nos na prática das supervisões individuais ou coletivas. O “Holding” de Winnicott nos mostraste nos relatos dos teus casos. A “Função Continente” de Bion nos orientaste nas discussões clínicas. A paixão pelo infantil valorizaste nas deliciosas risadas.
Estás viva,querida mestre, porque não aceitaremos tua partida terrena. Continuaremos a navegar na fascinante jornada rumo ao encontro do outro: nosso chão de fábrica.
Como pessoa, como psiquiatra, como psicanalista, eras, antes de tudo, especialista em gente, em alma.
Perdemos uma dura batalha nas trincheiras contra a peste. Fez-se da amiga “próxima, distante. Fez-se da vida uma aventura errante. De repente, não mais que de repente…” (Vinicius de Moraes). Marlene: um beijo com admiração, carinho e gratidão.
* Paulo Berél Sukiennik
Psiquiatra e Psicanalista. Membro Associado da SPPA.
Literatura e Memória, um regalo vitalício
Betina Mariante Cardoso*
Por coincidência, finalizo a escrita deste texto hoje, 23 de abril, Dia Mundial do Livro. E a escrita a seguir é sobre literatura, livros, escritores. E sobre a importância do tema para a Medicina. Nesta, a Psiquiatria. E, finalmente, essa página com a data de hoje é sobre transcender fronteiras da psiquiatria, encontrando novos horizontes em Saúde Mental, tema do nosso Congresso Gaúcho, no próximo outubro. E por falar em fronteiras, aqui abordo aquelas entre Medicina e Literatura, que acabaram por compor, dentro das Humanidades Médicas, a área de Medicina Narrativa.
Essa área nasceu em torno do ano 2000, no que já era a estabelecida união entre as Humanidades e a Medicina, mas o termo em si foi cunhado pela médica americana Rita Charon, que vinha de uma formação específica em Literatura. Charon fundou a Medicina Narrativa na Columbia University de Nova Iorque, promovendo em alunos da faculdade e, hoje em dia, de outras áreas da saúde, o contato com o texto literário e com as Artes de forma geral. Seu objetivo, desde o início, foi promover os princípios da integração entre os campos. A seguir, o porquê.
Mas vou começar contando como cheguei a essa história. Foi em novembro de 1999, período de alegria literária em Porto Alegre pela Feira do Livro, que assisti a uma conversa entre o neurocientista Prof. Dr. Iván Izquierdo e o poeta Prof. Dr. Armindo Trevisan. Ambos escritores, falavam de literatura, de memória, de Jorge Luis Borges e de Funes, personagem do conto borgeano “Funes, el memorioso”. A prosa foi longa, e, para mim, inesquecível, de uma riqueza cultural ímpar. O momento que gravei e consigo ainda recordar em cores foi quando Dr. Iván Izquierdo falou da grande importância da leitura literária para a memória. Referiu também que, pelo fato de ser necessário construir imagens pelas palavras, é um exercício precioso para o cérebro. Este não recebe a figura pronta da personagem ou das cenas, mas elas passam a existir para cada um como reais, pela transformação da palavra em vida, “alquimia” que o cérebro faz frente ao texto literário.
Por coincidência, na época eu estava justamente lendo o clássico “A montanha mágica”, de Thomas Mann, para ilustrar elementos de um artigo sobre o funcionamento do paciente crônico nas condições médicas. Era então acadêmica do quarto ano da Medicina na PUCRS, atendendo nas equipes do sexto andar alguns dos pacientes que marcaram meu percurso, por sua reação à cronicidade. Mais do que isso: por suas histórias narradas muitas vezes em carne viva, com o peso do tempo, do que não foi feito e do que não será. Narrativas. Os relatos do protagonista do livro, Hans Castorp, que eu já parecia conhecer de vista, se fundiam com o que escutava nas visitas ao leito de cada paciente. E foi naquele momento, enquanto o neurocientista falava em literatura, memória e imaginação, que compreendi a importância que esse tecido de palavras com significado, o texto, tinha para mim como aluna de Medicina: me ajudava a ouvir o paciente nas camadas do seu contar. Eu escutava, imaginava, simbolizava, sentia. Aquilo não
tinha um nome, não para mim. Era apenas uma aproximação que me trazia fascínio. No último ano, para a escrita do artigo para a Acta Médica, escolhi estudar o tema da adesão ao tratamento médico e ilustrar com trechos do livro “A morte de Iván Illitch”, de Tolstoi.
O tempo foi passando, as leituras e a escrita foram acontecendo e, com isso, a escuta se ampliava. Foi no começo do segundo ano da Especialização em Psiquiatria que descobri o Programa de Medicina Narrativa, li sobre Dra. Rita Charon e me encantei pelo tema. A expressão contemplativa e sorridente do neurocientista, naquela conversa, enquanto explicava o papel da leitura literária na memória, cinco anos antes, volta e meia surgiam na lembrança. E isso me fazia ler mais. E ler mais me fazia ler melhor, o que levava a escutar melhor os pacientes. E assim por diante. Essa ideia me remete, pela memória, a um trecho do livro “Como funciona a ficção”, de James Wood: te do que Rita Charon e seu grupo de pesquisa chamam de “Escuta atenta”, uma das ferramentas do programa. A segunda dessas ferramentas, não menos importante, é o exercício da escrita criativa. O desenvolvimento dessa potencialidade aprimora a capacidade de descrição, facilitando, no exemplo específico da Psiquiatria, o registro da Psicopatologia na anamnese. A propósito, para Aristóteles, Anamnesis significava busca ou recordação. Voltamos à questão da memória e, com ela, ao Dr. Iván Izquierdo. Em um de seus livros, Memória, ele refere:
“A criatividade tem sido definida por Jaime Vaz
Brasil como a conjunção de duas ou mais memórias. Não se cria a partir do nada: cria-se a partir do que se sabe, e o que sabemos está em nossas memórias (...)”. (IZQUIERDO I., 2011, p.127) Em outra parte do livro, encontro uma referência que me tocou muito sobre o tema:
“Essa lição é dialética.
A literatura nos ensina a notar melhor a vida; praticamos isso na vida, o que nos faz, por sua vez, ler melhor o detalhe na literatura, o que, por sua vez, nos faz ler melhor a vida.” (WOOD, J. 2012, p.63) O trecho acima pode ser aplicado à Medicina Narrativa. A literatura promove, no aluno de Medicina, melhora da capacidade de escuta das narrativas do paciente, pois amplia o perceber da expressão metafórica e simbólica. Além disso, aprimora as potencialidades de observação, interpretação e sensibilização, promove o acesso às competências culturais em Medicina e permite escutar, nas vozes dos pacientes, todas as linguagens do sofrimento. Neste sentido, tem sido apresentado o benefício da Literatura também no desenvolvimento da empatia, necessária durante a formação médica. No contexto da Medicina Narrativa, essa aplicação à empatia aplica-se ao fato de que, durante a leitura, o indivíduo precisa sair de si para o universo do personagem, treinando assim colocar-se no lugar do outro. Todos esses elementos fazem par-
“Podemos afirmar, conforme Norberto Bobbio, que somos aquilo que recordamos, literalmente. Não podemos fazer aquilo que não sabemos, nem comunicar nada que desconheçamos, isto é, que não esteja na nossa memória. Também não estão à nossa disposição os conhecimentos inacessíveis, nem formam parte de nós os episódios dos quais esquecemos ou os quais nunca atravessamos. O acervo de nossas memórias faz com que cada um de nós seja o que é, um indivíduo, um ser para o qual não existe outro idêntico.” (IZQUIERDO, I. 2011, p.11, grifo do autor). Então, quando lemos, além de beneficiarmos nosso cérebro na construção da memória e da imaginação através da palavra, estamos também ampliando o conjunto daquilo que somos, através da narrativa ficcional. Isso amplia quem somos e, mais ainda, amplia nossa capacidade de