CONSTRUTOR DE SONHOS
Ant么nio Campos
CONSTRUTOR DE SONHOS
Copyright© 2011 Antônio Campos ISBN 978-85-62648-17-5 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida nem apropriada ou estocada em sistema de banco de dados sem a expressa autorização do autor. Capa Ideograma japonês da palavra sonho Assessoria técnico-administrativa (CarpeDiem) Veronika Zydowicz Projeto gráfico Patrícia Lima Revisão Consultexto
C198r
Campos, Antônio Construtor de sonhos/ Antônio Campos. - Recife: Carpe Diem – Edições e Produções, 2011. 256 p. ISBN 978-85-62648-17-5 1. Diálogos 2. Escritores 3. Artigos - Fliporto 4. Conferência – o humanismo e o escritor 5. Discurso – posse na Academia Pernambucana de Letras 6. Artigos sobre o livro I. Título.
Impresso no Brasil Printed in Brazil
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“Havia um homem em Argos que acreditava em sonhos e era tido como louco. Os médicos que o curaram de sua loucura conseguiram assassinar seus sonhos.” Aristóteles
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O CONSTRUTOR ANTÔNIO CAMPOS
Que o leitor remonte a José do Egito, o sonhador e intérprete dos sonhos do Faraó; que desça a Daniel, o também bíblico revelador dos segredos do rei Nabucodonosor, da Babilônia; que passe pela psicanálise de Freud e pela psicologia analítica de Jung; que caminhe pelo surrealismo de Breton e encalhe na pedra de gelo móvel — no iceberg flutuante — que exibe a sua mínima memória e que esconde a profunda consciência; que se debruce sobre os livros — O Ar e os Sonhos, A Poética do Devaneio, A Terra e os Devaneios da Vontade, A Terra e os Devaneios do Repouso — do grande sonhador que foi Gaston Bachelard, formar, deformar, mudar as imagens ou penetrar na viagem do imaginário; que, finalmente, o leitor fixe os seus olhos na palavra sonho, pluralizada em sonhos, e faça cair toda a sua vida diante de uma frase de Hölderlin: “O homem é um deus quando sonha e não passa de um mendigo quando pensa”. Eis, leitor, a riqueza da imaginação e a miséria do pensamento. “Então — como diria Nietzsche — escolhe”.
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Como falei de Daniel e Nabucodonosor, tomo a imagem da grande árvore do sonho e da loucura do rei — da grande árvore que chegava até o céu — e formo outra imagem, a de uma árvore invertida — que desce ao abismo — criada pelas suas raízes ou pelas raízes do sonho, através das suas múltiplas ramificações, como um ninho de serpentes ou a cabeleira de Medusa. Decerto que já considerei — em Narciso — o contraste da folha que nasce da árvore com a árvore do poema, que cresce na folha: “na botânica avessa ou no espelho invertido”. Como na Ode a uma Urna Grega — de John Keats —, de tal árvore, é possível dizer: “Felizes, ah! felizes ramos! Não podeis perder/ as vossas folhas, nem dizer adeus à primavera!”. Não sei se há necessidade de falar do pesadelo ou da “égua da noite” (night-mare) — no verso de Shakespeare, citado por Borges: “Eu me encontrei com a égua da noite”. Para chegar à poesia propriamente, não é preciso um corte — uma poda —, basta baixar a imaginação à terra ou a um poeta da terra, como, por exemplo, João Cabral de Melo Neto, que, em Festa na Casagrande, descreve a conformação do homem privado de sonho: O cassaco de engenho/ quando está dormindo:/ se vê que é incapaz/ de sonhos privativos./ Nele não há esse ar,/ distante e distraído/ de quem, detrás das pálpebras,/ um filme está assistindo./ Detrás das suas pálpebras/ haverá apenas treva/ e de certo nenhum / sonho ali se projeta.
Portanto — via Cabral —, ao cassaco de engenho não foi dado sequer, conforme outro título de Bachelard, O Direito de Sonhar, e sonhar (do latim somnio, ou somniare) é ter um sonho. Há um texto do escritor Maximiano Campos em que ele se diz domador de sonhos. Sim, claro, do cavalo do sonho ou da égua do pesadelo. Por sua vez, o poeta Antônio Campos, seguindo (consciente ou inconscientemente) o pai, se diz Construtor de 8
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Sonhos. Sim, claro, fazedor da pirâmide dos sonhos. Logo, o escritor doma, e o poeta constrói. Mas um sonho é feito de quê, leitor? A resposta está em Shakespeare: “Nós somos feitos da matéria dos nossos sonhos”. Portanto, em última análise, o sonho é feito de nós: da nossa argila e da nossa água ou do nosso suor e da nossa lágrima. Chegando até aqui — ao ato de amassar o barro em água —, construir e domar são a mesma coisa. Construtor de Sonhos é um livro de artigos publicados no Jornal do Brasil e na Folha de Pernambuco. Digo um livro de artigos, mas — diria melhor — é um livro de ensaios. Em vez de folhas esparsas, próprias de artigos, ou de algumas crônicas, há uma unidade temática neste livro, uma harmonia — que pese essa palavra musical — sobre vida, tempo, amor, pessoas, poesia, diálogos, escritores, livro, etc. Por isso, Antônio Campos deixa, como uma impressão digital, a marca de cada sonho ou uma marca em cada sonho. Algo do que Mário de Andrade disse no seu título: Há uma Gota de Sangue em Cada Poema. Na realidade, O Construtor de Sonhos não é um livro de prosador, é um livro de poeta. Antônio Campos parece dizer, à Whitman: “Trato dos intestinos com a mesma delicadeza com que trato da cabeça ou do coração,/ a cópula não é mais indecente do que a morte”. Não quero assinalar, aqui, as qualidades de Antônio Campos como escritor, mas a qualidade do seu livro, que é uma reflexão e uma flexão, um debruçar sobre e sob, um olhar para dentro e para fora. Diria que, mesmo como poeta — ou como exceção —, Antônio Campos não consegue ser só, ficar sozinho, cuidar isoladamente de suas ideias próprias ou fixas. Ele se posta como se estivesse diante de um auditório, de uma plateia, de uma sala de aula e, à medida que fala, escreve, ou, à medida que escreve, fala. Evidente que ele se escuta, mas, quando se escuta, faz-se escutar. Daí a voz alta, o sentido discursivo de quem quer, à Drum9
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mond: “Acordar os homens/ e adormecer as crianças”. E que não pareça paradoxal, leitor, dormir para sonhar e sonhar para acordar e/ou adormecer alguém. Diria mesmo que o seu livro é um discurso ou uma carta: uma fala de rio que se arrasta ou uma daquelas Cartas Pônticas que Ovídio escreveu do desterro. Como Baudelaire diz em La Chevelure (na tradução de Ivan Junqueira): “Ó tosão que até a nuca se encrespa em cachoeira!/ Ó cachos!”, e parece agarrar nas mãos aquele maço, aquele feixe, aquele chumaço de cabelos, Antônio Campos quer segurar e brandir a voz, quer, à Rimbaud, “Segurar a semente”. Vivemos a era da velocidade e sob a pressão (opressão) do relógio. O relógio antes ficava na praça. Depois invadiu nosso tempo e ficou a nos tiranizar na parede. Com o progresso, foi entrando em nosso bolso e chegou ao nosso pulso. Agora está dentro do coração, onde marca o passo.
Observe o leitor que, dizendo uma coisa — um fato —, Antônio Campos registra outro: do enorme, às vezes monstruoso, relógio da praça, ele caminha — como se pelo tempo — pelo relógio grande de parede, maior de bolso ou de algibeira, menor de pulso e mínimo do marca-passo do coração (que, aliás, independentemente de qualquer aparelho, já é, em si, um relógio, ou uma bomba-relógio). Ele consegue diminuir, simbolicamente, o espaço do tempo com a diminuição do tamanho dos relógios. Quando mais perto de nós — até dentro —, mais o relógio nos indica sua tirania: o menor tempo de vida, da vida moderna e/ou pós-moderna. O tempo, embora sempre seja o mesmo, se parecia parado em uma gota, em uma poça, em uma hora, passa a andar pelos nossos olhos, a correr com as pernas dos seus ponteiros, a rodar com os seus formatos de rodas e com a velocidade de todos os seus velocímetros. Na realidade, nós vivemos o passado, pois o presente passa, e 10
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o futuro — observa Joseph Brodsky: “Dado à sua plenitude, o futuro é pura propaganda. Como a maconha”. Não obstante, indaga Carrière, citado por Antônio Campos em Umberto Eco: o Fim do Livro?, “Onde enfiaram o presente? O maravilhoso momento que estamos vivendo e que diversos conspiradores tentam nos roubar?”. Ora, diante da incrível velocidade do tempo hoje — “agoraqui” —, podemos responder a Carrière: o presente foi enfiado no futuro. Nós vivemos o tempo adiante, no tempo adiantado, vivemos o futuro ou no futuro, no instante próximo ou já outro do tempo (pois já não é o instante) saltando de segundo em segundo, do minuto presente ao minuto futuro, como se o hoje fosse o amanhã. Eis a nossa doença com o tempo, a nossa forma de avançar e avançar na vida. Logo, já não é presente, tampouco o passado que estamos vivendo, mas o futuro. Estamos pendurados no abismo do tempo, caindo de um tempo em outro. Afinal — a queda —, seja a nossa ou a de Camus, é inevitável, mas resta ao poeta — como restou a Charles Baudelaire —, entre as baratas restantes ou transformados em insetos (ê, Kafka! — como diria Cortázar), colher no fundo desse abismo (e abismo não tem fundo) as últimas flores do mal. O livro é o cavalo de batalha de Antônio Campos. Aliás, cavalo de batalha é uma imagem apropriada para o livro, desde o cordel, que, com seu grampo a cavalo, vive escanchado em barbante, até os recursos do cérebro, humano ou desumano, das últimas mídias. Contudo, ele bem sabe, Gutenberg não será esquecido nem na Galáxia de MacLuhan, pois, segundo Umberto Eco, “O computador nos reintroduziu na Galáxia de Gutenberg”. Todavia é lírico o discurso de Antônio Campos, lírica a sua carta e, não fosse assim, ele não seria o poeta construtor de sonhos (dos mesmos sonhos que o seu pai domou). Diria que, enquan11
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to questiona o que viveremos, ele vive e quer que todos vivam, adotando o lema de Horácio: Carpe diem. De repente, em uma noite qualquer, ele pensa em algo, em uma lua, uma luz — uma Luíza —, e olha a lua e vê a lua e sonha a lua, mas a sua lua não é a de São Jorge nem a do dragão, tampouco é a lua dos astronautas — a lua de Armstrong —, mas uma lua que, mesmo de sangue — menstruada — pode ser outra coisa, como um disco ou um níquel. Quero dizer, leitor, que a lua de Antônio Campos é a mesma lua da Canção de Joseph Brodsky Paisagem com inundação: “Queria ainda que a lua fosse uma moeda para te telefonar”. Marcus Accioly Itamaracá, maio de 2011
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SUMÁRIO
VIDA,
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Viver é resistir, 21 As faces do quase, 26 Caminhos peregrinos: uma jornada rumo ao coração, 30 Conectivismo, 32 TEMPO,
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Jogo de Deus, 37 O direito à história, 40 AMOR,
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O amor e a religião no futuro, 47 O amor no contemporâneo, 50
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MOLDURA DE MINHA VIDA: PERNAMBUCO,
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Joaquim Nabuco: intérprete do Brasil, 57 Pernambuco em miniquadros, 60 Pernambuco em antologias, 62 PESSOAS,
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Christina Oiticica e sua arte de “plantar quadros” na Terra, 69 Um novo Nabuco, 72 Pintar ou viver, 76 Ernesto Sabato, 78 Bob Marley – o profeta da música, 80 Lágrimas e sorrisos, 82 O adeus a Maria Schneider, 84 POESIA, música, beleza,
87
A estrela fria, 89 Carlos Pena Filho – 50 anos de memória, 91 Poemas que inspiram, 93 Os olhos violeta e a poesia, 97 A beleza salvará o mundo, 99 DIÁLOGOS,
103
Diálogos culturais no mundo global pós-moderno, 105 Gilberto Freyre e o Oriente que tornou o Brasil possível, 108 Liberdade e cultura em um mundo sem fronteiras, 111 Por uma nova diplomacia cultural, 113 Criadores são seres coletivos, 116
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ESCRITORES,
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80 Anos de Renato Carneiro Campos, 123 Cora Coralina, 129 Gullar, 80 anos de poesia, 132 José Saramago, a consistência dos sonhos, 134 Kaváfis, 137 Moacyr Scliar, 140 O legado de Camus, 142 O Centenário de Nascimento de Mauro Mota, 146 Umberto Eco: o fim dos livros?, 149 Vargas Llosa, 152 A estética do cangaço, 154 Antônio Maria, 156 LIVRO,
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A Olimpíada do Livro em 2013, 163 A reinvenção do livro, 165 Biblioteca-parque de leituras, 168 Criação imperfeita, 170 Direitos autorais e economia criativa, 172 O deserto do real, 175 O Google e os livros, 178 O livro no século xxi, 181 Sozinhos juntos, 185 FLIPORTO,
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A Fliporto e a sustentabilidade, 191 Eva Schloss, a luta contra a intolerância, 193 Fliporto 2007 – festa da América Latina, 195
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Fliporto 2008 – trilha da diáspora: literatura na África e América Latina, 201 Fliporto 2009 – diálogo entre culturas, 206 Fliporto 2010 – a fliporto e a cultura do diálogo, 210 Fliporto em Olinda, 213 Fliporto 2011 – uma viagem ao Oriente, 216 Malba Tahan, 219
CONFERÊNCIAS E DISCURSOS,
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Discurso de posse na Academia Pernambucana de Letras, 225 Maximiano Campos: o humanista e o escritor, 234 A poesia e o cangaço, 243 Clarice Lispector: uma geografia fundadora, 250
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VIDA
“A vida é uma peça de teatro que não permite ensaios. Por isso, cante, chore, dance, ria e viva intensamente, antes que a cortina se feche e a peça termine sem aplausos.” Charles Chaplin 19
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VIVER É RESISTIR
À Ana, minha mãe.
Nesta época, chamada de pós-utópica, ou era das ilusões perdidas — na qual os grandes ideais foram implodidos —, marcada por uma forte crise de identidade do homem da modernidade, tem sobrado pouco espaço para se falar da existência e do propósito da vida. A História nos ensina que os séculos se parecem uns com os outros e que, a não ser pela inovação de instrumentos técnicos, o homem permanece o mesmo. Os sentimentos e os desejos se repetem ao longo da História: de glória, de amor, de dinheiro, de poder. Atualmente, mascaramos a ideia da morte com a supervalorização do corpo e das sensações para não refletirmos sobre o fim da consciência social. Os ideais transcendentais cederam lugar ao imediatismo do prazer, da forma física, da juventude, da beleza, do materialismo.
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Alexis de Tocqueville, em sua obra A Democracia na América, escreveu estas páginas premonitórias sobre esse individualismo exacerbado: Quero imaginar sob quais novos traços o despotismo poderia se produzir no mundo: vejo uma multidão incontável de homens semelhantes e iguais que giram incessantemente em torno de si mesmos para obter prazeres pequenos e vulgares, com os quais preenchem sua alma. Cada um deles, em separado, é como um estranho ao destino de todos os outros: seus filhos e seus amigos particulares formam para ele toda a espécie humana; quanto ao resto dos concidadãos, está ao lado deles, mas não os vê; ele os toca, mas não os sente; só existe em si mesmo e para si mesmo, e, se bem que ainda tenha uma família, pode-se dizer pelo menos que não tem mais pátria.
A res publica, escreve Gilles Lipovetsky (in L’ère du Vide, ed. Gallimard): [...] desvitalizou-se, e as grandes questões filosóficas, econômicas, políticas ou militares despertam aproximadamente a mesma curiosidade desenvolta que qualquer notícia de jornal; todas as “alturas” afundam pouco a pouco, arrastadas na vasta operação social de neutralização e banalização. Apenas a esfera privada parece sair vitoriosa dessa onda de apatia; cuidar da saúde, preservar sua situação material, livrar-se de seus complexos, esperar pelas férias: viver sem ideal, sem finalidade transcendente tornou-se possível.
Vivemos uma era de contradições e incertezas. As gerações se julgam fadadas a refazer o mundo. Agora, talvez a nossa tarefa seja ainda maior: impedir que o mundo não se desfaça. O inferno de Dante é um reflexo pálido dos horrores das guerras, da fome, das catástrofes, dos ódios e das incompreensões de nossa era. 22
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E qual será o caminho? O escritor Italo Calvino, em As Cidades Invisíveis, dá-nos uma pista: O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, no qual já vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagens contínuas: tentar saber quem e o quê, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.
Como ele diz: é preciso abrir espaço para um mundo mais fraterno e mais justo. Nikos Kazantzákis nos inquieta sobre o mistério da vida: “Por uma só coisa anseio: aprender o que se esconde atrás dos fenômenos; desvendar o mistério que me dá a vida e a morte; saber se uma presença invisível e imota se esconde além do fluxo visível e incessante do mundo”. Pergunto e torno a perguntar golpeando o caos: quem nos planta nessa terra sem nos pedir licença? Quem nos arranca da terra sem nos pedir licença? Sou uma criatura fraca e efêmera, feita de barro e sonhos. Mas sinto em mim o turbilhonar de todas as forças do Universo. Antes de ser despedaçado, quero ter um instante para abrir os olhos e ver. Minha vida não tem outro objetivo. Quero achar uma razão de viver, de suportar o terrível espetáculo diário da doença, da fealdade, da injustiça e da morte. Vim de um lugar obscuro, o útero; vou para outro lugar obscuro, a sepultura. Uma força me atira para fora do abismo negro; outra força me impele irresistivelmente para dentro dele.
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Apesar de todas as guerras, catástrofes e crises morais, existenciais e de valores, o homem resistiu e sobreviveu ao longo dos séculos. A vida é um processo contínuo de resistência. O impulso da vida e mesmo da arte são, paradoxalmente, atos de resistência ou uma grande briga do homem com a morte, este derradeiro encontro que nos é dado e a que estamos condenados desde que nascemos. O homem precisa melhor compreender o sentido da vida e da morte e aprender a conviver com a dor, porque, ao ter consciência da transcendência de seu papel, ganha dimensão de eternidade. Talvez Vinicius de Moraes tenha razão em dizer que é melhor viver do que ser feliz. O propósito da vida não é necessariamente a busca da felicidade. São mais interessantes na vida a curiosidade, os desafios, o bom combate com as vitórias e as derrotas. A busca de harmonia. A vida é mais uma busca do que um encontrar. Fernando Pessoa fala sobre a verdadeira história da humanidade: Ah! Quem escreverá a história do que poderia ter sido? Será essa, se alguém a escrever, a verdadeira história da humanidade. O que não há somos nós, e a verdade está aí. Sou quem falhei ser. Somos todos quem nos supusemos. A nossa realidade é o que não conseguimos nunca.
Muitos já falaram com maior maestria e conhecimento do que eu sobre a dor e a delícia de viver. Contudo, faz-se necessário pregar, mais do que nunca, um novo humanismo para o século XXI, em que o homem afinal se convença de que a grande viagem a ser feita é em torno de si mesmo, em busca da sua identidade, e que a grande descoberta é a do outro — seu irmão —, através da fraternidade e da solidariedade.
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Todo homem pode nascer uma segunda vez ao dar sentido à sua vida, fazendo-a valer a pena. A arte de viver é resistir em defesa da vida e dos valores essenciais humanos. Jamais perdi a esperança. Junho de 2008
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AS FACES DO QUASE
Vivemos fugindo de uma palavra que expressa, na maioria das vezes, um sentimento de frustração, desapontamento e tristeza: quase. Mas nem todo fato que chega próximo a se realizar, acontecer, é tido como frustrante. Para os que têm verdadeiro pavor do quase, um conciso texto escrito em 2003 por uma então estudante de Medicina catarinense chamada Sarah Westphal Batista da Silva e lançado na internet com autoria atribuída ao cronista e escritor Luis Fernando Verissimo tornou-se um ícone para uma legião de pessoas que se identificaram com aquela argumentação tão bem colocada. Depois de tantas negativas de Verissimo de que o texto tinha sido escrito realmente por ele, a autora de O Quase foi descoberta em 2005, quando o seu texto já havia sido traduzido para o francês numa coletânea de textos e versos de brasileiros, entre os quais Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira.
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Atribuído a Verissimo, estava lá O Quase, de Sarah, que na tradução virou Presque. Muito bem escrito, o texto sacode os que, na opinião da autora, estão acomodados a viver na “incerteza do talvez” e acostumados com a “desilusão de um quase”. Mas a mente humana é muito farta de possibilidades e de pontos de vista. O quase pode ser observado pelo prisma abordado por Sarah e ser definido como decepcionante, o nada. No entanto, temos o quase que nos traz o alívio por nos livrar de algo desastroso: escapar de um atropelamento; levar um choque elétrico forte e ficar vivo para contar a história; sofrer um acidente de moto e sair ileso, apenas com pequenas escoriações; e tantos outros. Esse seria, sem dúvida, o lado do quase que todos querem para si quando se deparam com situações de perigo. Há pessoas que acreditam — da mesma maneira que Sarah Westphal — ter o quase como uma verdadeira síndrome em suas vidas. Estas pensam que o quase as persegue, mas, mesmo assim, encaram a perspectiva com resignação e tranquilidade, pois dizem estar acostumadas a ver seus anseios e suas metas sempre apenas chegarem perto de acontecer. Mas não se culpam nem se revoltam por isso. Essa visão também nada tem a ver com falta de determinação ou pessimismo. Para quem pensa assim, o namoro que por um triz não decolou ou aquele emprego que quase deu certo deixaram de ocorrer em suas vidas porque, certamente, dessa forma seria melhor para eles. E assim dizem: “Não era a pessoa certa ou a melhor oportunidade para mim...”. Trata-se de uma filosofia de vida voltada ao não se martirizar e sempre partir para a próxima, acreditando que o melhor está por vir. Existem também aqueles que nem sequer admitem a hipótese do quase em suas vidas. Acostumado com a glória das vitórias e com o doce sabor das conquistas, Ayrton Senna, por 27
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exemplo, nunca se contentou com qualquer outra colocação em corridas ou em campeonatos na Fórmula 1. “O importante é ganhar. Tudo e sempre. Essa história de que o importante é competir não passa de demagogia”, era o que defendia. Desde a época do kart, Senna estava tão habituado a vencer que, para ele, o chegar perto não servia. O quase, portanto, era desprovido de qualquer valor para o piloto. Há muitas pessoas assim, que desconhecem outro gosto que não seja o do triunfo, e isso se reflete em todos os aspectos de suas vidas. Talvez essa característica acabe por formar indivíduos mais intolerantes e perfeccionistas ou apenas com forte autoestima e autoconfiança. Por outro lado, o quase pode ainda assumir ares confortantes. Tem gente que se sente bem só porque se aproximou de conseguir algo tão almejado. Esse comportamento é visto no ex-atleta que faz questão de enfatizar que quase foi às Olimpíadas. Ele não alcançou seu grande objetivo, mas fica satisfeito por ter desenvolvido o seu melhor e até orgulhoso em dizer que faltou pouco para realizar o sonho. Há um sentimento de plenitude nesse quase. Essa pode ser uma visão um tanto quanto romântica — na verdade, certamente defendida e praticada por poucos —, mas é uma maneira de se confortar, uma espécie de defesa do inconsciente. Diferente da visão da jovem catarinense Sarah Westphal — compartilhada por tantos —, que contesta a covardia, a falta de coragem das pessoas, abordando o quase como uma condição recorrente de quem escolhe viver de maneira morna, apática, a leveza e o orgulho do tal ex-atleta residem na certeza de que ele arriscou, fez tudo o que era possível. Vimos este ano o presidente de honra da Grande Rio, Jayder Soares, e todos na escola comemorarem bastante o vicecampeonato na Marquês de Sapucaí. Para a comunidade de 28
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Caxias, o segundo lugar no Carnaval do Rio teve sabor de título. Recentemente, também assistimos os jogadores do Santa Helena darem a volta olímpica no campo de jogo após serem derrotados pela segunda vez na disputa da final e ficarem com o vice-campeonato goiano. Mas foi pela desilusão de mais um fracasso amoroso e por analisar apenas a frequência do quase como consequência da apatia e da falta de atitude que, no fim do seu texto, Sarah Westphal sugere: [...] Não deixe que a saudade sufoque, que a rotina acomode, que o medo impeça de tentar. Desconfie do destino e acredite em você. Gaste mais horas realizando que sonhando, fazendo que planejando, vivendo que esperando porque, embora quem quase morre esteja vivo, quem quase vive já morreu.
O conselho serve para os casos que se enquadram no ponto de vista abordado, mas, mesmo seguindo-o, não estaremos livres do quase. Competitiva como a vida é, haverá sempre os que terão êxito, que conseguirão realizar os objetivos, os vencedores e os tantos outros que, chegando perto, ficarão no quase e não conseguirão um sonho, um objetivo, um casamento, um bom negócio fechado. Portanto, o quase deve ser encarado como fato corriqueiro e comum em nossas vidas, não apenas como fracasso. O quase tem múltiplas faces, tanto pode ser uma grande frustração como ser valorizado muitas vezes, sim. Trabalhemos, portanto, os nossos quases! Jornal do Brasil, 08/05/2010
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CAMINHOS PEREGRINOS: UMA JORNADA RUMO AO CORAÇÃO
No último dia 25 de julho, foi comemorado o Jubileu Apostólico. A data, criada pelo Papa Calixto em 1221, leva milhares de pessoas ao percurso de Santiago de Compostela. É uma antiga rota de peregrinação que se estende por toda a Península Ibérica até a cidade de Santiago de Compostela, no oeste da Espanha. Segundo uma antiga tradição, o apóstolo Tiago, após a dispersão dos apóstolos pelo mundo, teria ido pregar a palavra de Jesus em regiões ocidentais, mas, ao voltar à Palestina, teria sido preso e morto. Dois de seus discípulos levaram seus restos para o Ocidente, mais especificamente na cidade espanhola de Iria Flavia, onde o sepultaram secretamente no bosque de Libredón. O local permaneceu secreto durante oitocentos anos, mas as pessoas que viviam próximas ao lugar começaram a observar um fenômeno, no mínimo, estranho. Diz a tradição que todas as noites estrelas caíam no bosque, criando uma forte luminosidade. O bispo de Iria Flavia, então, iniciou escavações no local para investigar os motivos do fenômeno, e foi aí que encontra30
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ram uma caixa de mármore com os restos do santo. Quando o fato se tornou público, pessoas começaram a ir ao lugar para conhecer o sepulcro. Começou assim o Caminho de Santiago de Compostela, que, na realidade, são vários caminhos que levam a Santiago. Desde o século IX, homens e mulheres partem de suas cidades tendo como destino aquele lugar sagrado. Hoje em dia, milhares de pessoas de todas as idades continuam percorrendo esse antigo trajeto. Alguns buscam respostas e força para questionamentos pessoais, alguns por espírito cristão e outros apenas por aventura, afinal são oitocentos quilômetros de estrada. Paisagens como florestas, cidades históricas, templos religiosos, rios, lagos e antigas construções compõem a mágica viagem. Quando realizei minha peregrinação pelo Caminho de Santiago, em 2005, pude perceber que a travessia tem uma atmosfera diferente de todas aquelas que já presenciei. Durante a caminhada, refleti sobre vários aspectos da minha vida. Descobri naquele percurso que é possível encontrar a verdade do coração. Hoje, mais de 200 mil pessoas viajam todos os anos pelo norte da Espanha na peregrinação religiosa. Caminhando, de bicicleta ou a cavalo, a viagem é sempre emocionante. A popularização da peregrinação, não só no Brasil, mas em todo o mundo, deve-se muito ao escritor Paulo Coelho, que no livro O Diário de um Mago detalhou a emoção de sua peregrinação pelos campos espanhóis. O escritor, casado com a pintora Christina Oiticica, autora da obra Caminho Peregrino — livro que relata sua viagem de quase dois anos pelas estradas da Espanha —, acredita, assim como eu, que o Caminho de Santiago, de histórias seculares, sonhos, ilusões e esperança, serve como uma estrela-guia na vida de qualquer pessoa para descobrir a verdade do coração. 02/08/2010 31
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CONECTIVISMO
Ao longo da História, surgiram diversas teorias a respeito do conhecimento e da capacidade de aprendizado humano. No entanto, as principais linhas de ensino são o behaviorismo, cognitivismo e construtivismo — todas fundamentadas em realidades pré-tecnológicas e a favor da ideia de que a aprendizagem depende apenas da pessoa que aprende, não tendo relação com os fatores externos. Entretanto, essas teorias do conhecimento estão passando por fortes mudanças, pois a sociedade está mais madura e enxerga que, para aprender, é necessário formar conexões entre as fontes de informação para daí criar os próprios padrões de informação. Essa ideia é a base do, cada vez mais influente, conectivismo, no qual a aprendizagem é vista como um processo que acontece em um ambiente com elementos centrais em eterna mutação. Nossa capacidade de adquirir mais informações está, na realidade, fora de nós. É nas conexões com o meio externo
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que aprendemos coisas novas. Essa seria a melhor maneira de se chegar a um patamar elevado de conhecimento. Na última semana, participei de um evento sobre o ensino contemporâneo. O seminário A Sociedade em Rede e a Educação teve como objetivo discutir a melhor maneira de educar a sociedade na era digital. Podemos aprender continuamente, independentemente do horário tradicional da escola ou universidade. A tese do conectivismo ganha força no mundo contemporâneo. No livro Learning Ecology, Communities, and Networks: Extending the Classroom, o professor e diretor do Centro de Tecnologia da Aprendizagem da Universidade de Manitoba (Canadá), George Siemens, defende que a mobilidade trazida pela tecnologia e o impacto da aprendizagem informal tornam a aprendizagem um processo contínuo, tendo como grande fonte de informação a internet. Por outro lado, o ensino tradicional está indo ao encontro e se adaptando a essa era tecnológica. Recentemente, a rede de educação Anhanguera noticiou um ambicioso plano nesse sentido, qual seja de conectar tecnologicamente os alunos com a universidade para criar um ambiente de contínuo aprendizado. Na era digital, podemos aprender continuamente. Essa era já começou, criando um novo conceito de aprendizado. 20/09/2010
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TEMPO
“O tempo e o espaço são modos pelos quais pensamos, e não condições nas quais vivemos.” Albert Einstein 35
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JOGO DE DEUS
Vivemos a era da velocidade e sob pressão (opressão) do relógio. O relógio antes ficava na praça. Depois invadiu nossa casa e passou a nos tiranizar na parede. Com o progresso, foi entrando em nosso bolso e chegou ao nosso pulso. Agora está dentro do coração, onde marca o passo. Vivemos sob o feitiço do tempo, que é um jogo de Deus. Mas é a eternidade que dá sentido à vida. Tempo é movimento. Repouso é eternidade. “A eternidade é um jogo e uma esperança”, já dizia Platão. Rubem Alves, em seu Concerto para Corpo e Alma, apregoa-nos que: “Eternidade não é o tempo sem fim [...] Eternidade é o tempo completo, esse tempo do qual a gente diz ‘valeu a pena’”. A mente, esse portal do ser humano, lutando para escapar do confinamento e do feitiço do tempo, insiste em resistir e produz, entre outras coisas, arte. A arte é uma tentativa de se
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eternizar. É uma briga do homem com a morte e com o tempo, que é um relógio mágico e trágico que marca a vida. O sociólogo e antropólogo Gilberto Freyre falou de um tempo tríbio em que o passado, o presente e o futuro estão dinamicamente inter-relacionados. Trouxe tal conceito de tempo a partir das considerações de Santo Agostinho sobre a essência do tempo, no livro XI das Confissões — considerações que foram magistralmente sintetizadas pelo poeta T. S. Eliot nos versos iniciais de Four Quartets (1943), que nos traz a seguinte mensagem: “O tempo presente e o tempo passado/ Estão ambos talvez presentes no tempo futuro/ E o tempo futuro contido no tempo passado/ Se todo tempo é eternamente presente/ Todo tempo é irredimível”. Em As Emboscadas da Sorte, o escritor Maximiano Campos afirma que tudo é velho e novo e que só o tempo não tem idade. O homem carregará as lembranças do seu passado, mas será sempre novo, mesmo além da sua vontade. Ele, no texto intitulado Ladrão de Tempo, nos diz que o maior ladrão é o de tempo. A humanidade ainda está presa a conceitos lineares de tempo e espaço. Albert Einstein revolucionariamente fundiu tempo e espaço num contínuo, que chamou espaço-tempo. Em 1988, Stephen Hawking publicou sua hoje famosa Uma Breve História do Tempo, do ponto de vista de um físico. A Física Quântica tenta explicar a direção do tempo. Na presença de campos gravitacionais intensos, podem existir caminhos que levem ao passado. Por isso, é possível passar duas vezes pelo mesmo ponto no espaço-tempo. Deveríamos entender o tempo como um círculo, e não uma linha reta, como imaginou a História ocidental, e afirmar que, ao caminhar para o futuro, nos aproximamos do passado.
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Proust, na literatura, escavou com profundidade em busca do tempo perdido. Será que a vida não é buscar e mesmo perder, proustianamente, o tempo? O poeta russo Joseph Brodsky nos instiga: quem é mais nômade, aquele que se desloca no espaço ou aquele que migra no tempo? Na realidade, há dois modos, básicos, de percepção do tempo: o quantitativo e o qualitativo, ou melhor, o cronológico e o existencial. O modo quantitativo adota um fato como referência e um fenômeno periódico para contagem do tempo. Na cultura cristã, considera-se o ano do nascimento de Cristo como inicial e o ciclo da Terra em torno do Sol como período de um ano. O modo qualitativo considera as mudanças que ocorrem em nossas vidas. Usamos expressões como “novo tempo”, “tempos difíceis” e “tempos fáceis”. No filme Perfume de Mulher, o personagem cego representado por Al Pacino pede a uma jovem para dançar um tango. Ela diz que não pode porque, em instantes, irá chegar o seu noivo. E ele diz: “Em um instante, se vive uma vida”. Esse é o tempo qualitativo ou existencial. Podemos intuir o tempo como relativo ou mesmo uma ilusão. Afinal, aprendi a contar melhor o tempo. Ele não se conta pelas folhas que secam e caem no caminho, mas pelos frutos colhidos ao longo da vida. O tempo não é mais que um momento, mas será eterno se for belo o gesto. Carpe Diem, como já disse o poeta Horácio. Jornal do Brasil, 03/04/2010 Folha de Pernambuco, 05/04/2010
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O DIREITO À HISTÓRIA
O Brasil não pode desconhecer e renunciar à sua história. A instalação da Comissão Nacional da Verdade é uma maneira de trazer à tona o que realmente aconteceu no nosso país em um período obscuro e autoritário. O objetivo é investigar as violações aos direitos humanos ocorridas no Brasil entre 1964 e 1985. A Comissão da Verdade é um instrumento através do qual o País terá a chance de conhecer sua real história. Não é um meio de retaliação ou vingança. O Brasil precisa abrir seus arquivos e mostrar sua verdade. Será o esclarecimento dos inúmeros casos de tortura, assassinato e desaparecimento de pessoas que, de um jeito ou de outro, lutavam contra a repressão. O ex-presidente da África do Sul Nelson Mandela foi o criador da Comissão para a Verdade e a Reconciliação (CVR). Na luta contra a opressão racial e a favor da exploração da verdade, Mandela, no seu último discurso enquanto presidente, declarou: “Perseverarei na esperança de que um quadro de líderes 40
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emergiu em meu país e em minha região, no meu continente e no mundo, que não permitirá que ninguém seja privado da liberdade como nós fomos [...] que ninguém seja despojado de sua dignidade humana como nós fomos”. Em outra ocasião, o arcebispo Desmond Tutu ressaltou a importância da CVR. “Não jogaram sal nas feridas de seus antagonistas vencidos, não se engajaram em uma orgia de retaliação e vinganças, mas preferiram o caminho do perdão e da reconciliação”, reafirmando, assim, o anseio da Comissão em promover a verdade, e não a vingança. Apurar os casos e fazer o levantamento de possíveis responsáveis é o objetivo maior da Comissão Nacional da Verdade, proposta pelo Governo brasileiro. O projeto de lei de número 7.376/2010, propondo a sua criação, foi enviado ao Congresso em maio de 2010 e, caso aprovado, irá divulgar relatórios anuais com esclarecimento público acerca dos abusos cometidos na época da ditadura militar no Brasil. A ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, apoia e reconhece a importância da formação da Comissão da Verdade para o País e as vítimas do regime militar. Para isso, trabalha para que o presidente da Câmara, Marco Maia, faça a inclusão do projeto na pauta de votações da Casa. A intenção é que, com a criação da Comissão, a sociedade tome conhecimento dos casos de tortura, morte e desaparecimento da época. Além disso, é também função da Comissão da Verdade fazer com que a população brasileira e o Estado possam virar essa página da história do Brasil de modo consciente. O projeto solicita que a Comissão possa reconstituir, efetivamente, o que ocorreu no regime militar através dos agentes do Estado para, assim, fazer justiça às milhares de vítimas do período. Para isso, pede para que a Comissão tenha acesso a qualquer arquivo existente, além 41
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de convocar quem quiser e não ser obrigada a publicar tudo o que descobrir. A líder da Comissão da Verdade é a presidente da República, que, a partir da aprovação do projeto, deverá escolher sete membros para compor o grupo. Um exemplo da utilidade da Comissão seria a sua investigação acerca da Operação Condor, a fim de esclarecer a sua atuação no Brasil. Certa vez, Miguel Arraes declarou, em comissão sobre a Operação Condor, que a morte de homens como Juscelino Kubitschek, João Goulart e Carlos Lacerda merecem atenção em relação às suas causas, pois eles teriam sido indicados à morte pela Operação Condor, que nasceu em uma reunião da direita no Cone Sul. “A suspeita e a dúvida existem. Se essa comissão puder aprofundar, com fatos e testemunhas, acho da maior importância”, disse Arraes. A Câmara dos Deputados tratou sobre a Operação Condor em duas comissões: uma destinada a esclarecer as circunstâncias em que ocorreu a morte do ex-presidente Juscelino Kubitschek, e outra com o objetivo de elucidar as causas da morte do ex-presidente João Goulart. A comissão em que Arraes prestou depoimento foi a de João Goulart, que teve como autor do requerimento e relator o deputado Miro Teixeira. Nela, o deputado e relator disse: “Estamos escrevendo um modesto começo da história da Operação Condor no Brasil. O tempo, em breve, se encarregará de completá-la”. Melhor que processar e punir os torturadores é discutir os comportamentos inaceitáveis em uma realidade civilizada. Através do conhecimento da História e dos debates acerca desse tema, poderemos evitar que esses fatos voltem a acontecer. 28/02/2011
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AMOR
“Porque quem ama nunca sabe o que ama. Nem sabe porque ama nem o que amar. Amar é a eterna inocência, e a única inocência, não pensar...” Fernando Pessoa 45
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O AMOR E A RELIGIÃO NO FUTURO
Apresentar às pessoas uma clara perspectiva de como construir o mundo que desejamos ou o que vai existir independentemente de nossas vontades, analisando possibilidades e pontos determinantes do passado e do presente sobre um assunto específico é o objetivo da Futurologia, a ciência que estuda o futuro. Apesar da exigência de elevado grau de precisão em suas abordagens, o papel de um futurólogo não é indicar o que vai acontecer, mas o que pode vir a se desenrolar como tendência a médio e longo prazo. Os cenários, portanto, são definidos como possíveis, prováveis ou desejáveis. A maioria das pessoas não está familiarizada com a Futurologia, embora haja estudiosos e conhecimento do exercício dela em quase todas as áreas da ciência: na Sociologia, no Marketing, na História, na Demografia. Assim, a Futurologia apresenta-se como uma significativa ajuda à tomada de decisões, e o desenvolvimento de um bom trabalho nesse campo depende de muitos estudos e pesquisas. 47
Um dos maiores futurólogos que já tivemos foi o luso-brasileiro Pe. Antônio Vieira (1608–1697), com seus célebres e geniais sermões (editados em dezesseis volumes) e os livros História do Futuro (volume I e II). Suas ideias de abolir a distinção entre cristãos-novos (judeus convertidos perseguidos à época pela Inquisição) e cristãos-velhos (católicos tradicionais), de defender o fim da escravatura e de criticar severamente a Inquisição mostravam que o Pe. Antônio Vieira era um grande pacificador, um homem realmente à frente de sua época. Atualmente, um dos futurólogos mais comentados no mundo é Adjiedj Bakas, autor de vários best-sellers, a exemplo de Living without Oil (Vivendo sem Petróleo) e Beyond the Crisis (Além da Crise). Filho de indianos, Bakas nasceu em 1963 no Suriname, mas vive e trabalha na Holanda desde 1983. Especialista em Ciência da Comunicação, Adjiedj Bakas combina conhecimento do mercado de diversão com distribuição de informação de entretenimento, sendo hoje um dos trendwatchers (profissional que realiza análises e monitoramento das macrotendências, coordenação de pesquisas e acompanhamento dos estudos realizados por agências especializadas) mais badalados do mundo. Autor de dez livros publicados, todos nessa linha das tendências para o futuro, e dono de um bom humor contagiante, Bakas é frequentemente convidado para proferir conferências em países de todo o mundo. Considerado pela imprensa internacional especializada em literatura como um fascinante pesquisador, um falante visionário e uma figura pública provocante e inspiradora, Bakas faz jus às classificações em duas de suas obras mais instigantes: Futuro de Deus (Espiritualidade 2.0), escrito em 2006, em coautoria com Minne Buwalda, e O Futuro do Amor, concluído em janeiro deste ano.
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Em Futuro de Deus (Espiritualidade 2.0), Bakas e Buwalda apresentam 49 tendências em religião e espiritualidade. O livro analisa que a transformação do mundo numa grande aldeia global ofereceu múltiplas chances para algumas pessoas, mas há muitos que se sentem ameaçados com essa situação. A globalização, sem dúvida, causou impacto sobre a religião. Os grupos religiosos que não conviviam há cinquenta anos, hoje vivem e trabalham nos mesmos bairros e escritórios. Já em O Futuro do Amor, Adjiedj Bakas traz afirmações cortantes, ácidas para o leitor, fazendo-o refletir sobre novos paradigmas em reflexões pertinentes que o posiciona nas condições atuais de vivência humana e relacionamentos interpessoais. O autor responde a questionamentos assim: Como o amor se relaciona com o trabalho? Como tecnologia e globalização se unirão com o amor? Será que vamos avançar para múltiplas relações (o que Bakas chama de a latinização de amor) ou caminhar para a monogamia serial? Como continuará a divisão aguda entre homossexuais e heterossexuais agora que há cada vez mais “cruzamentos”? Será que vamos chegar a uma multissexualidade? Nesse que pode ser considerado um de seus livros mais fascinantes, Bakas descreve a evolução da vida amorosa
de pessoas de várias gerações, além de estilos de vida e práticas étnicas e culturais no mundo veloz de hoje.
A Editora Girafa irá lançar os interessantes Futuro de Deus (Espiritualidade 2.0) e O Futuro do Amor, em julho, aqui no Brasil, e Adjiedj Bakas virá para proferir uma de suas famosas palestras. É esperar e conferir.
Jornal do Brasil, 17/04/2010 Folha de Pernambuco, 19/04/2010 49
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O AMOR NO CONTEMPORÂNEO
Nossa realidade, denominada modernidade líquida por Zygmunt Bauman em seu livro O Amor Líquido, é a imagem de uma sociedade isolada, egoísta, sem valores morais e éticos. É um mundo confuso e complexo. A fragilidade dos vínculos humanos gera sérias dificuldades em nossa capacidade de amar. Na era da comunicação, ocasionada pelos celulares e pela internet, reina a incomunicabilidade, pois não nos aprofundamos mais em nada na era digital e não comunicamos o essencial. O fenômeno da solidão cresce apesar de todas as redes sociais. Estamos privilegiando relacionamentos em redes sociais virtuais, que são, na verdade, superficiais e frágeis. Cito, mais uma vez, o pensamento de Bauman, que considera as relações sociais reais como bênçãos em um mundo de “furiosa” individualização. Torna-se mais evidente que o fracasso do amor moderno está atrelado ao fracasso da comunicação.
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O filme 2046 – Os Segredos do Amor, do cineasta chinês Wong Kar Wai, retrato da parcialidade do erotismo contemporâneo, tem como principal objetivo mostrar o fim da plenitude, da inteireza. Para ele, o verdadeiro amor é impossível. Ou melhor, só o parcial existe, e é exatamente isso que nos excita. A incompletude é a única possibilidade humana. Apesar da brilhante visão do cineasta de Hong Kong, a própria História e a grande arte buscam negar essa impossibilidade. Apesar de estarmos presenciando dia a dia as mudanças tecnológicas e culturais em tempos pós-modernos, não é de hoje que as pessoas vêm mudando o modo de ser, agir e pensar. Há mais de trinta anos, o sociólogo, historiador e professor norteamericano Richard Sennett afirmou que estavam surgindo mudanças entre as esferas da vida pública e privada. Ele acreditava ainda que o esvaziamento da vida pública traz uma série de problemas ao homem contemporâneo. O escritor já percebia que a chegada de uma “ideologia da intimidade” transforma categorias políticas em psicológicas. Ao discutirmos a crise do amor e dos laços humanos na contemporaneidade, percorremos um caminho histórico, que vai desde o amor romântico ao relacionamento amoroso na perspectiva de gênero. Passamos pela crise do romantismo, em diferentes versões, até as novas formas de vínculo entre os homens e as mulheres. As coisas estão tão mudadas de uns tempos para cá que podemos perceber a ambiguidade existente nessa mutação mental. Os filhos, por exemplo, são, muitas vezes, considerados objetos de consumo emocional. Apesar de serem capazes de despertar os mais puros sentimentos humanos, estão disputando com o comércio o título de bem mais valioso. O capita-
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lismo tem como meta fornecer substitutos à altura dos nossos sentimentos mais preciosos para que a sociedade se contente com tão pouco e esqueça, mais uma vez, sua essência: o amor verdadeiro. 06/09/2010
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