Programação
FLIPORTO 2014 ARIANO
SUASSUNA
mescla gêneros literários em sua obra
ALBERT
CAMUS
A “Florença dos trópicos” e a história de um texto (quase) perdido Um poema inédito de
THIAGO DE MELO
FRANCISCO
BRENNAND Fragmento de um diário
A Revista ArtFliporto, em nova fase, é uma publicação trimestral da Editora Carpe Diem.
Expediente Edição: Digital Novembro | 2014 Direção Antônio Campos Edição Marcus Prado Assistente Cláudia Cordeiro Arte e Diagramação Roberto Portella Revisão Haidée Fonseca
Capa
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FRANCISCO BRENNAND foto: Marcus Prado
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Editora Carpe Diem Direção Antônio Campos Direção Executiva Veronika Zydowicz Endereço para Correspondência (Address for correspondence): Carpe Diem Edições e Produções Rua do Chacon, 346—Casa Forte 52061–400 Recife–Pernambuco–Brasil www.fliporto.net https://editoracarpediem.com.br/ https://twitter.com/editcarpediem
APRESENTAÇÃO
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ublica–se, neste novembro de 2014, este quarto número da ArtFliporto, quando, pela quarta vez, Olinda, a cidade Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade, se prepara para o grande encontro da cultura e das artes na 10ª edição da Festa Literária Internacional de Pernambuco, Fliporto, de 13 a 16 de novembro, na Praça do Carmo e no Colégio de São Bento. Nesta nova edição da revista, respira–se o ar democrático dos mares da Web, porque passa a ser uma revista de formato exclusivamente digital, seguindo a tendência de toda a linha editorial do gênero no mundo. Celebrando a Arte, aqui nos esmeramos em somar, ao edifício da beleza, o contínuo diálogo do homem com ele mesmo e com os outros, seja pelas anotações dos ensaístas, seja pelo fazer o Conto, o Poema, a Fotografia, a Arquitetura. Quase todo grande movimento literário como a Fliporto sustenta–se numa revista, que lhe serve não apenas de porta–voz, mas também de meio pelo qual se articulam manifestos, poemas, contos, ensaios críticos, etc. Neste número, acolhemos uma diversidade de temas que estabelecem a dimensão do espírito da nossa Festa literária e desta publicação. Os colaboradores que participam pela primeira vez da Revista dão a medida da multiplicidade do nosso projeto, pela qual se pode avaliar a diversidade dos nossos propósitos. Este ano, aufere data a vários eventos importantes, um deles, vinculado ao cenário literário pernambucano—os 90 anos de nascimento de Osman Lins—está contemplado nesta edição. Novas edificações da poesia surgem, merecendo uma obra inteira encartada. A crítica de Arquitetura surge como meta a se expandir e ganhar espaço na revista. Um corpo de inéditos, seja na poesia, na prosa, no ensaio ou nas artes visuais, faz da quarta edição da ArtFliporto um exemplar da arte e da cultura deste e de outros tempos no nosso hoje. Aos colaboradores, nosso muito obrigado. Aos leitores, nossos votos de ótima viagem nesta jornada cultural. O DIRETOR 3
SUMÁRIO
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03 APRESENTAÇÃO 05 O NOME DO LIVRO Fragmentos do diário de 1986 Francisco Brennand 20 FLIPORTO 2014 22 PROGRAMAÇÃO DO 10º CONGRESSO LITERÁRIO INTERNACIONAL PERNAMBUCO —FLIPORTO 2014. 23 CINE FLIPORTO — FLIPORTO GALERA E FLIPORTO GALERINHA. 26 ALBERT CAMUS, A “FLORENÇA DOS TRÓPICOS” E A HISTÓRIA DE UM TEXTO (QUASE) PERDIDO. Anco Márcio Tenório Vieira 34 O ESCRITOR E A NOSSA ÉPOCA, ALBERT CAMUS 40 A NOVA LITERATURA IMAGINATIVA EM PERNAMBUCO André de Sena 46 UMA ORDEM SINUOSA: O BARROCO NO ROMANCE AVALOVARA Fábio Cavalcante de Andrade 54 THIAGO DE MELO (Poesia) Com o silêncio molhado das funduras do meu rio. 58 AS PALAVRAS E OS DIAS — PÁGINAS DIARÍSTICAS (ALGUMAS LEITURAS) José Rodrigues de Paiva 67 AS CONSTRUÇÕES DE ABELARDO DA HORA Fotos: Isolda do Valle Wanderley 68 DEUS FURIOSO (Conto) Cícero Belmar 76 UM FERRO DE ARREIO Isolda Walderley 78 HOLOGRAMAS DE GRACILIANO Sylvio Back — Escritor e cineasta 84 REENCONTRO COM GEORGIA O'KEEFFE Eduardo de Aguiar 86 DEBORAH BRENNAND: CONFISSÃO E DESLUMBRAMENTO Luzilá Gonçalves Ferreira
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88 A ÚLTIMA VIAGEM (Poesia) Rodrigo Garcia Lopes 92 O ENCANTO DO “ENCANTO E POESIA” Haidée Camelo Fonseca. 94 NUDEZ (Poesia) Mário Hélio 95 O TROVADOR — ROMANCE POLICIAL DE RODRIGO GARCIA LOPES Joca Rainers Terror
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96 ARIANO SUASSUNA MESCLA GÊNEROS LITERÁRIOS EM SUA OBRA Paloma Rodrigues — Jornalista (São Paulo) 98 AGOSTO (Conto) Jamilsa Melo — Jornalista e escritora (Manaus). 100 O VULTO VAGO DAS PESSOAS NAS RUAS. Fotos: Isolda do Valle Wanderley Rede Jornal Fliporto. 102 A POESIA DE PEDRO XISTO: ILUMINAÇÃO DA PALAVRA 104 O SEMPRE MODERNO José Luiz Mota Menezes (Arquiteto e Historiador) 108 LYGIA CLARK ADMIRADA NOS EUA. 110 DOIS FRAGMENTOS DO NOVO LIVRO (INÉDITO) DE ANDREA NUNES: ALQUIMIA. 114 PICASSO E SUA PAIXÃO PELA FOTOGRAFIA.
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116 UM NOVO LIVRO, UMA EXPERIÊNCIA EDITORIAL. 118 ENCONTRO DOS RIOS (Poesia) Jadson Nobre (Manaus) 119 O MAL NA FILOSOFIA EXISTENCIAL DE KIERKEGAARD. Ignacio Strieder 130 MAM APRESENTA MOSTRA PANORÂMICA DO ARTISTA MULTIMÍDIA PAULO BRUSCKY 132 LIVRO DE SONETOS Titio Livio Lisboa (Recife)
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O NOME DO LIVRO
FOTO: MARCUS PRADO
FRAGMENTOS DO DIÁRIO DE 1986
FRANCISCO BRENNAND
6 de julho de 1986—Uma tarde inteira com o poeta Tomás Seixas. Continua a trabalhar no seu livro
“Casa dos sonâmbulos”. Textos e textos reelaborados durante anos a fio. Sempre recomeçados, mas sempre os mesmos. Palavras testadas arduamente à luz da memória vigilante, de toda sua memória, visual e auditiva, numa procura desesperada e categórica, que o faz retornar ao mesmo lugar, a um ponto fixo, a um único e inalterável lugar, ou seja, o derradeiro ato de interpretar o primordial: “No princípio foi o Verbo...”. Borges, no seu ensaio sobre “A Cabala”, comenta que “a noção do livro sagrado é completamente diferente do livro clássico. Num livro sagrado, são sagradas não apenas suas palavras, mas também as letras com que elas foram escritas”. O poeta Tomás, na sua ortodoxia pessoal, não parece pensar de outra maneira, e assim prossegue lentamente, em direção a essa quase inacessível Porta Estreita. A noite se aproximava quando condescendeu em fazer a leitura de um artigo escrito há mais de vinte anos sobre Amedeo Modigliani. Depois, já sem o texto nas mãos, com a voz entrecortada pela emoção, como quem recorda antigas amantes, falou dos retratos de Beatrice Hastings, de Jeanne Hébuterne, esta, na sua opinião, muito semelhante a uma virgem gótica. E recordou–se também da “Grande Femme Nue” talvez um dos mais belos nus da pintura contemporânea, pintado em 1919, um ano antes de o artista falecer num hospício em Paris. 7 de julho—A simpatia de Gauguin pela barbárie fez nascer a pintura moderna. Mas, afinal de contas, o que é um bárbaro, ou o que é um selvagem? Cesare Pavese, neste domínio, também começa perguntando: “Será possível ir mais além do que Jack London em ‘O apelo da Selva?’. A arte do século XX tende para o selvagem. Primeiro, nos temas (Kipling, D’Annunzio); depois, na forma (Joyce, Picasso etc.). Leopardi, com suas ilusões poéticas juvenis, procurou o selvagem como forma psicológica. Até Nietzsche tinha este sabor (com o seu Dionisos)”. Ao próprio Pavese, o selvagem parecia interessar, “mais como mistério do que como brutalidade histórica. Selvagem quer dizer mistério, possibilidade aberta”. Vejamos então o que dizem os gregos, esses mesmos gregos e seus parentes afins os romanos dos quais Gauguin recomendava fugir como o diabo da cruz: “Jamais os gregos”. Gauguin, dando as costas em definitivo à Europa e se instalando em Fatu Hiva, Ilha das Marquesas, quase ainda antropofágica, à procura do que ele declarava ser indispensável para a plena realização de sua arte: “Creio que ali, este elemento selvagem, esta solidão completa, me dará, antes de morrer, um último fogo de entusiasmo que rejuvenescerá minha imaginação”. Voltando aos gregos os inventores da palavra bárbaro, o que pensavam eles a respeito de outros povos fora dos seus deuses, dos seus templos e dos reluzentes muros de calcário branco? Nos dias cinco e sete de setembro de 1944, no seu “Ofício de viver”, Cesare Pavese, não sem uma certa ironia, comenta exemplarmente: “Dos sete trechos em que Heródoto na descrição do Egito diz que tem escrúpulos em tocar nos mistérios, trata–se, em três casos, dos deuses–animais, em dois do rito fálico, nos outros de autoflagelação e de iluminação sagrada. Por que é que Pan é representado com cabeça e pernas de bode? (XLVI). Por que é que o porco imundo durante o resto do ano é sacrificado e comido durante a festa de Baco? (XLVII). Por que é que os animais são em geral sagrados? (LXV). Aqui, Heródoto sente um horror totêmico e não ousa falar. Por que é que as imagens fálicas na festa de Baco têm o Phallus nu e movido por fios? (XLVII). Por que é que os atenienses fazem as estátuas de Hermes fálicas? (LI) Aqui, Heródoto sabe que Phallus e Deus coincidem e não ousa dizê–lo. Em honra de quem se batem os crentes durante a festa de Ísis? (LXI). Por que se celebra em SAIS a festa das lâmpadas? (LXII). Existe aqui provavelmente qualquer um outro horror que a respeitosa curiosidade mundana de Heródoto não teve a coragem de enfrentar. Eis um exemplo da maneira grega de tratar o selvagem: é reconhecido com respeito tolerante, como sagrado, e acabou–se. Os gregos têm a consciência racionalista de que o mundo do sagrado e do divino esconde abismos e que é preciso correr um véu sobre ele. (Outrora, faziam–se sacrifícios aos deuses, mas sem os nomear (LII). Foi ainda há pouco tempo que Homero e Hesíodo descreveram e narraram os deuses (LIII). O tom de Heródoto é quase de censura )”. 7
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9 de julho—Às 6h45 – Pouco a pouco, como numa cidade sitiada, nos habituamos (ou nos abandonamos) à desgraça. “A revolta é o ladrar do cão louco”, diz Camus, citando “Antônio e Cleópatra”, de Shakespeare. Meu Deus! Uma minúscula notícia de jornal, como se fora uma charge de humor negro, e, no entanto, deve ser verdadeira na sua aparente frieza estatística. Fala da fome no mundo. Da fome que atinge, sobretudo, as crianças e, ainda assim, sem levar em conta todos aqueles que, ainda não nascidos, estariam de antemão condenados ao mesmo suplício. Ivan Karamázov afirmou que suportaria tudo, menos o sofrimento de uma criança. Presumo que ele tenha falado por toda a humanidade, mas parece que as coisas não têm se modificado, e acredito que continuarão assim até o fim dos tempos. 14 de julho—“Então eles se agarraram, se enlaçaram e combateram, até que a mão dele chegasse à sua cintura fina e a ponta dos dedos tocasse o seu corpo flexível. E então os seus membros amoleceram e ele tremeu suspirando como um junco da Pérsia no rugir da tempestade”. (História do combate entre o lutador Charkan e a jovem rainha Abrise). 31 de julho—Não tendo para onde fugir ontem à noite, se entregou nos braços de Gertrudes que, a seu pedido, toda vestida de seda negra, o aguardava impacientemente. Ela cumprira à risca as suas insólitas recomendações e, talvez, ainda muito mais do que esperava, pois, como notou, nenhum detalhe do seu traje fora descuidado. A massa rebelde dos seus cabelos negros, com franja sobre a testa, acentuava o branco intenso do rosto, propositadamente embranquecido pela maquiagem, como uma máscara trágica de teatro Kabuki. Os olhos, igualmente acentuados de negro, assim como as sobrancelhas muito finas e arqueadas, completavam com o vermelho intenso dos lábios toda essa sofisticada caracterização. Difícil para ele foi tão somente fazer com que essa improvisada atriz cumprisse o seu papel. Já nas primeiras horas da manhã, compreendeu afinal que todos os esforços nesse sentido seriam vãos, e que o aprendizado necessitaria, como era de se esperar, de tempo, de muito tempo. Acontece que ele não tinha mais como ainda aguardar. E foi apenas para encorajá–la que a brindou com o título solene de Princesa da Armênia, rainha pelo menos naquele instante, no seu insuspeitável e inóspito deserto. Entretanto M.G. é uma figura noturna digna do maior respeito, cuja sensualidade é inesgotável e amedrontadora. 1 de agosto—20h48 – Mais uma vez, quase como se fosse uma rotina, volto à fábrica à procura de uma pousada mais segura para dormir. Não confio em Dalila. Poderia cortar os meus “cabelos” e, então, eu perderia as minhas forças. 2 de agosto—O catre, como dormida, foi péssimo, mas pior ainda é, na madrugada solitária, a perceber–se de que a ninguém interessa o nosso ingênuo abandono. Compreende–se então, muitíssimo bem, o desespero dos velhos e dos fracos. Como um mestre da amargura (na qual finalmente soçobrou), Pavese comenta: “Deixa–se de ser jovem quando se descobre que de nada serve contar uma dor”. A minha sorte em neutralizar tão nefasta lembrança nasceu de um outro comentário, esse sim, totalmente enigmático, mas que, em todo caso, tem ajudado a reanimar–me, podendo mesmo ser utilizado como escudo ou até como uma lança para defesa daqueles que, já não sendo jovens, ainda da vida esperam alguma coisa. Quem assim promete é o pintor Jean–Auguste Dominique Ingres, figura, aliás, bastante controvertida na vida e na arte, mas que, como ninguém, soube defender com unhas e dentes o seu obstinado beau–ideal: “A minha velhice me vingará”, foi o que ele disse, e não precisava dizer mais. É hora de dizermos como na peça de Shakespeare, “All’s Well that End Well”, “Tudo está bem quando acaba bem”. Andréa Monti: “E não consola saber que é de história de loucura que está pavimentado todo o caminho seguido, desde o Prometeu até a corrida do átomo”. 4 de agosto 7h—Começo o dia entorpecido. O catre não funciona como um leito ideal. Antes fosse duro e inóspito como 9
todos os catres que se prezam, mas este é estofado de almofadas de couro, que me fazem afundar como um náufrago. Continuo preso às recentes discussões políticas de que participei na casa de Tomás, junto a outros amigos, quando, com veemência, lembrei um estranho comentário de Pavese sobre a Revolução Francesa: “A verdadeira Revolução Francesa ainda não aconteceu, mas quando de fato acontecer, tenho a vaga impressão de que com ela não estarei de acordo”. A enorme coragem e lucidez desse escritor em emitir um comentário tão original pode parecer, aos menos avisados, apenas uma mera brincadeira. Acontece que não é brincadeira alguma. Como citei de memória, logo à noite corri célere aos textos do “Ofício de viver”, no pressuposto, inclusive, de que lá encontraria esta observação. Nada descobri. Agora pela manhã, retorno aos mesmos textos e nada... Isso me confunde a ponto de supor que Pavese nunca afirmou uma tal “heresia”. Mas se não foi ele, quem foi então? Quanto a mim, não sei se concluiria com tamanho acerto, humor e igual originalidade semelhante juízo, embora, com ele, estivesse de completo e irrestrito acordo. Alguém me diz que a famigerada “Carta ao Pai”, de Franz Kafka, jamais chegou ao seu destinatário. A sorte foi de ambos. Seria terrível, difícil e mesmo espantoso que um pai pudesse ler tais acusações e que o filho ainda sobrevivesse a tamanha maldição. Não é possível que Franz Kafka, como homem e escritor, não se apercebesse dos misteriosos limites da “verdade”, daquilo que, supondo verdadeiro, não é ainda toda a verdade. Há um vazio a considerar e é nessa lacuna que os fatos se desenvolvem, concentram–se e também se expandem perigosamente. O próprio Kafka, num aforismo, reforça o que digo: “Na luta entre ti e o mundo, apoia o mundo; não se deve lesar a ninguém, nem sequer frustrar o mundo da sua vitória”. 5 de agosto—21h50—Mandei comprar na cidade a mais simples cama de ferro (tipo solteiro). O motorista junto com o vigia da fábrica trazem uma cama pintada de azul celeste, o que me deixou encolerizado. Fiz–lhes ver o absurdo dessa cor com a qual terei de conviver dentro do meu próprio atelier ao lado de outros móveis, na sua maior parte sombrios. Para a minha crescente irritação, demoraram em montar as ferragens e eu, aqui com os meus botões, só pensando em mandar repintá–la de outra cor. De repente, olho no fundo da sala. A pequena cama estava 10
ali armada, resplendendo no seu azul cerúleo profundamente belo e primaveril. Era a pincelada de gênio necessária para vivificar esse ambiente sobrecarregado de ocres pardacentos, sienas, brancos sujos e pretos desbotados. Saiu o velho catre, que há tantos anos me serviu, e entra uma cama jovial com a sua nova harmonia, aparentemente extravagante à maneira do Blue Boy de Gainsborough, este também, de tão celestial presença entre tantos pardos, terrosos e aborrecidos. A cama celeste, ou a celestial morada, funcionou a contento, e posso asseverar que dormi bem melhor essa noite. Apenas tenho de reconhecer que é uma cama frágil e casta, que não permitirá a presença de mulheres à toa. 7 de agosto —3h20 —Os insetos e, possivelmente, uma conversa telefônica que mantive com Fenícia, ontem, no começo da noite, não me deixaram dormir. Irritou–me acordar apenas às três horas da manhã, uma hora pesada, propícia ao desenlace dos moribundos, “Hora do lobo” (título de um filme de Bergman, não é verdade?). Mas, o que enlouquece os escandinavos, ainda mais que a nós outros, que já somos todos mais ou menos ensandecidos? Fenícia também é louca. Toda loucura é irresistível e insistente. E ela insiste como ninguém. Que dificuldade em convencer um louco para que ele deixe de ser louco! De volta para a cama celeste, vejo o grosso volume laranja, o inconfundível “Journal de Kafka”, traduzido para o francês. Abro–o ao acaso. Tout se refuse à être écrite. Abaixo da frase, há um grifo canhestro, trêmulo, incompleto, marca registrada de quem não ama os livros, mas que, assim mesmo, pode ainda amar os textos. Mas como é que se pode amar os textos sem amar os livros? Então, não se ama nenhum dos dois? O grifo abaixo da frase genial de Kafka é meu. Logo, não amando os livros, igualmente não devo amar os textos. Voltando ao elogio da loucura, escuto A.C. confidenciar–me, sorrindo, que quem tirou a sua virgindade foi uma mulher. “Tu a conheces, ela é louca! Sabias?”, diz A.C., olhando para mim à procura de aprovação. “Sim, ela é louca”, repetiu. Logo acrescentei: “E quem não é louco?”. Desta feita, silenciou, não respondendo nada. Meu Deus, como as mulheres se escravizam ao sexo! Neste capítulo, nada a fazer, nada a declarar. Insistir já é loucura. Na tarde de ontem, John Richardson, biógrafo de Picasso, do alto de sua prosopopeia, declarou que Olga 11
Picasso era louca; que Marie–Thérèse Walter era belíssima, mas primária e que acabou se enforcando cinquenta anos depois de ter conhecido o artista; que Dora Maar era inteligente, mas inconveniente, neurótica e excessiva em tudo. E, como se não faltasse mais nada, um tanto kafkiana. Enfim, um azarão; Françoise Gillot era... Engraçado, sobre esta jovem, Richardson não diz nada, apenas cita trechos do seu livro, escrito a quatro mãos contra Picasso. Se Richardson não diz nada relativo a Françoise, é porque certamente estão mancomunados. Richardson insinua que o poeta Éluard oferecia abertamente a sua bela esposa Nush ao amigo Picasso e quanto a Jacqueline Roque, com quem o pintor se casou em segundas núpcias, Richardson não diz muito, mas deixa subentendido, claramente, que ela fisgou o velho polígamo com unhas e dentes, apressando assim o desespero e a morte de Marie–Thérèse, que também, por sua vez, tinha lá as suas pretensões matrimoniais. Enfim, um amontoado de escândalos no seu paroxismo. Se enfoquei tão somente esses aspectos negativos amorosos, foi motivado pela insistência do próprio Richardson em dar–lhe um amplo significado. Em geral, a visão restante das análises cronológicas dos velhos ritos picassianos é excelente e justa, perseguindo sempre a pista de boas e dilatadas elucidações. Vê–se que o crítico admirava Picasso sem reservas, conhecendo bem seus amigos, as influências temperamentais recíprocas e, sobretudo, a gênese de suas principais obras. Contudo, o mesmo não acontece com as intrujices a propósito do “louco amor de Picasso”. Terá sido o pintor tão louco assim? Há qualquer coisa no cerne deste estudo que não me cheira bem, e, no fundo, quem sai chamuscado é Picasso. Na minha opinião, o que foi escrito permanece terrível, mas é igualmente belo nas suas indiferenciadas digressões e nas suas encantatórias e definitivas descobertas. O artigo foi lido e é medonho como história e suas inevitáveis consequências. A vida em si já é um horror, mas na sua multiplicidade de aspectos acaba por purificar o mal, mantendo–o disfarçado sob um manto de fantasia, o que não acontece quando se codifica cronologicamente todos os eventos, e se verifica com frieza aquilo que, ainda não tendo nome, poderia cair no esquecimento e jamais ser denominado. À luz dessas três ou quatro páginas de jornal, Pablo Picasso poderia ser tomado isoladamente como monstro, e sua relação íntima ou casual com as mulheres que conheceu, uma verdadeira monstruosidade. Todas essas linhas ou anzóis colocados em torno do artista acabaram por fisgá–lo. E, assim, é analisado, como um peixe fora d’água, fora do seu meio ambiente e de suas circunstâncias vitais, portanto, já sufocado e morto. Há poucos meses, nesses mesmos cadernos culturais, li algo semelhante, escrito por James Snyder, outro norte–americano, discorrendo sobre aquilo que chama “uma nova imagem de Rembrandt”. Na realidade, é uma 13
apreciação despropositada, abordando um ensaio de Gary Schwartz sobre o mesmo artista, “Rembrandt, His Life, His Painting”. Diferentemente do alto conceito de Eugéne Fromentin sobre Rembrandt, esse Sr. Schwartz, entre outras preciosidades, começa a nos dizer que o pintor até carecia de talento... De saída, diz ele: “Partindo de um estudo exaustivo e acurado de documentos (será que a vida se resume a uma prova documental?), em sua maioria, relativos aos clientes, o autor fornece um vívido retrato de Rembrandt, caracterizando–o como uma pessoa repugnante e indigna de confiança: ávido, fútil, insociável, grosseiro e arrogante...”. Certamente, o Sr. Schwartz estava escrevendo uma autobiografia e não um suposto retrato do artista, esquecido de que o sensato Montaigne sabiamente comentara que “todo homem carrega em si a forma inteira da humana condição”. Afinal de contas, esses enlouquecidos norte–americanos estão nos saindo melhor do que a encomenda. Já dizia Durrell, com muito mais propriedade do que John Richardson ou Gary Schwartz et caterva, que “tudo o que se disser de um homem (de qualquer pessoa) poderá ser verdade. O Santo e o Canalha partilham a realidade”. E tem toda a razão Durrell quando completa: “Se as coisas fossem sempre o que parecem ser, como se encontraria empobrecida a imaginação dos homens!”.
9 de agosto – sábado May her foot speaks. Shakespeare Por motivos pessoais, ainda não muito esclarecidos, ininterruptamente, desde o dia 9 de julho até a data de hoje, relendo “O Idiota”, de Dostoievski, resolvi realizar uma proeza que nada tem a ver com a “ficção” de Borges, “Pierre 14
FOTO: MARINEZ TEIXEIRA
FOTO: MARINEZ TEIXEIRA
Menard, autor do Quixote”, isto é, não reproduzi linha por linha as atrozes aventuras do Cavaleiro da triste figura e sim, no dia a dia, entre os momentos da leitura e os vagos acontecimentos dos meus próprios cadernos, misturei os diferentes textos numa desregrada pantomima. Na cena final, tudo é sombrio e recende a morte. Nastássia deve permanecer invisível, sofre daquilo que Santa Tereza de Ávila, com uma propriedade singular de linguagem, apelidava de “o mal da morte”. Cumpriu assim o seu destino: “O que tem de acontecer aconteça”. Mesmo no escuro, o príncipe Míchkin acaba então por discernir o leito todo: “Alguém nele dormia numa imobilidade rígida. Não se percebia o menor ruído, nem a mais leve respiração. Um lençol branco cobria o dormente da cabeça aos pés e mal desenhava a forma dos seus membros; o relevo dos contornos mostrava apenas a presença de um corpo humano. Na extremidade do leito, um montão de rendas brancas deixava passar a ponta de um pé nu que parecia esculpido em mármore e mantinha uma imobilidade aterrorizante...”. 10 de agosto—Pego um antigo caderno começado em abril de 1974 para uma ligeira revisão. O pouco que vi é o bastante para deixar–me intranquilo, a começar pela enxurrada de nomes de mulheres que (com honrosas exceções) não chego nem a recordar de quem se trata, nem como tais personagens passaram pelas minhas mãos. Possivelmente, a partir do próximo dia quinze deste mês, terei a meu serviço uma secretária que, entre outras atribuições, me ajudará a datilografar este diário, cujo início data de quase quarenta anos e, na verdade, merece correções inadiáveis. Por enquanto, posso deixá–lo de lado. É o mais sensato. Não compreendo por que M.G. falhou. Que pode ter sucedido a essa criatura dotada de tão grande majestade? Que terrível surpresa iria revelar desde que prometera me deixar atônito com certas coisas que descobrira? Uma longa silhueta vestida de negro, suntuosamente oriental, bailarina até nos dentes e nos cabelos desenvoltos, ventre de catástrofes, ancas de metal. Como diria o poeta, sempre atento a esses monstros sagrados: “Seios que avançam mais terríveis do que os anjos do mal”. 15
Disseram–me que ela me aguardou parte da noite, toda vestida da cor azul profundo e não de negro como supunha. Rodeados de azul, também estavam pintados seus pequenos olhos negros e diamantinos. Cabelos escuros, envoltos por pérolas cinzentas. Um longo pescoço, adornado de um metal frio e despolido. As costas nuas até a altura das ancas. Meias violetas da cor de certos peixes abissais, que jamais pressentiram a luz do sol; sapatos e bolsa coralinos... Vinda de outros mares, dera–me o endereço errado. Esperei sôfrego diante de um hotel e ela, igualmente agitada, media os passos inquietos, não muito longe de onde me encontrava, mas próxima de um cruel e definitivo desencontro. Antes tivesse faltado. Sabê–la à minha espera foi atroz e, pior ainda, sabê–la agora perdida para sempre. Perturbou–me o fato assombroso de verificar o número de mulheres que aparecem e desaparecem vertiginosamente nos meus cadernos mais antigos, isto é, há um pouco mais de dez anos. Figuras sem nome e sem substância, portanto, verdadeiros fantasmas. Procurar eliminar essas referências seria o mesmo que anular o próprio passado. E o passado não se apaga sob pena de destruição de todo o presente. É o nosso inferno possível, exaltado pelas próprias ilusões eróticas, quando se anuncia o inevitável castigo, pressentido numa infinita continuação, haja vista as páginas de ontem e de antes de ontem. Fala–se de M.G. e na cor azul. Não se faz necessário ler Sêneca para intuir que “tudo o que ocorreu e tudo o quanto ocorre é um sinal do que vai ocorrer”. Retorno à indagação: “Por que mulheres sem nome?” À medida que releio os cadernos, tenho sistematicamente cortado cada nome feminino, deixando apenas as letras iniciais. Se cada um deles já dizia pouco, o que falar então, agora, desses despojos de uma letra só? Acontece que verifico em outros diários que nem sempre certos nomes podem ser revelados à toa, principalmente em se tratando de mulheres alheias, que são levadas por ofício ou por amor de cama em cama. Além de tudo, as dificuldades se acentuam na medida em que há uma legião delas (e não algumas poucas) que conseguem entrar em cena... Todas estão lá no palco, confusamente embaralhadas e − cruel ironia − não devem representar papel algum e nem sequer ter um nome. Chamá–las apenas pelas iniciais não seria patético, porquanto cada letra poderia indicar os nomes mais diversos? Criar códigos ou nomes de guerra também não resolve. Enfim, a dificuldade permanece e é mesmo insanável. Eis aí uma proposta infernal, evidenciada naquilo que os religiosos chamam abertamente de pecado (um estado de imperfeição que atinge a si próprio e aos outros) e que infantilmente teimamos em não levar a sério. Suponhamos um estranho castigo ou um pesadelo, no qual todas essas conhecidas antigas ou recentes se dispusessem, de uma só vez, a participar de minha vida, cobrando–me isso ou aquilo por menos que fosse; uma legião delas à porta do meu atelier ou de minha casa, exigindo abertamente reciprocidade ou então reivindicando aquilo que a imprensa moderna enfatiza como “os sagrados direitos da mulher”. Um inferno, não é verdade? Admitamos uma fábula: Morre um Dom Juan qualquer, que, para o seu próprio espanto, encontra–se no Paraíso, caminhando entre nuvens de uma arrebatadora claridade. No fundo dessas nuvens, um esboço de tribunal o espera.Vê os seus juízes, mas não os reconhece. E pior, não há como perguntar quem eles são. Aturdido, imobiliza–se à espera do supremo julgamento. Todos parecem muito afáveis e mandam–no inclusive sentar, embora ele não visse nenhuma cadeira por perto. Foi quando escutou uma voz suave ressoar, enchendo todo o firmamento: “Bem vindo à Morada do Senhor, tu que tanto amaste na Terra! No momento, és nosso convidado de honra, e te rogamos que entres, embora necessites de ainda passar por uma pequena formalidade”. Explicam–lhe que não é necessário perder tempo com detalhes; que seja breve, brevíssimo, limitando–se a nomear cada um dos seus amores terrenos, fossem eles fortuitos ou duráveis. Não seria necessário citar as datas. Apenas nomes. Apavorado, com tamanha exigência, quer retrucar, mas se apercebe em tempo que não tem mais o dom da fala. Limita–se a pensar (ele ainda pensa) numa única palavra, e esse pensamento atroz seria o equivalente a um grito: “Todas?”. Ele não se lembrava de nenhuma, nem sequer daquele corpo de puro marfim, tépido e sinuoso, sobre o qual há poucos minutos ele exalara seu último suspiro... Foi quando tombou na escuridão para sempre. Tanto quanto Pavese, espantei–me de que fosse assim. Também como ele, jamais tinha reparado que a 16
FOTO: MARCUS PRADO
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maior parte das mulheres com as quais convivi e convivo nestes últimos trinta anos são prostitutas. Alguém lhe chamou a atenção para este fato. Contam que Pavese admirou–se disso. Penso agora que “ já não estremeço em face do segredo”, como dizia Mário de Sá–Carneiro. “Que culpa então posso aceitar se só de ouro falso os meus olhos se douram?”. 15 de agosto—Cassimiro Xavier de Mendonça intitulou sua reportagem sobre a Oficina Cerâmica de uma maneira surpreendentemente poética: “No reino das mil e uma obras”. O fotógrafo Orlando Azevedo, por sua vez, d escobriu e demonstrou o insólito, o assombroso e o desmedido de todo esse cenário, com rara maestria. 17 de agosto domingo 20h35—Na casa do poeta Tomás, folheando uma nova edição (traduzida) dos contos de Dostoievski, encontro o famoso “Bóbok”, para mim ainda totalmente desconhecido. Tomás confessa não ter nenhuma lembrança da leitura desse conto e logo fica interessado em tomar conhecimento do seu conteúdo. O notável crítico russo Mikhail Bakhtin declarou que “Bóbok” “é, por sua profundidade e ousadia, uma das mais grandiosas menipéias em toda a literatura u niversal”. Bakhtin, muito humildemente (quem é grande não se h umilha), explica, em nota de rodapé, o porquê da utilização do termo genérico menipéia. Diz ele: “Termos genéricos como Epopéia, Tragédia e Idílio, aplicados à literatura moderna, tornaram–se universalmente aceitos e habituais e não nos causam qualquer transtorno quando chamam a “Guerra e Paz”, epopéia; “Boris Godunov”, tragédia e a “Fazendeiros de antanho”, idílio”. Tenho notícias sobre o “caso” do pintor norte–americano Andrew Wyeth. Comenta–se, quase de forma escandalosa, que este artista, casado durante longos anos com uma avestruz chamada Betsy, veio a se apaixonar por uma seriema chamada Helga e ninguém sabe mesmo explicar como esse fato inusitado aconteceu, desde que Helga era guardada na sua quinta por ferozes leões da Jamaica. E fato ainda mais extraordinário foi o do cavalo texano, que acode pelo nome de Leonardo, ter comprado todas as telas, desenhos e aquarelas do pintor Wyeth, referentes a esse período de paixão desenfreada pela seriema Helga Testorf, que entre outras singularidades assim afirma a reportagem nasceu na Finlândia. Esse escândalo foi desencadeado na provinciana cidade de Washington e, sobretudo, chamou–me a atenção para a discreta e ao mesmo tempo bárbara insolência desse modelo finlandês tão longamente contemplado ou mesmo amorosamente detestado, como costuma acontecer nas infindáveis lides da libido e do amor. Wyeth soubera, como um perfeito dissimulado misantropo, esconder sua paixão por longos invernos, no fundo de um ático de uma casa de fazenda, compartilhando apenas com camundongos e teias de aranhas o seu inacreditável segredo. Mas eis que, num dia de fraqueza, achando que a morte estava próxima... Dizem as más línguas que o beneficiário de toda essa revelação será Leonardo, o esperto cavalo texano, visto que, além dos quadros, ele também comprou os direitos para suas reproduções. Graças a isso, ele receberá comissões na venda dos posters em museus americanos. 20 de agosto—6h30—Que este mês nefando acabe. Inovações nunca são inofensivas. 21 de agosto—Embora não esteja propenso a enfrentar “Bóbok” depois da demorada convivência com “O Idiota”, de Dostoievski, peço auxílio aos fascinantes comentários de Mikhail Bakhtin, abordando o conto famoso: “Seu tom é vacilante, ambíguo, com ambivalência abafada e elementos de bufonaria satânica (como nos diabos dos mistérios)”. Entre outras observações, insiste o crítico na análise das frases “truncadas”, curtas e categóricas, como se o narrador ocultasse propositadamente a sua última palavra, esquivando–se dela. Ele (o personagem) cita a caracterização do seu estilo feita por um amigo: “Teu estilo mudo é truncado. Truncas, truncas a oração intercalada, depois a intercalada da intercalada, depois intercalas mais alguma coisa entre parênteses e, depois, tornas a truncar, a truncar...”. 19
Tomás Seixas avisou–me que também, depois da leitura de “Bóbok”, desejava escrever sobre o conto, admitindo, contudo, que só um escritor de gênio poderia abordar um assunto tão prodigioso. Desesperado, mandei pedir–lhe apenas algumas camisas que ainda estavam na sua casa. Mandou–me de volta, numa maleta espalhafatosa, todas as roupas de meu uso e outras que nem sequer suspeitava que existissem. É preciso ter a firme paciência de um imperador Marco Aurélio para não ordenar a esta mulher que, em definitivo, vá para o inferno! Se não executo esse propósito, é na certeza de que Fenícia, tanto quanto eu, já vive no inferno. Diante deste fato consumado, não teria nenhuma valia convidá–la para entrar num recinto onde de há muito ela se encontra. Eis aqui exposto o absurdo da questão, e não há mesmo como evitá–la ou mudar–lhe o rumo. De resto, como explicar–lhe a minha incurável misantropia? De uma maneira geral, o misantropo não é um solitário; ele apenas evita os outros, o que não é o meu caso. Tenho a consciência de que fugir dos outros é, em definitivo, ficar cada vez mais só. Enfim, estou mais propenso a aborrecer–me com a história dos outros, incluindo a história universal. Tudo me fatiga. Não apenas uma pequena história, mas todas as histórias conhecidas. E isso é grave, excessivamente grave. Exemplifico: detestei “Bóbok” tanto quanto detestei “Antônio e Cleópatra”, não importando que sejam duas obras–primas ou não... No momento, o mais prudente é calar–me e não continuar a dizer sandices. Hoje compreendo muito bem por que Joseph Conrad odiava Dostoievski. E foi lendo “Bóbok”... Eu gostaria de ver... Não, não é propriamente isto o que me preocupa, e que agora se faz necessário confessar: dormia eu essa tarde, por volta das quatro horas, quando fui acordado pelo telefone. E, ao levantar–me, ainda estremunhado, pensei comigo: detestei “Bóbok”. Logo em seguida, recordei uma outra história que me fizera rir, com a vaga impressão de que só podia ser algo saído da cabeça de Ionesco (ou de um sujeito como ele). Qual era essa história? Bem, a história é curta, mas bastante significativa e se resume na briga entre dois irmãos. O irmão ofendido narra a desfeita do outro, a sua inominável ousadia e o seu abuso de confiança, quando esse, ao chegar à sua casa, na frente de sua mulher e de outros amigos, expressando–se num outro idioma, disse... Bem, ele disse o seguinte: Mes amis, J’ai une puce. Je vous rends visite dans l’espoir de laisser la puce chez vous. 22h25—Demonstrando interesse, Cassimiro Xavier de Mendonça telefona, procurando saber se tomei conhecimento da reportagem “No reino das mil e uma obras”. Como descobriu que a esta hora da noite eu estaria na Oficina? Será que desconfia do segredo ainda não revelado a não ser a pouquíssimas pessoas? Ou ele já sabia de tudo quando afirmou no seu texto: “Brennand é quase um minotauro encurralado pelo seu próprio labirinto.”? 23h11—A fim de amenizar a desagradável impressão deixada após a leitura de “Bóbok”, peguei um conto conhecido, “O sonho de um homem ridículo”, aliás também considerado por Bakhtin como uma obra–prima no gênero por ele denominado de menipéias. O lado terrível, a meu ver, de Bóbok é aquele em que o narrador se apercebe de que o elemento corrompido perdura após a morte: “A depravação em semelhante lugar, a depravação das supremas esperanças... e que não poupa sequer os últimos momentos da consciência”. Acontece que este lado assustador é ainda moral e perfeitamente de acordo com o espírito de Dostoievski. Quanto ao aspecto monstruoso do conto (ou tão somente desagradável), está todo situado na irreverência para com os mortos, de resto, quem sabe, necessária para afinar o tom desejado pelo escritor que, regendo tão dissoluta orquestração, contribui, assim, para abrir definitivamente os olhos dos vivos, aguçando os seus ouvidos e sentidos diante da absurda e ridícula precariedade de suas existências. Essa promíscua convivência com os mortos é própria da Idade Média, dos seus mistérios, de suas farsas etc. 22 de agosto —6h da manhã 20
Eurípedes: “Não adianta agastar–se com as coisas; elas não fazem caso nenhum”.
24 de agosto—Na madrugada de domingo, vinte e quatro de agosto de mil novecentos e oitenta e seis, como uma princesa dos Súcubos, ela acordou–me (com todo o seu peso), sentada em cima de mim, laboriosamente empenhada em reconstruir o mundo à sua maneira. Nesta extravagante posição, manteve–se absorta por muito tempo, como se realizasse um trabalho doméstico qualquer, com trejeitos solitários de um pêndulo que oscila. Às vezes, os seus braços livres se uniam só de um lado do meu corpo e as mãos, igualmente unidas, riscavam algo no lençol, como se procurasse, num ponto predeterminado, um objeto perdido e curioso, sempre parecendo encontrá–lo e, logo, célere, levantava as mãos de pássaro, ainda unidas, acima da cabeça, numa atitude ao mesmo tempo de dança e de prece, como se fosse uma bailarina de Java em pleno ritual. Não demorei a compreender que a minha obrigação era a de não fazer perguntas e, assim, abstive–me de interrogá–la, deixando o tempo fluir no seu ilusório e obscuro desígnio de eternidade. Então o nosso Kafka confessa, não sem um certo orgulho, que, no dia sete de janeiro de mil novecentos e doze, deveria posar nu para um São Sebastião, a pedido do pintor Ascher! 1 de setembro—Morre Henry Moore. Estamos todos morrendo um pouco a cada dia. Ontem, abateu–se o fatal sobre Moore, aos oitenta e oito anos. Mas, neste caso, não importa a idade. Importa o sal da terra que pouco a pouco se esgota, e não voltará. 2 de setembro —O meu permanente espanto diante da incrível engenhosidade animal das mulheres, por vezes, leva–me a indagar como Robert Louis Stevenson, no seu último livro “Weir Of Kermiston”: “Se há uma alma em Cristina, ou se não é mais que um animal da cor das flores”. Nas duas vezes em que peguei nos pincéis, por duas vezes, fui derrotado, o que quer dizer: por duas vezes, nada consegui expressar nesses dois últimos dias, como, por exemplo, o anel brasonado que não possuo.
FRANCISCO BRENNAND Ceramista, escultor, desenhista, pintor, tapeceiro, ilustrador, gravador
Inicia sua formação em 1942, aprendendo a modelar com Abelardo da Hora (1924). Posteriormente, recebe orientação em pintura de Álvaro Amorim (19– ?) e Murilo Lagreca (1899–1985). No fim dos anos 1940, pinta principalmente naturezas–mortas–flores e frutos que parecem flutuar no espaço pictórico, com linhas simplificadas e cores puras. Em 1949, viaja para a França, incentivado por Cícero Dias (1907–2003). Frequenta cursos com André Lhote (1885–1962) e Fernand Léger (1881–1955) em Paris, em 1951. Nessa cidade, conhece Joán Miró (1893–1983) e Pablo Picasso (1881–1973), cujas obras o incentivaram a fazer da cerâmica seu principal meio de expressão artística. Entre 1958 e 1999, realiza diversos painéis e murais cerâmicos em várias cidades do Brasil e dos Estados Unidos. Em 1971, inicia a restauração de uma velha olaria de propriedade paterna, quase abandonada, próxima ao Recife, transformando–a em um ateliê, que povoa de seres fantásticos, representados em relevos, painéis, objetos cerâmicos e esculturas. Em 1993, é realizada grande retrospectiva de sua produção na Staatliche Kunsthalle, em Berlim. É publicado o livro Brennand, pela editora Métron, com texto de Olívio Tavares de Araújo, em 1997. Em 1998, é realizada a retrospectiva Brennand: Esculturas 1974–1998, na Pinacoteca do Estado—Pesp—, em São Paulo. Desde os anos 1990, são lançados vários vídeos sobre sua obra, entre eles, Francisco Brennand: Oficina de Mitos, pela Rede Sesc/Senac de Televisão, em 2000. O artista trabalha a cerâmica não só com a forma, mas também com a cor. Obtém uma grande quantidade de tonalidades por meio das variações de temperatura que atuam sobre os pigmentos durante a queima das peças. As esculturas de Brennand apresentam o caráter de tótens, ou se relacionam a signos da tradição popular. Em muitas obras, apresenta criaturas aterradoras, monstros, seres deformados ou que revelam um caráter trágico. Algumas esculturas estão ligadas a rituais de fertilidade, de culturas arcaicas, apresentando um caráter fortemente sexual. Produz figuras que frequentemente têm um aspecto trágico, cuja estranheza é acentuada pelo acabamento rude.
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ma das marcas da Festa Literária Internacional de Pernambuco— Fliporto—é a constante renovação que transparece com muito fervor em todas as suas edições. Neste ano em que comemora os seus dez anos de existência ininterrupta, a Fliporto reinventa–se, permanecendo uniforme na sua essência e no seu hábito de diferenciar. Amplia o seu pertencimento à cidade que a acolhe com a qualidade que seu público exige e merece. Transformar–se para melhor é uma característica permanente da Fliporto. Chegamos juntos aos dez anos e queremos manter esta parceria por muitas décadas ainda. Em 2014, uma das mais belas igrejas barrocas do Brasil, a do Mosteiro de São Bento, em Olinda, (remonta aos primeiros anos da colonização portuguesa neste país), será parte integrante da Fliporto, quando se dará a abertura e o encerramento do Congresso Literário, que homenageia o escritor, acadêmico da ABL e dramaturgo, Ariano Suassuna. O congresso literário, um dos pontos de relevo da Festa, funcionará no tradicional Colégio de São Bento. O Colégio está profundamente inserido no Mosteiro. Ele está na linha de continuidade cultural para a qual o Mosteiro sempre se abriu. A Igreja e o Mosteiro de São Bento perfazem um famoso complexo arquitetônico, tombado como Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade, pela UNESCO. Foi à sombra desse Mosteiro e de sua Igreja, que se iniciaram os cursos Jurídicos do País e onde viveu como leigo, Bento Teixeira, autor da Prosopopeia. No mesmo local, em 1912, foi fundada pelos monges a 1ª Escola de Agronomia e Veterinária da região. Não bastasse a grandeza histórica desse patrimônio c ultural, nossos visitantes terão a oportunidade de conhecer o altar–mor da Igreja, um dos mais belos exemplos de arte barroca de inspiração religiosa, que esteve em exposição durante oito meses em Nova York, levado pela Fundação Solomon R. Guggenheim. O tema de 2014, Literatura é coisa de Cinema, põe em evidência um dos diálogos mais frequentes e de imenso alcance da literatura: o Cinema.
Da primeira história contada ao primeiro filme rodado, a imagem e o movimento escancaram um casamento nada suspeitoso do cinema com a literatura, quadro a quadro, palavra a palavra. Relação tão íntima e tão natural que fez o mestre Ariano Suassuna também escrever um roteiro para filme, “O Sedutor do Sertão”, e a dizer a um dos maiores cineastas brasileiros, Glauber Rocha: “Os espetáculos populares do Nordeste—o bumba–meu–boi, o auto dos guerreiros, a nau catarineta, etc.—poderiam fornecer ao teatro e ao cinema nordestinos as roupagens imaginosas, a música, a dança, as lutas de espada, as máscaras, as histórias, os heróis e os mitos que lhes dariam espírito realmente brasileiro, como acontecera com o Teatro Nacional e Popular Japonês, em relação ao cinema épico de ‘samurai’.” A literatura e o teatro de Ariano em forma de filme e diversos outros autores, diretores, roteiristas mostrarão em novembro na Fliporto que não só a literatura é coisa de cinema e para cinema, mas que o cinema seduz e é seduzido pelas grandes histórias–estórias, com e sem câmera, a luz, a ação, a imaginação. A Feira Internacional do Livro/Fliporto 2014 se amplia. A procura, iniciada em 2013, de novos espaços, obrigou a sua coordenação a criar novos ambientes de acesso, exposição e conforto, com o dobro de expositores e de lançamentos. Pela primeira vez, este ano, serão concedidos bônus para uso exclusivo dos estudantes da rede pública de ensino. Por tais razões, a Feira permanecerá na área de eventos do sítio histórico do pátio do Carmo. Ali, escritores, editores, livreiros n acionais e estrangeiros vão discutir, trocar ideias com animados bate–papos, com o público de todas as idades. A identidade cultural da Fliporto, apontada pela revista Istoé como uma das três mais importantes do Brasil, será mantida com uma programação que vai ser primorosa a partir do seu grande tema e com a presença de convidados nacionais e estrangeiros. ANTÔNIO CAMPOS Presidente do Conselho Cultural da Fliporto 23
PROGR AMAÇ ÃO DO 10º CONGRESSO LITER ÁRIO INTERNACIONAL DE PERNAMBUCO—FLIPORTO 2014 DIA 13 DE NOVEMBRO 19h30 ABERTURA: Lya Luft e Vicente de Britto Pereira: “O valor da vida” DIA 14 DE NOVEMBRO 15h Cláudio Assis, Xico Sá e Hilton Lacerda: “Cinema e literatura: casamento suspeitoso, união estável ou de conveniência?” 17h Hwang Sun Mi, Bráulio Tavares e Adriana Falcão: Escrever com alegria: a imaginação e a fantasia na literatura 19h Homero Fonseca, Rodrigo Garcia Lopes e Antônio Cabrita: Suspense, mistério e enigma na arte de contar histórias DIA 15 DE NOVEMBRO 15h Samarone Lima, Geneton Moraes Neto: “Prefiro Tolstoi”: Ariano Suassuna e os leitores 17h Carina Rissi e Valério Romão: Mais que bem–me–quer: felicidade e mal–estar em família na literatura 18h30 Mesa especial em homenagem a Raimundo Carrero: Coordenação de Marcelo Pereira. Palestrantes: Eliene Medeiros da Costa, Priscila Varjal e Rafael Monteiro 20h Martin Sixsmith conversa com Silio Boccanera: A incrível e triste história de Philomena e as freiras desalmadas
DIA 16 DE NOVEMBRO 16h Carlos Newton Jr., Adriana Falcão e Bráulio Tavares: Ariano Suassuna: do teatro ao romance e do romance ao cinema 18h Lourenço Mutarelli, Ondjaki e João Paulo Cotrim: Roteiro, narrativas e imagens: as técnicas do cinema e da literatura: aproximações e distanciamentos 20h ENCERRAMENTO: Palestra de Raimundo Carrero em homenagem a Ariano Suassuna e concerto de Antônio José Madureira
PROGRAMAÇÃO—CINE, GALERA E GALERINHA
ALBERT CAMUS,
A “Florença dos trópicos” e a história de um texto (quase) perdido* Texto ANCO MÁRCIO TENÓRIO VIEIRA**
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o dia 21 de julho de 1949, muitos recifenses—a exemplo de Ariano Suassuna, Tales Ramalho, Duarte Neto, José Laurênio de Melo, Guerra de Holanda, Antônio Pinto de Medeiros, Genivaldo Wanderley, Carlos Frederico Maciel e Gastão de Holanda—acorreram ao Salão Nobre da Faculdade de Direito do Recife. O que os movia naquela noite era a anunciada palestra “Roman et révolte” (“Romance e revolta”) que o escritor argelino Albert Camus (1913–1960) iria proferir. O filósofo chegara ao Recife no começo da tarde daquele mesmo dia e fora recebido no Aeroporto por uma delegação composta, entre outros, por três representantes do Consulado Francês no Recife (“Os três franceses que estão ali têm todos mais de um metro e oitenta. Estamos bem representados”, escreveria um irônico Camus em seu Diário de viagem).1 Instalado * Agradeço ao Professor e amigo Saulo Neiva, da l’Université Blaise–Pascal (Clermont–Ferrand 2), pela disponibilidade em digitalizar e enviar o material bibliográfico solicitado por nós para a confecção deste artigo. Sem a sua ajuda, muitas das dúvidas que vinha alimentando sobre a autenticidade e o ineditismo da palestra “perdida” de Albert Camus não teriam sido dissipadas. De alguma forma, este artigo é também de Saulo Neiva. ** Anco Márcio Tenório Vieira é professor do Programa de Pós–Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). 1 CAMUS, Albert. S.d. Diário de viagem. 2a ed. Tradução de Valerie Rumjanek Chaves. Rio de Janeiro: Record, p. 102.
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no Grande Hotel, em quarto onde as janelas davam para o velho bairro do Recife e o Cais de Santa Rita, tenta dormir: “em vão”.2 O cansaço e a excitação não o deixam descansar. No final da tarde, por volta das quatro horas, sai, a convite do jornalista Aníbal Fernandes, do Diario de Pernambuco, para fazer um passeio pelos bairros da Boa Vista, Santo Antônio e São José. Visita os seus monumentos históricos, particularmente as igrejas barrocas—“igrejas coloniais admiráveis”3 —, como a Capela Dourada e o Pátio de São Pedro. Mas não apenas as igrejas são objetos da sua admiração: “a cidade antiga, as casinhas vermelhas, azuis e ocres, as ruas calçadas com grandes pedras pontiagudas”4 encantam também os seus olhos. Albert Camus chegara ao Recife, vindo do Rio de Janeiro, onde aportara seis dias antes, em 15 de julho. O Recife era a segunda etapa de um périplo de quarenta e cinco dias, entre palestras 2 CAMUS (S.d., p. 102). 3 CAMUS (S.d., p. 102). 4 CAMUS (S.d., p. 102).
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e contatos intelectuais, por algumas cidades da América do Sul. Depois do Recife, Camus permaneceria dois dias em Salvador: 23 e 24 de julho. Da capital baiana, retornaria novamente ao Rio de Janeiro, lá permanecendo entre 25 de julho e 2 de agosto. Daí seguiria para São Paulo (2 a 9) e Porto Alegre (9 e 10). As próximas etapas seriam as capitais da Argentina (12 a 14), Chile (14 a 19) e Uruguai (10 e 11). De Montevideo, voltaria novamente ao Rio de Janeiro (de 21 a 31), onde embarcaria para a França, no dia 31 de agosto. Na primeira passagem pela então capital do Brasil, conheceu uma parte significativa da intelectualidade brasileira, assistiu a uma cerimônia de macumba, ao lado de Abdias Nascimento, e pronunciou no dia 20 de julho, na sede do Ministério da Educação, a sua primeira conferência em terras brasileiras: “Le temps des meurtriers” (“O tempo dos assassinos”). Esta mesma palestra seria lida também em Salvador, São Paulo e Santiago (respectivamente nos dias 23 de julho, 8 e 15 de agosto). Com o título modificado—“Nous somes des meurtriers” (“Nós somos os assassinos”)—voltaria a tratar do mesmo tema na cidade de Montevideo, em 20 de agosto.5 Na sua segunda passagem pelo Rio de Janeiro, leu, em 1° de agosto, no Ministério das Relações Exteriores, o ensaio “Un moraliste de la révolte: Chamfort” (“Um moralista da revolta: Chamfort”). Volta a esse mesmo ensaio nas conferências do Museu de Arte Moderna, de São Paulo, do Instituto Francês, de Santiago, e do Local dos Amigos das Artes, em Montevideo (respectivamente nos dias 8, 17 e 20 de agosto). Na capital paulista, “Un moraliste de la révolte: Chamfort” é apresentado com o título levemente alterado: “Un moraliste français: Chamfort” (“Um moralista francês: Chamfort”). Mas de todas as palestras (seis, ao todo) lidas e debatidas por Camus ao longo da sua viagem, a que mais suscitou, e vem suscitando, a atenção dos que se debruçaram e se debruçam sobre a sua obra foi a conferência lida na Faculdade de Direito do Recife. O motivo de tanta atenção é que, depois de ser saudado pelo dramaturgo Hermilo Borba Filho (o texto de saudação seria publicado no Jornal do Commercio três dias depois—“Camus, nosso irmão”), 6 o autor de O Estrangeiro, contrariando as expectativas daqueles que foram vê–lo e ouvi–lo discorrer sobre “Roman et révolte”, deixou de lado o tema em pauta e falou sobre um assunto completamente diverso do que fora noticiado pelos organizadores do evento. Segundo o Diario de Pernambuco, em matéria publicada no dia seguinte ao acontecimento (22 de julho), apesar de Camus não ter abordado o tema que fora anunciado, ele “fez uma análise profunda e lúcida sobre a crise da Europa, pesquisando–lhe as causas e apontando os remédios. Terminou fazendo considerações sobre a posição dos artistas e escritores no mundo atual”. Da palestra que Camus não proferiu para os pernambucanos—“Roman et révolte” —seus leitores só terão conhecimento dois anos depois, em 1951, quando ele publicou L’homme révolté (O homem revoltado). Neste livro, encontramos no “IV Capítulo”—“Révolte et art”—três subcapítulos: “Révolte et style”, “Création et révolution” e a conferência que fora noticiada no Recife: “Roman et révolte”.7 Por que Camus não leu esse ensaio? Não sabemos. Nada nos informam os jornais pernambucanos da época sobre as causas que o levaram a mudar de tema na última hora, muito menos encontramos alguma pista em seu citado Diário de viagem. Da sua parte, tudo que nos é dado conhecer sobre o evento na Faculdade de Direito está registrado em uma frase lacônica: “Depois do jantar, conferência diante de uma centena de pessoas, que, ao saírem, têm um ar de muito cansadas”. Frase que é seguida por uma declaração sobre a cidade: “Positivamente, gosto 5 A conferência em Salvador se deu na Secretaria de Educação; em São Paulo, na Escola Caetano de Campos; em Santiago, na Universidade do Chile; em Montevideo, na Universidade da República do Uruguai. 6 BORBA FILHO, Hermilo. “Camus, nosso irmão”, Jornal do Commercio, Recife, 24 de julho de 1949, Caderno 2, pp. 2 e 5. 7 CAMUS, Albert. 1951. Roman et révolte. In:—. L’homme révolté. Paris: Éditions Gallimard, pp. 319–336 (Collection NRF).
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do Recife. Florença dos trópicos, entre as suas florestas de coqueiros, suas montanhas vermelhas, suas praias brancas”.8 Apesar de Camus nada registrar sobre os motivos que o levaram a falar sobre assunto distinto daquele que fora anunciado, podemos levantar duas hipóteses: Primeira: quando confirmou aos organizadores da sua viagem os títulos das palestras que iria proferir no Brasil, Argentina, Chile e Uruguai, Camus podia ainda estar escrevendo “Roman et révolte”. Como não o concluiu a tempo, ele o substituiu por outro texto. Segundo: como em 1949 Camus já vinha gestando o livro L’homme révolté, ele teria optado por deixar de lado o seu texto—naquela altura, concluído, mas ainda inédito—e, em sua substituição, trazido na bagagem outro ensaio já acabado. Mas se tais hipóteses são ou não são plausíveis, elas, no entanto, não respondem a pergunta que continua a perseguir todos que se debruçaram e se debruçam sobre a sua viagem à América Latina: qual foi o texto, afinal, que Camus leu no Recife na noite do dia 21 de julho de 1949? Fernande Bartfeld, da Universidade Hebraica de Jerusalém, empreendeu nos anos de 1990 uma longa pesquisa sobre esse périplo de Camus à América do Sul, resultando no livro Albert Camus: voyageur et conférencier: le voyage en Amérique du Sud.9 Nesta obra, ela levanta não só as reportagens que foram publicadas nos jornais e revistas das cidades visitadas pelo escritor argelino, como também resgata e publica algumas das palestras que até então permaneciam inéditas ou quase inéditas em livro. No entanto, para a nossa decepção, ela nada acrescenta ao que já sabíamos sobre a conferência de Camus no Recife: o texto “por desgraça [está] perdido”, assinala enfaticamente a pesquisadora.10 O fato é que, ao perquirir as palestras que Camus proferiu na América do Sul, nota–se que a substituição de uma conferência por outra não foi a única dor de cabeça que ele legou aos que estudaram ou vêm estudando essa sua viagem; muitas outras questões surgem quando 8 CAMUS, Albert (S.d., p. 103). 9 BARTFELD, Fernande. Albert Camus: voyageur et conférencier: le voyage en Amérique du Sud. Paris: Archives des lettres modernes (n° 263). 10 BARTFELD, Fernande (op. cit., p. 38).
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investigamos em verticalidade os títulos, os conteúdos e o ineditismo dos textos apresentados aos sul–americanos naqueles meses de julho e agosto de 1949. Vamos a essas questões. 1°. Duas das conferências de Camus—as que foram lidas em 8 e 22 de agosto, respectivamente, em São Paulo e no Rio de Janeiro (neste caso, a penúltima que ele pronunciou antes de retornar à França)—são objetos de controvérsias. No caso da conferência de São Paulo, Fernande Bartfeld não sabe se na ocasião ele leu “Un moraliste français: Chamfort” ou “Roman et révolte”; no caso do Rio de Janeiro, o título da palestra é desconhecido e Bartfeld aposta na leitura de “Roman et révolte”.11 Caminhando por uma linha de interpretação oposta à de Fernande Bartfeld, acreditamos que “Roman et révolte” está totalmente descartável como hipótese, pois se Camus declinou da sua leitura no Recife, qual motivo o levaria a ler esse ensaio em São Paulo e no Rio de Janeiro? Porém, como estamos no campo da hipótese, prefiro apostar em outro título. Como “Le temps des meurtriers” e “Un moraliste de la révolte: Chamfort” já eram palestras conhecidas do público carioca (a primeira, lida em 20 de julho; a segunda, em 1 de agosto), é provável que Camus tenha optado por ler o único dos textos que ainda permanecia inédito para o leitor–ouvinte da então Capital Federal: “L’Europe et le crime” (“A Europa e o crime”)—ensaio que lera no Instituto de Belas Artes, de Porto Alegre, em 9 de agosto. Outra hipótese é que ele teria lido o mesmo texto que pronunciara no Recife em substituição a “Roman et révolte”. 2°. Camus, como já assinalamos, não só voltava aos mesmos ensaios nas diversas conferências pelas capitais da América do Sul, como os reapresentava com títulos levemente modificados. Assim, “Le temps des meurtriers” e “Un moraliste de la révolte: Chamfort” foram, respectivamente, reapresentados como “Nous somes des maurtriers”, em Montevideo, e “Un moraliste français: Chamfort”, em São Paulo. Nessa troca de nomes, fica uma indagação: até que ponto as mudanças nos títulos dos ensaios também vinham acompanhadas de alterações nos seus conteúdos? Temos algumas pistas. Continuemos. 3°. No caso de “Le temps des meurtriers”, que permaneceu inédito em livro até o ano de 1995, Fernande Bartfeld descobriu nos arquivos de Camus que existiam duas versões datilografadas do mesmo ensaio. Uma, com 23 páginas, trazia correções feitas pelo próprio autor; outra, com 20 páginas, fora mais uma vez rebatizada, agora com o título de “Les embarras de la violence” (“Os embaraços da 11
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BARTFELD, Fernande (op. cit., p. 42–43).
violência”). Bartfeld optou por publicar a versão que trazia o título “Le temps des meurtriers” e inseriu no corpo do texto as correções assinaladas em lápis por Camus.12 O mesmo procedimento ocorreu com “Un Moraliste de la révolte: Chamfort”, que foi traduzido por Maria da Saudade Cortesão e publicado, em 14 de agosto daquele mesmo ano de 1949, em Letras e Artes (isto é, treze dias depois de ser lida por Camus no Rio de Janeiro, e antes de ser relida em Santiago e Montevideo, respectivamente, nos dias 17 e 20 de agosto). Outra variante desse texto, com passagens diversas da versão que fora publicada em Letras e Artes, foi encontrada por Fernande Bartfeld no espólio de Camus, trazendo anotações do próprio autor. Foi esta versão que Bartfeld escolheu para publicar em seu citado livro.13 4°. Por fim—e este é o ponto que mais nos interessa aqui—, alguns dos ensaios lidos por Camus não eram inéditos: ou tinham sido editados anteriormente ou eram desdobramentos ou ampliações de temas já tratados e publicados por ele. É o caso das palestras “Un moraliste de la révolte: Chamfort” e “Un moraliste français: Chamfort”, ambas retomavam um texto que Camus publicara em 1944: “Introduction aux maximes de Chamfort”.14 Outro exemplo podemos colher da sua passagem por Buenos Aires, em 13 de agosto. Apesar do anúncio da conferência, Camus declinou da palestra. O motivo foi que a ditadura peronista exigia que o seu texto fosse submetido a uma censura prévia. Camus se negou a compartilhar com tal arbitrariedade. No entanto, em encontro fechado com a imprensa, ele entregou aos jornalistas o ensaio que trouxera para ler em Buenos Aires: “Nous autres meurtriers”. Talvez os jornalistas argentinos não soubessem, mas o texto que fora depositado em suas mãos não era inédito, tinha sido publicado três anos antes, em 1946, no terceiro número (nov/dez) da revista Franchise, que trazia como tema o “Temps des assassins” (“Tempo dos assassinos”), e encerrava, além da colaboração de Camus, ensaios de Jean–Paul Sartre, Aldous Huxley, Albert Einstein, Emmanuel Mounier, Teilhard de Chardin e Brice Parain. No entanto, a questão do ineditismo ou não do texto que ia ser lido não se restringia a “Nous autres meurtriers”, ele se estendia também às citadas palestras “Le temps des meurtriers” e “Nous somes des maurtriers”. Com os títulos levemente alterados, esses dois textos retomavam e ampliavam as ideias centrais de “Nous autres meurtriers”.
II Ler uma palestra publicada, ler a mesma palestra, alterando apenas os títulos, ou mesmo desenvolver um tema já editado em revista foi uma constante na passagem de Camus pela América do Sul. E foi se valendo desse expediente que Camus substituiu, no Recife, “Roman et révolte” por um outro texto. Mas por qual texto? É esta pergunta que vamos elucidar agora. Apesar do livro de Fernande Bartfeld ser a obra mais bem documentada sobre a viagem de Albert Camus à América do Sul, o fato é que a sua pesquisa não encerrou todos os jornais e revistas publicados nas cidades que foram visitadas por Camus, o que resultou em prejuízos nos resultados obtidos na pesquisa. No caso específico do Recife, entre os vários jornais que circulavam nos Anos de 1950, o único periódico que foi objeto da sua atenção foi o Diario de Pernambuco. Como este matutino só cobriu a viagem de Camus durante os três dias em que ele permaneceu na cidade—21, 22 e 23 de julho—, muitas informações referentes à sua estadia no Recife estão ausentes do seu estudo. Informações essas que foram registradas por 12 CAMUS, Albert. 1995. Le temps des meurtriers. In.: BARTFELD, Fernande. Op. cit., pp. 74–89. 13 CAMUS, Albert. 1995. Un Moraliste de la révolte: Chamfort. In.: BARTFELD, Fernande. Op. cit., pp. 50–73. 14 CAMUS, Albert. 1944. “Introduction aux maximes de Chamfort”. In.: CHAMFORT, Sébastien–Roch Nicolas de. Maximes et anedoctes. Mônaco: Éditions Dac.
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outros órgãos da imprensa local, a exemplo do Jornal do Commercio. Neste, responsável pela melhor e mais abrangente cobertura da sua passagem em terras pernambucanas, o primeiro artigo sobre Camus é datado de 21 de julho e registra a sua palestra no Ministério da Educação, no Rio de Janeiro, no dia anterior à sua chegada ao Recife. No dia seguinte (22), lemos um artigo de José Lins do Rego, intitulado “Albert Camus”,15 em que o autor de Menino de engenho comenta as agradáveis impressões que teve do escritor argelino durante o jantar que Lúcia Miguel Pereira e Octávio Tarquínio de Sousa ofereceram–lhe em sua casa, no Rio de Janeiro. No dia 24, sai a citada apresentação de Hermilo Borba Filho na Faculdade de Direito do Recife e, no dia 28, o jornal publica artigo de Guilherme de Figueiredo: “Camus encontra o absurdo”.16 Assim, enquanto o Jornal do Commercio continuava publicando artigos sobre Camus, os demais jornais do Recife encerravam os registros sobre a sua viagem no dia 23 de julho. Foi assim com o Diario de Pernambuco, que pôs termo à cobertura com a publicação do artigo de Sílvio Macedo—“A consciência lúcida de Albert Camus”—,17 e com o Jornal Pequeno, que se limitou a registrar a visita apenas nos dias 21 e 22. O Jornal do Commercio foi o único jornal que continuou, até o dia 28 daquele mês de julho, a tornar públicos artigos sobre o escritor argelino, assim como também foi responsável por imprimir em suas páginas tanto a apresentação de Hermilo Borba Filho na Faculdade de Direito quanto, no dia 31 de julho, a palestra lida por Camus no Recife. A famosa palestra dada como “perdida” por todos os que pesquisaram a sua viagem tinha sido publicada no Jornal do Commercio, em seu suplemento literário de domingo. Seu resguardo e esquecimento nas páginas do periódico recifense se explicam pelo fato de que os raros pesquisadores que se voltaram para os jornais e revistas da época, buscando encontrar os registros da passagem de Camus pela América do Sul (registros que complementariam o seu Diário de viagem), como é exemplo Fernande Bartfeld, ou se ativeram apenas a perquirir um único órgão de imprensa (no caso de Bartfeld, o Diario de Pernambuco), ou, quando buscavam diversificar as publicações, paravam a pesquisa no dia 23 de julho, data em que Camus partira para Salvador. Só a pura e simples curiosidade em continuar lendo o Jornal do Commercio, particularmente o seu suplemento literário de domingo, levaria o pesquisador a descobrir o ensaio “L’Artiste et son temps” (“O artista e o seu tempo”). Texto que o tradutor brasileiro batizou de “O Escritor e a nossa época”.18 Com a publicação de “O Escritor e a nossa época”, o Jornal do Commercio fizera, com o ensaio de Camus, o que o jornal Letras e Artes faria quatorze dias depois com “Un Moraliste de la révolte: Chamfort”: atraía para as suas páginas, aproveitando o calor da hora, os leitores de Camus, tanto os que ouviram a conferência quanto os que não puderam estar lá. No caso do artigo lido no Rio de Janeiro, a tradução, como vimos, ficara a cargo de Maria da Saudade Cortesão (esposa do poeta Murilo Mendes); o texto lido no Recife teve a tradução assinada por José Sanz, pseudônimo de Sérgio Barreto de Leite, crítico de literatura e de cinema, tradutor e livreiro, e futuro diretor da cinemateca do Museu de Arte Moderna, do Rio de Janeiro. No entanto, assim como ocorreu com a palestra que seria lida em Buenos Aires—“Nous autres meurtriers”—, a conferência do Recife também não era inédita, tinha sido lida por Camus em novembro de 1948, na Salle Pleyel, em Paris, em um encontro internacional de escritores, e publicada em 20 de dezembro do mês seguinte na La Gauche, com o título de “Le témoin de la liberté” (“A testemunha da liberdade”). Em 1950, esse texto seria recolhido ao seu livro Actuelles I.19 Por que, então, o texto publicado no Recife saiu com um título distinto daquele que foi editado em La Gauche? Talvez pelos mesmos motivos que levavam Camus a renomear todas as demais palestras (inéditas ou não) que proferiu na América do Sul: aproximar melhor o título tanto do conteúdo manifesto quanto do público que ia ouvi–lo ou lê–lo; ou mesmo, como vimos, reescrever, ampliar, redimensionar as suas ideias e reflexões, porque os seus ensaios eram um constante work in progress. Do mesmo modo que 15 REGO, José Lins do. “Albert Camus”, Jornal do Commercio, Recife, 22 de julho de 1949, pp. 2 e 5. 16 FIGUEIREDO, Guilherme de. “Camus encontra o absurdo”, Jornal do Commercio, Recife, 28 de julho de 1949, Caderno 2, p. 2. 17 MACEDO, Sílvio de. “A Consciência lúcida de Albert Camus”, Diario de Pernambuco, 23 de julho, p. 2. 18 CAMUS, Albert. “O Escritor e a nossa época”. Jornal do Commercio, Recife, 31 de julho de 1949, C. “Segunda Secção”, pp. 2 e 4, traduzido do francês por José Sanz. 19 CAMUS, Albert. 1950. “Le témoin de la liberté”. In.: —Actuelles I—écrits politiques (croniques 1944–1948). Paris: Éditions Gallimard, p. 205–216.
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ele determinou que o seu texto publicado na Letras e Artes trouxesse o título “Un Moraliste de la révolte: Chamfort” em vez de “Un Moraliste français: Chamfort”, por achar que o primeiro título traduzia melhor as ideias desenvolvidas no seu ensaio, ele também preferiu que a sua palestra do Recife fosse publicada como “L’Artiste et son temps”, e não como “Le témoin de la liberté”, como saíra publicado no ano anterior na França. Por fim, é mais do que relevante registrar que o título “L’Artiste et son temps” tornou–se tão caro a Camus que será retomado por ele em duas outras ocasiões. Uma, em uma auto–entrevista publicada em 1953 no seu livro Actuelles II.20 Ele batizou essa auto–entrevista de “L’Artiste et son temps”. Outra, em 14 de dezembro de 1957, quando da sua passagem pela Suécia para receber o Prêmio Nobel de literatura. A palestra que fará no anfiteatro da Universidade de Uppsala também se chamou: “L’Artiste et son temps”.21 Lendo os dois textos (o do Recife e o de Uppsala) e, apesar de breve, a sua auto–entrevista, vemos que esses textos não só versam sobre o mesmo assunto, como retomam passagens e se intertextualizam. A palestra lida na Salle Pleyel, em Paris, depois relida e republicada em Recife e, por fim, retomada em suas ideias centrais em uma auto–entrevista e em uma conferência na Universidade de Uppsala, revelam não apenas uma das obsessões de Camus—o papel do escritor e do intelectual com as questões políticas e sociais do seu tempo—, mas também explicitam a angústia de um escritor e filósofo que tinha nas questões do seu tempo a matéria–prima da sua obra, o verdadeiro sentido da sua existência e convivência entre os homens.
20 CAMUS, Albert. 1953. “L’Artiste et son temps”. In:—. Actuelles II—chroniques 1948–1953. Paris: Éditions Gallimard, pp. 173–182 (Collection NRF). 21 CAMUS, Albert. 1958. “L’Artiste et son temps”. In:—. Discours de Suède. Paris: Éditions Gallimard, pp. 24–70 (Collection NRF).
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O
Texto ALBERT CAMUS
ESCRITOR E A NOSSA ÉPOCA
V
ivemos numa época em que os homens, compelidos por ideologias ferozes e medíocres, acostumam–se a ter vergonha de tudo. Vergonha deles próprios, vergonha de ser felizes, de amar, de criar. Uma época na qual Racine coraria por causa de Bérénices, e Rembrandt se penitenciaria por ter pintado A Ronda Noturna. Os escritores e os artistas de hoje têm, portanto, a consciência inquieta e é moda entre nós fazer com que seja desculpada a nossa profissão. Na verdade, somos ajudados nisso com um certo empenho. De todos os lados da nossa sociedade política, um grande grito se eleva em nossa direção, que nos impele a essa desculpa. É preciso que nos desculpemos de sermos inúteis, e de servir, pela nossa mesma inutilidade, a
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causa indignas. E quando respondemos que é bem difícil nos livrarmos de acusações tão contraditórias, não falta quem nos diga que não é possível justificarmo–nos aos olhos de todos, mas que podemos obter o generoso perdão de alguns, tomando o seu partido, que, para quem acredita neles, é o único verdadeiro. Se essa espécie de argumento cria raízes, ainda se diz ao artista: “Vê a miséria do mundo. Que fazes contra isso?”. O artista poderia responder a essa “cínica chantagem”: “A miséria do mundo? Em nada contribuo para ela. Qual de vós poderá dizer o mesmo?”. Mas não é menos verdadeiro que nenhum de nós, por menos exigente, pode ficar alheio ao apelo que parte de uma humanidade desesperada. É preciso então sentir–se culpado à força. Eis–nos conduzidos ao confessionário laico, o pior de todos. E, no entanto, isso não é tão simples. A escolha que nos pedem para fazer não se resolve por si mesma; é determinada por outras escolhas, feitas anteriormente. E a primeira atitude que toma um artista é, precisamente, ser um artista. E se ele escolheu ser um artista, foi em consideração ao seu próprio eu e em virtude de um certo conceito que ele tem da arte. Se esses motivos lhe pareceram bastante bons para justificar sua escolha, há probabilidade de elas continuarem sendo bastante boas para ajudá–lo a definir sua posição diante da história. Pelo menos é isso o que eu penso e gostaria de me deter mais um pouco, não sobre uma consciência má, da qual não tenho experiência, mas sobre os dois sentimentos que, diante e por causa mesmo da miséria do mundo, alimento com relação à nossa profissão, isto é, a gratidão e o orgulho. Já que é preciso justificar–nos, eu gostaria de dizer por que há uma justificação em exercer, nos limites das nossas forças e dos nossos talentos, uma profissão que, no meio de um mundo esgotado pelo ódio, permite a cada um de nós dizer tranquilamente que não é inimigo mortal de ninguém. Mas isso precisa ser explicado e eu não posso fazê–lo a não ser falando um pouco do mundo em que vivemos, e do que nós, artistas e escritores, estamos dispostos a fazer dele. O mundo em torno de nós está mergulhado na desgraça e nos pedem para fazer alguma coisa capaz de modificá–lo. Mas qual é essa desgraça? À primeira vista, sua definição parece simples: mataram demais no mundo nestes últimos anos e alguns preveem que ainda se matará. Um grande número de mortos acaba por tornar a atmosfera pesada. Naturalmente isso não é novidade. A história oficial foi sempre a história dos grandes assassinos. Não é de hoje que Caim matou Abel. Mas é de hoje que Caim mata Abel em nome da lógica e reclama em seguida a Legião de Honra. Darei um exemplo para me fazer compreender melhor. Durante as grandes greves de 1947, os jornais anunciaram que o carrasco de Paris cessaria também o seu trabalho. Não foi devidamente ressaltada, a meu ver, esta decisão do nosso compatriota. Suas reivindicações eram claras. Pedia, naturalmente, uma gratificação para cada execução, o que faz parte das normas de qualquer negócio. Mas, sobretudo, reclamava com violência o cargo de chefe de secção. Queria, realmente, receber do 37
Estado, ao qual tinha consciência de bem servir, a única honra tangível que uma nação moderna pode oferecer aos seus bons servidores, quer dizer, uma posição administrativa. Extinguia–se, assim, sob o peso da história, uma das nossas últimas profissões liberais. Nos tempos bárbaros, uma auréola terrível mantinha o carrasco escondido do mundo. Era ele que, por profissão, atentava contra o mistério da vida e da carne. Era, e sabia que era, um objeto de horror. E este horror consagrava ao mesmo tempo o preço da vida humana. Hoje ele é apenas um objeto de vergonha. Nessas condições acho que ele tem razão de não mais desejar ser o parente pobre que é escondido na cozinha porque não tem as unhas limpas. Numa civilização em que o assassino e a violência já são doutrinas e estão em via de se tornar instituições, os carrascos têm o direito de entrar nos quadros administrativos. Na verdade, nós, franceses, estamos um pouco atrasados. Em vários lugares do mundo os executores já se instalaram nas poltronas ministeriais. Apenas substituíram o machado pelo carimbo. Quando a morte se torna objeto de estatística e de administração, é uma prova de que as coisas do mundo não andam bem. Mas se a morte se torna abstrata, é porque a vida também o é. E a vida de cada um não pode ser senão abstrata a partir do momento em que se atrevem a submetê–la a uma ideologia. O mal é que nós estamos no tempo de ideologias, e de ideologias totalitárias, isto é, demasiadamente seguras de si próprias, de sua razão imbecil ou de sua limitada verdade, para não ver a salvação do mundo senão através do seu próprio domínio. E querer dominar alguém ou alguma coisa, é desejar a esterilidade, o silêncio ou a morte desse alguém. Para constatá–lo, basta olhar em torno de nós. Não há vida sem diálogo. E na maior parte do mundo, o diálogo é substituído atualmente pela polêmica. O século XX é o século da polêmica e do insulto. A polêmica se mantém, entre as nações e os indivíduos e no próprio nível das disciplinas outrora desinteressadas, no lugar tradicionalmente conservado pelo diálogo refletido. Milhares de vozes, dia e noite, prosseguindo cada uma, de seu lado, um tumultuoso monólogo, derramam sobre os povos uma torrente de palavras mistificadoras, ataques, defesas, exaltações. Mas qual é o mecanismo da polêmica? Consiste em considerar o adversário como inimigo, simplificá–lo por consequência, e recusar vê–lo. Não conheço mais a cor dos olhos nem a maneira de sorrir, se chega a sorrir, daquele a quem insulto. Quase cegos em virtude da polêmica, não vivemos mais entre homens, mas num mundo de sombras. Não há vida sem persuasão. E a história de hoje só conhece a intimidação. Os homens vivem e só podem viver com a ideia de que têm qualquer coisa em comum na qual podem sempre se reencontrar. Mas nós descobrimos isto: há homens a quem não se pode persuadir. Era e é impossível a uma vítima de campo de concentração explicar àqueles que a aviltavam que não deveriam fazer isso. É que estes últimos não representam mais os homens, mas sim uma ideia elevada à temperatura da mais inflexível das vontades. Aquele que quer dominar é surdo. Diante dele é preciso bater–se ou morrer. Isso porque os homens de hoje vivem mergulhados no terror. 38
No Livro dos Mortos lê–se que o justo egípcio para merecer perdão deveria poder dizer: “Não fiz medo a ninguém”. Nessas condições, nossos grandes contemporâneos serão procurados em vão, no dia do julgamento final, na fila dos bem–aventurados. Como é surpreendente que essas sombras, quase surdas e cegas, aterrorizadas, alimentadas com “tickets”, e cuja vida inteira se resume em uma ficha de polícia, possam ser em seguida tratadas como abstrações anônimas. É interessante constatar, que os regimes que são consequências dessas ideologias, são precisamente aqueles que, por sistema, procedem ao deslocamento das populações, fazendo–as errar pela superfície da Europa como símbolos exangues que só têm uma vida irrisória na cifra das estatísticas. Depois que essas belas filosofias entraram na história, enormes massas de homens que, antigamente, tinham sua maneira particular de apertar a mão, estão definitivamente sepultados sob duas meras iniciais de pessoas deslocadas que um mundo muito lógico inventou para elas. Sim, tudo isso é lógico. Quando se quer unificar o mundo inteiro em nome de uma teoria, não há outro caminho senão tornar esse mundo tão descarnado, cego e surdo, como a própria teoria. Não há outro caminho senão cortar as próprias raízes que prendem o homem à vida e à natureza. E não é por acaso que não se encontram paisagens na grande literatura europeia depois de Dostoievski. Não é por acaso que os livros mais s ignificativos de hoje, em lugar de se interessarem pelas nuances do coração e pelas verdades do amor, se apaixonam apenas pelos juízes, processos e mecânica das acusações, que em lugar de abrir as janelas sobre a beleza do mundo, fecham–nas com cuidado sobre a angústia dos solitários. Não é por acaso que o filósofo que inspira hoje todo o pensamento europeu é o mesmo que escreveu que só a cidade moderna permite ao espírito adquirir consciência de si próprio e que chegou a dizer que a natureza é abstrata e que só a razão é concreta. É o ponto de vista de Hegel, com efeito, e é o ponto de partida de uma imensa aventura da inteligência, aquele que acabou de matar todas as coisas. No grande espetáculo da natureza, esses espíritos embriagados só veem eles próprios. É a última cegueira. Para que ir mais longe? Aqueles que conhecem as cidades destruídas da Europa sabem de que estou falando. Eles oferecem a imagem desse mundo descarnado, seco de orgulho, onde, no decorrer de um monótono apocalipse, os fantasmas erram à procura de uma amizade perdida, com a natureza e com os seres. O grande drama do homem do Ocidente é que, entre ele e seu futuro histórico, não se interpõem mais nem as forças da natureza, nem as da amizade. Com suas raízes cortadas e seus braços dissecados, ele se confunde com as forças que lhe são prometidas. Mas pelo menos, chegado a esse cúmulo de delírio, nada nos deve impedir de denunciar a burla deste século, que faz menção de correr atrás do império da razão, agora que ele só procura as razões de amar que ele perdeu. E nossos escritores bem sabem que acabam todos reclamando contra esse sucedâneo infeliz e descarnado dos anos, que se chama moral. Os homens de hoje podem talvez dominar tudo neles próprios, e é essa sua 39
grandeza. Mas há uma coisa que a maior parte deles não poderá jamais reencontrar, é a força do amor que lhe foi roubada. Eis aí porque eles têm vergonha, na realidade. E é bem justo que os artistas participem dessa vergonha, pois contribuíram para ela. Mas que ao menos saibam dizer que têm vergonha deles mesmos e não de sua profissão. Porque tudo o que faz a dignidade da arte opõe–se a um tal mundo, repelindo–o. A obra de arte, pelo simples fato de existir, nega as conquistas da ideologia. Um dos sentidos da história de amanhã é a luta, já começada, entre os conquistadores e os artistas. Ambos se propõem, portanto, o mesmo fim. A ação política e a criação são as duas faces de uma mesma revolta contra as desordens do mundo. Nos dois casos, trata–se de dar ao mundo sua unidade. E durante muito tempo as causas do artista e do inovador político foram confundidas. A ambição de Bonaparte é idêntica à de Goethe. Mas Bonaparte deixou–nos o tambor nos liceus e Goethe as “Elegias Romanas”. Depois que as ideologias da eficácia apoiadas na técnica intervieram, depois que por um sutil movimento o revolucionário tornou–se conquistador, as duas correntes de pensamento divergiram. Porque o que o conquistador de direita ou de esquerda procura não é a unidade, que é antes de tudo a harmonia dos contrários, mas a totalidade, que é o esmagamento das diferenças. O artista separa onde o conquistador nivela. O artista que viveu e crivou no nível da carne e da paixão sabe que nada é simples e que o outro existe. O conquistador, que o outro não exista; seu mundo é um mundo de amos e escravos, esse mesmo em que vivemos. O mundo do artista é o da controvérsia viva e o da compreensão. Não conheço uma única obra que tenha sido construída apenas sobre o ódio, muito embora conheçamos o império do ódio. Numa época em que o conquistador, pela própria lógica de sua atitude, se torna executor e policial, o artista é forçado a ser refratário. Diante da sociedade política contemporânea, a única atitude coerente do artista é a recusa sem concessão. Ou então deve renunciar à arte. Ele não pode ser, ainda que o queira, cúmplice dos que empregam a linguagem ou os métodos das ideologias contemporâneas. Eis porque é vão e irrisório que nos peçam justificação e compromisso. Por sua função mesmo, o artista é a testemunha da liberdade. E esta é uma justificação pela qual ele chega a pagar caro. Por sua função mesmo, ele está comprometido no mais inextrincável emaranhado da história, aquele que sufoca a própria carne do homem. Quem quer que sejamos, estamos comprometidos com o mundo, tal como é, somos por natureza os inimigos dos ídolos abstratos que neles triunfam hoje, quer sejam nacionais ou partidários. Não em nome da moral e da virtude, como se tenta fazer crer por uma trapaça suplementar. Não somos virtuosos, e vendo–se o ar antropométrico que toma a virtude em nossos reformadores, não há porque lamentá–las. É em nome da paixão do homem pelo que há de singular no homem que recusaremos sempre esses cometimentos, os quais se cobrem do que há de mais miserável na razão. Mas isso define ao mesmo tempo nossa solidariedade com todos. É porque 40
nós temos a defender o direito à solidão de cada um que jamais seremos solitários. Temos pressa, não podemos trabalhar sozinhos. Tolstói pode escrever, sobre uma guerra que ele não fez, o maior romance de todas as literaturas. Nossas guerras não nos permitiram escrever sobre outra coisa a não ser sobre elas, enquanto que, simultaneamente, matavam Péguy e milhares de jovens poetas. Esta a razão por que acho, apesar de nossas diferenças que podem ser grandes, que a reunião desses homens tem um sentido. Além das fronteiras, muitas vezes sem o saber, eles executam juntos as mil faces de uma mesma obra que se projetará diante da criação totalitária. Todos juntos e, com eles, esses milhares de homens que tentam erguer as formas silenciosas de suas criações no tumulto da cidade. E, com eles, os que não estão aqui e que pela força das coisas juntar–se–ão a nós um dia. E esses outros também, que acreditam poder trabalhar para a ideologia totalitária através de sua arte, enquanto no próprio seio de sua obra o poder da arte faz ruir a propaganda, reivindica a unidade da qual eles são os verdadeiros servidores. E os apontam, à nossa fraternidade forçada, ao mesmo tempo que à desconfiança dos que os empregam provisoriamente. Os verdadeiros artistas não constituem bons vencedores políticos, porque são incapazes de aceitar superficialmente a morte do adversário. Estão do lado da vida, não do lado da morte. São as testemunhas da carne, não as da lei. Por sua vocação, estão condenados à compreensão mesmo daquilo que lhes é contrário. Isso não quer dizer que eles sejam incapazes de julgar o bem e o mal. Mas, no pior criminoso, sua aptidão de viver a vida de outro permite–lhe reconhecer a constante justificação dos homens, que é a dor. Eis o que nos impedirá sempre de emitir um julgamento absoluto e, por consequência, ratifica o castigo absoluto. No mundo da condenação à morte que é o nosso, o artista é o testemunho daquilo que dentro do homem se recusa a morrer. Inimigo de ninguém, apenas do carrasco! E isso é o que os apontará sempre, eternos girondinos, às ameaças e aos golpes dos “Montanheses” de punhos de renda. Afinal de contas, essa má posição, por sua própria dificuldade, faz sua grandeza. Dia virá em que todos o reconhecerão e, respeitosos de nossas divergências, os mais capazes dentre nós cessarão de se menosprezar, como fazem agora. Reconhecerão que sua vocação mais profunda é a de defender até o fim o direito de serem adversários, de ter uma opinião contrária. Proclamarão que mais vale se enganar, sem assassinar ninguém, deixando que os outros falem, do que ter razão em meio ao silêncio e aos túmulos. Tentarão demonstrar que, se as revoluções podem ser bem sucedidas pela violência, só se podem manter pelo diálogo. Saberão, assim, que esta singular vocação lhes cria a mais perturbadora das fraternidades, a dos combates duvidosos e das grandezas ameaçadas, aquela que, através de todas as idades da inteligência, jamais cessou de lutar para sustentar contra as abstrações da história aquilo que supera toda a história, que é a carne, quer seja sofredora ou feliz. Toda a Europa de hoje, plantada na sua arrogância, grita–lhe que esta empresa é ridícula e vã. Mas nós estamos no mundo para provar o contrário. 41
A nova literatura etc.
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Orley Mesquita
A
ΝΟVA LITERATURA IMAGINATIVA EM PERNAMBUCO Texto ANDRÉ DE SENA
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Q
uando, nos bons tempos românticos, o poeta inglês Samuel Taylor Coleridge (1772–1834) redefiniu o termo imagination (“imaginação”),posto em relação a outro conceito caro às perquirições críticas do período o itocentista, suspension of disbelief (“suspensão da descrença”), conseguiu apreender a essência de uma nova literatura que já há algum tempo propunha outros nortes ao horizonte da ficcionalidade ocidental: literatura imaginativa, no mais completo sentido da palavra. Às convenções retóricas, núcleos temáticos, metáforas e imagens classicistas que se haviam congelado pelo uso de séculos, Coleridge defendia um novo imaginário alicerçado num outro modus operandi literário, em que somente à “imaginação” caberia o ato de criação de novos contextos e mundos, desligados ou não da tradição, já que cada obra artística deveria ser única, original. A “suspensão da descrença” estimulava o novo jogo ficcional, que também exigia a participação do leitor na fruição e decodificação de poemas, contos, novelas e romances que passavam a trabalhar temas e enredos cada vez mais inverossímeis, não–miméticos, em suma, desvinculados de toda a moral e do real—vínculo, por sinal, exigido pelas poéticas normativas do classicismo e pelo romantismo tradicional e mimético. O que importava a partir de agora era até onde podia chegar a imaginação de um autor. O conceito de “imaginação” coleridgeana se conjugou ao “Fragmento 116” do crítico alemão Friedrich Schlegel (1772–1829), que também defendia o Romantismo como estética “universal” e “progressiva”, ou seja, jamais fechada num cânone ou cerceada por regras composicionais, operando a criatividade o deslimite, a plasmação infinita da obra de arte. Conceitos como estes ajudavam a compreender teoricamente toda uma literatura desvinculada do real, ou melhor, que o recriava a cada nova obra, expandindo sua própria percepção. Exemplos como os do romance
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gótico, da novela de horror, do conto fantástico, da ficção científica, revelavam que uma nova literatura—e uma nova forma de se pensar a Literatura—ganhava a luz do dia, em obras que não tinham outro compromisso que o da própria capacidade imaginativa de seus autores. Contudo, muitos críticos do passado julgaram ver no fantástico uma impostura mimética, um desvario da ficcionalidade ou até mesmo escapismo, no momento em que as coisas mais absurdas começaram a ser narradas, implodindo de vez o conceito ideologizado de mímese exigido pelas poéticas normativas do Neoclassicismo e, também, pelo chamado Romantismo tradicional, ligado à expressão de uma subjetividade que nada tinha de assustadora ou excêntrica. Exemplo disso é o prefácio escrito pelo romancista (romântico) inglês Walter Scott (1771–1832) para a edição posterior de uma obra do contista alemão E.T.A. Hoffmann (1776–1822), este último, justamente considerado um dos avatares da literatura fantástica. Em seu prefácio ao livro hoffmanniano O pequeno Zacarias, chamado Cinabre, diz Scott: “o gosto dos alemães pelo misterioso levou–os a inventar um gênero de composição que talvez só pudesse existir no seu país e na sua língua. É aquele a que se poderia chamar o gênero FANTÁSTICO [sic], em que a imaginação se abandona a toda a irregularidade dos seus caprichos e a todas as combinações das cenas mais estranhas e mais burlescas”. Scott, tido como um dos criadores do romance histórico, censura Hoffmann por não ter trabalhado este subgênero, e completa: “Às vezes podemos deter nosso olhar com prazer num arabesco executado por um artista dotado de rica imaginação; mas é penoso ver o gênio se exaurir em objetos que o gosto reprova. Não gostaríamos de lhe permitir uma excursão nessas regiões fantásticas a não ser sob a condição de que ele trouxesse de lá ideias doces e agradáveis”. Scott iconiza aqui a crítica de verniz mimético. Mas, apesar desta evidente incompreensão relativa às obras de cunho imaginativo, Hoffmann era avidamente lido em toda a Europa, gerando, com
o passar dos anos, um culto que haveria de tornar seu nome imortal. Contos como “O vaso de Ouro” (cujo tema principal, num resumo muito breve, é a história de um estudante desastrado que se apaixona por uma serpente encantada, de fulgurantes olhos azuis); “O pequeno Zacarias” (no qual um anãozinho grotesco passa a controlar o talento artístico alheio após ter o seu cabelo penteado por uma fada); “O Homem da areia” (em que o mundo das convenções burguesas é posto de ponta cabeça após a chegada de um estranho vendedor de barômetros e lunetas); ou “O violino de Cremona” (onde um construtor de violinos descobre que a voz de sua filha está sendo incorporada por um de seus instrumentos), faziam a alegria dos leitores, em sucessivas edições que espalhavam a fama de Hoffmann como um dos mais inventivos autores da época, por ter conseguido elevar ao estado de arte um veio literário que gerava rebentos desde as épocas do velho romance gótico (século XVIII). No processo também está inclusa a dinâmica da recepção, as mutações e acendramentos estéticos do público leitor, conforme explicita um texto crítico do contista francês Guy de Maupassant (1850–1893), por sinal, outro nome de peso da literatura fantástica. Segundo o mesmo, “quando o homem acreditava sem hesitação [na época do romance gótico], os escritores fantásticos não tomavam nenhuma precaução para desenvolver suas surpreendentes histórias. Entravam, de supetão, no terreno do impossível e lhes estava à disposição— variando ao infinito as combinações inverossímeis, as aparições—todos os truques mais estapafúrdios para produzir o terror. Mas, depois que a dúvida finalmente penetrou nos espíritos, a arte se tornou mais sutil. O escritor procurou as esfumaturas, vagando em torno do sobrenatural mais do que penetrando nele. Encontrou efeitos assustadores, ficando na fronteira do possível, jogando as almas na hesitação, no ofuscamento da razão. O leitor, indeciso, não sabia mais, perdia o
chão—como quem se aventura em um curso d’água e de repente não sente o fundo [...]. O poder extraordinariamente terrificante de Hoffmann e de Edgar Poe deriva de tal astuta habilidade”. E no Brasil? Podemos afirmar que nosso país contou com a presença do fantástico, do gótico, do horror, uma literatura imaginativa, sem compromissos com o mimético e o verossímil, no âmbito privilegiado do século XIX e do Romantismo gerador de novas estéticas? De início, cumpre lembrar que o crítico Antonio Candido, em Formação da Literatura brasileira, ao referir–se à Primeira geração romântica brasileira, encabeçada por Gonçalves de Magalhães (1811–1882), a descreveu como “vacilante”, no sentido de que seus componentes “ainda [eram] um pouco neoclássicos”, “românticos com reservas mentais”: “Foi, portanto, um grupo respeitável, que conduziu o Romantismo inicial para o conformismo, o decoro, a aceitação pública. Nada revolucionário de temperamento ou intenção e, além do mais, sem sofrer qualquer antagonismo por parte dos mais velhos, poucos e decadentes, o seu principal trabalho foi oficializar a reforma. Amparados pelo Instituto Histórico [...], deram–lhe viabilidade, aproximando–a do público e dos figurões, aos quais se articularam em bem montadas cliques, nelas escudando a sua obra e a sua pessoa. Era grande a comunidade de interesses entre os brasileiros cultos de toda idade e orientação, voltados para o progresso intelectual como forma de desdobramento da Independência”. Os ideais da Primeira geração, fundamentados num decoro de base classicista, no patriotismo e num enlevo nativista que propugnava o canto das grandes paisagens naturais do Brasil, prescindiram de uma escrita imaginativa desbordante, num momento em que foi concedido à Literatura o importante papel de fomentadora do próprio conceito de nacionalidade. Em outras palavras, nosso Romantismo inicial, que vai da publicação do livro Suspiros poéticos e saudades (1836), 45
de Magalhães, até por volta da década de 1850, tem caráter oficial, diferentemente da iconoclastia geralmente associada ao movimento em âmbito europeu. Pode–se afirmar que é com a Segunda geração romântica e, em especial, na obra do jovem poeta Álvares de Azevedo (1831–1852), que se concretizará, no Brasil, esta escrita imaginativa, por sinal, não compreendida por muitos críticos da época, associada à simples cópia dos modelos europeus, ou então—na esfera da crítica positivista e determinista—, a hipotéticos desarranjos psicológicos e atávicos oriundos de uma não menos hipotética enfermidade melancólica do gênio precoce, falecido aos vinte anos. Foi Álvares que realizou o conúbio entre o sublime e o grotesco: a binomia alvaresiana, fundada na conjunção entre o alto e o baixo (Ariel e Caliban—personagens shakespearianos que simbolizam o etéreo e o terreno, respectivamente), é clara na exigência do novo, de uma busca por outras centelhas poéticas que ampliassem tanto o universo temático como o próprio fazer literário. A segunda perspectiva é a byroniana: Álvares implode a noção de que a arte tem de educar por meio da moral, e não, em último caso, por ela mesma; assim, foi capaz de dar lume a obras como Noite na taverna, de enredo gótico com pinceladas fantásticas e Macário, drama romântico imaginativo, em muitos aspectos, irrepresentável, entre outras. Em Pernambuco, especificamente, temos uma tentativa importante de escritura imaginativa ainda em âmbito oitocentista. Trata–se da obra O esqueleto: crônica fantástica de Olinda, de autoria de Carneiro Vilela (1846–1913), primeiramente em folhetim, no jornal A América Ilustrada (em 1871) e, em seguida, publicada pela Bibliotheca d’A Província (outro jornal pernambucano da época romântica e realista), em 1894, além de edições contemporâneas. Trata–se de uma história de amor entre dois jovens, Felippe e Livinha, contada por um narrador a um amigo enquanto estes fazem a travessia a pé pelo então istmo da Cruz do Patrão, cenário fantasmagórico mais de uma vez evocado pelas obras de 46
Gilberto Freyre como um dos mais assombrados do território pernambucano. Felippe, natural do Ceará, precisa vir a Olinda para frequentar a Universidade, para desconsolo da sentimental Livinha. Uma vez em Pernambuco, passa a levar uma vida de boêmio e esquece os votos que havia feito para a jovem, que morre de desgosto e aparecerá novamente ao amado, no final da narrativa, na forma terrível de um espectro, numa viagem de barco novamente próxima à Cruz do Patrão. Na realidade, Vilela, em sua história, utilizou–se do grotesco e do horrível como punição, próxima do decoro, para a infidelidade amorosa, pari passu à tentativa de criação de uma obra de cunho fantástico na então província pernambucana. A obra O esqueleto, mais ligada à literatura sobrenatural, não teve grande sucesso entre os leitores pernambucanos, se comparada a outra, bem mais conhecida, de Carneiro Vilela, o romance–folhetim A emparedada da Rua Nova. Isso se explica pelo fato de que a literatura fantástica não foi um gênero ou modo muito cultivado no país como um todo, especialmente pelos autores mais conhecidos do público. Segundo o escritor paraibano Bráulio Tavares, ainda hoje, estaríamos “tentando domesticar o realismo, e cultivar o fantástico não é prioridade por enquanto. Nossa literatura, vista em conjunto, pretende enxergar o Brasil, imaginar o Brasil, extrair de nossas experiências contraditórias uma imagem plausível do Brasil”. Por outro lado, é possível observar que novos autores em Pernambuco vêm se dedicando à escritura fantástica em diversos níveis. Nomes como Alexandre Santos (que num de seus mais recentes romances históricos, Maldição e fé, inseriu elementos góticos e fantásticos para contar episódios da invasão holandesa), André Balaio (autor de contos fantásticos de influência oitocentista e do gênero “fantasia”), Márcio de Mello (contista da vertente do realismo mágico), Ronaldo Luna (autor ainda inédito, mas contista fantástico talentoso), Roberto Beltrão (discípulo de Jayme Griz—outro importante autor pernambucano que trabalhou o fantástico no século passado—e Gilberto
Freyre; contista autor de Na escuridão das brenhas, lançado em 2013), entre muitos outros jovens que estão dando agora os primeiros passos na arte literária, mostram que a escritura imaginativa vai aos poucos se consolidando em nosso Estado no novo século. Na escuridão das brenhas, de Beltrão, pode ser considerada uma obra paradigmática deste novo “fantástico pernambucano”, em que os cenários típicos (rurais e urbanos), os registros linguísticos, os costumes, as festas, o folclore etc., ligados ao imaginário coletivo, são trabalhados pela escritura do fantástico, re–modalizadas de acordo com os procedimentos narrativos da literatura imaginativa, que propõem um hiato entre o real e o sobrenatural. Façamos também uma breve referência à fecunda obra dos poetas cordelistas, a trabalhar esses interstícios do real segundo suas próprias regras e intencionalidades, além da obra de autores mais antigos, muitos deles em plena ebulição criativa: os elementos de naturalidade da sobrenaturalidade típicos da escritura medieval que podem ser detectados na obra de um Ariano Suassuna; o realismo mágico presente na poética de um Marcus Accioly, bem como nos primeiros contos e romances de Raimundo Carrero; o teatro que abarcou mais de uma vez propostas imaginativas, como é o caso da produção de um Hermilo Borba Filho; o romance de Jayme Griz e, mesmo, as Assombrações do Recife Velho, de Gilberto Freyre, em que a visada folclorista e antropológica dá lugar a uma escrita criativa repleta de elementos fantásticos; a prosa poética de Orley Mesquita, entre vários outros. Há, ainda, juntamente às obras autorais, as coletâneas de contos fantásticos que também vêm sendo lançadas atualmente no Recife, a exemplo da 1ª Coletânea–laboratório de Literatura fantástica de Pernambuco, da Editora Novoestilo (2011), lançada em parceria com a UBE, que contou com trabalhos de toda uma nova geração de jovens autores, como Carlos Eduardo Japiassu, Victor Hugo, Haroudo Xavier, Taciana Valença, Pedro
Reis, June Travassos etc., além das monografias, dissertações de mestrado e teses de doutorado desenvolvidas nas universidades locais relativas às temáticas da literatura imaginativa. As academias vêm dinamizando este conhecimento, numa nova onda de redescoberta do fantástico: novos congressos, simpósios, grupos de estudo, lançamentos de obras críticas, são contabilizados às dezenas, anualmente, em todo o país. Recife não ficou de fora: em dezembro de 2014, teremos a 4ª versão do Congresso de Literatura Fantástica de Pernambuco (IV CLIF–PE), do curso de Letras da UFPE, que vem consolidando anualmente o Estado no cenário nacional como referência no estudo t eórico ligado à literatura imaginativa e servindo de epicentro para novos debates e publicações locais, a exemplo dos livros Literatura fantástica e afins (2011) e Literatura fantástica e orientalismo (2013), da editora da UFPE. Em dezembro de 2013, na terceira versão do CLIF–PE, o tema do evento foi justamente “Literatura fantástica em Pernambuco”. Mais de cinquenta palestras foram realizadas: um livro que trará os melhores artigos dos especialistas que participaram do evento será publicado ainda este ano. Outra novidade para 2014 será o lançamento da série anual Contos fantásticos recifenses. Se Pernambuco conta com um folclore e um imaginário riquíssimos em temáticas voltadas ao sobrenatural, ao sobre–humano, ao meta– empírico, ao realismo mágico, não se explica por que até hoje nossa literatura insiste em não abarcar tais temas, unindo a oralidade das formas simples às mais diversas ficcionalidades individuais da contemporaneidade. Ou então, o fomento ao próprio trabalho imaginativo dos autores, em muitos casos, desvencilhado de quaisquer cronotopias locais, lembrando que, como afirma novamente Bráulio Tavares, “cada conto fantástico nos revela não apenas uma nova descoberta, mas uma nova maneira de descobrir”. ANDRÉ DE SENA é (Prof. Dr. / Departamento de Letras–UFPE)
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UMA ORDEM SINUOSA: O BARROCO NO ROMANCE
AVALOVARA
Texto FÁBIO CAVALCANTE DE ANDRADE
O
Debruçando–se sobre a espiral
Barroco contraria a morte imposta pela cronologia das artes. Um historiador, pouco afeito aos volteios do imaginário, dirá que nossa arte não pode reproduzir os modelos de sensibilidade e o contexto profundamente intrincado do Barroco enquanto estilo histórico. Não é o ressurgimento do barroco do séc. XVII que assistimos, mas de um barroco crítico e moderno—ou pós–moderno. A gestação desse novo barroco, no âmbito da literatura, está profundamente relacionada com os escritores críticos da m odernidade. É a partir de uma interpretação criativa do passado que ele se desenvolve no presente. Se escolher, escrever, não é da ordem do arbitrário, o barroco parece dizer muito, com seus labirintos e palíndromos, da complexidade do nosso tempo. Esse barroco moderno dialoga com a história e com ela trava uma relação polêmica, problematiza as fronteiras entre real e ficção, historicidade e transcendência; decorrendo daí um compromisso com um tipo de linguagem profundamente figural, simbólica–poética.
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Compromisso esse que no atrito entre realidade e ficcionalidade, como bem vê Carlos Fuentes, não deixa de ser um compromisso ético: “Vivemos em países onde tudo está por ser dito, mas também onde está para ser descoberto como dizer este tudo. Se não houver vontade de linguagem em um romance da América Latina, para mim este romance não existe” (Apud SCHLAFMAN, 1998, p.103) O Barroco crítico da modernidade —ou Neobarroco—assume um caráter liberador do presente e de um imaginário antigo estocado, contido, estabelecendo um diálogo intenso e criativo com um passado capaz de nos repropor e nos interpretar. É a possível “expressão americana”, no dizer de José Lezama Lima (1988). A malha barroca que enreda nossa sensibilidade não é o abandono do nosso próprio tempo, uma abdicação de nossa condição, tão singular quanto a de qualquer outra época; representa, ao contrário, uma imersão nas raízes possíveis de nossa própria historicidade. A consciência da necessidade de se fabricar essas raízes, a própria origem, permite o salto entre séculos, onde a aparente volta é, na verdade, a fabricação de outra coisa. A espiral inscrita no símbolo visual que guia a composição do romance Avalovara
do escritor Osman Lins traduz essa tensão. Não deve ser confundida com o retorno, com a circularidade; é recriação, dinâmica própria ao transcorrer do tempo. Nela se insinua a ideia de deslocamento. Nos sulcos da espiral—do tempo—pode–se voltar ou avançar, como se faz no seu traçado, com caneta ou lápis. O caminho, o movimento, porém, que soma distâncias, percebe–se, produz a diferença.
BARROCO E MODERNIDADE
Osman Lins
Para o moderno o barroco é uma expressão possível. Irlemar Chiampi traduz a relação do barroco com a modernidade, assinalando a carga de interpretação crítica que legitimou o barroco: “Os conceitos de barroco, como categoria estética, são produtos da imaginação crítica do século XX” (1998, p.22). A reabilitação do barroco envolve um exercício meta–histórico. A modernidade fareja seus indícios e permite seu reflorescimento nas interpretações que além de constituírem seu corpo estético e histórico, reelaboram o élan criador do Barroco, apropriando–se de contrapartida de alguns de seus processos artísticos. Guilherme Simões Gomes Jr. assinala que na interpretação feita do Barroco pela modernidade, prevalece a lógica do espelho: “Para que exista um fenômeno de identificação, não é necessário que a imagem que se busca no espelho da tradição, a recém–inventada tradição do Barroco, reflita de forma precisa a verdadeira feição daquele que quer identificar–se” (1998, p.21). Toda reconstituição do passado pressupõe a ação imaginativa, quando silêncio e distância interditam a imagem exata. José Ortega escreveu que “la escritura de la imaginación constituye una forma de consciencia critica para cuestionar y reinterpretar ficción y historia” (1984, p.25). O barroco não só encarna um dos sonhos de expressão da modernidade, como também se converte em traço operativo para a compreensão das culturas, do sincretismo americano. José Lezama Lima apresentou–nos uma literatura neobarroca que era, ao mesmo tempo, arqueologia imagética do continente, saber poético e translógica, capaz de proporcionar interpretações largas do complexo cultural e histórico das culturas nascidas sob o signo do próprio Barroco. Tradição e invenção se digladiam na unidade barroca – ordem e ruptura. O barroco encarna um ímpeto metafísico, elevado a tal ponto que se veem ameaçados os limites da ordem que em parte o definiu. Na pintura de Rubens—A queda dos Condenados, por exemplo – ou a pintura de Francisco de Herrera—Apoteose de Santo Hermenegildo – vê–se o chão sumir numa sede de transcendência expressa pelo movimento ascendente. Um germe de subversão perpassa o barroco e não passa incólume ao século XVII, mesmo dominado pelas monarquias absolutistas. É notório que Bernini, artista múltiplo, foi desencorajado, pelos jesuítas a quem estava ligado, a exprimir tão intenso sentimento no transe místico de sua obra mais luminosa – O Êxtase de Santa Tereza. A força do transe era vislumbrada pelos teólogos como arrebatamento físico excessivo, podendo converter–se num halo de pecado, volúpia sem medida. Negar a conexão do Barroco com a contra reforma e outros traços históricos é impossível; e pouco não reconhecer que a arte trava sempre um diálogo polêmico com sua historicidade. O autoritarismo religioso não impediu os escritores, pintores e arquitetos barrocos de 49
sonharem uma forma limite, com a qual se lançavam no abismo obscuro de uma espiritualidade dramática. Na obra A Cultura do Barroco (1997), Antonio Marraval nos lembra que a palavra “revolução” com o sentido que hoje a empregamos ocorre no séc. XVII, emblema de descontentamento popular e reação contra a absoluta vontade do rei, muitas vezes, segundo cronistas e poetas da época, verdadeiras mixórdias políticas. A fração revolucionária que o crítico brasileiro Affonso Ávila rastreou no Lúdico e as Projeções do Mundo Barroco (1971), exprimiu–a na ideia de “rebelião pelo jogo”. Escritores críticos modernos identificam–se com os barrocos: o complexo cultura de crise e instabilidade, a poética tensa, tentada a transgredir as leis estéticas e sociais, o desejo de lançar–se numa espiral dinâmica e ascendente, arrebatamento espiritual traduzido agora por vertiginosa viagem imaginativa. Muitos são os escritores associados a estética de um novo barroco, tanto que chegam a representar algumas das mais importantes obras da literatura moderna e contemporânea: José Lezama Lima, Alejo Carpentier, Severo Sarduy, Italo Calvino, Jorge Luís Borges, Octavio Paz, James Joyce, Michel Butor; e, ente os brasileiros, Guimarães Rosa, Haroldo de Campos, Raduam Nassar, o próprio Osman Lins, e mesmo Euclides da Cunha1. Affonso Romano de Sant’Anna dedica parte de um dos capítulos do seu livro Barroco: do Quadrado a Elipse (2000), a apontar as características barrocas de Avalovara. Segundo o critico, o romance retomaria “a tradição do poeta barroco Penafiel, com seu labirinto cúbico” e, assim, inseria–se no “mesmo espaço de preocupações de seus contemporâneos latino–americanos” (SANT’ANNA, 200, p.79). Antes dele, Ana Luiza Andrade reconhecia na estrutura de Avalovara o impulso barroco: Osman Lins aproxima–se do artista barroco pelo cotraste evidente entre as formas geométricas e ornamentais da estrutura do romance, que são características, segundo Ávila, do estilo barroco. E sobretudo o impulso lúdico que o leva a utilizar uma frase palíndroma (...), como desencadeadora das linhas ou capítulos de seu romance (ANDRADE, 1987, p.171).
O BARROCO EM AVALOVARA
Para chegar à avaliação ampla do barroquismo de Avalovara é preciso esmiuçar com cuidado os aspectos linguísticos, metafóricos e estruturais de sua escritura sinuosa. Nela se inscreve uma cosmovisão particular, onde a linguagem barroca se engendra a partir da sinuosidade figural e da cotenção geométrica. Geometria essa que representa o esforço por acomodar o movimento intenso das formas, das metáforas, da ação da linguagem sobre uma realidade ficcional profundamente mutante. Leonardo da Vinci via no movimento a origem da vida (“Il moto è causa d’ogni vita” = o movimento é causa de toda vida) (1997, p.41). As duas figuras, quadrado e espiral, metaforizam visualmente o movimento do livro: o 1 Em Fato e Fábula, Lourival Holanda oferece uma interpretação barroca de Os Sertões. Affonso Romano de Sant’Anna em seu livro Barroco: do Quadrado a Elipse lembra que essa leitura de Euclides já fora feita, por exemplo, pelo Barão do Rio Branco, que na época afirmara: “Esse moço escreve com cipó” (2000, p.122).
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trânsito entre passado e futuro nas órbitas traçadas pela ação da espiral sobre o quadrado. Além disso, Avalovara alia–se àquelas obras latino–americanas que, escavando o reverso das narrativas fundantes, traz à luz a face mais profunda de uma realidade por fazer, sempre em devir. As viagens da personagem Abel são a busca, paradoxal, do eu no outro. Sair para buscar o amor, ingressar nessa realidade movente, vislumbrando ao mesmo tempo o centro—não como eixo morto, estanque, mas como ponto de apoio para o giro largo da vida, como apoio para a dinâmica da diferença. As questões sociais e culturais em Avalovara não assumem o centro como polos magnéticos que a tudo atraem e submetem. Não subjugam suas forças formadoras à lógica pobre de uma literatura engajada. Mas a peregrinação de Abel pode ser encarada como o centro que dá sustentação e sentido a toda uma constelação poética em movimento que tem, por sua vez, uma ressonância social. A busca do verbo é a procura da cidade por Abel, sempre recomeçada, ali onde o vácuo volatiliza as certezas e a eficácia linguística. O filósofo b arroco Matias Aires percebe esse dizer faltoso como um traço incontornável do tempo barroco: “Sendo em nós limitado o modo de explicar, é infinito o modo de sentir; por isso, nem tudo que se sabe sentir, se sabe dizer: o gosto e a dor não se podem reduzir a palavras” (1993, p.97). Os personagens de Avalovara são vitimados por essa carência verbal, tão característica no barroco quanto o desejar, o querer dizer. No silêncio do cinema, observa Ignácio Gabriel, o anunciador de Abel, e pressente o vão linguístico: Sabemos que algo essencial não será dito, que o mais importante, o que deve ser confessado antes de tudo só nos ocorrerá quando houvemos partido, cada um na sua direção. As palavras se atropelam, os gestos se atropelam e há silêncios, e os silêncios nos afligem, pois sabe cada um que ficarmos frente a frente é um privilégio fugaz, mas continuamos sem falar (LINS, 1992, p180).
O horror vacui, segundo Severo Sarduy, é um dos traços definidores do barroquismo. Sarduy diz que o Barroco está destinado, desde a sua origem, à “difusão semântica”. Utilizando–se do conceito de artifício como teorizado por Jean Rousset, Sarduy afirma que é pela via do artifício que o barroco tenta preencher as lacunas, os espaços em branco da carência essencial que atravessa a linguagem. O signo barroco é um signo defasado, define–se pela falta e tenta compensá–la pela profusão ornamental. A linguagem barroca é artificiosa e se sabe artifício, assume assim a dobra. Não pretende ser realista, mas transfiguradora. Distante dos ditames realistas acirra–se o dínamo descritivo do barroco: o ornamento expressa essa linguagem da falta e do desejo. Defendido por Osman Lins, o ornamento constitui no romance Avalovara a via de acesso a uma linguagem que possa ultrapassar a falta de toda 51
linguagem. É também o elemento estruturador da arquitetura cósmica da narrativa e das personagens: Ataviado com todas as cores dos pavões, o Avalovara lembra um manuscrito iluminado. Nele, quase é possível ler. A cauda é longa e curva, com reflexos de cobre. As asas, seis, de um tom verde–celeste quando repousadas, ostentam na face interna, quando abertas, círculos de muitas cores, dispostos com simetria sobre fundo escarlate. (...) Da delicada cabeça, parecendo ornada com um diadema de pequenas flores e encimada por uma espécie de língua, descem longas plumas muito claras, semelhantes a flâmulas. Rosa–brilhante o resto do corpo. Bico rubro e curto, olhos oblíquos. Quando esvoaça, aflante, o mover das seis asas desprende um odor de paina e não parece que voar lhe pese: todo o seu corpo é asas (LINS, 1992, p.244).
A arte assumidamente artificiosa é mais consciente de suas técnicas, feitos e efeitos. Em Avalovara, a linguagem artificiosa faz–se presente desde a estrutura do livro, apoiada num motivo externo e geométrico, até a sintaxe invertida, as assonâncias, a proliferação sígnica, a estrutura desviante e elíptica da linguagem. A metanarrativa é outro meio revelador do caráter artificioso do romance. As personagens também se compõem, sem nenhum pudor, de maneira artificiosa. As personagens são muito mais vozes narrativas do que símiles ficcionais do humano. O próprio Osman Lins defendeu criticamente a literatura artificiosa e ornamental que ele produzia. No livro Guerra sem Testemunhas expõe sua visão sobre as personagens que cria: “Não são fantasmas nem homens, são personagens, criações literárias, menos reais que as letras de seu nome e fora do texto nenhum existe, nem pode existir” (LINS, 1974, p.16). Encontramos na linguagem realizada por Osman Lins um barroco particular. Difere dos Neobarrocos como Sarduy, Cabreira Infante e Lezama Lima, para quem a arte literária é um rio incandescente de volúpia linguística, de erotismo sintático, de morfologia sensual e vertiginosa. Há a volúpia, o erotismo e a sensualidade da linguagem, mas tudo isso está submetido a um senso ordenador e construtivista que lhe conferem um valor particular no panorama do neobarroco. Projetar, construir, ordenar: teia, relógio, renda. A ordenação a em que estão dispostos os materiais narrativos é um dos focos da reflexão metanarrativa do romance. Se os neobarrocos latino–americanos exprimiram a exuberância de uma linguagem generosa, Osman Lins, diferentemente, contrapôs a esta exuberância um princípio ordenador que tensiona a estrutura ao modo de um barroco moderatto, identificado por Marraval em Gracián e Quevedo (1997, p.331). O modelo direto de Lezama Lima e Sarduy encontraríamos em Góngora.
O TEATRO DO VER
A mais barroca expressão do artifício está no impulso para encenar. O narrador de Avalovara chega a acomodar seus personagens na cena como se fosse um cenógrafo. Dá um espaço, com cores e texturas, ás vezes até marcações de cena: “Apeando, dirige–se o casal ao pescador 52
enluvado, sempre de pé à esquerda. Não os conduz ainda, vemos bem, o misterioso impulso de obedecer às leis do ritmo que governa a cena: conhecem–se” (p.94). A teatralidade é um dos traços mais expressivos do Barroco, como procedimento artístico mas também como metáfora, motivo. Em Racine, em Shakespeare e em Calderón de la Barca, o mundo aparece como imenso teatro. Um dos capítulos do Criticón de Baltazar Gracián intitula–se El gran teatro del Universo. Segundo Ernst Curtius (2013) a origem do motivo do “teatro do mundo” (Theatrum Mundi) encontra–se na alta latinidade e na Idade Média, em Sêneca e Santo Agostinho. O mesmo motivo aparecer no Dom Quixote, no capítulo XII da segunda parte. Dom Quixote discursa para Sancho a respeito da condição humana, sobre sua fugacidade patética: “uns fazem de imperadores, outros de pontífices, e finalmente todos os papéis que podem aparecer numa comédia; mas em chegando ao fim, que é quando se acaba a vida, a todos lhes tira a morte as roupas que os diferenciam (...)” (CERVANTES, 1978, p.355). A teatralidade invade também a fala das personagens, como acontece com ao descrever a casa de Olavo Hayano: “descrevo o apartamento da avenida Angélica onde vive Hayano com seus pais, os tapetes encardidos, as poltronas de damasco alterado pelo uso, a prataria, o relógio de Julius Heckethorn, toda uma série de elementos cênicos (...)”. O olhar enredado pela teatralidade acresce–se de verve descritiva e desliza, assim, para uma intensa visualidade. A ordenação da cena em que se batem as personagens requer minúcia e detalhismo para a construção da sensação teatral. Como artifício, o teatro é também a disposição poética de objetos e seres no espaço. O olhar encenador supõe visualidade. Toda arte barroca visa dar a ver o volátil que, sem expressão, vaga continuamente entre o real e a ficção. Mas a teatralidade, em Avalovara, não expressa o gosto fátuo pela mera descrição preciosista, e, sim, a teia ornamental capaz de captura a figuralidade do sentido. Mesmo exuberante, o ornamento prima o essencial. Da visualidade barroca decorre o jogo de luz e sombra, o chiaroscuro. O texto barroco delineia suas cenas, personagens e objetos pelo jogar bem desse jogo, estabelecendo na própria estruturação de linguagem uma tensão entre claridade e sombra—o significado nasce do jogo do encoberto e do revelado. Profundamente barroco, o jogo de luz e sombra instaura o olhar vacilante, um ver através de véus. A percepção luminosa em Avalovara invariavelmente assume uma dimensão metafórica que tenta exprimir a complexidade visual do mundo exterior. E diante da luz, os olhos passam a ser outros, os de dentro, os invisíveis, que permitem também participar desse esforço de ver. Olhar assombrado diante do real intrincado que nos move e move seus personagens: “Ver é encargo tortuoso” (LINS, 1992, p.47). Materialidade e transcendência, o jogo tenta abarcar a complexidade que foge ao conceitual. A expressão dessas tensões se entalha na linguagem barroca que assume o potencial formador 53
e poético dos contrastes. A impregnação por essa lógica poética, plural, inclusiva, abre precedente para outras formas de transgressão, para a derrocada de outras fronteiras. Assim floresce a sinestesia no romance: “Sua beleza estoura nos meus olhos e trespassa–me, cruza– me atravessa–me, crava–se fundo em mim” (LINS, 1992, p.280). O que se vê se toca, o que é visto toca e se deixa tocar. Os sentidos vão se cruzando nesse ver que ultrapassa os atributos do olhar, sempre ameaçando ver mais do que deveria, do que poderia. Assim, Abel, através do olhar tateante, diante da natureza dúbia e fugidia de , espera apreender algo que possa traduzi–la: A princípio, suponho que a lividez do rosto anuncia alguma cofissão mais aviltante. Mas o que se esbate nesse perfil meio inclinado é a opacidade (contra a luz não poderia ver se empalidece), perpassa na sua carne e ossos, fugitiva, uma transparência idêntica à das uvas claras, no âmago das quais entrevemos a sombra das sementes, outro rosto, gêmeo, olha–me através de suas têmporas e não me fala (...) (LINS, 1992,p.225).
O SINUOSO, POR FIM O SINUOSO, POR FIM
O romance Avalovara, através de sua linguagem barroca, sinuosa, não representa um apelo aos sentidos, mas um verdadeiro assédio aos sentidos. Assiste–se uma linguagem que aguça, através do estatuto do narrador reflexivo e sua metaficionalidade, o caráter artificial da arte literária. Essa mesma artificialidade é partilhada pelas personagens que—juntamente com o narrador que se coloca como um verdadeiro cenógrafo—posicionam–se como atores de um drama cósmico que ultrapassa em muito a consciência que têm da totalidade em que estão imersas. Metáfora da condição humana, essa imponderável ignorância exprime o jogo de luz e sombra tão comum na arte barroca. Jogo que é, dessa outra perspectiva, uma tensão entre saber e não saber, conhecimento e ignorância. No teatro composicional e oblíquo do drama cósmico vivido pelas personagens osmanianas, olhar pode significar ver e ver, por sua vez, pode significar saber. Um saber através dos sentidos, uma lógica porosa ao mundo e aos universos que costeiam o racionalismo excludente e linear das convenções e paradigmas. E nesse jogo de contrastes estruturadores reside a força de uma obra tão marcadamente barroca como o romance Avalovara.
BIBLIOGRAFIA
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6. CURTIUS, Ernst. Literatura Europeia e Idade Média Latina. São Paulo: Edusp, 2013. 7. DA VINCI, Leonardo. Obras Literárias, Filosóficas e Morais. São Paulo: Hucitec, 1997. 8. GOMES JR, Guilherme Simões. Palavra Peregrina: o barroco e o pensamento sobre as artes e as letras no Brasil. São Paulo: Edusp, 1998. 9. LEZAMA LIMA, José. A Expressão Americana. São Paulo: Brasiliense, 1988. 10. LINS, Osman. Avalovara. 5 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 11. ............., Guerra sem Testemunhas. São Paulo: Ática, 1974. 12. MARAVALL, Antonio. A Cultura do Barroco. São Paulo: Edusp/Imprensa Oficial, 1997. 13. ORTEGA, José. La Estetica Neobarroca en la Narrativa Hispanoamericana. Madrid: José Porrúa Turanzas, 1984. 14. SANT’ANNA, Affonso Romanno de. Barroco: do quadrado a elipse. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. 15. SARDUY, Severo. Escritos sobre um Corpo. São Paulo: Perspectiva, 1979. 16. SCHLAFMAN, Leo. A Verdade e a Mentira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
Osman Lins
FÁBIO CAVALCANTE DE ANDRADE é Professor de Literatura Brasileira e Portuguesa do curso de Licenciatura emLetras daUniversidade Federal de Pernambuco (UFPE).
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COM O SILÊNCIO MOLHADO DAS FUNDURAS DO MEU RIO Nenhuma boca humana nem palavra amiga, nem olhar enamorado, descobriram o que escondi de mim, nem revelaram o fulgor que me perdeu. Ninguém me disse a verdade como o silêncio molhado das sonoras profundezas. Thiago de Melo
Uma voz que sabe a me roça a luz da pergunta: —Sabes acaso onde estás? —Estou como sempre sou. —Já sabes dizer quem és? —Me saber é o de somenos nestas últimas braçadas. Já não me queima, acompanha, a obstinação desmedida de me frequentar inteiro, me enfiar por uns desvãos onde se esconde invisível o ser que que persigo em sonho e lhe ver o olhar caolho. Deixou de ser tão narciso depois que soube me ver. Crista de espuma esmaltada, O silencio me revela:: —Vejo uns lanhos, arranhões, algumas ágatas secas, um canto que se calou, palavras murchas, resíduos de lágrimas escondidas, as asas de um cisne negro, umas brasas quase cinza. Vejo agora que se movem umas pedras esverdeadas num vão do teu pensamento. Fagulhas ficam de estrelas no cerne de quem viu mundos. Não são ventos que me agitem a paz das contradições próprias das profundidades.
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Quis que me livrasse delas, mas num rebojo alegre me agradou: —o que o tempo não apaga, água não sabe lavar. O ESPANTO E O ABRAÇO
Um só espanto ouvi das profundezas, graças à vibração de barbatanas que lhe esgarçaram a pele: o de não ter visto em mim sequer a sombra nem vinco de mágoa endurecida, dissabor encroado, resíduos de rancor, nem caracóis de conchas engilhadas. Preferiu, são bondades do silêncio, não me contar como se dissolveram na espessura impenetrável da memória adormecida. Mas o silêncio molhado leva a bondade ao extremo no amor pelo seu menino que nadou antes de andar: planta no chão fatigado assomos de juventude, a certeza de que luz não se separa da luz, deita reservas de flama na luz da indignação. Vagaroso subo ao sol, me agasalho na flor d’água, sem queixa de como sou, deixo o rio me levar guiado por meu amor. Rio wAndirá, Feira do Livro de Ribeirão Preto, Docas de Belém do Pará, 2013.
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PÁGINAS DIARÍSTICAS (ALGUMAS LEITURAS) 60
AS PALAVRAS Vasco Graça Moura
E OS DIAS 2014 Texto JOSÉ RODRIGUES DE PAIVA
Gabriel Garcia Marquez.
20 de fevereiro (quinta–feira). Concluída a leitura de O homem revoltado, de Camus. À exceção das crônicas de Actuelles e das Argelinas, era este o único livro de Camus que eu não havia lido. Obra, sobretudo, de filosofia e de política, ou talvez de filosofia política. Compreendem–se, a certa altura, as razões da ruptura do autor com Sartre e com o comunismo. Camus denuncia veementemente os processos e as estratégias comunistas para a implantação do pretenso império do proletariado. Os argumentos dos ideólogos comunistas caem por terra diante da análise que delas faz o pensador franco–argelino. Ou caem por si mesmas (bastando para a queda a argúcia do raciocínio de Camus), porque é a partir dos próprios textos comunistas que o pensador desmonta as razões e os métodos do “império”. 25 de março (terça–feira). Há mais de um mês ausente
do espaço destas notas. Escassa a escrita, mas não as leituras. Depois de alguns hispano–americanos— Garcia Marquez, José Donoso, Juan Rulfo—levou–me o acaso às Anti–memórias de André Malraux, de que por muitos dias me ocupei quase em dedicação exclusiva. Extraordinária obra na qual o romancista da “fraternidade viril” se debruça sobre o seu passado em cruzamentos constantes sobre o presente em que escreve. É uma escrita torrencial, talvez mais de reinvenção do que de reconstituição ou recuperação do tempo e dos acontecimentos por ele vividos. Malraux, aventureiro, guerreiro, político, diplomata, esteta, praticante de pequenos delitos na juventude (que não confessa nas suas memórias), procurou viver, criando para si, a condição do artista–herói que se transforma em mito. Mitificou–se, pela ação e pela escrita (e as suas Anti–memórias são talvez o derradeiro esforço no processo de mitificação), 61
assumindo–se como o homem sem casa, sem lar, que não desejava ter filhos e que veio a ter uma filha (que viveria longe de si) e depois mais dois filhos, contra a sua vontade. Dois filhos perdidos—mal saíam da adolescência—num único lance trágico do destino disfarçado num desastre de automóvel. Homem sempre atento às interrogações da vida, ou, sobretudo, às da morte, a sua maior obsessão. Envolvido com várias mulheres, quase sempre ao mesmo tempo, mas sempre em viagem, sem paradeiro certo, seguindo para onde o chamavam o apelo da aventura ou os dos ideais humanistas ou políticos, desde a extrema juventude até à velhice, quando, aos 71 anos ainda se oferecia para lutar como soldado numa qualquer guerra, que não era sua, nem do seu país, mas que lhe dizia respeito, por qualquer coisa de misterioso... Impressiona acompanhar o percurso de Malraux pelo mundo e as relações que fez com os grandes da primeira metade do século passado. Europa, Oriente Médio, Extremo Oriente, expedições no Camboja, Guerra Civil espanhola, resistência francesa, campanha 62
militar na Alsácia, maquis. Coronel Berger lutando contra os nazistas, participante dos congressos de escritores comunistas (comunista ele—mesmo —assim o diziam, mas não ele a si mesmo, e logo depois anticomunista), amigo de Trotsky, crítico severo dos processos stalinistas, mas admirador da Grande Marcha de Mao–Tsé–Tung, da qual faz um relato verdadeiramente épico... As Anti– memórias têm muitas vezes o tom dos seus romances, o estilo e a técnica das grandes narrativas. Talvez de escrita mais depurada, porque é obra da maturidade e os romances são da juventude. Impressionam as suas relações humanas, desde os grandes escritores franceses da década de 30 e das seguintes até os grandes políticos do mundo, de Charles de Gaulle a outras lideranças ocidentais e, sobretudo, os orientais, os que mandavam no Oriente, que ele conhecia tão bem e para onde sempre desejava voltar. A tentação do Ocidente teria nele, como réplica, a tentação do Oriente. Por isso, De Gaulle o mandou, em missão, representá–lo numa longa conversa com Mao–Tsé–Tung, que ocorreu, segundo o seu relato, na
presença absolutamente silenciosa da cúpula política chinesa. Há quem diga que Malraux faz charme e romanceia (finge) as suas relações com De Gaulle e outros líderes mundiais do seu tempo para daí tirar vantagem pessoal na construção do mito. É bem possível, mas também isso ele o faz genialmente. Li Malraux, pela primeira vez, na minha juventude universitária, mais ou menos ao mesmo tempo em que descobri a obra de Camus. Claro que terei então compreendido pouco e mal as obras de um e de outro. Devo ter lido os romances de Malraux—Os conquistadores, A estrada real, A condição humana e A esperança, sobretudo, como romances de aventuras – os dois primeiros—como um romance político, sobre a revolução comunista chinesa, o terceiro e o último como um longo relato sobre a Guerra Civil Espanhola. Deve ter–me escapado a dimensão existencial que há em tais livros. Uma vez ou outra pensei em refazer essas leituras, mas nunca me decidi a isso, sempre levado por várias urgências e pelas leituras de trabalho. Sacrifiquei agora essas urgências para fazer a leitura das Anti–memórias, leitura de acaso ou de intervalo, das que se começa sem se saber se será levada ao fim. Anti–memórias não é um livro breve, mas é dos que agarram o leitor pela ansiedade de se conhecer o seu conteúdo e pelo prazer de se entrar no texto e de se ser por ele dominado. Passa–se, então, a querer saber mais do autor e sobre o autor. Por isso, concluída a leitura da obra, permaneci com ele, dedicando–me à leitura de outro livro igualmente aliciante, que é a biografia (ou um ensaio?) escrita por Jean–François Lyotard, intitulada Assinado, Malraux. O livro de Lyotard é apresentado como uma biografia (e o é, sem dúvida, tecnicamente é uma biografia), mas também tem alguma coisa de narrativa romanesca e muito de ensaio. Estudo interpretativo de uma obra–vida e análise psicanalítica de uma vida (intensamente vivida) que se fez arte e que se projetou na História e na mais alta e movimentada política internacional do século XX. O livro de Lyotard obriga–nos a voltar à obra de Malraux. E ainda embalado pelo “mito” Malraux, passei de Lyotard ao ensaio de Vergílio Ferreira: André Malraux, interrogação ao destino. As urgências obrigam–me a suspender o “intervalo”, mas, tão logo possa, retornarei ao autor de As vozes do silêncio. 20 de abril (domingo de Páscoa). Praticamente um mês inteiro (outra vez!) sem vir acrescentar nada a estas notas. Faço um exercício de memória, tentando encontrar
algo que mereça registro, mas nada encontro. Como a de Bernardo Soares, a minha biografia é também sem acontecimentos, uma “biografia sem fatos”, mas Soares tinha a sua Rua dos Douradores, o escritório do Patrão Vasques e a extrema e sensível capacidade de dar transcendência ao trivial, conseguindo tornar grande a existência nos intervalos da vida medíocre do ajudante de guarda–livros. Eu também guardo livros, mas não são de contabilidade. Também vivo entre papéis que nem sempre (só raramente) são os da minha escrita e também empurro a engrenagem dos dias, que são a pedra de Sísifo dos afazeres cotidianos. A páscoa passou, com o seu ciclo de morte e ressurreição e eu quase não me apercebi. Ouvi como sempre, mas quase por obrigação, a Paixão segundo São Mateus, de Bach. Todos os anos, eu a ouço e, no ano passado, escrevi sobre essa música poderosa, trágica e sublime numa nota destes cadernos “virtuais”. Mas um “desastre” no computador apagou o que escrevi e que não pude nem tentei reconstituir... Hoje fui assistir à representação da vitória da vida sobre a morte, vendo subir as “névoas dos turíbulos” (a imagem é de César Leal) no Mosteiro de São Bento ao som do canto gregoriano. Mas penso que os monges beneditinos já tiveram melhor desempenho nessa função estético–religiosa. 27 de abril (domingo). Morreu hoje em Lisboa o poeta, romancista, ensaísta e tradutor Vasco Graça Moura. Foi uma presença marcante não só na literatura, mas também na política e na gestão cultural, tendo passado pelas presidências da Imprensa Nacional–Casa da Moeda, da Comissão Nacional dos Descobrimentos Portugueses e, ultimamente, do Centro Cultural de Belém. Em algum dos anos de 1980, Graça Moura veio ao Recife como conferencista e falou sobre Camões na Universidade Católica de Pernambuco. Estive à mesa com ele, na qualidade de apresentador e de comentarista. Fiz–lhe uma pergunta sobre o significado do Velho do Restelo n’Os Lusíadas a que ele respondeu com maestria, já se vê. O conferencista era grande estudioso de Camões, sobre cuja obra escreveu vários ensaios, entre os quais, o conhecido livro Camões e a divina proporção. Era respeitadíssimo como tradutor e, pela versão da Divina comédia para o português, ganhou um prêmio italiano. 63
11 de maio (domingo). Retorno a Malraux. Como disse, depois do livro de Lyotard, dei sequência ao meu entusiasmo malrausiano passando imediatamente à leitura do estudo de Vergílio Ferreira sobre o autor de A condição humana. É um ensaio de 1962. Malraux estava vivo (morreria em novembro de 1976), era pouco (ou nada) estudado em Portugal e Vergílio realizou com o seu estudo um trabalho precursor. Mas não tem distanciamento com relação ao autor e à sua obra e escreve (parece) apressadamente, ora exagerando nas reflexões filosóficas e políticas ora na demonstração de possíveis plágios ou “apropriações” praticados pelo escritor francês. Penso que isso prejudica o ensaio de Vergílio, que sempre se confessou um malrausiano apaixonado, sobretudo na juventude, quando escreveu um romance cuja problemática é o dilema de um homem entre a idéia e a ação. Esse romance é Apelo da noite, que talvez não pudesse existir sem a obra de Malraux... Vergílio expressava mais ou menos assim a sua grande admiração por dois escritores: “aprendi a escrever com Eça de Queirós e a pensar com André Malraux”. Depois do ensaio de Vergílio, comecei a ler Os sete pilares da sabedoria, de T. E. Lawrence (o coronel Lawrence), imenso relato memorialístico sobre a guerra da Arábia nos primeiros anos do século passado. E comecei a ler esse livro por causa de Malraux, que tinha grande admiração pelo coronel Lawrence, em quem, possivelmente, se inspirou o coronel Berger (outro nome de Malraux) que lutou na Alsácia contra os alemães e foi personagem importante na Resistência Francesa. Ambos amavam a ação, as idéias e o exótico. Lawrence era um inglês que praticamente se tornou árabe e ajudou a redesenhar os mapas do Oriente Médio. Malraux orientalizou–se desde a aventura cambojana dos seus vinte anos (em busca dos tesouros da arte khmer que lhe valeu processo e prisão) e do empreendimento jornalístico contra a injustiça colonial que não conseguiu vencer e que o deixou pobre. Esse extremo Oriente da Indochina, da Cochinchina e da própria China seria o espaço dos seus romances mais famosos—Os conquistadores, A estrada real e A condição humana —romances aparentemente de aventuras, um pouco à maneira dos de Conrad, mas cheios de problemas existenciais que fazem a angústia das suas personagens. Lawrence era um arqueólogo e um erudito, apesar de aventureiro. Malraux fingiu–se de arqueólogo para ir em busca dos tesouros 64
artísticos orientais. Era um aventureiro e viria a ser um erudito ( já o era em plena juventude), não obstante a sua condição de autodidata, tendo deixado inconclusos os seus estudos liceais por falta de paciência para ouvir professores que nada tinham a lhe ensinar. Seguia eu a leitura dos Sete pilares quando nela se interpôs uma outra biografia de Malraux, a de Curtis Cate, muito louvada por François Lyotard: Malraux: artista e guerreiro, filósofo e estadista. Li o primeiro capítulo só como prospecção, pretendendo deixar o livro para mais tarde. Não gosto de ler ao mesmo tempo dois livros de grande porte. Mas não foi possível deixar essa leitura para depois e agora vou saltando de um livro para outro, levando vantagem, claramente, a biografia do escritor francês. François Lyotard, em Assinado, Malraux, produz uma biografia que é também um ensaio de interpretação—sobretudo psicanalítica—que tem algo de narrativa poética e romanesca. Curtis Cate produziu uma biografia que é também um vasto painel da vida literária francesa (principalmente parisiense) da primeira metade do século passado, por onde passam os grandes nomes da literatura da França. E à sua narrativa também não faltam as qualidades de obra de arte. De modo que estou de volta a Malraux e espero poder um dia reler (para vir a ler melhor) os seus romances e o imenso ensaio de história da arte (a que Vergílio Ferreira chamou de “poema”) que é As vozes do silêncio. Assim espero... 21 de maio (quarta–feira). [...]. Resta–me aplicar o tempo nas leituras que venho fazendo: Os sete pilares da sabedoria (concluída ontem) e a biografia de Malraux (Curtis Cate) em andamento. Este livro chama–se Malraux: artista e guerreiro, filósofo e estadista e impressiona pela qualidade literária da escrita (embora eu o leia em tradução para o português), pela imensidão dos detalhes que oferece da vida do biografado e pelo painel que estabelece da história do mundo (particularmente da Europa) no século passado (sobretudo da segunda metade), com ênfase —nos dois ou três últimos capítulos—na vida política da França nos anos 60 e 70. É um livro impressionante e apaixonante, entendendo– se, à sua leitura, o entusiasmo por ele manifestado por Lyotard, também um biógrafo malrausiano. E também porque a vida do biografado é muito mais extraordinária do que a maioria das obras de ficção. Malraux teve (ou construiu para si) uma vida intensamente romanesca. 27 de maio (terça–feira). Concluí ontem a leitura
José Rodrigues de Paiva.
da biografia de Malraux, por Curtis Cate. Impressionante a vida desse homem, tão cheia de ação e tão marcada por tragédias pessoais. A sua temática ou existencial obsessão pela morte parece tê–la atraído para si ou para os arredores de si. Malraux teve de assistir às mortes de quase todas as mulheres da sua vida: Josette Clotis, caída sobre trilhos, com as pernas esmagadas por um trem, e Louise de Vilmorim subitamente fulminada por um ataque cardíaco. Madeleine e Clara (a primeira mulher) sobreviveram–lhe, mas não os seus filhos—Pierre–Gauthier e Vincent (filhos de Josette)—que morreram, aos 18 ou 20 anos, no mesmo acidente de carro. Os nazistas mataram os seus dois meio–irmãos—Roland e Claude Malraux—e vários dos seus amigos morreram nas guerras da Espanha (1936–1939) e Mundial (1939–1945). Albert Camus (com quem fizera amizade na Resistência e na literatura) morreria, com Gallimard, num desastre de automóvel em 1960 e o general De Gaulle (de quem Malraux fora ministro da cultura e sobre quem escreveria um belíssimo livro) morreria em 1970, de morte natural, na sua casa
de campo. André Malraux, de quem eram famosos os elogios fúnebres, sobreviveu a todos estes (e a muitos outros) mortos para morrer, ele mesmo, em 1974. 31 de maio (sábado). Continuo a ler sob o signo de Malraux: leio agora Nossos vinte anos, que é parte das memórias de Clara Malraux, sua primeira mulher. Na qualidade da escrita (e noutros aspectos também) a memorialista não desmereceu o seu marido: tinha um estilo poético e fluente e sabia muito bem estruturar, com requintes artísticos, uma narrativa, mesmo autobiográfica. Nestas memórias da –sua juventude, não se prende a um relato linear e cronológico dos fatos, sabendo muito bem jogar com o tempo e encher de poesia as lembranças dos seus vinte anos. Ela tinha a consciência de que estava escrevendo uma obra de arte: “É um jogo estranho, ressuscitar assim o passado. Mais estranho ainda é tentar dar um testemunho deste passado, ou fazer dele algo que não pode ser chamado por outro nome (apesar da ênfase da expressão) senão obra 65
de arte. Nesse esforço choco–me contra um excesso de detalhes, de planos múltiplos, de vidas humanas tão cheias de ramos quanto os tufos de bambu que então me cercavam. A cada instante, novos problemas se colocam: passar do interior da narrativa para o exterior e vice– versa, esboçar os indivíduos situando–os no movimento da época, deslocá–los, descrever aqueles que nos cercam, modificá–los segundo a sua experiência, municiá–los com atos e consciências que são deles, sem esquecer (e não seria mesmo possível, pois trata–se de uma realidade que encontramos a cada instante) que eles são portadores de um inconsciente muito ativo, que estão mergulhados em si mesmos e que aí aprisionam o mundo exterior.” Penso que esta redescoberta de Malraux (vida e obra) ainda me vai render muitas leituras: encontrei disponíveis na “Estante Virtual” (um site que arregimenta milhares de “sebos” do Brasil) dois livros do autor que não tenho na minha estante: Napoleão por ele mesmo e A luta com o anjo. Este é uma verdadeira raridade bibliográfica, pois a única edição (da Clássica Editora, de Lisboa) para a língua portuguesa é de 1944. Este romance foi traduzido por José Augusto dos Santos, um jornalista português, casado com a francesa Suzanne Chantal (também jornalista), amiga de Josette Clotis, a segunda mulher de Malraux. O romancista, Josette, o primeiro filho do casal e Suzanne então grávida de um menino moravam juntos. Era o ano de 1941, os alemães devastavam a França vencida e Malraux, sua família e a amiga jornalista encontravam–se refugiados numa Villa (Les Camélias), situada na ponta do Cap–d’Ail, nos Alpes–Marítimos. José Augusto viera de Lisboa para estar alguns dias com a sua mulher e o filho que ali nasceria. Foi nessas circunstâncias que conheceu o autor de A condição humana com quem fez amizade rapidamente. Malraux havia acabado de escrever A luta com o anjo, que José Augusto começou de imediato a traduzir para o português. Em 1944, saiu a edição portuguesa, de que acabo de adquirir um exemplar. Também por intermédio da “Estante”, comprei, há cerca de um mês, A rainha de Sabá, relato de Malraux da sua incursão aérea, com o aviador Corniglion–Molinier pelo deserto da Arábia à procura das ruínas do suposto palácio dessa lendária rainha Balkis, por quem Salomão teria caído de amor. O romancista relata a aventura nas suas Anti–memórias (a 66
narrativa é reproduzida neste volume), mas esta edição (da Livros do Brasil) valoriza, sobretudo, os artigos que Malraux escreveu para o jornal L’Intransigeant, narrando a aventura. 2 de junho (segunda–feira). Continuando a leitura de Nossos vinte anos, deparei–me hoje com esta passagem que considero interessante: “Nós nos esforçamos, de início, por alcançar o bote, deixando–nos escorregar por uma corda amarrada a uma trave do barco, mas como a equipagem recusou–se a nos acolher, vimo–nos empurrados de volta ao mar. Lembrei–me então do que havia em comum entre a nossa sorte e a de Camões: sob céus estrangeiros, num mar estrangeiro, lutávamos, como de outra feita o grande português, para conservar um mundo—meu esposo, seu gênio, eu, meu talento incerto. Nossas obras ainda não existiam; assim, ao menos não fomos obrigados a ficar com um braço para fora das águas para salvá–las. De mãos dadas, ligados um ao outro para uma morte eventual, mas pouco verossímil, pusemo–nos a bracejar com convicção. Honestos pescadores tiraram–nos do nosso embaraço.” Clara Malraux narra, neste passo do seu livro, o naufrágio (ou quase naufrágio) de um velho navio chinês em que viajavam do Sião para Tonkin (eles estavam a caminho de Saigon, em 1925) e no qual os dois teriam corrido sério risco de afogamento. A autora faz um paralelo interessante e muito poético entre a situação do casal e a vivida (ou criada pela lenda) por Camões, quando, andando o poeta por aquelas paragens, teria sofrido um naufrágio na foz do rio Mekong e, segundo a tradição, salvado os manuscritos de Os Lusíadas, então em elaboração, nadando apenas com um braço e segurando a obra feita com a outra mão. Considero interessante que Clara conhecesse esta “aventura” camoniana, comparando as duas situações. Entretanto, nem Curtis Cate nem Lyotard referem este incidente nas biografias que escreveram de Malraux e, no final deste relato, Clara confessa que ele não é mais do que fruto da sua imaginação: “Nenhum trauma nos ficou desta aventura, e se o dom de me expressar não me houvesse sido concedido, nada de tudo isto nos teria acontecido —já que acabo de inventar esta história agora mesmo.”. É óbvio que a memorialista aprendera com o seu marido a mesclar realidade e ficção, fatos vividos ou testemunhados e poderosa—e às vezes delirante—imaginação ficcional. De modo que nestas memórias da juventude de ambos—Clara
e André —, assim como nas Anti–memórias de Malraux, nos seus romances, no livro em homenagem a De Gaulle (no qual o escritor homenageia a si mesmo, sem dúvida) ou nas reportagens, nunca saberá o leitor o que exatamente corresponde à verdade e o que é resultado da invenção romanesca. Mas é isto que, ainda que falseando a exatidão dos fatos, faz o encanto e a força destas memórias e anti–memórias, homenagens e reportagens. Eles eram acima de tudo verdadeiros escritores. 3 de junho (terça–feira). Pausa na leitura de Nossos vinte anos para ler A rainha de Sabá. Os artigos de Malraux para o jornal parisiense L’Intransigeant constituem, no seu conjunto, uma narrativa de acentos épicos numa linguagem fortemente tocada pela poesia. O relato que o autor faz dessa sua “aventura geográfica” nas Anti– memórias é praticamente a reprodução, com “arranjos”
e acréscimos, dos textos desses artigos. Impressiona o fascínio desse homem pelo perigo. Entre vida e obra, construiu uma via de mão dupla. Era a sua maneira de edificar o próprio mito. 5 de junho (quinta–feira). Concluí hoje a leitura de Nossos vinte anos, estas memórias da juventude de Clara Malraux que se podem ler como um romance. Não tenho dúvidas de que, como André viria a fazer nas suas obras de ficção e mesmo nas suas memórias, há nesta escrita uma relação visceral entre realidade e imaginação. A própria autora dá pistas disso. Mas acontece que as vivências orientais do casal—inicialmente no Camboja e depois em Saigon—são de tal forma extraordinárias que bem podem ser confundidas com ficção. De espírito conradiano. E as qualidades da escrita da memorialista não são outras senão as qualidades de uma escrita literária. As minhas leituras malrausianas 67
vão continuar: estou aguardando a chegada de A luta com o anjo, que é o título que o tradutor português adotou para As nogueiras do Altemburgo. 9 de junho (segunda–feira). Acabo de receber, pelo correio, os dois livros de Malraux comprados por intermédio da Estante Virtual: A luta com o anjo e Napoleão por ele mesmo. Entretanto, comecei ontem, mais ou menos ao acaso, a leitura de Fábulas da memória, estudo de uma historiadora francesa, Lucette Valensi, sobre a batalha de Alcácer Quibir e o mito sebastianista. Leitura de acaso, mas já me pegou... 14 de junho (sábado). A leitura do livro de Lucette Valensi apanhou–me de tal jeito que já a concluí. Hoje. A obra da historiadora demonstra uma erudição extraordinária, impressionando o leitor pelo volume de referências que faz a documentos de várias ordens e origens, sobretudo da historiografia árabe, mas também europeia (portuguesa, espanhola, francesa, italiana, inglesa), culminando com o aproveitamento da Batalha de Alcácer Quibir (Batalha dos Três Reis na historiografia e literatura francesas) e suas consequências, feito em obras literárias antigas (desde o Renascimento e o Barroco) e modernas, sobretudo a de Fernando Pessoa. O poeta dos heterônimos, afirma a historiadora, é o último profeta do Sebastianismo. A obra de Lucette é, provavelmente, na sua origem, uma tese de doutorado (não sei, mas, se não o é, poderia sê–lo), entretanto, e apesar da erudição da pesquisa em que se baseia, lê–se com extremo agrado. Sem dúvida, é um livro fundamental para quem pretenda estudar esse mito português, o sebástico, e compreender melhor o coletivo eu–profundo de um povo que tanto cultivou ou que tanto padece da melancolia e da saudade que o caracterizam na vida e na arte. 20 de junho (sexta–feira). Leitura de A luta com o anjo. Descubro que não é um romance. Em certos aspectos, um livro de memórias familiares, sobretudo da evocação e da relação do autor com o pai. Em outros aspectos, um texto ensaístico (de ensaio criativo, extremamente poético) com alguma coisa de diálogo platônico na evocação dos colóquios de Altenburgo realizados pelo tio de Malraux, o intelectual Vincent Berger, que transformou, numa aldeia da Alsácia, um velho mosteiro em ruínas numa biblioteca e num centro de debates sobre filosofia, arte, literatura, política e outras coisas do espírito. Não há como não pensar, aqui, no ensaio criativo tão 68
cultivado por Vergílio Ferreira e que é um misto de ficção e de reflexão ensaística a que a linguagem poética, não sendo estranha, é mesmo essencial. Mas há um outro “diálogo”, no terceiro capítulo, que nada tem com as coisas do espírito. É um diálogo que envolve cientistas e soldados que discutem sobre armas químicas e estratégias de exterminação em massa. A opção seria por um gás letal que viria a destruir os homens e a natureza, transformando a paisagem numa visão mórbida. Impressiona a descrição das árvores em matéria repugnante e venenosa. Um pesadelo de recorte surrealista... 30 de agosto (sábado). De longas intermitências, silêncios, ausências de escrita têm sido feitas estas notas. Entre um nada e outro nada... Para que servem elas? Completamente dispensáveis, já o disse tantas vezes. Para anotar leituras? Mas já nem mesmo isso faço... Leituras de acaso têm–se sucedido sem qualquer anotação a respeito. Uma das últimas foi toda a poesia de Jorge Luis Borges, lida na sequência dos quatro volumes da sua obra completa. Essa poesia manteve para mim o velho fascínio dos labirintos, espelhos, adagas, misteriosas ruas de Buenos Aires, da vastidão dos pampas ou de uma esquina de Palermo, uma emboscada, um limpo duelo de valentes, milongas cantando tudo isso. Depois da obra lírica de Borges, li, de Marcelo Duarte Mathias, o ensaio A felicidade em Albert Camus, e foi como que um regresso à juventude, quando a obra do argelino tanto me cativou pelo intenso brilho da sua escrita. Excelente ensaio de interpretação da obra camusiana. Ao redor dos vinte anos, li e reli o essencial de Camus: O estrangeiro, A peste, A queda, O mito de Sísifo, Bodas em Tipasa, os Cadernos e tudo o que depois fui conseguindo encontrar. Era uma literatura sensorial, cheia de sol, de mar, de uma alegria sensual de viver, apesar do absurdo da vida e da morte. Durante muito tempo, fui um leitor atento (tanto quanto o podia ser então) da obra desse autor que foi uma espécie de “consciência” da sua geração (e de futuras também), consagrado pelo Nobel aos 44 anos e absurdamente morto aos 47 num desastre de automóvel. Sobre a sua obra, arrisquei–me a escrever e publicar alguns artigos de rasa ingenuidade. Tão dispensáveis quanto estas notas, separadas umas das outras pelas intermitências da escrita. Mas foi a minha maneira de expressar admiração pelo que li. Não serviram a ninguém, decerto, os tais artigos. Serviram a mim, como servem (ou não) estas notas.
FOTOS: ISOLDA DO VALLE WANDERLEY
AS CONSTRUÇÕES DE
ABELARDO DA HORA
DEUS
FURIOSO
D
Texto CÍCERO BELMAR
eus é um noiado, de olhar endurecido. As pupilas dilatadas, íris vermelhas em brasa. Deus é um psicopata armado com um três oitão, apontado para a minha cabeça. É capaz de tudo, qualquer bobagem que eu faça ou diga, ele pode apertar o gatilho. Deus diz, aos berros: “Sabe quem eu sou? Sou o Todo–Poderoso, você duvida?”. Não duvido. Ele está em outro mundo, outro planeta, e pode decidir a minha vida.
—Diga, humildezinho, você é meu Deus... Deus é pálido e fede. A sujeira entranhada, igual a essas pessoas que passam longos dias sem tomar banho. Uma catinga de suor velho, sebo e chulé ao mesmo tempo. E eu obedeço a esse Deus ríspido e agressivo, mas minha voz quase não sai. —Fala direito, puto! Suo como um porco na presença de Deus e ele grita: “Não ouvi, diga mais alto, seu porra!”. E eu repito. Ele tem o poder na mão e eu temo o poder de Deus. Ele ri, quanto mais eu me humilho: —Meu dedo tá—coçando! Dê uma de esperto, pra ver!
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Eu respiro ofegante. Não arrisco para ver até onde vai a ira de Deus, esse Deus que quer me esmagar. Sou um homem indefeso, o coração querendo saltar pela boca, batendo sem ordem. O meu medo é superior à raiva. Eu tenho que me submeter a Deus. —Eu sou seu Deus e você não serve para nada. Repita! —Não sirvo para nada! Ele me olha, com desprezo. Está muito drogado. O canto da boca elevado. Um riso parado. Eu não sou uma pessoa igual a Deus e minha vida nada significa para ele. Desde o começo, eu quero colaborar, disse onde estava o dinheiro, mas Deus é perverso e parece gostar disso: —Você é um covarde, um filho da puta covarde! Meu Deus! Eu já disse onde estava o dinheiro: o dinheiro e os cartões de crédito estão lá dentro, no quarto. Mas ele continua a me provocar. Ele gosta de torturar, de ameaçar. —Vai conferir, Garapa... Vai lá no quarto... Leva essa vadia contigo... São dois. Um é Deus, o outro é Garapa. Esse segundo é visivelmente abobado. Mas tem um revólver na mão. E é amigo de Deus. Recebe ordens suas. Deus, definitivamente, tem a posse de nossas vidas. Dos nossos destinos. E sabe disso. Sabe que é Deus. 71
Os dois, Deus e Garapa, querem tudo de valor que nós trouxemos para a casa de praia. Estamos de férias, eu e minha mulher. Foi um dia maravilhoso, até chegar a noite, quando ficamos sozinhos em casa, enfim sós, nossa linda casa de praia. Estávamos vendo televisão. Eles chegaram e nos renderam. Vivemos um pesadelo. Pesadelo é isso, sentir ódio, mas o corpo permanecer inerte. Ao ouvir a ordem de Deus, para ir conferir o que eu disse (que o dinheiro e os cartões...), Garapa entra no quarto com minha esposa, que também tem um revólver apontado para a sua cabeça. Aquilo gera uma angústia, o que ele vai fazer com minha mulher? Só de pensar, eu me sinto realmente um saco de merda. Rezo baixinho, a oração tem força, aprendi isso desde pequeno. Eu rezo e Deus grita palavrões, vociferando perdigotos que caem no meu rosto. E eu, ajoelhado aos seus pés, fecho os olhos, aterrorizado. —Fica quietinho, heim? Qualquer coisa, te mando para a vida eterna! Deus ri como se tivesse dito uma piada muito engraçada e no mesmo instante, repentino como um ator, muda de comportamento. Esbraveja, xinga, fica irritado sem nenhum motivo aparente, pois eu continuo impassível. Ele é explosivo e eu obedeço a ele como um cordeiro, pois as minhas reações podem determinar a minha morte e a da minha mulher. Ela também está sob o poder de outro assaltante. Tento me controlar. Quanto mais demonstro meu temor, mais Deus parece satisfeito. Deus zomba: 72
—Você tá já se melando! Seu cagão! Eu estava em total desvantagem, volto a rezar, sibilando: —Senhor... Por que me abandonaste? —Fica frio, seu imbecil, seja homem... Pressiona com força o cano do revólver na minha têmpora e eu penso: não quero morrer agora, não quero! Deus esbraveja, me chama de saco de bosta; eu tremo de forma involuntária, automática, parece que as mãos têm vida própria. Tento controlar, mas o esforço é só desesperador. Deus grita: —Dá pressa aí, Garapa... Garapa fala lá de dentro: —Essa quenga tá achando que sou otário. Tá dizendo aqui que só tem uns dois mil reais... Deus muda o tom, dando as ordens: —Se ela não colaborar, mete uma azeitona na testa. Faz um buraquinho pequeno. Conta até dez... 73
Acho que tenho mais dinheiro na carteira, sobre a cômoda. Eu informo, eles riem. Garapa fala: —O dinheiro começou a aparecer... Depois, Garapa completa lá de dentro: —Agora que tô vendo, Deus, essa mulher é uma gostosa! Não! Não! Não! —A xota dela é cabeludinha... E cai na gargalhada. Minha mulher chora. Apenas ouço o riso, o choro, e me revolto. Suplico desesperado a Deus: façam qualquer coisa comigo, mas com minha esposa, não! Deus, ao meu lado, funga, fissurado. Ironiza: —Muita calma... Deixa o Garapa se divertir lá dentro... Minha mulher chora e soluça e Garapa grita: é melhor você colaborar sua puta! Abra as pernas! Estou no limite da minha tolerância. Tremo de revolta, mas há um revólver encostado em mim e não posso fazer nada. Fico agitado. Quanto mais eu me sinto mal, mais satisfeito Deus fica. Ainda assim, consigo raciocinar e peço, em silêncio: Deus, permita que ela suporte essa humilhação, que não ofereça resistência. Fazer o quê? Garapa é parceiro de Deus! E este determina: —Fica frio, seu corno! Você agora vai levar gaia! Gaia de Garapa! Logo de quem! De Garapa! Respiro fundo, minha mulher chora mais alto, e eu sou um inútil. Sinto as energias se enfraquecerem em mim. Sou tomado por uma sensação de incapacidade, de ansiedade e vergonha. Tenho uma reação inesperada, tento me levantar, pois quero ir ao quarto. Foi impensado. Deus me dá um empurrão com força, caio ao lado e ele aponta o revólver. Se quisesse, teria me matado. —Mande sua mulher abrir as pernas para Garapa! Mande! Meu dedo está coçando! Eu choro. Não consigo falar. —Tá pensando que se eu lhe matar agora, sua mulherzinha, essa gostosa, vai selar a tabaca? Vai não, seu bundão! Vamos! Dê a ordem a sua mulher! A minha voz é voz vacilante, o tom baixo. Deus se acalma, quando finalmente consigo mandar minha mulher abrir as pernas. E ouço Garapa gemer. Deus faz silêncio absoluto. É como se ele quisesse ouvir Garapa gozando. E que eu ouvisse também. —Está ouvindo?
Deus gargalha e seu bafo é de esgoto. Fala juntinho à minha cabeça: —Fica quietinho! Você não vai me desapontar, vai? As coisas vão sair como a gente está querendo... 74
José Carlos Viana —Técnica mista sobre papel / BOI DO ARAÇA.
Vão funcionar bem... Você vai agir certo. Tenho que dissimular calma, expressar minha revolta é perigoso. É quase incontrolável, mas eu me esforço para me fingir de ausente, para suportar o fato de aquele bandido estar lá dentro comendo minha mulher e eu não poder fazer nada. Faço de conta que estou calmo, tudo o que quero, naquele instante, é a aprovação de Deus. Não posso frustrá–lo ou contrariá–lo. Se eu ficar quieto, ele nos deixa viver, eu e minha mulher. Fico fingindo uma tranquilidade que está acima de minha capacidade de suportar, só para lhe agradar, embora sentisse tudo ao mesmo tempo: medo, raiva, ansiedade, sentimento de inferioridade. Estou em alerta, querendo ouvir alguma coisa. Nada. Deus diz: —Garapa também gosta de meter em homem. Mas eu não vou deixar ele meter em você. Você é a cara do pastor de minha igreja. Já fui da igreja, hoje sou desgarrado. Mas já fui obreiro. E me encara fixamente. —Puta merda! É a cara! 75
Grafite / Olinda
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Repete: você é a cara do pastor da minha igreja... E pergunta: você é ele? Não sei se é para confirmar ou negar. Não sei se isso é bom ou ruim. O que é mais perigoso? —Conheço tudo da Bíblia, tudo, tudo , tudo, viu? É por isso que eles me chamam de Deus... Eles quem? —Garapa só não vai lhe comer por isso, pastor! Escute só: “Não toqueis em meus ungidos, não maltrateis meus profetas”. Está em Salmos 105, versículo 15... Eu choro de gratidão. Ele não vai me machucar. E Deus ri, gargalha, depois para e diz que se nós não colaborarmos, manda a gente para o inferno. Respiro como se tivesse participado de uma corrida, tremo. Ele recita, olhando para mim: —“Não jogarei a minha ira sobre ti porque sou compassivo. E não manterei para sempre a minha ira...”, Jeremias, três. Garapa sai do quarto. Minha mulher é puxada pelo braço, seminua. Ela continua chorando. —Só encontrei isso... Quase quatro mil... —Dá para você comprar muito guaraná... Deus ri. Garapa termina rindo também. Ele teria esse nome porque gosta muito de Guaraná? Não sei. Os minutos são quase uma eternidade. Não sei o que eles podem fazer conosco. Finalmente, Deus pergunta onde fica o banheiro. Eu digo e ele me arrasta para lá. Garapa faz o mesmo com minha mulher, apavorada. Estamos sob a mira dos revólveres. Ficamos no banheiro. —Vou deixar vocês vivos e não recebo nem um muito obrigado? Assim é a humanidade! A ingratidão é uma coisa muito ruim. Muito ruim mesmo... E fica repetindo: muito ruim, muito ruim mesmo. Vai saindo. Tenho medo que ele, de tanto dizer, se convença e volte. Minha mulher, apavorada, murmura: muito obrigada! E ele realmente volta, aponta o revólver para nós dois. Garapa, um pouco mais atrás, também se volta, fica quieto, esperando as ordens. —A minha compaixão é sem limites! Deus fecha a porta do banheiro por fora. Ouço ele dizer: vamos levar tudo o que puder, Garapa! Eu abraço a minha esposa. Ela soluça. Ficamos assim, chorando baixinho, tentando nos controlar para os bandidos não nos ouvirem. Permanecemos abraçados até ouvirmos o silêncio. Diante daquela injustiça, daquele terror, nós nos abraçamos. Estávamos vivos! A ira de Deus nos motivava o afeto. Naquele instante, sentimos a imensa necessidade de sermos mais amorosos um com o outro. CÍCERO BELMAR é Escritor e Jornalista (Recife)
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FERRO de ARREIO Texto ISOLDA WANDERLEY
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a Rua de São Bento, uma das mais antigas de Olinda, na parede frontal da casa número 247, há um instrumento de ferro, (séc.XVII), o chamado alfece, que servia para amarrar cavalos. Usava–se nos animais que relinchavam muito e tinham o hábito de levantar as patas. Artur Ramos, em um artigo pioneiro, publicado em 1938, classifica esse instrumento entre os que amarravam escravos negros expostos à venda, cena muito comum no Brasil colonial. Trata–se de um exemplar talvez único em Olinda. Não há informação nenhuma de que teria sido usado nos tempos da escravatura, assim como é falsa a lenda de que no mercado da Ribeira, perto dali, havia o comércio de homens negros trazidos como escravos da África. Para muitos que passam por ali, esse instrumento teria sido um amuleto de cultos africanos, capaz de afastar o mau olhado sobre as casas e seus moradores. Há outras denominações dadas pelos moradores da Rua de São Bento e muitas lendas sobre a peça. Seria um instrumento de caça de animais ferozes ou um condutor de forças mágicas. Outros dizem que é uma escama de Poseidon ou um tridente de ferro queimado, grande símbolo de poder e domínio. Parece uma foice de ceifar, não a
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vida, mas as ilusões deste mundo. Outros dizem que, vindo de desconhecidas imensidões, talvez esculpida em um meteorito muito precioso, tem o poder magnético da cura. Dizem também que dá sorte, favorece a fecundidade, a prosperidade, a vitória. Se for verdade o que dizem, ela tem um valor absolutamente inestimável e é rara. Esse instrumento inspira um extenso rol de verbetes, como a larva, que não voa, mas tem tudo o que é preciso para que dela surja uma borboleta. Muitos mistérios rondam sua origem: quem teria sido o ferreiro forjador desse objeto? De que forno olindense (ou de além–mar) teria saído essa peça? Afinal, era preciso alguém saber dominar o fogo para forjar tamanho engenho, mesmo com o risco da queimadura, como os deuses. A forja comporta um aspecto cosmogônico e criador. O velho deus asteca do fogo e seus elementos, Huehuetotl, aparecem nos Códices, tendo como emblema um instrumento parecido com o da casa olindense. O surpreendente é que o objeto, tema de nossa capa, traz semelhanças com outros fundidos pelos cartagineses da Antiguidade. Aparece na simbólica sob diversos aspectos. Foram encontrados vestígios variados na França (antiga Gália). Na atual Tunísia, sugerem seu uso por ali, ainda hoje, no meio rural, como também na Antioquia, no uso das almofaças, ferramenta de limpeza de
FOTO: ISOLDA DO VALLE WANDERLEY
metal que consiste de várias lâminas dentadas concêntricas e que serve para limpar o pelo do cavalo na sujidade mais entranhada. Alastor, um dos cavalos do carro de Júpiter, era amarrado a uma dessas peças. Os almocreves de Olinda em nada eram diferentes daqueles que tinham por ofício alugar ou conduzir cavalos de carga, ao amarrarem seus animais nos ferros de portas das pequenas “vendas” de secos e molhados. O almocreve Dorsez ficou na História: foi guia de Napoleão na travessia dos Alpes, antes de este desembocar nas planícies da Lombardia, na retaguarda do exército austríaco, que ocupava Gênova. Jamais teve um cavalo seu desviado da rota; sábio ele se mostrava ao fazer um laço de cordas e de segurança. A gramadeira, gancho que se usa nas estrebarias do Norte de Portugal, para puxar a palha das manjedouras, é por demais parecida com o ferro da casa olindense. Um volumoso livro, com mais de 1.100 páginas, que acaba de chegar às livrarias: “Três Livros de Filosofia Oculta”, de Henrique Cornélio Agrippa de Nettesheim (Compilação e Notas do famoso Donald Tyson), nos mostra à página 980, uma figura geomântica igual à da parede da casa olindense, parecida com a cauda do capricórnio, que rege, entre as pedras, a calcedônia, entre as plantas—a manjerona, a flor de diana e a raiz da mandrágora.
E por falar em ferro de prender cavalos, apenas um, em toda a história, ficaria famoso, aquele que prendia o Bucéfalo. Quando todos haviam desistido de amansar o cavalo, mais tarde chamado Bucéfalo, Alexandre, o Grande, verificou que o animal reagia com violência ao ver a sua própria sombra contra a luz do sol. Alexandre colocou–se em posição onde isso não ocorria e então conseguiu o domínio do cavalo que se tornaria amigo inseparável em muitas guerras. Bucéfalo, quando morreu, foi homenageado por Alexandre, que mandou construir uma cidade em sua honra: Bucefalia. A sua alimentação era servida em vasos de ouro e bebia em taças do mesmo metal. Muitas vezes comia na própria mesa do imperador. A sua grande sorte culminou com a sua nomeação para o Colégio de Sacerdotes, a suprema honraria alcançada pelo homem. Finalmente, nunca é demais lembrar o “Doce Cisne de Avon”, como era medieval e eterno: “O meu reino por um cavalo! (Ricardo III, 5.º Ato, cena IV, William Shakespeare). «A sua [do cavalo] presença nos terrenos de batalha era tão preciosa que se percebe perfeitamente o ressoar eterno da frase desesperada de Ricardo III: «Um cavalo! Um cavalo! O meu reino por um cavalo!». Para ter um cavalo coberto de tantas nobrezas, o seu ferro de arreios seria chapeado a ouro e pedrinhas de brilhante. 79
S
im, a criação artística sobrevive aos homens, desde as gravuras e pinturas rupestres. Milênios após, coube primeiro à fotografia multiplicá–la, industrialmente; depois, ao cinema, com a impensada magia de reproduzir, tecnologicamente, além do rosto, da voz e do corpo, os seus gestos e a aura deles. Movietones de vida, ação e morte! Não à toa que “ação” é a palavra–chave para o início de uma filmagem. Todo filme, com o passar dos anos e décadas, impregna os fotogramas (agora, também, os frames digitais) de uma pátina tão prodigiosa que, diferente daquela observada com ícones e totens, acaba ressumando a um inédito timing ontológico. Assim, uma vez instalada, quem há de extinguir–lhe a espacialidade e a transcendência? Sem esquecer que, contemporâneo à proto–história do cinema, Baudelaire (1821–1867) já preconizava: movimento é sinônimo de modernidade! Se o passado é pisado, no cinema, isso não acontece. Sua imediata presentificação é coisa de nanosegundos, um obturador, um clique, a explosão da lumière, e zás trás, tudo retorna feito sonho jamais esfumado. O que parecia perdido renasce incólume, pulsante e imorredouro.
OLHO E ALMA Do livro à tela. Soa como incongruência, mas eu queria filmar Graciliano Ramos (1892–1953) antes de ser cineasta. Jovem cinéfilo e leitor compulsivo, deliciando– me com Graciliano em “São Bernardo”, “Vidas Secas”, “Angústia”, “Infância”, logo senti nele um escritor, literalmente, com alma e olho de cineasta. Porque exímio primevo fautor de descrições minudicentes e diálogos cortantes, todos rigorosamente decupados para a mais imediata e singela visibilidade. Sem nenhuma coincidência, excetuando “Angústia” (até hoje não filmado), seus livros tornaram–se obras seminais do cinema brasileiro pelo influxo criativo dos cineastas Nelson Pereira dos Santos em “Vidas Secas” (1963) e “Memórias do Cárcere” (1984); e Leon Hirzsman 80
em “São Bernardo” (1971). É que Graciliano fixa seus textos como se “escrevesse” com uma câmara, talvez intuindo que, afinal, cinema é enquadramento. Como Jean–Luc Godard, Louis Malle, Claude Chabrol, François Truffaut, artífices da Nouvelle Vague, anunciando nos anos 1950: cineasta seria alguém que “escreve com a câmara” (caméra–stylo (caneta). Invariavelmente, desde D.W.Griffith (1875–1948), a organização da linguagem cinematográfica nos remete tanto à potência imagética de estátuas e iluminuras quanto à maestria de um da Vinci, Michelangelo, Rodin, Van Gogh. Ao plasmarem luzes e sombras, composição de formas e de cores, e a perspectiva (ou a falta dela), seus personagens, eventos e paisagens, reais e/ou imaginários, são puro movie. Sem esse DNA fundador, toda e qualquer elaboração da imagem a posteriori vai por água abaixo. Daí, os grandes cineastas tomarem a câmara como quem empunha um pincel, maneja espátula ou cinzel, para transmutar a realidade bruta e brutal em poesia, encantamento e autoria. Graciliano pertence a essa nobre estirpe de inventores.
FAGULHA INAUGURAL Como o acaso preside a criação, a fagulha inaugural de biografar Graciliano Ramos no cinema nasceu em meados da década passada. E foi quase simultânea às pesquisas literária, iconográfica e de campo em Maceió e no Agreste alagoano para a escritura do roteiro de “A Angústia”, baseado no seu romance “Angústia”. No encalço da epifania, o repto logo se fez incontornável, pois a multifacetada e contraditória personalidade de Graciliano extrapola todos os parâmetros do que se esperaria encontrar mesmo em um autor com biografia tão conturbada. Para chegar próximo, livrei–me de viseiras e preconceitos em relação às origens e ao périplo existencial, moral e ideológico do meu herói. O primeiro contato remonta antes à obra do que ao autor, e deu–se em 1954 na sôfrega leitura da edição recém–publicada de “Memórias do Cárcere”. Inspirado nela, sem jamais flertar com o leitor/espectador e as circunstâncias, fui desestruturando imageticamente a narrativa de “O Universo Graciliano”.
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FADA MADRINHA Não deixa de ser extremamente prazeroso rememorar como e quando tudo começou, fato, aliás, nem sempre tão nítido. Em que momento Graciliano Ramos teria me conflagrado a ponto de hoje eu assinar este acerto existencial de “O Universo Graciliano”, por todas as razões, inescapável da minha própria biografia? Sim, antes de cineasta, eu sonhava ser escritor. No fundo, a fada madrinha do cinema já estava de olho em mim! Naquela época, adolescente, eu morava na cidade portuária de Paranaguá, litoral do Paraná, onde a família tinha um hotel (não é por acaso que “Aleluia, Gretchen”, meu terceiro longa–metragem, de 1976, se passa num hotel). E, como se estivesse escrito nas estrelas, ora direis, a única livraria da cidade expôs na vitrina os quatro volumes, com capa dura cor de vinho, o também único conjunto da obra póstuma (1954) de Graciliano Ramos, “Memórias do Cárcere”. Vindo a pé do ginásio para casa, me distanciava dos amigos e ia até a livraria admirar a coleção, como se o autor, que eu já frequentava, me chamasse a degustar seu magnífico adeus literário. Minha mãe, inveterada leitora, curtindo meu amor à literatura, de surpresa, com aquele belo sorriso do gozo intelectual, me presenteou o inesquecível acepipe. Desde então, Graciliano grudou na memória, na retina e nos fotogramas. Agora, fico ruminando o que aquela alemoa apaixonada pelo Brasil diria vendo esta minha declaração de amor e destemor em “O Universo Graciliano” ao polêmico escritor alagoano, tão telúrico quanto universal!
INCOMPLETUDE A sensação de incompletude é recorrente em todo criador, em especial, quando o projeto se defronta com um personagem tão enigmático, seja de fundo moral e afetivo, seja intelectual, político e ideológico, como Graciliano Ramos. Do “nascimento” como romancista e homem público (prefeito de Palmeira dos Índios, onde escreveu “Caetés”, só publicado em 1933) à sua inusitada prisão e deportação de Maceió em 1936 (“Emigraram–me”, diz Lêdo Ivo relembrando o lamento de Graciliano), à permanência e à morte no Rio de Janeiro, seu cotidiano é marcado por tragédias e polêmicas. Uma espécie de dublê fake de si mesmo. 82
Talvez “O Universo Graciliano” consiga transmitir esse sentimento que me foi inflamando o coração e o intelecto já quando estudava sua obra e relatos sobre ele, até a oitiva de uma vintena de pessoas, direta ou indiretamente, vinculadas ao autor. E isso fica flagrante ao ouvir quem o frequentou durante décadas como pessoa, ou, por osmose, quem tenha se apaixonado pelos antológicos personagens de “São Bernardo”, “Angústia” e “Vidas Secas”. É que ele deixou uma obra sólida e incólume, inoxidável às intempéries político ideológicas de seu tempo. É por essa senda que o filme se imiscui, articulando preciosa iconografia fixa e em movimento, música de belos compositores alagoanos, como Heitor Cardoso (1890–1960), Misael Domingues (1857–1932) e Tavares de Figueiredo (1891–1925), para tentar chegar aos porões de uma memória que muitas vezes se recusa a vir a lume. Porque é ali que se fundem e se confundem verdades e mentiras sobre a maior esfinge da literatura brasileira. Tal qual uma espécie de second life permeando o próprio roteiro, as filmagens e aquilo que é selecionado e montado, todo filme engendra sua própria história até faiscar na tela e no inconsciente do espectador. Com “O Universo Graciliano”, sem premeditação alguma, as crônicas que precederam e presidiram as pesquisas e as entrevistas resgatam em Graciliano, sem tônus reducionista, a persona assumida por ele em vida, reconhecida pelos coetâneos, e repicada pela posteridade. Cada depoimento embute tamanha amperagem de emoção, comoção e estranhamento, que os retratos falados, revelações e inconfidências detonam falácias e mitos que por décadas balizam vida–e–obra do escritor. São atos, feitos e acontecimentos surpreendentes em torno de seu temperamento ora irônico e carrancudo, ora sedutor e, às vezes, até misantropo. Soberbos contornos redivivos em que a memória e a amnésia consagram o entendimento de quem lhes bebe a verdade poética. Uma invisibilidade em que o passado é o que a mente de cada um captura e reescreve a seu bel prazer. É truísmo que o filme da mente não mente jamais! É também sabido que toda vez que voltamos ao passado ele aparece diferente, como se visitássemos outro país,
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onde a neblina do olvido e as nuvens do imponderável passam a embaçar as lembranças. E quem conta um conto aumenta um ponto, com um dado incoercível, ainda que ninguém se esqueça de nada. Muito menos os velhos. Quanto mais macróbio, mais arguto, maior a pulsão do córtex. Pode demorar a vir à tona, pode vir reticente. De chofre irrompe e ninguém é capaz de aprisionar a verdade ali contida, já que assoma cruel e implacável. É um fluxo aparentemente desdatado, uma catadupa de prosa poética sem começo nem fim, da memória paroquial à grande desmemória revelada.
ELENCO INESTIMÁVEL O filme tem várias “estrelas”, se assim eu pudesse chamar estes meus lindos entrevistados que tiveram íntima convivência com o “Velho Graça”, ou o conheceram fora do âmbito familiar como escritor e ente político. Todos, no entanto, conseguem capturar–lhe a mitologia, tout court. Arrisco dizer que a idade média desse inestimável elenco de “O Universo Graciliano” oscila entre 85 e 90 anos, todos com lucidez, memória e coragem assombrosas. Confluem para o arcabouço investigativo e rememorativo do documentário, entre outros, as recordações familiares da filha de Graciliano, Luiza Amado; os bem–humorados e ácidos comentários do poeta e romancista Lêdo Ivo (1924–2012); o aguçado senso crítico do seu confidente, o advogado e filósofo Paulo Mercadante (1923–2013); a percuciente definição de como o escritor encarava seu ofício, pela outra filha, Clara Ramos (1932–1993); a emocionante canção entoada por Beatriz Ryff (1909– 2012); o saboroso relato histriônico do historiador Ivan Barros (de Palmeira dos Índios), culminando com o alegre e velhíssimo João Miguel dos Santos, com mais de cem anos (“É, mas estou rodando bem!”), engraxate de Graciliano prefeito de Palmeira dos Índios no final da década de 1920. A propósito, não poderia deixar de lamentar, reverenciando–os aqui, o desaparecimento, nesse decorrer dos últimos dois anos entre as filmagens e a finalização do filme, de algumas personalidades, como, por exemplo, Oscar Niemeyer (1907–1912), cujos intimoratos testemunhos, hoje, únicos e irrepetíveis, graças à transcendência do cinema, tornaram–se, digamos assim, imorredouros e imortais. 84
FUTURO DO PRETÉRITO Diante desses rastros, sombras e escombros que a oitiva de uma vintena de depoentes escancaram, procurei inocular a narrativa de “O Universo Graciliano” do mesmo diapasão das lacunas e “buracos negros” memoriais. Ou seja, os relatos e confissões procuram fugir à tentação de corte acadêmico. Afinal, Graciliano situa– se, junto com Machado de Assis, Clarice Lispector e Guimarães Rosa, no pódio dos escritores brasileiros mais estudados. Sem rodeios, abertamente, o filme elide–se dessa arrogância intelectual, ainda que deixe entrever um viés crítico sobre sua escrita e sua obra como um todo. memoriais. Ou seja, os relatos e confissões procuram fugir à tentação de corte acadêmico. Afinal, Graciliano situa–se, junto com Machado de Assis, Clarice Lispector e Guimarães Rosa, no pódio dos escritores brasileiros mais estudados. Sem rodeios, abertamente, o filme elide–se dessa arrogância intelectual, ainda que deixe entrever um viés crítico sobre sua escrita e sua obra como um todo. Se o discurso cinemático ancora–se, primordialmente, no imaginário sobrevivente, é por esse empuxo vivencial que Graciliano é mais uma vez homenageado. Há como que uma permanente sensação de “futuro do pretérito” nas imagens, falas e na propositada “ausência” icônica do personagem, como que referência a algo que seria ou poderia ter acontecido. O futuro do pretérito é a negação da utopia, é onde ficção e recordações entregam sua traiçoeira e, ao mesmo tempo, bem vinda natureza. Não por acaso seu uso é recorrente nos romances “Vidas Secas” e “Angústia”, escritos nesse registro. Graciliano Ramos, no dia–a–dia, publicamente, é o típico intelectual orgânico do seu tempo, militante do Partido Comunista Brasileiro desde 1945. Certo ou errado, hoje não importa mais se chorou com a morte de Stalin. Ou se batizou uma criança com o nome “Lenin” em Palmeira dos Índios ainda nos anos 1920. O que prevalece é que, na sua ficção, dos três romances clássicos citados a “Infância”, “Linhas tortas”, “Viventes das Alagoas”, “Viagem” e “Memórias do Cárcere”, Graciliano despe–se de toda e qualquer ilusão. Como se o futuro do pretérito fosse ao mesmo tempo mantra e bênção. Diante dessa evidência, é possível arriscar que nenhum
escritor brasileiro foi tão na contramão do ideário de suas criaturas quanto Graciliano Ramos. Aliás, sem coincidência alguma, ele estava a par do apelo ideológico vigente na primeira metade do século XX, pródigo nesses extremos morais que conflagraram gênios como Sergei Eisenstein, Richard Strauss, Ezra Pound, Knut Hamsun, Langston Hughes, Louis–Ferdinand Céline, Martin Heidegger, Jorge Luis Borges...
ANTIDOC Por não me considerar um documentarista lato senso, “O Universo Graciliano” é exemplar do que intitulo de antidoc, um cinema nitidamente desideologizado, no diapasão da maioria dos meus filmes no gênero “docucrama” (mescla de doc & fic). Diante da atual aidetização audiovisual, que desidrata a menor possibilidade de uma leitura não consumista do espectador, defendo um cinema (pode parecer contrassenso) que deve mostrar cada vez menos. Nada de levar o espectador pela mão através de imagens e sons anódinos que lhe obscureçam a compreensão moral dos homens e de seus feitos. Todo o poder à imaginação!
seria “revolucionária”. Era preciso sacar do limbo da história recente da literatura brasileira o tormento desse inigualável demiurgo sempre ao revés de diktats que tentassem macular seu estro. Daí ressurgir em “O Universo Graciliano” um Graciliano literalmente como se de hologramas sobrepostos fosse constituído, portanto, inapreensível em carne, osso e consciência. Um Graciliano até então lembrado com subterfúgios, meias palavras, com ressalvas de críticos e historiadores fisiológicos tentando ideologizar seus romances, contos e diários para mostrar que nunca fora “inimigo” de suas próprias convicções. Mas, apesar de tudo e de todos, a obra acabou se impondo com tamanha grandeza, consistência e modernidade que a transfiguração moral de seus impasses literários e ideológicos é a medida da estatura do gênio.
Para roteirizar a vida e a obra de Graciliano, de imediato veio a pergunta que sempre, confesso, de forma jubilosa, me assola: “como realizar um filme com um dos nossos maiores escritores sem recorrer ao discurso predominante em cartaz no cinema nacional de explícito tônus hagiográfico, do filme turístico e “chapa branca”, do filme com recorte chamuscado de parti–pris literário e/ ou político–ideológico?”. O repto era avançar no contrafluxo, produzir um cinema que exija do espectador, que lhe desperte a percepção e a argúcia. Ao longo de quase sessenta anos, desde sua morte, a figura do escritor Graciliano Ramos foi sendo mitificada, evitando–se, assim, que fosse desvelado o martírio que enfrentou para não sucumbir à censura política e literária de seus pares do Partido Comunista Brasileiro, o famoso “Partidão”. Curiosamente, ao qual se dedicava como inocente ovelha de um rebanho cujo pastor ele sabia ventríloquo das comandas do execrável “realismo socialista” fundado e difundido pela URSS. De um lado, como militante “ilustre”, reverenciado e incensado, de outro, demonizado porque sua obra não
SYLVIO BACK é Cineasta, poeta, escritor e roteirista. Autor de 38 filmes de curta, média e doze longas–metragens. Publicou 21 livros (poesia, contos, ensaios e roteiros de seus filmes). Com 76 láureas nacionais e internacionais, é um dos cineastas mais premiados do Brasil. Em preparo, o lançamento nacional de “O Universo Graciliano”.
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um encontro com
GEORGIA O’KEEFFE Texto EDUARDO DE AGUIAR
Georgia O’Keeffe representa um dos momentos supremos de modernidade no campo da pintura. Ela é considerada uma das pintoras norte–americanas de maior sucesso do século XX. As suas telas de paisagens e flores foram muito apreciadas a partir de 1928. Está de volta, numa exposição do International Arts—405 County Route 22, Ghent, N.Y. 12075 Tel: (518) 392–4747), organizada por Joseph S. Czestochowski, com a curadoria de Charles C. Eldredge. No Brasil, O’Keeffe não é muito lembrada. Poucas galerias do Rio/São Paulo anunciam obras da genial pintora do Wisconsin. Quando criança, recebeu aulas de arte em casa e suas habilidades foram reconhecidas e incentivadas pelos professores ao longo dos anos escolares. No momento em que se formou no colégio, em 1905, O’Keeffe estava determinada a traçar o seu destino como artista. Continuou seus estudos no Instituto de Arte de Chicago (1905–1906) e no Art Students League, em Nova York (1907–1908), onde rapidamente dominou os princípios da arte. Em 1908, conquistou o William Merritt Chase, prêmio por sua pintura a óleo “Untitled” (sem título). Em 1915, quando estava ensinando arte no Columbia College, Columbia, Carolina do Sul, tentou descobrir uma linguagem pessoal com a qual pudesse expressar os próprios sentimentos e ideias e começou uma série de desenhos abstratos a carvão, que são agora reconhecidos como os mais inovadores em toda a arte americana do período. Na década de 1920, O’Keeffe começou a pintar o primeiro arranha–céu de Nova York e, com as suas representações de flores, tornou–se reconhecida como uma das artistas mais importantes e bem sucedidas das Américas. A arte de Georgia O’Keeffe foi conhecida por oito
décadas no seu país e vem conquistando destaque semelhante no exterior. Mais de 500 obras suas estão em mais de 100 coleções públicas na Ásia, Europa e América do Norte e Central. Foi uma surpresa descobrir que, no momento de sua morte, em 1986, quando tinha 98 anos, a pintora possuía mais de metade das 2.029 obras mais conhecidas de sua produção total. Durante sua longa vida, Georgia O’Keeffe criou um corpo de trabalho cuja estética era moderna em sua precisão, em suas linhas limpas e de elegante simplicidade. Aplicou essa estética para a exibição e reprodução de sua obra e para representar e promover a si mesma. É dela esta declaração: “Eu tenho um desejo, mas como pintora—que é pintar o que eu vejo, como eu vejo, no meu próprio caminho, sem levar em conta os desejos ou sabor do comerciante profissional ou do colecionador profissional.” Sua vida e obra foram tema do filme: “Vida e Arte de Georgia O’Keeffe”, com Joan Allen e Jeremy Irons. Sinopse Joan Allen faz a melhor atuação da sua carreira no papel de Georgia O’Keeffe, figura ilustre da história da arte americana. Os quadros deslumbrantes de Georgia O’Keeffe vão sendo apresentados ao longo do filme, enquanto vai sendo narrado seu romance com o carismático fotógrafo Alfred Stieglitz (interpretado por Jeremy Irons, ganhador do Oscar em 1990 por sua atuação em “O Reverso da Fortuna”), seu colapso emocional ao descobrir que Alfred era infiel e o processo de autodescoberta em Taos, Novo México. Vida e Arte de Georgia O’Keeffe é um filme imperdível, um drama cativante, tanto para os fãs do trabalho de Georgia quanto para quem ainda não a conhece. EDUARDO DE AGUIAR é Jornalista (Belo Horizonte)
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Texto LUZILÁ GONÇALVES FERREIRA
E
m recente acontecimento literário que reuniu pesquisadoras de todo o Brasil, falou–se da vasta produção poética escrita por mulheres no país, na diversidade dos temas que abordam, no valor estético e ético dos poemas. Que falam de amor, ousam falar do desejo, do cotidiano feminino, com inteligência, sensibilidade e humor. Mas também da relação da mulher com o fazer literário, a literatura sendo o espaço simbólico em que um indivíduo se constrói a partir de palavras. Espaço de individuação por excelência, resultado do desejo do autor de vir a ser tudo o que se pode ser, como o lembra Octavio Paz. E viver, de modo misterioso, outros destinos.
No Rio Grande do Norte, Diva Cunha fala do ligeiro arrepio na curvatura morna do ventre que avisa à mulher que ela é ainda “coisa de asa, coisa de carne, coisa da coisa que exulta ao toque do que ousa.” Da Paraíba–Recife, Lenilde Freitas lembra “Vim beber nos teus lábios o vinho de que preciso (...) e buscar no teu corpo o aroma dos felizes”. Lucila Nogueira afirma: “Tudo o que aprendi foi só para enlouquecer–te, tira logo do meu corpo a túnica transparente...”. Isabel Brandão, de Alagoas, expõe seu dilema: “Não há nenhum corpo aqui para ser abraçado. Assim eu abraço as palavras/ como quem arruma um novo amor”. Vitoria de Lima Rocha, da Paraíba, com bom humor: “Quando olho para o espelho/Lembro da amiga que dizia: Quanto mais choro mais passo baton”. E Arlete Nogueira aprende com a hortênsia presunçosa, sobrevivendo no calor do Maranhão: “Com ela assim resistente e livre/ vejo que nem tudo tem de ser como era ou como está na vastidão do meu quintal: espaço onde deixo asas e penas e saio sequestrada de mim”. 88
CONFISSÃO E DESLUMBRAMENTO
Deborah Brennand:
Em meio a essas modernas, femininas vozes, Deborah. Falando de amor, do eu, e com aquele questionamento dos antigos filósofos ante o espetáculo do mundo e dos seres: afinal, que são as coisas? Quando Deborah consentiu em se deixar publicar, Daniel Lima comentou o modo como a poetisa transmitia ao leitor um “mundo feito de tempo, de solidão, de amor, de ausências e presenças”, mundo de todos, mas que só a força da linguagem poética podia tornar “exclusivo de cada um”. E assinalava o modo como a poesia de Deborah apontava para as raízes do ser, reinventando a vida em “seus sonhos, os seus possíveis e, sobretudo, os seus impossíveis”, servindo–se de uma linguagem situada para além do pensamento e que se perdia e se salvava “em voos de símbolos nas regiões do mistério.”
Deborah Brennand.
Voos de símbolos nas regiões do mistério. Talvez seja essa a mais precisa definição da poesia dessa mulher nascida em cidadezinha do interior, que frequentou o curso de Direito quando poucas moças o faziam, que se casou com um artista, acolhendo em sua casa de Paris nomes como Picabia, Léger, Derain. E que, na volta, se recolhe à pacata vida de um engenho, onde nem luz elétrica havia na época, onde sua sensibilidade se afina, no contato direto com as cores da natureza, com as matas em torno da casa, com perfumes, cores, bichos, os saguins vindo roubar frutas na fruteira antiga. E ela escreve, escreve, coloca no papel uma visão de mundo que constrói oposições, expõe sua perplexidade ante o espanto inicial diante das coisas. Oposições,
.construções antitéticas, perguntas dirigidas pela voz lírica a um tu ausente–presente ou a si própria, monólogos daquele que fala, dirigidos, entretanto, àquele que não fala. O discurso poético da poetisa nos fascina, nos intriga, nos encanta: quem é esta voz que de repente se irmana à nossa, que nos desperta para o mistério, para aspectos inusitados dos objetos, de situações, fazendo brilhar as palavras? Aqui um Eu se busca, faz do poema um espaço possível de auto–questionamento, de auto–conhecimento e reconhecimento, surpreso de sua própria existência frágil, problemática, maravilhado, em meio às coisas. Que simplesmente ocupam lugar no mundo, cumprem sua sina, não se colocando as perguntas que o sujeito lírico se coloca: “Tão leve se lustra a água / na medida exata em que os rebanhos bebem /junto às raposas sem temor selvagem. / Por que só a mim discrimina a claridade?” As coisas, existindo ao alcance do olhar do eu poético, mesmo mudas e aparentemente impassíveis, povoam o espaço circundante e emitem mensagens que nem todos são capazes de entender. A voz que as traduz, nelas encontra ora a correspondência de que necessita, a presença cúmplice da alegria de se estar vivo conjuntamente, ora a indiferença diante dos dramas íntimos que experimenta e, neste caso, elas se apresentam como o impassível teatro que descrevia Alfred de Vigny. Formam o cenário da felicidade presente ou a lembrança do passado. Mas são ricas de símbolos, remetem a significados nem sempre decifráveis, colocando interrogações, respondendo indiretamente às perguntas que lhes são propostas: “Nuvens tão brancas /assim, recordam sombras. Onde as raízes /sem rumo se unem ao húmus de asas /esquecidas do sol...” ( In Letras verdes) Nesse dizer as coisas e se dizer, Deborah nos entrega uma poesia bela, forte, sensível, dividindo conosco o momento de felicidade que proporciona ao autor, ao leitor, toda grande poesia. Obrigada, Deborah. LUZILÁ GONÇALVES FERREIRA é Romancista, professora e pesquisadora de história das mulheres.
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A ÚLTIMA VIAGEM
Rodrigo Garcia Lopes (Paraná) Pisou na praia pela primeira vez em séculos — Gaivotas o vigiavam. Olor de algas. O vento salino, ardente e Sul. Odisseu desceu da balsa murmurando alguma coisa para si num dialeto quase extinto. Arrumou os remos, poucos peixes, sob a música de um alto–falante contra um pôr de sol salmão. Depois, viu as lâmpadas frouxas piscando nas casas do povoado. Maresia de maconha alcançou suas narinas. Funk. Risadas altas. Nenhum pescador o reconheceu. Penélope nunca existira. Aquela não era sua lenda. Ítaca nunca existira. Odisseu virou–se para a praia sem história e nada disse: acendeu um cigarro e contemplou o azul escuro absurdo do mar noturno contra as linhas brancas incansáveis da arrebentação.
(de Estúdio Realidade, 7Letras, 2013)
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THE LAST JOURNEY
He stepped on the beach for the first time in ages — Seagulls watched him. Aroma of algae. The burning, saline Southern wind. Odysseus came down from the raft murmuring something to himself in an almost extinct dialect. He put up the oars, a few fish, to the music of a loudspeaker versus a salmon sunset. Afterwards, he saw the weak lights flickering in the town houses. A sea–breeze of marijuana reached his nostrils. Funk. Roaring laughter. None of the fishermen recognized him. Penelope had never existed. That was not his legend. Ithaca had never existed. Odysseus turned to the beach without history and said nothing: he lit a cigarette and contemplated the absurd dark blue of the nocturnal sea versus the untiring white lines of the breaking of the waves.
(from Estúdio Realidade, 2013, translated by Marco Alexandre de Oliveira)
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MANASOTA KEY Nas páginas do mar pelicanos em linha escrevem as sombras de seus peitos ao quase tocarem uma onda. O sol rascunha rubros bilhetes de despedida, toda tarde. Golfinhos, suas barbatanas relatam os rudes caminhos pela pradaria das baleias. Mergulhões redigem sua escrita kamikaze, suicida, invisível por instantes. Nas páginas da areia (cujas conchas são suas obras completas) fósseis negros de dentes de tubarão escrevem a autobiografia de dois milhões de anos. Rastro de guaxinim, seu romance de aventura da duna à estrada. Um siri deixa sua assinatura sobre marcas de pneus de um SUV. Garrafa com uma mensagem, um pen drive com a história de um naufrágio. Nas páginas do céu nuvens ancestrais e sempre–novas relatam suas viagens sobre o mundo, infinitas. Furacões emplacam best–sellers sobre o Golfo do México enquanto folhas de outono caligrafam no ar ideogramas precisos, memórias do vento. Satélites traçam haicais de luz. A lua amarelo–limão descreve seu brilho solene sobre as palmeiras da Flórida. Eu não escrevo nada.
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MANASOTA KEY In the pages of the sea pelicans in line write the shadows of their breasts almost touching a wave. The sun drafts its ruby–red farewell notes, every sunset. Dolphins, their fins tell the sea’s rough ways over the prairie of the whales. Cormorants register their kamikaze writing, suicidal, invisible for instants. In the pages of the sand (whose shells are its collected works) black fossiles of shark’s teeth write the autobiography of two million years. Tracks of a raccoon write its adventure novel from the dune to the road. A crab leaves its signature over the tracks of an SUV tire. Bottle with a message, a thumb drive with the history of a wreck. In the pages of the sky Ancestral clouds and supernovas describe their travels over the world, infinite. Hurricanes hit best sellers Over the Gulf of Mexico while autumn leaves calligraph in the air precise ideograms, the wind’s memoir. Satellites trace haikus of light. The lemon–yellow moon describes its solemn shine Over Florida palm trees. I don’t write anything. (from Estúdio Realidade, 2013, translated by the author)
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O encanto do
“EMCANTO E POESIA” Texto HAIDÉE CAMELO FONSECA
Teatro Santa Isabel, 11 de setembro de 2014. Está bem perto de fazer um mês e as imagens ainda pulsam dentro de mim. A emoção não conhece limites de tempo ou de espaço. É mesmo atemporal e transcendental. Estava sufocada, preparando imagens para ilustrar o trabalho que apresentaria no Congresso Internacional de Semiótica na Universidade Federal da Paraíba. Não podia fazer feio. Na mesma noite, a Editora Bagaço, uma das minhas mais queridas casas, estava fazendo um lançamento coletivo na Academia Pernambucana de Letras. Havia um texto meu sendo publicado em homenagem à grande Luzilá Ferreira. Eu teria que ir lá também. E teria que cumprir as obrigações com o Projeto de Cultura na Universidade Católica. Teria ainda que terminar a revisão de um texto, com bastante urgência. Mas também não queria deixar de ver os meninos de Bia Marinho, no lançamento do seu CD “EM CANTO E POESIA” e gravação do DVD. O que fazer para conciliar tanta coisa? Nem sempre dá. Até tento, mas sempre esbarro na impertinência do relógio e na impossibilidade de ser mais de uma, presa nos limites do meu corpo. Mas preciso contar um pouco do que testemunhei naquela noite. Não preciso fazer esforço 94
de memória. Está tudo em mim. Por isso, atualizo na gramática o que já é permanentemente atualizado na alma e passo agora a empregar os verbos no presente. Deixo a Universidade um pouco mais cedo. Chego ao Santa Isabel antes das 18h para apanhar meu ingresso. Já encontro uma fila enorme. Parece que todo mundo teve a mesma ideia e marcou encontro no mesmo lugar. Tenho que esperar quase duas horas. Dá tempo de dar um pulo na Academia. Quero ver aquela gente amada, quero comprar alguns livros que estão sendo lançados. Resolvo deixar meu carro onde está, para não perder a vaga, e procuro um táxi. O motorista é sincero: “A senhora me perdoe, mas o engarrafamento está grande demais. Vou levar a senhora lá não”. Bom... fazer o quê? Ando pelo centro da cidade. Tomo uma sopa. Volto para o teatro. Aqui, ali, acolá, rostos conhecidos. Falta mais de uma hora. Sento no chão e adianto um trabalho de revisão. Esse eu faço em qualquer canto. A moça que me empresta a caneta vai embora sem levá–la. Gosto disso não. Queria saber quem foi pra devolver. Por que é que todo mundo fica com a caneta dos outros? Tenho medo de que o espetáculo não comece na hora. Estou cansada. Meu dia começa às cinco
da manhã. Mas os meninos são respeitosos e pontuais. Abrem–se as portas. Entramos. Tomamos lugar. A apresentação feita pela tia dos meninos, Maria Helena, é um indício do que seria a festa: uma grande comunhão de família e amigos. Os músicos tomam seu lugar: Luizinho, Guilherme Eiras, Bráulio Araújo, Nego Henrique, Jonathan , Arthur Batera... Ouve–se a voz de Louro. O eterno é convidado, o passado se faz presente e o milagre acontece. O sertão aporta no Santa Isabel e toma o lugar de honra. O palco se ilumina... não com essas lâmpadas ou refletores à base de energia elétrica, mas com a vida que explode nas vozes, nos corpos, nas expressões faciais, no movimento das mãos. Os meninos cantam a canção do tempo e o tempo se dissolve. Ele não existe. Ouvem–se outras vozes dos que não estão e de repente estão, lembrando a cada um de nós que a morte não existe. A vida é uma correnteza contínua. Os que cruzaram o mistério da fronteira vão– se unindo aos do lado de cá: Otacílio, Manoel Xudu e Job patriota. De tão parecidas, confundem–se as vozes de Antônio Marinho e Zeto. Os avós, os bisavós, os pais, os filhos, os netos e os bisnetos. Não há barreiras. As vozes graves dos mais velhos fazem um contraponto à aguda voz da menina Helena, filha de Greg, que dá o seu recado, declamando um pequeno poema, e foge do palco, correndo. Linda! O violão e a voz de Greg casam com a suavidade veludosa
da voz de Antônio Marinho e com a força de sua interpretação. Antônio parece não caber dentro de si. A alma extrapola o corpo e se expande pelos quatro cantos do teatro. Os irmãos, mais que nunca irmanados, conscientes e orgulhosos do que são e do que representam. O pandeiro brinca nas mãos de Miguel e sua voz soa, cheia de personalidade quando interpreta “Até o fim”... Uma voz brejeira, inconfundível, entra no palco e Bia vem atrás dela. Serena, bonita, rainha... A família se reúne.... Os que ainda estão na viagem do lado de cá vão chegando... Lamartine canta com o filho. O primo Tonfil, com a voz que devem ter os anjos, faz–se porta–voz de Zeto na canção para Carmita. Os amigos também são convidados para a festa em família: Nuca e Vinícius, pai e filho; Luiz e Miguel Marcondes, irmãos, vates talentosos da viola, e mais: Deco do Trombone, Lirinha, Thales, Nõe de Job, Graça Nascimento... O público proporciona um espetáculo à parte. A maioria é jovem, vibrante, emocionado... E canta junto... Há momentos em que se ouve uma só voz... Todos cantam... Em cada rosto, uma expressão de alegria, aprovando o que acontece. Alguns não se contêm. Ficam de pé e dançam. E já no fim do espetáculo, a visão um tanto quanto surrealista: uma viola desce do teto ao palco, soberana. É a mesma que Louro recebeu, em 1987, das mãos de Ariano Suassuna. Foi um presente do Governo Miguel Arraes —aquele que valorizava a cultura popular e sabia da sua importância—no Congresso de Violeiros. Símbolo de uma história que não acaba. Festa para os ouvidos, para os olhos, para a alma. Sonho? Há mesmo coisas na vida que o dinheiro jamais vai conseguir comprar. Os meninos pajeuzeiros e o grupo imenso que a eles se juntou. Ninguém brilha sozinho. Tudo é coletivo e todos saem enriquecidos com a lição de arte e de vida. Que Deus os abençoe! 95
Nudez MÁRIO HÉLIO isso que se diz da terra nua vale melhor dizer–se que é ela, tendo, porém, sempre algo de lua, pois quer a luz do sol, e é mais bela ao despir–se do que não é sua, vestida só de ondas se desvela: branca praia que é, ou são duas: uma é onde dela vê—vê–se—estela; a outra é ela, a outra que na rua ninguém conhece talvez, mas vê–la leva a pensar na praia–mar–vela tão viva assim como a luz mais crua que é sem dono, um modo de dizê–la isso que se diz da terra nua
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O TROVADOR ROMANCE POLICIAL DE RODRIGO GARCIA LOPES
U
ma enigmática palavra provençal está no centro deste brilhante romance de estreia de Rodrigo Garcia Lopes. Encontrada na boca de uma vítima de uma série de assassinatos no sul do Brasil, a palavra rabiscada na tira de papel também constava em um estranho poema enviado a Eduardo VIII, rei da Inglaterra. A missão de investigar a ligação entre poesia e crime caberá a Adam Blake, tradutor–intérprete enviado ao local de origem da carta: uma empresa loteadora britânica que opera no norte do Paraná. Conduzido a Londrina pelas mãos de lorde Lovat, sócio de sua majestade nas terras mantidas pela Parana Plantations Limited, sob auspícios do inspetor Hugh Sinclair e de Sir Winston Churchill em pessoa, o diligente Sr. Blake se depara com uma cidade onde imigrantes japoneses, russos, alemães, espanhóis e britânicos se digladiam pela sobrevivência. Além da mistura de Babel, eldorado e faroeste representada por Londrina no início de sua exploração cafeeira e madeireira em 1936—o cenário importa tanto a esta trama quanto seus personagens—, Blake também encontra um enigma solucionável somente por alguém com pendores filológicos.
Texto JOCA REINERS TERRON
De início, parece que a narrativa gira em torno apenas de um aparente homicídio, decorrente de triângulo amoroso entre funcionários da companhia. A investigação avança até desvelar a identidade do impiedoso assassino denominado “O Trovador”. Quem seria ele? E por que uma pessoa com talento para a linguagem apelaria ao assassinato como uma das belas–artes? Tudo é surpreendente neste romance: da exatidão, ao aplicar as regras do policial norte–americano e inglês dos anos 30, à sua rigorosa pesquisa histórica. Nada supera, porém, o acerto do autor na criação de seu detetive: assim como Adam Blake, Rodrigo Garcia Lopes é um exímio poeta e tradutor. Subvertendo a máxima “tradutor, traidor”, esta narrativa entrega tudo ao leitor, menos traição. Adam Blake veio ao Brasil para ficar. 97
ARIANO
SUASSUNA mescla gêneros literários em sua obra Texto PALOMA RODRIGUES
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m O Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai–e–Volta, Ariano Suassuna trabalhou, de forma inovadora e brasileira, dois gêneros espanhóis: o de cavalaria e o picaresco. O romance se insere no contexto do sertão nordestino, permeando os dois gêneros literários com essa temática. Suassuna ainda constrói um protagonista que é um típico sertanejo, mas que apresenta as características do cavaleiro e do pícaro ao mesmo tempo. “O protagonista é uma resposta bem brasileira ao herói e ao anti–herói. Ele não trata da dualidade humana, como o romance realista, mas unifica estes dois extremos de uma maneira paradoxal”, diz a professora Maria Inês Pinheiro Cardoso, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, onde apresentou a tese “Cavalaria e picaresca no romance D’ A Pedra do Reino de Ariano Suassuna”. O trabalho teve a orientação do professor Mario Miguel González, do Departamento de Letras Modernas. O romance se inicia na década de 1930, na Paraíba. A narrativa, construída de forma não linear, usa o recurso dos flash–backs para retornar aos acontecimentos que culminaram no episódio do massacre de Pedra Bonita, interior da Paraíba, no século XIX . Esse massacre envolvia crenças milenares, vinculadas ao sebastianismo — o desejo do povo português de que seu rei, Dom Sebastião, retornasse para governar o país. Muitos festejos e celebrações populares aparecem na trama do romance de Suassuna, como a Cavalgada da Pedra do Reino. “Eu cresci assistindo festas de dias de rei, as procissões, as missas. A nossa vida cultural aqui no nordeste está muito pautada pelo calendário religioso”, diz Maria Inês, que é de Fortaleza, no Ceará. No ponto de partida da narrativa, o protagonista–narrador Quaderna está preso na cidade de Taperoá por motivos que não ficam muito claros. Ele se encarrega de sua própria defesa. Durante sua narrativa, invoca fatos do passado, ludibria os outros personagens e o próprio leitor.
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DESENHO: MATHEUS ARRUDA
O “Romance da Pedra do Reino” se aproxima dos gêneros ibéricos em seu aspecto formal e temático. Os romances de cavalaria são de origem medieval e constroem histórias de cavaleiros nobres e cheio de conduta. Eles se pautam pelo respeito às suas damas, mantendo–as idealizadas. A forma como o romance é construído se aproxima muito da forma que Suassuna utiliza em “A Pedra do Reino”, pois os desenrolares das tramas são semelhantes. Os pícaros são personagens com características da malandragem, desrespeitadores dos bons costumes e dos bens alheios. Suas ações estão no contexto de uma realidade sofrida, na qual ele luta para sobreviver da maneira que podem. Como diria Maria Inês, “praticando pequenas malvadezas”. Quaderna tem um tanto de pícaro, mas Suassuna o constrói de maneira a lhe dar uma identidade sertaneja. Ele é um típico nordestino, que luta para sobreviver na realidade de sua região. A picaresca fica evidente quando Quaderna começa a narrar sua história. “A aproximação se evidencia ainda mais pelo livro ser uma pseudo–autobiografia. Na verdade, o próprio Suassuna assume uma atitude picaresca e nos confunde ao criar um personagem que não deixa de ser um alter–ego seu”. Suassuna criou um personagem que não é apenas verossímil, como os protagonistas do romance moderno. Ele não mistura atos bons e ruins. “Ele eventualmente tem uma postura bastante condenável do ponto de vista ético e moral, mas por outro lado mascara isso por meio de suas picardias, que não chegam a ser grandes malvadezas”, diz Maria Inês. A dualidade humana não é enfatizada, mas transformada em um tipo também. O Quaderna é um personagem muito peculiar por sempre estar em diálogo com a questão do bem e do mal. Existe nele uma postura de simulação heroica, condição que ele almeja. Contudo, permanece claro que esta não é a sua verdadeira essência. Ele faz as coisas de tal maneira que não tenta enganar
apenas os personagens, mas também o leitor. Ao mesmo tempo em que o pícaro comete pequenas peripécias que colocam em prova o seu caráter, ele se redime, buscando sempre ajudar o povo pobre e sofrido. “A versão sertaneja do pícaro, os personagens de cordel ou da tradição oral, como João Grilo e Pedro Malazarte, nunca vão atuar contra os oprimidos, mas contra os repressores. Isso os envolve em um certo sentido de justiça que lhes garante serem conhecidos por sua valentia.” As ações que ele desenvolve ao longo da trama lhe dão certa autonomia. “O Quaderna é uma paródia de Suassuna, uma brincadeira com o romance do herói”, coloca. Suassuna e Quaderna criam um vínculo muito forte que é passado para o leitor. “Podemos associar Suassuna e Quaderna a Cervantes e Dom Quixote, tamanha é sua identificação”, compara Maria Inês. Os dois gêneros, da cavalaria e picaresca, são muito bem entrelaçados por Suassuna, que ainda acresce um contexto histórico regional nordestino. Isso lhe permite criar uma proposta literária inteiramente nova. Para Maria Inês, Suassuna entende que o nordeste precisa ser retratado de uma maneira diferente daquela da literatura regionalista da década de 1930, com obras de Guimarães Rosa e José Lins do Rego, por exemplo. “Eu acho que ele entende que não pode escrever um livro de cavalaria. Ainda que o nordeste remeta a esse ambiente, ele não pode mais fazer isso, pois aquilo não faz sentido no contexto daquele lugar ou em qualquer outro lugar da contemporaneidade”, explica. Suassuna desconstrói o gênero da cavalaria e da picaresca e as traz para o nordeste para se afirmar como escritor que não é alienado, que tem familiaridade com tudo aquilo. “Ele é crítico a ponto de criar todo um cenário que remete às narrativas ibéricas e depois diz que é tudo uma brincadeira. Ele passa a mostrar a verdade sobre a realidade nordestina, por meio de Quaderna, o pícaro que vive na pele tudo isso”. 99
AGOSTO Texto JAMILSA MELO
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E
stava na época de mangas e rio alto. O sol estalava a terra e cintilava no breu das águas. Ela ainda não se secara da tempestade da noite anterior. Quase não havia se mexido. Imóvel, via o pescador com sua tarrafinha torrar ao sol. O pescador era muito jovem, assim como sua observadora. E jovem assim, ele já tinha duas filhas pequenas e uma mulher abatida e debilitada do último parto. Sem peixe na rede para vender, tentou salvar o almoço na linha. Se nem assim conseguisse, na volta para casa, bateria palmas no portão da mãe e mais uma vez pediria uns ovos. O rapaz era órfão de pai desde os cinco anos, talvez desde a morte de seu progenitor, tenha pescado todos os dias de sua vida. Era o sexto de oito irmãos e, antes dos vinte anos, tinha dez sobrinhos, dois também órfãos de pai e um órfão de mãe. Esses três moravam na casa da avó, mãe do pescador. Uma senhora de idade avançada e costas protuberantes, que medicava filhos e netos com ervas e plantas, e andava com um cabo de vassoura que fazia de cajado. Cultivava flores, criava galinhas e tinha muitas árvores frutíferas, variedades para dar o ano inteiro. O que muitas vezes faltava era o que precisava comprar: o óleo, o açúcar, o arroz, o feijão. Farinha tinha sempre. Pensava nos gestos de fibra de sua velha mãe, quando sentiu a canoinha ondular com um banzeiro feroz e repentino. Era o rio Negro temperamental e as embaúbas em suas coreografias. Nem cogitou em deixar a pequena embarcação durante o vendaval, estava bem próximo à margem e não havia risco. Em pouco tempo, tudo era só parado e quente outra vez. Decidiu, então, que não iria pedir comida à mãe e só voltaria para casa com pelo menos meia dúzia de jaraqui para dividir com ela. Afundou–se no rio com se fosse uma perna– manca, havia de se molhar para aguentar mais umas horas de sol. Voltou para a canoinha e espetou tucumã no anzol. Um boto–tucuxi mostrou o dorso, lá no meio do rio e o primeiro peixe mordeu a isca. Depressa repôs o tucumã. Sentiu que a sorte tinha mudado e escutou um cardume próximo. Passada quase toda a manhã, o pescador não sabia que, camuflada na mangueira, alguém o observava. Era só uma outra criatura de Deus, que também tinha seus problemas e que também havia saído para buscar comida para os filhos que dependiam só dela. Aqueles filhotes eram a definição do que é ser indefeso. A mãe os deixou sós na mangueira florida e cheia de manguinhas. Eles a esperariam ali e ela voltaria logo, já cortara aquele rio–mar tantas vezes... Mas a tempestade, a maior que já enfrentara, não deixou. Aquela chuva brava quase a leva para o fundo do Negro durante a travessia. A mãezinha zelosa foi mais brava e veloz, e logo viu, de longe, a mangueira se desfolhar e sacolejar com o vento. Chegou sem comida e de repente a tempestade virou só uns pingos d’água. Os filhos não estavam na mangueira nem no horizonte que seus olhos alcançavam. Ficou ali. Veio a noite, o vazio, a luz do tempo. Naquela hora, o sol estava na exatidão do meio do céu e, de manhãzinha, ela tinha visto o homenzinho chegar e se acomodar em posição de poleiro como ela. Quando ele se molhou, ela já estava seca da tempestade e da garoa da noite. Quando ele pescou o sexto jaraqui, ela se sacudiu como quem acorda e voou. Da canoa, o pescador achou bem miúda aquela curica verdinha e estranhou estar sozinha.
JAMILSA MELO é Jornalista e escritora (Manaus)
FOTO: PAUL S. TAYLOR
Olinda, 2014.
Texto/Fotos ISOLDA DO VALLE WANDERLEY
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O VULTO VAGO DAS PESSOAS NAS RUAS
Dorothea Lange 1934.
“S
aber de antemão o que se está procurando nos faz fotografar apenas nossas próprias concepções prévias, o que é muito limitador”. Tomo as palavras de Dorothea Lange ao pé da letra. Neste ensaio, que se mostra como sendo um projeto previamente concebido para exibir cenas do cotidiano na velha rua olindense de São Bento, foi dado um corte intencional, quando aparece a foto de um grupo de pessoas, carregando (sem mais nenhum devoto ao redor) um andor sobre o qual há uma imagem da Mater Dolorosa. No momento em que observava a cena, lembrei–me do hino mais triste da Paixão, sobre “A mãe (que) permaneceu cheia de tristeza”, um dos mais pungentes hinos sacros medievais. A foto foi batida um dia antes da grande procissão da Sexta–Feira da Paixão do Senhor Jesus Cristo Salvador do Mundo e dos Homens, em 2013. O andor estava sendo levado por devotos, da Igreja de São Francisco para a Sé de Olinda. Quero dizer que o acaso desempenhou papel fundamental neste ensaio, foi um momento de pura sorte. Ao transpor do domínio da religião para o da literatura o conceito de epifania, James Joyce enriqueceu o vocabulário da crítica. “Epiphania” significa em grego “aparição, manifestação”, mas Joyce o definiu (em Stepaen Hero), mais estritamente, como “uma súbita manifestação espiritual” que, em momentos “delicados e evanescentes”, faz aflorar, “na vulgaridade da fala ou do gesto”, a essência de um ser ou situação humana, donde tais momentos devem ser registrados com “extremo cuidado”. Isto procurou ser exercitado neste ensaio fotográfico, pela delicada sutileza com que procuramos fixar vislumbres de gestos, da condição humana. Dedico este trabalho à memória de Dorothea Lange. Na história da fotografia, muitas mulheres foram pioneiras e uma das mais importantes foi a americana Dorothea Lange (1895–1965). Ela se notabilizou nos anos 1930, quando fez parte da equipe de fotógrafos da Farm Security Administration. A obra de Lange se confunde com o fotodocumentarismo social e uma de suas imagens, Mãe Migrante (1936), um ícone da Grande Depressão, sempre figura nas listas das mais importantes de todos os tempos. Lange era filha de imigrantes alemães e nasceu em Nova York. Nos anos 1920, tinha um estúdio em São Francisco e uma vida estabilizada com marido e filhos. Com a Grande Depressão no auge, após a quebra das bolsas de valores de Nova York, Lange trocou o estúdio pela fotografia de rua e percorreu mais de vinte estados americanos, registrando a pobreza que assolava as pequenas cidades do seu país naquela época.
A poesia de Pedro Xisto:
˜ ILUMINAÇAO DA PALAVRA
E
Texto ZULEIDE DUARTE
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m meios às discussões sobre cânones e antologias, perdem–se ocasiões preciosas de conhecimento e descoberta de grandes expressões da literatura. Em busca de canônicos e louvados, põem–se à margem talentos quiçá indispensáveis para uma compreensão mais alargada do cenário artístico e cultural.
A discussão sobre a poesia concreta, concretismo, hai–kus e diálogo com o Oriente e as vanguardas na arte brasileira em geral e na poesia em particular, não poderá jamais ignorar os seus três grandes representantes: Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari. Correto, corretíssimo. Se, por outro lado, o assunto recair sobre as disputas intelectuais veiculadas por revistas representativas dessa e d’outras vertentes, nomeiam–se Noigandres e Clima, polarizadoras das discussões artísticas em bom lapso de tempo no século XX. Compartimentadas, a poesia e a crítica literária no Brasil estavam representadas tanto em uma revista como na outra, congregando áulicos de diversos credos. Correto, mas incompleto. A particularização levará mais rapidamente ao ponto nodal deste texto.
retícula: nuvem chuviscos riscam crepúsculo gotículas luzem (Pedro Xisto)
explorado. Entre os muitos ‘esquecidos’, ou melhor dizendo, desconhecidos por expressivo número de estudiosos, está o poeta pernambucano Pedro Xisto. Natural de Limoeiro, Xisto nasceu em 1901 e cedo transferiu–se para o Recife, onde estudou Direito, curso que lhe permitiu o acesso à carreira diplomática pela Europa, Ásia e Américas. Nesses cenários, divulgou a poesia de vanguarda brasileira sob o duplo estatuto de criador e crítico. Admirador e cultor do hai–kai (hai–ku), solidificou e aprimorou sua técnica com a proximidade da arte de Bashô. O Japão alimentou a perícia e o acendrado talento para a forma sintética admiravelmente realizada nos “logogramas,” como, por analogia com os ideogramas japoneses, preferia denominar sua incontornável produção poético–visual.
Dominando os diversos gêneros discursivos, Xisto foi, ao mesmo tempo, criador e teórico, fazendo jus à posição de autor–crítico analisado Por Leyla Perrone–Moisés em “Altas Literaturas”. Participou, como articulista, de revistas literárias em Portugal, no Japão e no Canadá, tendo oportunidade de publicar seus poemas nesses cenários distanciados do Brasil, onde se colocava no grupo independente de poetas concretistas. Muitos autores brasileiros Participando de eventos vários, Xisto produziram à margem, deixando notá- teve a oportunidade de divulgar no vel legado literário que precisa ser mundo a poesia produzida no Brasil.
Não é possível falar de poesia visual sem uma alentada referência à obra do autor pernambucano. Seus textos figuram em antologias no Brasil e no exterior. A indiscutível importância do escritor alinha–o aos nomes mais representativos das vanguardas no Brasil. Mas... Nem só de poesia visual alimentou–se a musa de Pedro Xisto. Autor de bem cultivados sonetos, ele demonstrou intimidade com o reino da palavra, ao qual associou, com maestria, as imagens em perfeita simbiose, revelando “saber, engenho e arte, como pregou Camões. P o e m a s c o m o “A s a ”, “Epithalamium II” e “Infinito”, abaixo apresentados, figuram como o que de melhor se pode apresentar da poesia concretista. Sem explicações, as imagens e as palavras falam por si. Os poemas de Pedro Xisto falam à emoção e ao intelecto, lembrando as coisas simples, convidando o leitor a partilhar a solidão, o silêncio e a luta renhida que o poeta trava com a palavra, à moda do bardo Drummond, batalha reiniciada a cada dia. Guerra interminável, plasmada em textos e imagens a um tempo suaves e contundentes, estabelecendo um diálogo íntimo verbovisual de rara sensibilidade. Natural e espontânea, a poesia de Xisto explode como o feto já maduro rasga as entranhas da vida: ato cruento, solitário, eivado de imagens inusitadas. O processo transfigurador dos poemas de Pedro Xisto é de tal modo arraigado à sua forma de ser que torna os rótulos e esquemas com que ordinariamente se abordam os textos pobres
e inadequados. Seus poemas resultam da colheita incansável de cada fonema, cada palavra, cada emoção, cada olhar. Material pensado em expressões carregadas da plenitude metafórica que é o cosmos do poeta. Trabalho de inventiva especial, vez que a matéria–prima é a própria sensibilidade do criador. Como crítico de poesia, Xisto escreveu quatro artigos seminais sobre a poesia concreta, enfeixados sob o título de Poesia em Situação e publicado em livro em 1960 pelo grupo concreto do Ceará, de acordo com L. C. Vinholes. Em 2006, Bruno Bertrandis de Carvalho publicou As águas glaucas, a mais expressiva coletânea da obra de Xisto, conforme assegura A. Miranda. Em 2008, saiu a coletânea de haicais Lumes pela mesma editora. A Bertrandis já publicara, em 1970, o título Caminho. Apesar da publicação relativamente recente, os livros do autor não aparecem facilmente no mercado. Lamentar apenas seria muito pouco. Instigar o desejo no leitor e picar editoras e editores talvez resulte no fim dessa incompreensível sonegação de tão valioso bem cultural. Fica a palavra do poeta: Haicai ao lado da lua neste pinheiro vetusto uma ave noturna abro após as sombras de par em par as vidraças alçam voo as pombas. 105
O SEMPRE MODERNO Texto JOSÉ LUIZ MOTA MENEZES
D
iariamente, um bom número de pessoas passa diante do prédio. Alguns sabem que é a sede do Instituto dos Arquitetos do Brasil em Pernambuco. Praticamente, ninguém—salvo alguns arquitetos—tem esse conhecimento. Com a atualidade das suas linhas arquitetônicas, apesar de a edificação ter setenta e oito anos, o Instituto pode se orgulhar de ser uma obra pioneira no Estado de Pernambuco das novas ideias do fazer arquitetura. Esta circunstância se deve a um grupo de profissionais da arquitetura e da engenharia que entendiam desse fazer arquitetura e estavam atualizados sobre as novas correntes mundiais, e simplesmente não repetiram no estado, da maneira como se faz hoje, sem nenhum entendimento ou adaptação da filosofia dessa nova arquitetura e engenharia. Um modo de ver capaz de materializar ideias sem ser delas mero copista ou repetidor de formas e composições.
tomamos esse edifício como primeiro objeto de uma possível série de crítica da arquitetura a ser publicada nas páginas da Revista Art Fliporto. O edifício atendeu, na época de seu projeto e execução, a um programa vinculado à verificação de óbitos. Sua proximidade com a faculdade de Medicina era, na ocasião, necessária. Seu projeto seguiu as diretrizes racionalistas não somente do arquiteto Le Corbusier, mas refletiu o modo de projetar dos arquitetos italianos. Sobre um deles, teceremos considerações, uma vez que do outro um bom número de páginas foram escritas.
O conhecimento da obra do italiano Giuseppe Terragni, acreditamos tenha vindo para o Rio de Janeiro talvez por meio de Lúcio Costa. Nascido em 1904, graduou–se em arquitetura no ano de 1926. Quando a Itália entrou na guerra, ele foi recrutado e em 1943 morreu, depois de ser repatriado em péssimo estado de saúde. Sua obra era conhecida desde uma exposição em Roma, no ano de 1928, e outra em Milão no ano seguinte. Por tal atualidade e pela sua importância, A atualidade da sede do IAB corresponde ao
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melhor momento de Terragni. Basta ver a obra desse arquiteto para, somente visualmente, se perceber o quanto ele foi importante para o autor principal da sede. O que nos parece interessante é a forma como as ideias foram materializadas, tanto no racionalista italiano quanto no nosso Luiz Nunes. Terragni, em sua atividade profissional, refletiu praticamente todas as ideologias em voga na Itália e no restante da Europa. A fase de maior interesse para a arquitetura do IAB começou com a Casa do Fascio, do ano de 1932. Neste ano, ele integra a corrente racionalista em suas obras, de enorme interesse para os alunos de arquitetura da Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro onde, em 1931, teve grande papel o arquiteto Lúcio Costa. A Casa Fascio, em Como, Itália, contém em sua composição ideias de fontes diversas, inclusive a derivada da Bauhaus alemã. São as linhas Neoplásticas as mais acentuadas na composição. Grandes planos fechados e partes abertas, em equilíbrio harmônico dos cheios e vazios. Terragni não emprega pilotis e a arquitetura da
casa assenta sobre o nível do solo. A Casa Fascio, assim como outras, são prismas perfeitos, sendo essa de planta quadrada com altura que corresponde à metade do comprimento. O não uso dos pilotis encontra eco em Pernambuco na obra do prédio que atualmente abriga a sede do IAB, projetado em 1937 para o Departamento de Verificação de Óbito. Nunes, assim como o italiano, se desvencilhou da influência do arquiteto francês. A superfície plana do IAB é marcada por um desenho riscado em quadros, de forma idêntica ao que faz a gente de Nunes, com ele ou, em tempo adiante, sem ele. Em 1933, para a Casa do Artista, Terragni projeta um edifício com dois pavimentos e se nós confrontarmos a sede do IAB com esse projeto, podemos verificar o quanto de identidade existe entre este racionalista italiano e nosso arquiteto mineiro. Não há cópia e sim uma leitura comum e bem realizada, com conhecimento de causa e sem a intenção de copiar, por parte do arquiteto do IAB. O interessante nessa nossa argumentação 107
é ter em vista ser a obra do IAB de um moderno permanente, isto por causa, entre outras, de se fundamentar em uma teoria da arquitetura que o arquiteto dominava e, por isso mesmo, transmitia, com igual força, aos demais de sua equipe.
pavimento superior. Um terraço se destinaria a outras atividades. Na parte restante do terreno, por detrás da Faculdade de Medicina, estava a sala de exame dos corpos com suas mesas apropriadas a tal trabalho.
Ainda numa visualização da obra de Terragni, O projeto era um dos que a Direção da vemos o uso de colunas soltas da fachada. A Arquitetura e Construção—DAU—estava mesma maneira de compor dessa Casa junto desenvolvendo dentro de uma sistemática absoao Lago, datada de 1936, empregou Nunes na lutamente nova nas Obras Públicas. A ideia sede do IAB em uma situação que o coloca à central da DAU era tratar os edifícios públicos altura do italiano. Ambos são capazes de unir com o que de mais moderno existia em termos as tendências de Mies van de Rohe e de Le de arquitetura e construção no mundo. Ideia Corbusier, com total independência de valor um tanto ambiciosa, mas cumprida ao modo de arquitetônico. É na mesma data que assim faz um estado orgulhoso de sua posição no Brasil. Nunes no Recife. Atualidade conceitual não desprezível ao se verificar a diferença de compor Adotando na composição arquitetônica a razão entre os dois projetos, o dessa casa e o do IAB. e um modo de construir que mantém uma interface com a modernidade, Nunes e os demais de Como já dissemos, o projeto do IAB foi sua equipe assumem o Racionalismo Italiano e concebido no âmbito de um programa que somam a este as ideias presentes nas conhecidas visava a atender à parte administrativa do obras do francês Le Corbusier, para os projetos Departamento de Verificação de óbitos, da propostos ao Estado de Pernambuco. saúde pública. Nesse programa, haveria de se ter uma recepção com sanitários, no térreo, e No prédio de Verificação de Óbitos, duas salas administrativas e com outras funções no superfícies planas marcam as duas fachadas 108
laterais simétricas. O corpo central está dividido em dois pavimentos e um terraço. O pavimento térreo está retraído e solto do superior. Este é sustentado por colunas próximas às paredes. O pavimento superior, na fachada para a rua, é composto com o emprego de uma janela de uma fachada lateral até a outra. Emprega Nunes o mesmo feitio de janela em uso nas obras da Bauhaus. É na parte superior que a criatividade do arquiteto mineiro surpreende: o corpo central é solto das laterais e recuado. Há um equilíbrio volumétrico na composição, admirável e bem em comum com o que de melhor, senão mais bem realizado, foi e era produzido pelos racionalistas. Sendo obra de 1942, a sede do Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro, é posterior ao realizado pelo Nunes.
A Diretoria de Arquitetura e Construção— DAU—, constituída pelo governo Carlos de Lima Cavalcanti, surpreendeu até o próprio estado, que dela se livrou, por conta de suas ideias internacionais, em 1937. Nunes se demite e deixa bem claras tais ideias quando declara: (...) nossas realizações (a DAC), cheias de espírito contemporâneo. Isentas de qualquer influência individualista, que foram até agora dirigidas por um critério de absoluta honestidade profissional, capaz de conduzir a uma técnica mais evoluída, mais perfeita e, portanto, eficiente, ficarão, durante algum tempo ainda, marcando em Pernambuco uma época em que, como nos centros de grande civilização, a arquitetura é uma preocupação administrativa, uma demonstração de cultura e espírito, muita coisa de humano e social. Um modo de ver exemplar para os nossos dias, quando mais do que a arquitetura Nem sempre Nunes teve uma engenharia à altura de a cidade exige uma visão universal e voltada ao suas criações e ele teve de simular, no prédio do IAB, bem–estar social amplo, de todos igualmente e certas soluções estruturais, que o projeto apontava. não, de bem poucos. A retomada da Diretoria com a de Arquitetura e Urbanismo—DAU—, O interior é desenvolvido com o ambiente em 1937, se vinculou e materializou ideias de simétrico da recepção, ao qual sucede o lugar outro estado político e foi infeliz. da escada central e no corpo superior há uma circulação também central que dá acesso a três O Instituto dos Arquitetos do Brasil, IAB—PE, salas também simétricas. O importante nesse hoje ocupa o referido prédio de Verificação de interior são as medidas de altura e dimensões óbitos e nele fez algumas adaptações necessárias horizontais de excelente harmonia. No terraço a um uso novo. Na oportunidade, restaurou o superior, aquelas paredes laterais estão soltas, imóvel devidamente. como que marcando a cena de um palco. O volume central define o equilíbrio entre cheios A obra arquitetônica de Luiz Nunes e a maneira e vazios simetricamente. como ele diz de sua equipe são marcantes no estado de Pernambuco. Trata–se de um episódio No conjunto, é uma obra–prima permanente da histórico e mais do que nunca atual. Uma atualiarquitetura moderna no Brasil. Esta afirmação dade que faz o arquiteto e sua gente exemplos diz do coroamento de um tempo das artes e da para os novos profissionais da criação do espaço arquitetura do Recife. Tempo anunciado desde de vida de todos. Poderíamos ter começado 1925, quando Graça Aranha assim disse do futuro este setor da revista com um arquiteto do hoje. da arquitetura: uma construção de cimento armado Preferimos iniciar nossa colaboração na revista exige um estilo próprio. Repetir, com este material novo, com outro arquiteto, que está eternizado pela estilos criados para outros materiais, como o gótico, o arquitetura que fez e justamente é bem atual. renascimento e o colonial, é simplesmente ridículo e denota impotência de criar coisa nova. Nunes era fiel à mudança e conhecia bem o novo material JOSÉ LUIZ MOTA MENEZES é Arquiteto e Historiador. e suas possibilidades. 109
The Abandonment of Art
Lygia Clark no Moma NY
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Contra Relevo
LYGIA CLARK admirada nos EUA
E
m 1960, a artista brasileira Lygia Clark (1920–1988) escreveu: “Para mim, a arte só é válida no sentido ético–religioso, ligado internamente à elaboração interior do artista em seu aspecto mais profundo, o existencial. Toda a minha visão não é puramente óptica, mas está profundamente ligada à minha experiência de sentir, não apenas no sentido imediato, mas ainda mais, no sentido amplamente profundo em que não se sabe qual é a sua origem. Aquilo que uma forma pode expressar só tem um significado para mim em uma estreita relação com o seu espaço interior, do vazio–pleno de sua existência, assim como existe o nosso espaço (...). Às vezes eu acho que antes de nascermos somos como um punho fechado que abre o seu primeiro dedo quando nascemos e é aberto internamente como as pétalas de uma flor à medida que descobrimos o sentido de nossa existência, para nós, em determinado momento de tomar consciência desta
plenitude de um (tempo interior) vazio–pleno." Imagem em destaque, da proposição de Clark, “Diálogo de Mãos” (1966), de “O abandono da arte”, o excelente catálogo da grande retrospectiva em exibição no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, 10 de maio a agosto de 2014. Foi destaque de página inteira da revista Art in América (setembro de 2014). Durante os anos 1960 e 70, o panorama artístico brasileiro foi de extrema importância no campo das artes, graças ao movimento neo–concretista, do qual Lygia Clark tornou–se uma figura de relevo. A retrospectiva realizada de maio a agosto de 2014, no MoMa (NY) representa uma oportunidade singular para conhecimento da arte dessa brasileira de Belo Horizonte, na América do Norte, e examina tudo numa grande síntese bem resolvida, destacadamente os seus esforços em pintura e escultura para sua chegada ao conceptualismo. 111
Dois fragmentos do livro (inédito) de Andrea Nunes:
ALQUIMIA A morte de um enigmático boticário francês numa pacata cidade de interior do Nordeste brasileiro desencadeia uma sucessão de outros crimes aparentemente provocados por assombrações do folclore brasileiro, levando a população local a um estado de histeria coletiva. Para resolver tais crimes, a jovem delegada da cidade precisa superar as desavenças que cultiva com seu irmão de criação, um famoso historiador que renega o parentesco e as origens. Juntos, eles vão descobrindo que as mortes parecem na verdade ser apenas fachada para encobrir avançados estudos de alquimia que podem envolver valiosos segredos. Em busca de pistas acerca dos crimes e de um livro secreto deixado pelo boticário, a delegada e o historiador percorrem desde os sebos do Recife Antigo aos sofisticados ambientes de Paris. Entretanto , eles estão sob a mira da mais poderosa sociedade secreta do mundo, que parece tentar impedir a todo custo que a verdade venha à tona, e o menor erro pode ser fatal.
Num romance policial eletrizante, Andrea Nunes utiliza informações verídicas sobre o mais ousado projeto científico da humanidade, e faz uma surpreendente correlação do tema com antigos mistérios da magia hermética e seus reflexos em tradições do folclore popular. (O Editor)
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O
perfume da morte estava ali. Michel aguçou seus sentidos como uma presa farejando o perigo. Ele estava embrenhado na mata escura, guiado apenas pelos seus instintos, tentando não ser apanhado pelos inimigos. Mas eles estavam muito perto, e ele podia sentir isso agora.
Quando imaginara esse inevitável confronto, há algumas semanas, havia considerado várias possibilidades de despistá–los ali, mas fugir não era a solução. Eles iriam atrás dele até o inferno, se fosse preciso. Enfrentá–los também seria uma insanidade, eles certamente estavam muito bem armados, eram treinados e letalmente perigosos. Pensou no seu segredo, e no quanto lutara para descobrir aquilo: a pesquisa de toda uma vida, a descoberta que atraíra seus assassinos para aquele local, a fim de roubar–lhe tudo, impedir que seu conhecimento prevalecesse.
Abraçou o próprio corpo, tremendo. Será que teria de pagar um preço tão caro por seu achado? Ouviu passos determinados se aproximarem, e seu olfato sofisticado sentiu mais uma vez o cheiro do suor dos predadores no seu encalço. Ele tentou ignorar a dor que latejava em seu corpo, por conta das mãos e joelhos e esfolados, e então se encolheu sob um arbusto no canto mais escuro que encontrou, obrigando a si mesmo a afastar o medo. Não havia motivo para se angustiar, refletiu. O segredo agora estava guardado em um lugar muito seguro. Quando ele suspeitara da visita dos algozes, sabia que não poderia se proteger daquela busca, mas felizmente teve tempo de esconder as informações de modo que aqueles brutamontes jamais suspeitassem onde encontrá–la. Eles não iriam conseguir. Ninguém o faria falar. As botas de estilo militar então surgiram em seu campo de visão, e Michel levantou–se, encarando com uma determinação surpreendente os três corpulentos homens que marchavam em sua direção. Reconheceu imediatamente as boinas e o estilo das roupas. Eles eram da tropa assassina dos homens–caveira[1]. Preparados para matar. O braço armado da organização secreta mais poderosa do mundo. Faria, afinal, o que tinha de ser feito. Ele era um homem disciplinado. Quando, há muitos anos, percebeu que era um predestinado para mudar a História, soube também , instintivamente, que despertaria ódio, cobiça e inveja. E que teria de fazer grandes sacrifícios. Respirou fundo e levantou os braços dentro da túnica branca que estava usando, agora suja e rasgada por conta da trilha rastejante que fizera até ali pela mata. Mas aquele gesto estava longe de ser uma rendição. Atrás dele, somente uma lua crescente destacava os contornos de sua silhueta fantasmagórica. O 113
piado de uma coruja no alto de um visgueiro quebrou o silêncio. Michel sorriu, enquanto observava a expressão intrigada dos seus perseguidores que agora procuravam cercá–lo com cautela redobrada. —Sim, eu nesse momento já sou um fantasma—ele ouviu a si mesmo dizer.—Mas quem assombrará vocês pelo resto da vida será minha descoberta, que não morre comigo, e se perpetuará para dar ao mundo a luz que vocês tanto odeiam! Adieu! Ele saltou do morro de braços bem abertos, as mangas da túnica frouxa se agitando ao vento, como uma ave migratória que inicia um voo para terras longínquas. Se atirou na direção das águas escuras do rio que serpenteava dezenas de metros abaixo dali. Atrás dele ficaram apenas três soldados estupefatos, postados à beira do pico rochoso, acompanhando a trajetória descendente do corpo que afundou tragado pela fúria das águas. [1] Os homens–caveira, ou bonesman, são integrantes de uma organização secreta verídica denominada skull and bones, com sede nos Estados Unidos.
Após fazerem os pedidos e verem o atendente se afastar com a comanda, Pedro inclinou–se para frente com um brilho no olhar: —O que você acha das coisas que ouvimos hoje? Ela brincou com os canudos sobre a mesa, reflexiva. —Acho que essa história sobre Jean Pierre foi muito interessante, pode ser um lugar para começar a investigar. A informação de que havia pessoas atrás de Michel para matá–lo também é muito reveladora. Vai tornar muito improvável a hipótese de morte acidental. Pedro retirou o chapéu panamá e o colocou sobre a mesa, passando as mãos sobre os cabelos num gesto ligeiro, deixando–os levemente despenteados. Alexandra engoliu em seco sem perceber, desejando que o caldo de cana chegasse logo. Ela se deu conta de repente que estava quente demais ali. —Esse caso todo está muito interessante—ele analisou.—A princípio, confesso que a única coisa que me atraiu foi a possibilidade de alguém ter se aproveitado da morte desse infeliz para simular o afogamento conforme a lenda da mãe d´água. Não necessariamente um assassino, você compreende, mas alguém que tivesse interesse em evocar essa lenda. Alguém que pudesse pegar um corpo de um afogado qualquer e inserir o pente dourado, e espalhar boatos sobre a aparição da moça cantando no leito do rio. Como você sabe, o Folclore é um dos meus principais objetos de estudo, e fiquei muito curioso em entender porquê alguém manipularia uma morte para dar tal aparência. O objetivo da pessoa, sabe? Mas agora, há mais coisas em jogo: um livro misterioso escondido “à moda dos antigos”, seja lá o que diabos Michel quis dizer com isso, e mais umas coisinhas que eu não quis dizer na frente do padre. 114
Ela também se inclinou para frente. —O quê? O atendente chegou com dois copos de caldo cana cheios de cubos de gelo, e um pão doce cujo cheiro inundou o ambiente. Quando se viram sozinhos de novo, Pedro continuou: —O nosso defunto, ao que tudo indica, era um iniciado em alquimia. Não do modo que eu pensei inicialmente. Não apenas pela ligação que o símbolo do quadro V.I.T.R.I.O.L. teria com as origens de sua profissão. Alexandra colocou os canudos no copo e tomou o caldo de cana em goles rápidos, a expressão de incredulidade estampada no rosto: —Um alquimista aqui em Mangueirinhas?! Ele fez um gesto evasivo: —Não há evidências de que a antiga da arte da alquimia ainda seja praticada nos dias de hoje, mas também não há garantias de que tenha sido extinta. De todo modo, ele pode ter sido apenas um curioso, um pesquisador. Entretanto, seja qual for a ligação dele com essa prática, parecia acreditar que as pessoas estavam tentando matá–lo justamente por conta disso. —O que o leva a crer nisso? – ela franziu a testa, intrigada. Foi a vez dele se refrescar com um gole do caldo de cana, para em seguida explicar: —Algo que ele mencionou, segundo as palavras do pároco, me chamou atenção: quando ele falou no “segredo dos segredos”. —O que tem essa expressão demais? Ele arqueou as sobrancelhas: —Acontece, minha cara, que “Segredo dos Segredos’ é curiosamente a tradução da expressão latina “Secretum Secretorum”. —Continuo na mesma – declarou ela, mordiscando um pedaço do pão doce que fora servido. —Secretum Secretorum[1], Alexandra, é o mais festejado livro de ocultismo da Idade Média. [1] O Secretum Secretorum é um tratado medieval de existência real, escrito originariamente na língua árabe e traduzido para várias línguas e versões, sendo famoso por conter preceitos de alquimia e magia hermética. 115
PICASSO
E SUA PAIXテグ PELA FOTOGRAFIA
FOTO: DAVID DOUGLAS DUNCAN
Camera que pertenceu a Pablo Picasso.
FOTO: DAVID DOUGLAS DUNCAN
Pablo Picasso e Jacqueline Roque (1957).
A
famosa Gagosian Gallery, de Nova York, (522 West 21st Street), em parceria com Bernard Ruiz–Picasso, anuncia a exposição “Picasso e a Câmera”, parte de uma série temática sobre o artista, iniciada com “Mosqueteros” (2009), “Picasso: Os Anos do Mediterrâneo” (1945–1962) (2010), “Picasso e Marie–Thérèse: L’amour” (2011), e “Picasso e Françoise Gilot: Paris–Vallauris 1943–1953” (2012). Com a curadoria do biógrafo John Richardson, assistida por Valentina Castellani e Michael Cary, a exposição mostra como Picasso usou a fotografia não só como fonte de inspiração, mas como parte integrante de sua produção de estúdio. Abrangendo 60 anos, essa mostra, que resgata numerosas fotografias feitas por Picasso, mas nunca antes vistas ou publicadas, bem como pinturas a partir de ensaios fotográficos, desenhos, esculturas, gravuras e filmes, será uma oportunidade inédita de se conhecer sua relação com a câmera. David Korins, cenógrafo aclamado como mestre na produção cenográfica para teatro e cinema, transformou a galeria da 21st Street num ambiente que chama a atenção pela ousadia e criatividade. O artista plástico mais famoso do século 20, Picasso foi também o mais fotografado. “Picasso e a Câmara” é acompanhada
por um catálogo com novos ensaios de Mary Ann Caws, Victoria Combalia, Marvin Heiferman e John Richardson, assim como textos orientadores assinados por Jacques Prévert, Man Ray e Paul Hayes Tucker. O biógrafo e curador, John Richardson, que já esteve no Brasil, conheceu Picasso no início dos anos 50, quando ambos viviam no sul da França. Richardson morava com outro inglês, um colecionador de Picasso chamado Douglas Cooper, historiador de arte, crítico e colecionador, principalmente do cubismo. Durante dez anos, os dois, Picasso e Richardson, foram íntimos. O artista autorizou o inglês a escrever a biografia dele e contou tudo. O resultado foi “Uma Vida de Picasso”, com três volumes publicados. O último, previsto para 2015, está sendo anunciado como a mais detalhada, exaustiva e divertida biografia do artista que dominou a arte do século 20. Para Richardson e a maioria dos historiadores, o quadro que Picasso pintou em 1907, “Les Demoiselles d’Avignon”, é a obra mais importante da arte moderna. Richardson também se tornou íntimo das duas últimas mulheres de Picasso, Françoise Gilot e Jacqueline Roque, e dos filhos de Françoise: Paloma e Claude. Por isso, nos últimos anos, ele é o único curador capaz de organizar exposições com obras nunca antes vistas, cedidas pela família e por colecionadores. Richardson, que está com 87 anos, colocou um marca–passo, recentemente. 117
UM NOVO LIVRO, UMA EXPERIÊNCIA EDITORIAL
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P
ara cada edição da revista ArtFliporto, vamos trazer um livro novo, de reconhecida importância de conteúdo e qualidade editorial, fora do circuito de vendas de obras estrangeiras no Brasil. É necessário que tenha valor competitivo internacional no seu gênero e que seja de notória contribuição ensaística para lições de arte e cultura. A primeira escolha veio sob encomenda diretamente da Alemanha, com o selo da famosa Belser, de Stuttgard. Vamos inaugurar a série com um título do mercado editorial alemão, não traduzido ainda para o nosso idioma.
Nesta primeira escolha, queremos ressaltar o tratamento editorial do livro, que não é de luxo, dedicado à pintura de Jan Vermeer, de autoria de Hajo Duchting: Jean Vermeer—und seine zeith. Chegou às vésperas do fechamento desta edição, mas a primeira impressão de agrado que nos deu foi por conta do seu acabamento gráfico diferenciado, pela escolha correta do papel para o gênero, que dá relevo às ilustrações, às cores corretas da capa dura e do miolo, pela qualidade da impressão sem nenhuma falha, dando– nos a confiança de que a editora zela pelo seu produto. A laminação da capa é também um dos pontos atraentes do livro. A obra obedece às novas tecnologias do mercado gráfico, que caracterizam editoras alemães como a Taschen e a Suhrkamp, ambas de maior força propulsora intelectual na Alemanha, assim como casa de autores famosos como Hermann Hesse, Peter Handke, Mario Vargas Llosa, Isabel Allende e Bertholt Brecht. A Editora Hanser, fundada em Munique, agora fixada em Berlim, disponibilizou seu catálogo para ArtFliporto. Ao lado da Suhrkamp e da Belser, a Hanser é a editora com catálogo literário mais marcante e sofisticado (Herta Müller, Philip Roth, W.G. Sebald). Michael Krüger, editor da Hanser, é uma das maiores figuras do ramo editorial. Segundo ele,
“em Berlim pensa–se um pouco diferente, e por isso, para a pergunta sobre como serão os livros no futuro, e como serão vendidos, as respostas em Berlim também serão outras.” O autor de Jean Vermeer, Hajo Düchting, é um famoso historiador de arte e pintor, nascido na Alemanha. Ele estudou história da arte, arqueologia e filosofia em Munique (1975–1981) e recebeu seu Ph.D. em 1981. Desde 1984, tem sido professor nas universidades de Munique, Kassel, Leipzig, Mainz e Saarbrücken. Düchting tem escrito numerosos artigos sobre a arte da era moderna, a teoria da cor e arte–educação e publicou vários livros com o selo da Taschen, sobre Paul Cezanne, Vasily Kandinsky, Robert e Sonia Delaunay e Georges Seurat. Vermeer é famoso por seu talento técnico e sua contribuição para o mundo da arte durante o século XVII. Ele era um mestre do claro–escuro e do realismo com forte inspiração no estilo barroco italiano. Um detalhe a assinalar na técnica e na figuratividade visual desse pintor primoroso na arte do retrato: ele não era desconhecido no Recife nas primeiras décadas do século passado. Foi estudado na Escola de Belas Artes por mestres como Balthazar da Câmara, Jayme de Oliveira, Murillo La Greca, Henrique Elliot, Emílio Franzoni, Heinrich Moser e Telles Júnior. Ladjane Bandeira escrevia sobre ele no seu caderno de Arte do extinto Jornal da Noite. Dois grandes fotógrafos que viveram no Recife, nesse período—Alexander Berzin e Shaeffer (ambos com estúdios na Rua da Imperatriz) foram buscar em Vermeer, no seu estilo de trabalhar a luz natural que vem das janelas e das portas, com absoluta precisão. A inspiração para seus retratos de estúdio, famosos no seu tempo recifense, infelizmente tirados das paredes, esquecidos nas gavetas ou perdidos ao longo das nossas curtas existências.
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ENCONTRO DOS RIOS Vou derramar nós dois No leito desses lençóis Um amor líquido, de tanto ficar Um amor sólido, por tanto partir Nosso amor uma enchente Capim no beiral Canarana caindo Escorrendo no rio Nossos braços barrentos Esbarrando na mata... E o nosso amor deságua Descendo dos Andes Nas águas do Negro.
Jadson Nobre (Manaus)
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O MAL NA FILOSOFIA EXISTENCIAL DE
KIERKEGAARD Texto INÁCIO STRIEDER
Por ocasião do Bicentenário de
SÖREN KIERKEGAARD Casa Fliporto–Olinda
O
mal é uma categoria ética. Mas as dimensões desta questão ultrapassam o horizonte ético–filosófico. Teólogos, psicólogos, sociólogos e antropólogos, e ultimamente também biólogos, tentam esclarecer o fato moral do mal. Kierkegaard, como pensador transversal, propôs uma solução diferente da tradicional. A sua orientação é pragmática. Não recorre a teorias abstratas. Procura responder às questões existenciais, partindo da vida concreta. No prefácio do “Conceito de Angústia” (1844), Vigilius Haufniensis, um pseudônimo de Kierkegaard, aconselha a quem deseja escrever um livro pesquisar primeiramente o que outros já escreveram sobre o assunto. Isto evitaria que o autor enveredasse por uma fantasia demasiadamente 121
audaciosa. Um livro se deve escrever com a mesma espontaneidade com que um pássaro executa sua melodia. Tomando em consideração este conselho, é conveniente, ao abordar a compreensão do mal em Kierkegaard, que se verifique como outros filósofos, antes e depois dele, tentaram compreender o fenômeno. Nos tempos atuais, fala–se num “eixo do mal” como a grande ameaça para a paz mundial e a civilização ocidental. As últimas guerras foram qualificadas como batalhas do bem contra o mal. Mas, o que se deve considerar como um mal? Os seus múltiplos aspectos tornam difícil uma definição clara e distinta. Talvez, de uma forma simples, poder–se–ia qualificar a maldade como uma ação praticada consciente e voluntariamente, causando prejuízo a outros. Neste sentido, a maldade de uma ação somente existe quando ela for praticada livre e voluntariamente. Isto levanta a pergunta: “e o que se constitui, de fato, em prejuízo aos outros?”. Esta é uma pergunta que sugere múltiplas respostas. Novamente, de forma simples, poder–se–ia dizer: má é toda ação que interfere negativamente na liberdade de alguém, impedindo ou dificultando que o indivíduo realize o sentido e os objetivos de sua existência. Historicamente, constata–se que a questão do mal convive com a humanidade desde as suas origens. No livro bíblico do Gênesis, o grande pecado do primeiro homem foi a sua busca pelo conhecimento do bem e do mal. Na filosofia, desde os seus primórdios, discute–se sobre essa questão. E as perguntas fundamentais que alimentam este debate são: “1. Por que o homem pratica o mal? 2. Como um Deus bom e onisciente permite o mal?”. Em 1710, o filósofo Leibniz publica seu livro “Teodiceia: A Justificação de Deus perante os males do mundo, a liberdade humana e a origem do mal”. Leibniz distingue três formas de maldade: o mal metafísico; o mal físico e o mal moral. Para Leibniz, Deus sempre deseja o melhor, e criou o melhor dos mundos possíveis. Por isto, não se pode atribuir a Deus os males. O mal é a ausência do bem, consequência da imperfeição do mundo e da liberdade humana. A perfeição absoluta e a liberdade perfeita somente cabem a Deus. Ele não poderia ter criado um mundo perfeito, e atribuir às suas criaturas uma liberdade absoluta. Se assim acontecesse, o mundo e as outras criaturas seriam outros deuses. Portanto, a imperfeição da criação é um mal metafísico, necessário. O filósofo Kant, antes de Kierkegaard, discute a questão do mal primordialmente no nível do antropológico e ético, e fala da “radicalidade do mal na natureza humana”. Para ele, o mal moral é um mal de raiz. Em sua própria natureza, o homem tem uma tendência para o mal. Mas isto não significa, para Kant, que o homem esteja fadado a praticar o mal. Com esse determinismo, desapareceria a responsabilidade, e o mal se tornaria moralmente indiferente. No nível religioso, já não se poderia falar em pecado. A explicação kantiana de uma “natureza humana, tendente ao mal”, não agradou aos filósofos iluministas da época. Estes são otimistas quando se trata do homem, e consideram a tendência ao bem como antropologicamente originária. Por isto, o sistema hegeliano lhes pareceu mais simpático para a compreensão do problema do mal. Hegel dilui o mal no processo civilizatório da humanidade e da evolução do 122
mundo. O mal se manifesta como um momento da evolução do Espírito Absoluto. Ainda no século XIX, Schelling apresentou um novo enfoque para a compreensão do problema. Abandonou as explicações naturalísticas e metafísicas. No sistema de Schelling, o mal é considerado, simplesmente, como um contraponto do bem. Apenas duas questões se colocam para compreendê–lo: se o homem estiver determinado a praticar o mal, ele não poderá ser considerado culpado; se admitirmos a liberdade do homem, o mal deve ser considerado irracional, pois sua prática fere a liberdade. O homem somente é livre quando pratica o bem; pratica o mal dominado pelo vício, pela corrupção, pela perversão de sua natureza racional e emocional. Esta ideia, sem dúvida, é agostiniana. Na realidade dos instintos e das necessidades corporais, não há liberdade absoluta. Desta forma, o “homem livre” não necessariamente respeita a liberdade dos outros, pois sua liberdade, muitas vezes, está envolta por interesses irracionais. A categoria kantiana da liberdade absoluta somente é possível no nível da espiritualidade pura. As considerações de Kierkegaard sobre o mal se enquadram na filosofia da prática do século XIX. Ele afirma a irracionalidade das transgressões individuais. Nesta irracionalidade da prática do mal sempre há implicações psicológicas e filosóficas. Desta forma, para ele, não há explicação racional para o mal, pois este é essencialmente irracional. Com este pressuposto, Kierkegaard procura identificar uma forma de vida em que a liberdade absoluta fosse possível ao homem. Uma forma de vida em que o homem não estivesse mais dominado pelas necessidades de sua natureza corporal. Também Kierkegaard sabe que, de forma plena, isto não é possível no estágio presente da existência humana, pois, por mais que o indivíduo se oriente responsavelmente pelas dimensões espirituais, a sua responsabilidade sempre se confrontará com suas potencialidades pecadoras. A prática do mal permanecerá uma potencialidade existencial, enquanto o homem se encontrar na condição de síntese entre o finito e o infinito, entre o tempo e a eternidade, entre a liberdade e a necessidade. Para Hanna Arendt, o mal radical não existe. O fenômeno do mal é uma realidade superficial. É semelhante a um fungo que se espalha rapidamente, por falta de consciência crítica dos homens. Se as condições em este “fungo” se desenvolve fossem modificadas, ele não se instalaria na sociedade.
2. O Mal em Kierkegaard 2.1 – Kierkegaard: um pensador existencial
Na filosofia acadêmica, é usual lembrar que os filósofos não possuem biografia, mas ideias. Neste sentido, o filósofo é alguém sem pátria e sem tempo. Não tem pátria, pois sua referência é universal; geograficamente, não está situado. Nisto, Kierkegaard é uma exceção, pois sua biografia, seu tempo histórico e sua situação geográfica são fundamentais para entender seu pensamento. Kierkegaard teve uma vida curta, de apenas 42 anos. Mas sua vida foi impressionantemente produtiva. Sua obra completa chega a 70 livros, que tratam dos mais variados temas: filosofia, teologia, psicologia, antropologia, literatura e poesia. Revela–se um pensador e escritor com diversificadas facetas e não lhe faltaram polêmicas e controvérsias. 123
a) Vida
Sören Aabye Kierkegaard (1813–1855) nasceu em 5 de maio de 1813 em Kopenhagen, em um ano de bancarrota da Dinamarca. O casal Kierkegaard tinha sete filhos. Ele era o mais novo. Mesmo com a situação econômica difícil do país, Sören cresceu num ambiente de abundância, pois seu pai era um comerciante bem sucedido. Foi criado num ambiente familiar rigorosamente pietista, de acordo com um ramo religioso da igreja luterana, na época em que esta era a igreja oficial do Reino da Dinamarca. Esta educação religiosa se sedimentou profundamente em Kierkegaard, mas, embora iniciasse seus estudos superiores no Curso de Teologia, em breve se distanciou dos rigores desta vida religiosa. Durante seus estudos, era visto com frequência nos cafés e restaurantes de Kopenhagen, onde era conhecido por seu bom humor e vida boêmia. Embora muitos o admirassem nesse ambiente, este estilo de vida não o satisfazia, como registrou em seu Diário de 1836: “Agora mesmo estive num ambiente onde fui o centro. As piadas fluíram de minha boca. Todos riam, me admiravam. Meu pensamento, no entanto, se distanciou na dimensão do raio da terra. Saí deste ambiente com a vontade de me suicidar com um tiro”. Kierkegaard passava por períodos de melancolia, ou, como se diria hoje, sofria com depressão. Cada vez mais, ele almejava uma fé segura. Por isto, antes de seu pai falecer, em 1838, prometeu–lhe terminar seu curso de teologia. Cumprida a promessa, noivou em setembro de 1840 com Regine Olsen. Sem motivos claros, rompeu com este noivado um ano depois. Ao que parece, Kierkegaard não se considerava apto para assumir as responsabilidades de um casamento. Mas, durante toda a sua vida sonhava com o amor de Regine. E isto, de certa forma, se transformou num tormento. Em 1841, Kierkegaard finalizou uma pós–graduação, com um trabalho sobre a “Ironia em Sócrates”. Depois viajou para Berlim, a fim de se familiarizar com a filosofia hegeliana. Ali, frequentou as preleções de Schelling, mas se decepcionou profundamente com ele. Por isto, após apenas cinco meses e meio, voltou a Kopenhagen. Em Kopenhagen, Kierkegaard se entregou a uma fecunda produção literária e filosófica. Em apenas doze anos, além de diversos volumes de seu Diário, publicou mais de vinte livros. Mas apenas o primeiro, “Ou/Ou” (Aut–Aut), de 1843, com o pseudônimo de Victor Eremita, foi recebido entusiasticamente. Os outros conquistaram poucos leitores. As crônicas registram que, em sua época, Kierkegaard era mais conhecido em Kopenhagen por seus trajes exóticos, do que por suas ideias. Nos ambientes mais letrados, provocava risos. O jornal satírico o “Corsário”, de Kopenhagen, se tornou seu grande detrator. Este jornal publicou uma série de textos e caricaturas sobre ele, o que fez com que, também popularmente, fosse rejeitado. Dizem até que as babás, quando repreendiam as crianças por falta de cuidados com as roupas, diziam que elas pareciam com Sören Kierkegaard. Contudo, mesmo com esta fama, ele sempre manteve um círculo restrito de fiéis leitores. Com a publicação de seus livros, foi sumindo a herança que recebera do pai. Para manter–se, pensou em abandonar Kopenhagen e assumir um posto de pastor numa 124
paróquia no interior da Dinamarca. Mas a sua aversão à igreja oficial do Estado, que em suas críticas considerava uma aberração do cristianismo, o afastou desta decisão. A sua situação financeira se tornou tão precária que, em 1855, com a publicação do décimo número de sua revista “O Momento”, faliu. Era necessário encontrar uma solução. Neste mesmo ano, porém, ele sofreu uma queda na rua. Foi atendido, mas faleceu em 11 de novembro de 1855, num hospital em Kopenhagen, com apenas 42 anos de idade. Para uma adequada interpretação de Kierkegaard, é indispensável conhecer os fatos mais significativos de sua vida, porque muitas referências, em sua obra, estão intimamente relacionadas a ela. Especial atenção merecem seu profundo relacionamento com o pai, a ânsia na busca de uma fé segura e sua relação conturbada com Regine Olsen. Além destes, outros fatos foram marcantes na sua biografia. Em poucos anos, de 1824 a inícios dos anos de 1830, faleceram sua mãe e cinco de seus irmãos. Atormentava–o a ideia de que, por castigo de Deus, ninguém da família sobreviveria ao pai, pois o pai, na juventude, embriagado, havia amaldiçoado a Deus. Com certeza, a filosofia existencial kierkegaardiana da angústia, do desespero, do temor e tremor tem raízes em suas atribuladas experiências de vida. Estas experiências também estão na base de sua angustiada busca por uma fé segura, uma vida cristã autêntica e responsável.
b) Os pressupostos e os fundamentos da filosofia de Kierkegaard
Kierkegaard se entendia mais como crítico da filosofia do que como filósofo. Mais do que outros filósofos, ele deve ser interpretado como uma manifestação complementar da situação histórica de seu tempo e de seu ambiente. O principal aspecto de seu programa filosófico é o fato de ter trazido, novamente, para o centro das preocupações filosóficas e teológicas o Indivíduo, contrariamente ao que ensinava o idealismo alemão, que submergia o indivíduo na dinâmica evolutiva da humanidade. Para ele, a liberdade e a responsabilidade ética do agir humano cabem aos indivíduos, e não a um ser humano abstrato e genérico. Isto contrariava o idealismo alemão, para quem o agir diário do indivíduo parecia ter perdido totalmente sua importância. No sistema hegeliano, a liberdade e a práxis do indivíduo adquirem sentido somente no horizonte da humanidade em geral. Kierkegaard detestava qualquer sistema, em que a importância do indivíduo era relativizada. Embora, de certa forma, estivesse fascinado por Hegel, pareceu–lhe um contrassenso retirar do indivíduo sua responsabilidade, submergindo–o no universal. Mesmo assim, não há dúvida: a filosofia existencial de Kierkegaard deve muito ao idealismo hegeliano. Seus escritos são dialéticos. Recorre a conceitos do idealismo, quando descreve o homem como uma síntese de corpo e alma. Distancia–se, no entanto, do idealismo quando afirma como núcleo de sua filosofia a existência do indivíduo. Em seu livro “Enfermidade Mortal” (1849), define o homem como sendo “espírito”, expressão tipicamente idealista. Mas, na definição do que entende por “espírito”, distancia–se novamente da conceituação idealística. 125
Para ele, o espírito humano é o “eu”(Selbst) individual. Este “eu” não é nem o corpo, nem a alma, mas a síntese da relação de “si para consigo”, que se realiza na dualidade de síntese entre corpo e alma, entre finito e infinito, entre tempo e eternidade, entre a liberdade e necessidade. O homem, em sua existência concreta, vive na tensão dessas relações e constantemente é solicitado a fazer escolhas. Para que o verdadeiro eu se constitua, é necessário assumir responsavelmente essas relações. Para Kierkegaard, o indivíduo não é um sujeito com essência estática, mas está constantemente solicitado a constituir, de forma nova, suas relações, nas circunstâncias de seu existir. No exercício livre da composição dessas relações do eu–para–com–seu–eu, o indivíduo chegará ao seu verdadeiro “eu” (Selbst). A partir desta compreensão, tornou–se característica na filosofia existencialista a afirmação: “a existência precede a essência”. A constituição deste “eu” não se concretizará apenas com a reflexão do indivíduo sobre si mesmo, ou com a posse da autoconsciência. Este “eu” é o resultado de uma atitude relacional prática com o mundo, com os outros seres humanos e com Deus. Portanto, o verdadeiro “eu” é o resultado de uma práxis ativa na existência concreta, com constantes decisões e escolhas. O indivíduo realizará a sua história existencial pessoal, com responsabilidade total, no estabelecimento livre de relações. Com estas considerações, fica claro que, na compreensão antropológica de Kierkegaard, o ponto central da existência é a livre autodeterminação do indivíduo. Neste modelo, ser e dever se fundem numa unidade, que se concretizará com o indivíduo, mostrando e realizando, em seu agir existencial, o nível de sua dimensão humana. Esta dimensão, para Kierkegard, é a imagem e semelhança do homem com Deus. Esforçar–se por constituir esta dimensão é condição para que o indivíduo realize o sentido de sua existência. Com esta caracterização antropológica, manifesta–se que as inquietações existenciais de Kierkegaard são de origem teológica, pois a pergunta originária angustiante, que perpassa toda a sua obra é: “ Como me posso tornar um verdadeiro cristão?”. Por isto, não são poucos os críticos de Kierkegaard que gostariam de classificá–lo entre os teólogos, e não entre os filósofos. Inclusive, parte significativa de sua obra é, de fato, uma crítica à cristandade de sua época, especialmente na Dinamarca, onde a igreja luterana era a oficial do Estado. Para Kierkegaard, era uma aberração que os Pastores fossem funcionários do Governo, recebendo salários deste; acomodando–se às exigências e conveniências políticas; orientando–se por uma filosofia idealista/racionalista, que os distanciava da pregação do verdadeiro conteúdo da fé cristã... O fruto de tal igreja resultava em: cristãos que não viviam um verdadeiro cristianismo, pronunciando, muitas vezes, o nome de Deus apenas quando amaldiçoavam; um cristianismo de fachada, de aparências, com rituais formais; o povo submisso a normas externas da igreja, a dogmas, sem incorporá–los efetivamente em suas existências individuais. Esta igreja de Estado formava uma cristandade sem cristianismo. Fiéis massificados. Com estas críticas, Kierkegaard pretendia que se voltasse novamente ao verdadeiro cristianismo, pois a maioria, segundo ele, se esquecera do que era “ser verdadeiramente cristão”. Para ele, o cristianismo não é um conjunto doutrinário intelectual, nem um conjunto de ritos, mas uma forma prática de vida. Por isto, é lá onde se vive, no dia 126
a dia, que se aprendem as obrigações que o cristianismo exige. Para um retorno ao cristianismo originário, dever–se–ia superar o hedonismo da época, tornar Jesus Cristo presente na vida, imitando–o e assumindo a forma existencial de vida que Cristo viveu. A partir desta teologia de vida, Kierkegaard analisa e critica as possibilidades existenciais, para estabelecer uma existência de acordo com as exigências do verdadeiro cristianismo. Em suas considerações, propõe as mais diversas formas de existência, questionando–as depois. Não se propõe a transmitir conhecimentos, mas a motivar cada indivíduo a escolher uma forma de vida pessoal, com correspondente práxis existencial subjetiva, com plena responsabilidade por seus atos. Segundo Kierkegaard, ninguém tem o direito de impor a outra pessoa uma forma existencial. O projeto existencial é estritamente subjetivo e pessoal, com liberdade de escolha. O professor não tem a função de ensinar e impor conhecimentos, mas é apenas alguém que estimula o estudante a refletir pessoalmente, a buscar o conhecimento, originando seu autonascimento existencial. Esta proposta educacional de Kierkegaard, sem dúvida, inspira–se no modelo da maiêutica socrática. Como já mencionado acima, o seu trabalho de conclusão de pós–graduação em Kopenhagen versou sobre a “Ironia Socrática”. Ele mesmo já foi denominado de “Sócrates nórdico”. Constata–se, inclusive, que o modelo socrático perpassa toda a sua obra. Muitos críticos, inclusive, entendem o múltiplo uso de pseudônimos como consequência desta presença de Sócrates em sua metodologia. Os pseudônimos poderiam significar que ele, Sören Kierkegaard, não estava ensinando formas de vida. Apenas as analisava para que cada indivíduo escolhesse responsavelmente os caminhos de sua própria existência. Diversas dessas formas de vida, ele as retira de sua própria experiência existencial e ele mesmo vivera de acordo com vários estágios. Kierkegaard nunca se qualificou como professor, como filósofo ou teólogo, apenas queria ser um “escritor religioso”. Por isto, de fato, os seus pseudônimos podem ser considerados como “máscaras socráticas”. Esta perspectiva de vida individual fez com que seus escritos repercutissem na psicanálise, pois são praticamente uma espécie de terapia. Querem contribuir para que cada indivíduo se encontre a si mesmo, assumindo plenamente a responsabilidade por sua existência.
2.2. – O mal em diversos estágios existenciais
Toda a filosofia existencial de Kierkegaard se insere numa teoria de estágios. Segundo ele, existem três esferas existenciais: a estética, a ética e a religiosa. Todo indivíduo vive de acordo com uma destas esferas. Não é indiferente em que estágio se viva. Cada estágio apresenta múltiplas facetas, que se articulam ao redor de um eixo de relacionamentos característicos em relação aos outros, ao meio ambiente, a Deus e a si mesmo. Esses relacionamentos evidenciarão se o indivíduo age bem ou mal. Dependerá da estrutura relacional se a práxis é boa ou má. Para cada estágio, há critérios de avaliação do mal moral. Avaliações éticas são possíveis em relação ao agir, em cada um desses estágios. 127
a) Estágio estético: indiferença moral e busca de prazer
Kierkegaard caracteriza os estágios estético e ético em sua primeira obra “Ou/Ou” (Aut–Aut). Falar em “estágio estético”, como forma existencial, de certa forma, confunde, pois Kierkegaard não está caracterizando simplesmente o modo de vida dos artistas, embora busque alguns exemplos entre eles. ”Estético”, para ele, tem o sentido da palavra grega “aisthesis”, com a significação de “percepção sensorial”. Neste estágio, o indivíduo se orienta pelos sentidos, pelos instintos e pelas paixões. O viver estético é um viver hedonista. No estágio estético, o sentido do existir é simplesmente “aproveitar a vida”, sem preocupações morais. O lema é o epicurista: “comamos e bebamos, porque amanhã morreremos”. No estágio estético, o indivíduo está dominado pelos poderes cegos da natureza. Isto o impede de agir livremente, o que significa que suas ações não são morais, pois uma ação moral supõe a liberdade. E o homem dominado pelos instintos, pelas paixões e pelos sentimentos não pode ser considerado livre. Não é que neste estágio não se façam escolhas, mas estas escolhas ou são inconscientes, ou dominadas por forças da natureza. Portanto, não são escolhas livres. O “homem estético” vive aquém das categorias morais, age de forma aética. Suas ações não são imorais, mas moralmente indiferentes, pois carecem de consciência e vontade. No estágio estético, o indivíduo se deixa levar por poderes que ele mesmo não domina. Estes poderes podem estar ligados a objetos do mundo exterior, ou de seu mundo interior. O sujeito se deixa dominar pela busca, ou pelo desejo da posse de um objeto material ou de características pessoais. Empenha–se, por exemplo, em adquirir riquezas, beleza ou desenvolver seus talentos. No entanto, não se lembra de que tudo isto é passageiro, não satisfazendo o objetivo último da vida humana. No dia em que o indivíduo se conscientizar de que estes bens não são duradouros, vai considerar sua vida um fracasso, o que o levará ao sentimento de desespero, de angústia e melancolia. Como exemplo de uma existência no estágio estético, Kierkegaard cita o Imperador Nero, que usufruía de todas as condições para uma vida de prazer. Mesmo assim, sua existência resultou num fracasso total. O “homem estético” vive de instante em instante. Sua vida se resume em detalhes que considera interessantes. Isto lhe proporciona momentos isolados de prazer, com espaços maiores de monotonia existencial. Com o tempo, mesmo o mais original “esteta” não encontrará mais novos prazeres. E então surgem o desespero e a depressão. O desespero se manifesta quando desaparecem determinadas condições de viver de acordo com o hedonismo. A forma de vida estética é desesperadora em si mesma, pois o espírito humano não se satisfaz com uma existência de prazeres momentâneos e passageiros. A partir desta constatação, Kierkegaard não considera o desespero humano um beco sem saída. Pelo contrário, com o desespero, cresce no indivíduo a aspiração por uma forma de vida superior. É neste momento que se oferece ao indivíduo a oportunidade de fazer opção por um novo estágio de vida: o Estágio Ético.
b) O estágio ético: moral e liberdade 128
No estágio ético, o indivíduo é livre. Mas não plenamente livre. Neste estágio, ele encontra um conjunto de normas morais, de costumes, de leis, de hierarquias, de convenções, de valores, segundo os quais é convidado a construir sua existência. É verdade: escolhe livremente viver em conformidade com este sistema. Um sistema, porém, não livremente constituído por ele. Contudo, observando tudo isto, o indivíduo poderá se sentir mais tranquilo, mais seguro, menos angustiado. Assumindo um sistema de vida, o indivíduo se sente integrante do gênero humano, percebe–se cidadão de um Estado, membro de uma comunidade, de uma igreja etc... Nada do que é humano lhe parecerá estranho. O Estado lhe dita as leis, a igreja lhe ensina como se relacionar com Deus. Neste ambiente, sente–se livre para escolher seus relacionamentos. Apesar da segurança que o sistema lhe proporciona, o indivíduo se perceberá frágil e se descobrirá falhando e pecando. Diante destas falhas, nasce, em seu interior, a necessidade de arrependimento, a percepção de impotência, de inconstância, de impossibilidade para dar resposta a muitas perguntas existenciais em suas relações consigo mesmo, com os outros, com o meio ambiente e com Deus. A partir daí, o “homem ético” se intranquiliza, se desespera e se angustia, suspirando por um outro estágio. As respostas racionais não serão suficientes para tranquilizar seu espírito. Percebe que seu pecado não é racional, que a morte não é racional, que as guerras não são racionais, enfim, que o mal, presente por toda parte, não é racional. O indivíduo encontra–se, então, diante de dois caminhos existenciais: retornar ao estágio estético, ou fazer a opção por um novo estágio superior: o estágio religioso.
c) O estágio religioso: liberdade plena
A opção pela forma de vida religiosa é uma exceção, poucos escolhem esse caminho. A maioria permanece no estágio ético. O estágio religioso permite uma existência de plena liberdade, pois o indivíduo já não se deixará dominar pelas exigências instintivas, passionais ou sentimentais, nem assumirá apenas um sistema. Não é que, neste estágio, não existam mais estas exigências, mas elas estarão emolduradas pela dimensão do espírito, que coordena a síntese entre corpo e alma, entre finito e infinito, entre liberdade e necessidade, entre o temporal e o eterno. O indivíduo, no estágio religioso, estará para além das normas éticas, dos ritos e das convenções sociais e culturais, estabelecidas por sistemas racionais. Apenas se orientará pela fé. Esta o satisfará em relação a muitas perguntas existenciais e lhe dará respostas para além da razão, pois os conteúdos revelados por ela informam seguramente sobre questões para as quais a razão não tem resposta, como por exemplo: o sentido de nossas vidas; o surgimento do mundo; a existência de uma alma imortal; a existência de Deus; o desejo de Deus de salvar os homens, motivo pelo qual enviou seu filho, Jesus Cristo, que morreu na cruz por nós; o perdão ao homem que peca quando se arrepende; a razão da morte; o problema do mal... Para todas estas questões, a fé tem uma resposta. Os sistemas racionais não dão respostas satisfatórias a estas questões existenciais, e produzem no “homem estético” e no “homem ético” a angústia e o desespero. Fica claro que a escolha por uma existência de acordo com o estágio religioso, na visão de Kierkegaard, é a opção por uma fé irracional. Não é que o homem religioso, 129
segundo ele, deva renunciar à razão. Mas a opção pela fé é “um salto no escuro”. “Crê–se porque é absurdo” (credo, quia absurdum). A fé, necessária existencialmente, não se sustenta racionalmente. De certa forma, Kierkegaard sugere assim um irracionalismo religioso e tal irracionalismo pode levar a situações perigosas, quando assumido fundamentalisticamente. O que não parece ter sido sua intenção. Para Kierkegaard, só se pode viver de forma plenamente humana, em plena liberdade, no estágio religioso, quando se opta por uma relação primeira com Deus. Primeiro Deus, depois o próximo, o ambiente e a si mesmo. “Amar a Deus sobre todas as coisas, e ao próximo como a si mesmo”, conforme o mandamento de Jesus. A norma para a existência fluirá dos ensinamentos bíblicos, que não são nem filosóficos, nem éticos, mas orientam o homem pelo princípio do amor, com temor e tremor.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Seria ingênuo pesquisar as ideias de um pensador apenas para tentar descobrir o que ele pensou. Kierkegaard não quer que simplesmente nos ocupemos com as ideias dos outros, mas aprendamos nós mesmos a pensar e a agir. Ele continua menos conhecido no Brasil do que em outros países, também da América Latina. A Argentina, muito antes do Brasil, começou a ler Kierkegaard. Possui, inclusive, uma Biblioteca com seu nome e conta com diversos experts no pensamento deste filósofo. No México, ele Kierkegaardd teve importância muito maior do que no Brasil, onde vem conquistando leitores apenas há algumas décadas. Em tempos passados, poucos escritores o citavam. Entre eles, Alceu Amoroso Lima. Os comentários sobre ele, geralmente, eram de segunda mão. Hoje, pode–se afirmar, já não é assim. Há abundantes leitores e estudiosos das suas obras no Brasil. Isto está confirmado pelo número de dissertações de mestrado e teses de doutorado que, ultimamente, foram apresentadas nas universidades brasileiras. Por iniciativa do Prof. Álvaro Montenegro Valls, da UNISINOS/São Leopoldo, já há algum tempo foi criada a “Sociedade Brasileira de Estudos de Kierkegaard” (SOBRESKI), com sede no sul do Brasil. Esta Sociedade tem como mote “Uma Sociedade ironicamente correta”. Isto, certamente, por referência a Kierkegaard, considerado o ”Sócrates nórdico”. A filosofia de Kierkegaard apenas começou a ser valorizada, fora da Dinamarca, quase 50 anos depois de sua morte. A partir de então, sua influência foi múltipla. Na filosofia, é considerado o “Pai do Existencialismo”; está na base da pós–modernidade; foi lido por filósofos crentes e descrentes, como Gabriel Marcel, Karl Jaspers, Mounier, Lévinas, Heidegger, Sartre, Simone de Beauvoir; por teólogos, como Paul Tillich, Karl Barth, Rudolf Bultmann; por psicanalistas, como Freud, Lacan etc. E o que do pensamento de Kierkegaard seria importante considerar, tendo em vista o ambiente cultural brasileiro? 1. O estudo de Kierkegaard nos revela que a biografia de cada um condiciona sua vida, seu pensamento e sua ação no decorrer da existência. 2. O ser humano é um ser individualizado. Como se vive, como se pensa e o que se faz é responsabilidade individual. Não se pode atribuir simplesmente ao ambiente, a 130
situações sociais e econômicas o que acontece na sociedade e na vida dos indivíduos. 3. O indivíduo não nasce com uma essência humana estática. O que faz com que alguém seja isto ou aquilo são suas experiências existenciais. As experiências de vida acontecem de acordo com o estágio existencial, ou forma de vida, em que a pessoa está situada. Os diversos estágios são: o estético, o ético e o religioso. 4. O ser humano é um indivíduo situado em um tempo e um ambiente. Neste tempo e neste ambiente, o indivíduo é levado a escolher livremente a forma de suas relações com os outros, com o mundo, com Deus e consigo mesmo. O indivíduo é o único responsável pelos atos que pratica na objetivação destas relações. 5. Em sua vida, o indivíduo é, constantemente, solicitado a fazer novas escolhas. Neste processo dinâmico da vida, ele constrói a sua existência, que precede, portanto, aquilo que ele deve ser como ser humano, isto é sua essência. 6. Ninguém está autorizado a impor a alguém uma forma de existência. O professor, o pastor apenas tem a função de propor formas de vida e incentivar o estudante, ou qualquer pessoa, a escolher esta ou aquela proposta. 7. Exclusivamente o indivíduo é responsável pela forma de vida que escolheu. 8. Em conclusão, o que se segue deste caminho existencial, proposto por Kierkegaard, é que cada indivíduo tem a total responsabilidade por seus atos e pela forma de vida que leva: é o indivíduo que escolhe ser ladrão, ser homicida... ou ser homem de bem. O culpado é só ele, e não as circunstâncias, os outros, o diabo ou Deus. (N.B.: Interessante, neste sentido, é que a justiça, ao menos a brasileira, quando julga, individualiza o réu e sua culpa. É o princípio da individualização das responsabilidades de Kierkegaard!). 9. A partir de quando começa a responsabilidade existencial, individual? A partir do momento em que o indivíduo manifesta liberdade e vontade próprias. Isto, independentemente de idade biológica. O mal e/ou o bem feito por um indivíduo se manifestarão por meio de sua ação, em circunstâncias com possibilidades de escolha livre e responsável. Isto pressupõe autoconsciência e capacidade de discernimento entre o bem e o mal. O mal, por isto, não se caracteriza por teorias ou doutrinas, mas pela ação concreta do indivíduo em sua opção existencial. Aqui aparece a importância da educação e da cultura. Numa cultura que valoriza a “vida estética” do prazer, do hedonismo, do proveito pessoal, do usufruto da vida material, da injustiça, ou da fuga de si mesmo através de drogas, o que se caracteriza como mal? Em tais circunstâncias, provavelmente, não se desenvolverá no indivíduo uma autoconsciência sensibilizada frente ao crime, o que leva criminosos, adolescentes ou não, a debocharem frente ao sofrimento de suas vítimas. Praticam crueldades hediondas, e dão risada, até nas delegacias. A grande questão é: “qual é a eficiência de nosso sistema educacional?”. Além disto, que modelo de sociedade se incentiva no Brasil? Uma sociedade hedonista, do prazer, do consumo ou uma sociedade ética? Quais são as sugestões mais fortes em nossa mídia, na publicidade? Concretamente, Kierkegaard constata que a maioria dos indivíduos, numa sociedade civilizada, opta pelo “estágio ético”, e nele permanece. Mas, para uma vida humanizada, mais plena seria necessário almejar o “estágio religioso”. Para ele, somente neste estágio a existência humana poderia ser vivida com a maior dignidade possível. 131
MAM apresenta mostra panorâmica do artista multimídia
C
PAULO BRUSCKY
om curadoria de Felipe Chaimovich, exposição traz performances inéditas, instalações, esculturas, fotografias, arte postal, vídeos e documentos. De 1º de setembro a 14 de dezembro, o Museu de Arte Moderna de São Paulo realiza exposição panorâmica de um brasileiro de grande destaque no circuito artístico internacional, o artista multimídia e poeta pernambucano Paulo Bruscky. Apresentada na sala Paulo Figueiredo, a mostra tem curadoria de Felipe Chaimovich, curador do MAM, e conta com 50 trabalhos,
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entre performances, instalações, esculturas, fotografias, arte postal, filmes e documentos, que vão desde a década de 1960 até os dias atuais, com obras ainda em fase de produção. O homenageado é reconhecido pelas obras que se caracterizam pela constante experimentação de meios ao utilizar suportes efêmeros como xerox, fax, papéis de carta, carimbos, envelopes, jornais, documentos e heliografias. Precursor da arte postal e xerográfica no Brasil, Bruscky enviou ao MAM várias fotocópias e cartões postais ao longo dos anos que foram arquivados na documentação da biblioteca. Todo o acervo do
museu do artista, incluindo esses documentos, são exibidos na mostra. Para criar um amplo discurso visual, Paulo Bruscky utiliza diversas linguagens como fotografia, vídeo, colagem, desenho e assemblage. O artista ainda promove a interação com máquinas eletrônicas e da cultura industrial—como máquinas de xerox, fax, telefones, filmadoras, câmeras fotográficas, aparelhos de encefalograma e eletrocardiograma—e, assim, cultiva praticas novas na criação de imagens. Nascido em 1949, em Recife, onde reside e produz, Bruscky é reconhecido por ser um artista conceitual, mas que não fica apenas no pensamento, pois preocupa–se com a materialização das ideias. “Por mais conceitual que ele seja, a realização da obra não é secundária, pois sempre tem a intenção de concretizar as ideias”, explica Chaimovich. Para isso, Bruscky conta com vários Cadernos de Ideias, onde anota os trabalhos que deseja realizar. O MAM apresenta quatro destes cadernos, além de materializar algumas das obras idealizadas. “Bruscky pode demorar anos até que uma instrução manuscrita seja realizada, e o museu terá a oportunidade de fazer algumas delas, inclusive durante a abertura da mostra”, afirma o curador. A exposição reúne projetos e ações do artista, sendo algumas contínuas e outras instantâneas,mas que permanecerão como registro em vídeo durante a mostra. Na noite da abertura, haverá três performances, sendo duas inéditas, e a instalação Fogueira de Gelo (1974–2014), composta por gelo natural e colorido com sabor, posicionada na porta de entrada do público, do lado de fora do museu, para quem quiser provar. A primeira performance A Plateia (Paulo Hitchcock)(2014) será realizada no Auditório Lina Bo Bardi, nas dependências do museu. Com a presença do público da abertura, Paulo Bruscky participa e dirige o filme ao mesmo tempo, por meio de uma câmera fixa que filma a plateia e, simultaneamente, projeta as imagens numa tela, promovendo uma homenagem ao cineasta inglês Alfred Hitchcock.Outra performance inédita é Meu cérebro desenha assim (1979–2014) em que equipamentos de
eletroencefalograma, operados ao vivo por um neurologista e um técnico, farão o exame no artista, mostrando como funciona a mente de Brusky. O registro em vídeo do exameexame passará em uma TV na mostra, e os resultados serão expostos nas paredes. Penas de Galinha (dec.60), a última da noite, é uma performance coletiva, com duração de 15 a 20 minutos, composta por penas de galinha coloridas e ventiladores. Cada pessoa que entrar na sala receberá um saquinho com as penas e deverá jogá–las na área coberta pelos ventiladores.Diferentes ações serão executadas no decorrer da mostra. Na performance Vendedor de comida do Ibirapuera (1974–2014), um ambulante do parque exercerá as funções dentro da exposição, vendendo salgadinhos durante o período expositivo. Carregadores de espelho (déc. 70), queacontece no dia 6 de setembro (sábado), com a presença do artista, consiste em oito pessoas vestidas com macacão de trabalhador, portando espelhos (de 1mx0,40m) e caminhando em fila nos arredores do museu, da marquise e do prédio da Bienal, interagindo e refletindo o público do parque. Os projetos detalhados de todas as performances e esboços originais de muitos projetos serão expostos na vitrine Banco de Ideias, junto com os Cadernos de Ideias. “O museu recebeu instruções bem específicas do artista para a montagem das obras, entre elas uma especial para a instalação Expediente (1978–2005), em que um funcionário do MAM deve cumprir expediente regular, ao vivo, na sala expositiva como se fosse uma obra de arte”, afirma o curador. Arte Classificada (2014) é um anúncio veiculado no dia da abertura num jornalpopular, distribuído gratuitamente pela cidade, dando uma pista, mas sem noticiar a exposição. “Além dos trabalhos que contam com a participação de pessoas e chamam a atenção do público, temos o Quadro de Aviso/ Work in Progress, que consiste num mural de cortiça que receberá obras pelo correio, pela internet, por pessoas eafixadas pessoalmente pelo artista, que mandará o material das mais variadas formas até o final da exposição,” declara Chaimovich. 133
LIVRO DE SONETOS
Tito Livio Lisboa
SONETO DE AMOR E DE VERÃO Assenta tua cabeleira às águas Deste mar grávido de fevereiro Vem, morenamente, desfazer mágoas Revolta e confusa como o aventureiro
que despoja–se de tudo e se lança Pelas névoas fascinantes dos portos Vem, torrencial, como a louca dança Das brumas, escumas e peixes mortos
Vem e desbasta com as tuas tranças As ilhargas e entrâncias da praia fria Vem, brisa liberta que não descansa
Transtornada concha na luz do dia Eu estarei atento e em estado de rogo Vendo tua asa descerrar o fogo
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SONETO NA PRAÇA CHORA MENINO
Como não me lembrar da casa à Boa Vista Onde morava a avó minha e os móveis reais A praça que na frente espreguiça em revista Tudo era muito calmo e alvo e cheio de paz
Já próximos da entrada ouvíamos o canto Embebido na fé das freiras tão vestais Na sala sempre um pálio havia para o espanto Das mil assombrações de tempos ancestrais
Quando a tarde descia espectral e o seu manto Atiçava uma fome infante a coisas mais Minha rápida avó descolava de encanto
Um trocado senil para, escondido aos pais, Comprarmos uma bala à esquina ou num recanto Como não me lembrar das horas eternais?
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SONETO DA MANHÃ
Uma manhã apenas, sem adorno Em cuja face vislumbra–se o espaço Nem ardente, nem fria. Só cansaço Habita o seu dorso aparente e morno
Uma manhã apenas, esbranquiçada Que no ventre do horizonte se lavra Não traz em si o exaspero da palavra Sem sonhos e sem segredos. Sem nada
Apenas manhã. Como tal, ao dia, Com seu castiçal de espelhos adensa E Rompe a paisagem que silencia
É do presente e no futuro é imensa Tempo e espaço são sua serventia Apenas manhã. E o mais se dispensa
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SONETO DO SONHO DE DOMINGO Arremessou–se pálida e serena Contra aquela cama inda desfeita E o imã de suas entranhas estreitas Sugava–me ao fim da carne morena
Aproximei–me cuidadosamente Estremecido tal bandeira ao vento Pois para os meus olhos de adolescente Era a tempestade de sentimento
Toda volúpia presente no mundo Consumiu–se após o último gemido E acordei assim, sentindo–me imundo
Porém sabendo que havia sentido O gosto mais ardente e profundo Que alguém pode de haver vivido
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SONETO DE AGOSTO
Vamos amar, amor, amar a vida Que o resto não merece ser lembrado Vamos chorar, amor, mas bem chorado Consumir esta tarde em despedida
Vamos anoitecer como bem faz A lua com seu cântico de amor Desabrochar–se ao efêmero em flor E murchar depois em ermos banais
Vamos, amor, aproveitar a vida Nutrir–se da dor, enlear–se ao corte Que não se acabe a sede desabrida
De perscrutar no dia a própria sorte Vamos amar a carne estremecida Vamos pois o oposto disso é morte.
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SONETO DESESPERADO
Enquanto estas cãs que nunca preterem Erguem em mim a pálida morada Como avisos fúnebres que nos ferem a vaidade de tempos cultivada,
Em golpe violento eu a ti me enlaço Feito a cinza se apega à última chama Antes de desfazer eu me refaço Cubro–me com tua solícita escama
E já não me assusto ante a luz que falha Nem perante tempestades noturnas Que revolvem marés e à flor farfalha:
Sereno aceito os óbolos das urnas Em tuas mãos deito meus álgidos restos Fecha–me aos anos com os dedos prestos
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SONETO SEM TOQUES
Não toquei tua carne de volúpias Nem beijei tua face com promessas Não fui o amante das noites persas Nem desatei tuas roupas de núpcias
Não deflorei teus espaços secretos nem invadi teus ardentes segredos Somente espiei com olhos quedos a imensidão destes mundos repletos
Apenas ouvi numa noite fria Os lamentos de tua vida intensa Com a minha triste mão vazia
Mas posso dizer–te, amada imensa Que te amei com enorme poesia Mesmo sem tocar tua carne densa
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SONETO DE REFLEXÃO NO BAR CENTRAL
O que me dói, amigos, não é morrer... Fechar os olhos num leve desmaio Dói–me sobranceiramente não ver jamais os céus desses dias de maio
Dói–me ter que deixar todas manhãs À ventura delas mesmas, sem mim... O que será pois das estrelas vãs Que espio à minha janela ao jardim?
Mas me dói ainda mais, deixá–la, sozinha... À sombra de tanto escuso perigo De tanta vontade alheia à minha
De tanta mão ávida a dar abrigo Não é a ideia de morrer que espezinha Dói–me é não poder levá–la comigo!
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SONETO SOTURNO EM BOA VIAGEM
Eu quero ser pelo mar carregado Rematar–me entre madrias selvagens E no dorso das obscuras voragens Afogar o beijo de anos guardado
Ir ao fundo deste cerúleo ventre Às vésperas de esvair–me o sentido E ao ser pelos talvegues cingido Ouvir a voz da sereia a dizer–me: “adentre...”
Como o mergulhador que se vai ao fundo Cego ante o torpor do desconhecido ir mais...ir além... em volúpia total
Que estrelas ao vigiarem o mundo Velem sempre o meu corpo perdido à mortalha de uma noite eternal
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SONETO DO AMOR EM CARNE E OSSO
Beija mais meu corpo, da boca aos pés! Que para ti me inclino em arremesso O beijo, amada, é só o começo A noite nos convida a infindos viés...
Beija mais! A concha do sexo já sangra Aberta ao nácar das ondas selvagens As mãos tateiam escuras paragens O olhar divisa o mistério da angra...
Beija mais, amada! Ao friso constante Das incansáveis línguas neste espaço E ao entremear de salivas flagrante
Hei de morrer em teu terno regaço E após o último beijo casto e amante Dormiremos na colcha do cansaço
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SONETO ÀS MOÇAS QUE PASSAM OU SONETO DO SOBRADO DA VISCONDE DE GOIANA OU SONETO COM MOTE DE ANTONIO NOBRE
Ó moças que passam pela cidade Como estrelas nascentes a bailar Passem mais pela janela que há de Estar sempre aberta a lhes esperar
Pois se o mar doura com fulvos presentes Suas pernas rijas de tanto andar Passem às janelas dos descontentes Evolando fartura e brilho no ar
Passem como aquelas canções antigas Que livram os enfermos dos seus ais Passem como recordações amigas
Dos frevos cantados aos carnavais Ó moças que passam cheias de vigas Passem mais à janela...passem mais...
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SONETO A INÊS DE CASTRO
Carregas o mar por entre os teus dedos No esquife que te serve a toda sorte Escamoteias assim a própria morte Ao transtorno das algas e degredos
Escapas porém das tétricas sombras E das infalíveis cãs do destino Tua face guarda sempre o traço fino Teus véus assomam–se às verdes alfombras
Do alto os deuses te observam em segredo Imersos ao sal póstero das mágoas Por não poderem ter–te ali tão cedo
Vais–te eternamente ao espelho das águas Acende–se o horizonte ao teu enredo Enquanto passas com coroas e fráguas
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SONETO DE OUTONO
Já pende o outono pelas madrugadas Como lágrimas descidas ao solo Mesmo volúpias antigas ao colo Foram esquecidas por desusadas
As frases vivas às frestas das portas O acidente de corpos em procura Tudo se esquece na voragem escura No atlântico que abriga estrelas mortas
E muito em breve restará somente No fosco de um tempo desde já antigo Como extinta cidade do ocidente
Um templo às saudades servir de abrigo Mas tempestades e outonos que enfrente Guardarei, amor, teu nome à luz comigo
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SONETO SOBRE O SONETO
Da pretensão de dizer o que sente O poeta vive. Mas no momento exato em que se escreve, o sentimento é outro. Nem mais nem menos, diferente.
De tal sorte que um “eu te amo” no papel É muito mais vívido nessa folha do que naquele que o diz. Não há escolha. Escrever é debruçar–se no léu
Porque tudo o que nós temos do real São só recortes, ínfimos recortes Que nossa tola linguagem busca
O mundo é mutável e isto é radical Linguagens, traduções são apenas esportes: A vida não passa de uma invenção brusca
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