ATORES SOCIAIS E MEIO AMBIENTE
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Associação Brasileira de Editoras Universitárias
JOVILES VITÓRIO TREVISOL
ATORES SOCIAIS E MEIO AMBIENTE
análise de uma rede transnacional de organizações da sociedade civil
Chapecó, 2007
R EITOR : Gilberto Luiz Agnolin V I C E -R E I T O R A D E P E S Q U I S A , E X T E N S Ã O E P ÓS -G RADUAÇÃO : Maria Assunta Busato V ICE -R EITOR DE A DMINISTRAÇÃO : Gerson Roberto Röwer V ICE -R EITOR DE G RADUAÇÃO : Odilon Luiz Poli
307.2 T814a
Trevisol, Joviles Vitório Atores sociais e meio ambiente: análise de uma rede transnacional de organizações da sociedade civil / Joviles Vitório Trevisol. - - Chapecó: Argos, 2007. 295 p. 1. Movimentos sociais. 2. Organizações não-governamentais. 3. Hidrovia Paraguai-Paraná. I. Título. CDD 307.2
ISBN: 978-85-98981-74-1
Catalogação: Yara Menegatti CRB14/448 Biblioteca Central da Unochapecó
Conselho Editorial: Elison Antonio Paim (Presidente); Priscila Casari (Vice); Alessandra Machado; Alexandre Mauricio Matiello; Antonio Zanin; Arlene Renk; Edilane Bertelli; Jacir Dal Magro; José Luiz Zambiasi; Juçara Nair Wollf; Maria Assunta Busato; Maria dos Anjos Lopes Viella; Monica Hass; Ricardo Brisolla Ravanello Coordenadora: Monica Hass
A todos os homens e mulheres da era planetรกria que acreditam e lutam pela cidadania sem fronteiras.
Precisamos salvar a herança republicana, mesmo que seja transcendendo os limites do Estado-nação [...] o Estado-nação não pode mais fornecer a estrutura apropriada para a manutenção da cidadania democrática no futuro previsível. O que parece ser necessário é o desenvolvimento de capacidades para a ação política num nível acima dos e entre os Estados-nação. Jürgen Habermas A verdade é que, depois de séculos de modernidade, o vazio do futuro não pode ser preenchido nem pelo passado nem pelo presente. O vazio do futuro é tão-somente um futuro vazio. Penso, pois, que, perante isso, só há uma saída: reinventar o futuro, abrir um novo horizonte de possibilidades, cartografado por alternativas radicais às que deixaram de o ser. Boaventura de Sousa Santos A Humanidade deixou de constituir uma noção apenas biológica e deve ser, ao mesmo tempo, plenamente reconhecida em sua inclusão indissociável na biosfera; a Humanidade deixou de constituir uma noção sem raízes: está enraizada em uma “Pátria”, a Terra, e a Terra é uma Pátria em perigo. A Humanidade deixou de constituir uma noção abstrata: é realidade vital, pois está, doravante, pela primeira vez, ameaçada de morte; a Humanidade deixou de constituir uma noção somente ideal, tornou-se uma comunidade de destino, e somente a consciência desta comunidade pode conduzi-la a uma comunidade de vida; a Humanidade é, daqui em diante, sobretudo, uma noção ética: é o que deve ser realizado por todos e em cada um. Enquanto a espécie humana continua sua aventura sob a ameaça de autodestruição, o imperativo tornou-se salvar a Humanidade, realizando-a. Edgar Morin
A GRADECIMENT OS GRADECIMENTOS
A realização deste livro só foi possível graças à colaboração direta e indireta de muitas pessoas e instituições. Como não é possível referilas na sua totalidade aqui, seguem as que tiveram um papel decisivo. Agradeço especialmente: À Maria Teresa, que acompanhou e participou de todas as angústias e dificuldades que cercaram o desenvolvimento desta pesquisa. À Dra. Maria Célia Pinheiro Machado Paoli, orientadora deste trabalho e interlocutora atenta e estimulante. Ao Programa de Doutorado em Sociologia da Universidade de São Paulo, pela acolhida e pelo exemplo de espírito científico. Agradeço ainda pelo apoio financeiro dado a esta pesquisa durante o período de levantamento dos dados. Aos Professores Dr. Henrique Rattner (USP) e Dr. Sérgio Costa (UFSC), pelas preciosas sugestões durante o exame de qualificação. Aos Drs. Maria Célia Pinheiro Machado Paoli (USP), Henrique Rattner (USP), Pedro Roberto Jacobi (USP), Ilse Scherer-Warren (UFSC) e Glauco Arbix (USP), por terem aprovado esta tese com “distinção e louvor” e recomendado sua publicação dada a “originalidade no tratamento do tema”.
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Ao Maurício Galinkin, da Fundação CEBRAC (Brasília/DF), pela amizade e pela infinita disposição em fornecer dados e entrevistas. A Alcides Faria e à ONG Ecologia e Ação (Campo Grande/ MS), pelo acolhimento e o empenho em fornecer as informações sobre a Coalizão Rios Vivos e o Projeto Hidrovia Paraguai-Paraná. Ao Sérgio Guimarães, do Instituto Centro e Vida (Cuibá/MT), pela amizade e pela disposição em fornecer tantas informações e entrevistas. À Glenn Switkes, do International Rivers Network (Berkley/ USA), pelas entrevistas, e-mails e inúmeras indicações. A Alcides Faria (ECOA/Campo Grande), Maurício Galinkin (CEBRAC/Brasília), Sérgio Guimarães (Instituto Centro e Vida/Cuibá), Glenn Switkes (International Rivers Network/Berkley/USA), Enir Terena (ITC/Campo Grande), Tamara Mohr (Both Ends Amsterdan/ Holanda), Oscar Rivas (Sobrevivência/Assunção/Paraguai), Elba Stanich (Taller Ecologista/Rosário/Argentina), Sílvia Ribeiro (Redes/Montevideo/Uruguai), Ulisses Lacava (WWF/Brasília), Juan Manuel Farina (BID/Washington/USA), que concederam longas entrevistas. À Ministra Maria Luiza Viotti, do Departamento das Américas, do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, pela extensa entrevista concedida e por ter disponibilizado todas as Atas do Comitê Intergovernamental da Hidrovia Paraguai-Paraná. Ao Instituto Socioambiental, LEAD, S.O.S Mata Atlântica, WWF-Brasília, Ecologia e Ação, Fundação CEBRAC e Instituto Centro e Vida, por terem disponibilizado sua infra-estrutura e acervo. Ao Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal), por ter me acolhido durante o ano de 2006, para estudos de pós-doutorado. Agradeço, especialmente, ao professor Dr. Boaventura de Sousa Santos, por ter sido um orientador estimulante, atento e crítico, assim como um exemplo de investigador social, cidadão do mundo e ser humano.
S UMÁRIO
PREFÁCIO .................................................................................................................. 13 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 17 GLOBALIZAÇÃO, SOCIEDADE CIVIL E NOVOS ATORES LOCAIS/GLOBAIS ......................................................... 27 Origem e evolução do conceito .................................................................................... 34 História e dimensões da emergente sociedade civil global ........................................ 60 CONTEXTO SÓCIO-POLÍTICO DA EMERGENTE SOCIEDADE CIVIL GLOBAL ........................................................................... 91 O MERCOSUL E O PROJETO INTERGOVERNAMENTAL DA HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ ............................................................ Contexto político e econômico do Projeto HPP ........................................................ Breve história do Projeto HPP ................................................................................... Aspectos físicos e socioambientais da área de abrangência da hidrovia .................... As comunidades indígenas na bacia do rio Paraguai ................................................. Dimensões técnicas do Projeto HPP ..........................................................................
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O PROJETO HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ E A MOBILIZAÇÃO DOS ATORES SOCIAIS .............................................. 165 As primeiras articulações ............................................................................................. 167 O Seminário Internacional de São Paulo e o surgimento da Coalizão Rios Vivos ................................................................................................. 181
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Uma proposta de participação pública ....................................................................... 185 Uma denúncia internacional midiatizada ................................................................... 190 Um estudo hidrológico independente ....................................................................... 196 A primeira reunião de participação pública ................................................................ 200 Acesso aos estudos preliminares de impacto ambiental ............................................. 202 A mobilização das comunidades indígenas ................................................................ 206 A segunda reunião de participação pública ................................................................ 210 A terceira reunião de participação pública .................................................................. 214 O Canal Tamengo e a “inauguração” da hidrovia ..................................................... 218 A XXIV reunião do CIH e uma defesa branda da hidrovia .................................... 222 Novo estudo independente ......................................................................................... 225 ESTRATÉGIAS DE AÇÃO E OPORTUNIDADES DE PODER DAS ONGs NA CAMPANHA DA HIDROVIA ............................ 237 A politização dos riscos ................................................................................................ 239 A ciência como fonte de legitimação política ............................................................... 244 A política informacional via mídia ............................................................................... 248 A publicização dos déficits democráticos e a accountability global ............................... 255 Ativação dos sensores da esfera pública ...................................................................... 260 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 267 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 273
P REFÁCIO
Fala-se muito em globalização. Normalmente se pensa na transnacionalização da economia, do mercado, da tecnologia, da mídia. Mas há uma outra dimensão que aponta para a busca de alternativas para a qualidade de vida em nosso planeta. Trata-se de uma mundialização alternativa proposta, defendida e monitorada por atores sociais coletivos, que atuam em redes locais, transregionais e/ou globalizadas. Joviles foi buscar o significado e alcance da ação dessas redes para uma transformação que visa a um cosmopolitismo mais humanizado e ecologicamente sustentado, movido pela crença de que “um outro mundo é possível”, e resistente aos “fatalismos” da destruição do planeta. Buscou isso através de um estudo sociologicamente fundamentado e empiricamente sustentado: a investigação da Coalizão Rios Vivos, uma rede de ONGs e movimentos sociais, que visava a monitorar o Projeto Hidrovia Paraguai-Paraná, o qual propunha alterações hidrológicas dos rios, que poderiam desencadear impactos sociais e ambientais negativos na bacia do Prata e na região do Pantanal.
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O texto de Joviles inicia nos proporcionando um entendimento sobre a emergência de um ativismo civil transnacional no contexto de uma sociedade que se globaliza, evidenciando a diversidade organizacional dos atores, que vão de ONGs às redes, coalizões, fóruns a um movimento “antiglobalização capitalista”. Não abrindo mão do rigor científico na análise, revisita as noções teóricas de sociedade civil, mostrando a polissemia do conceito, destacando uma produção teórica que comporta explicações frutíferas para o entendimento sobre os efeitos dessa nova forma de ativismo no fenômeno da globalização, sintetizado na afirmação de que “as diversidades de atores, dinâmicas e fluxos torna a globalização um processo plural, heterogêneo, irregular e contraditório”. Com o mérito de contextualizar histórica e teoricamente seus enunciados, o autor discute as transformações nos Estados nacionais, que, com o processo de globalização, viram-se obrigados a dividir o poder e a regulação com outros atores globalizados, como os que atuam no campo da comunicação e dos movimentos sociais em redes, para além dos tradicionais ligados ao capital e à política governamental. Esta evidência se reitera até hoje nas manifestações públicas, mediáticas e conflitivas de um ativismo transnacional crescente durante os encontros das cúpulas mundiais (G8 e outros fóruns econômicos mundiais), bem como em várias ações concretas de ONGs que privilegiam formas de gestão em rede. No cerne desta problemática o conflito ambiental se coloca com muita força e premência, justificando também a atualidade e a relevância das abordagens sociológicas portadoras de novos conhecimentos, como as deste livro. No bojo de uma política governamental de integração do Mercosul, surge em 1987 o projeto de uma hidrovia internacional conectando o porto de Nueva Palmira (Uruguai) a Cáceres (Brasil), com a finalidade de oferecer uma melhor ligação econômica dos cinco países do continente.
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O autor nos traz uma detalhada contextualização histórica sobre as razões de ser deste projeto, que, de uma perspectiva governamental, contemplava uma visão de desenvolvimento baseada na política dos megaprojetos, a exemplo de outros já realizados no Brasil (Itaipu, Transamazônica etc.), mas que não contemplava suficientemente a dimensão dos impactos socioambientais, especialmente em relação ao vasto contingente indígena que vive no entorno dos rios, e a fragilidade de sustentação ecológica da região do Pantanal diante deste tipo de intervenção. Na contramão dessa concepção de desenvolvimento surge a mobilização e ação da Coalizão Rios Vivos, que, como objeto privilegiado da investigação de Joviles, é um dos pontos altos de sua tese pelo conjunto de novos conhecimentos que nos fornece. Nesta direção, vale registrar o resgate histórico que o autor faz do movimento, o qual, no espírito mobilizatório da Eco/92, já se organiza com características de uma rede transnacional, de impacto mediático, mas, sobretudo, como produtor de competentes estudos independentes sobre a viabilidade da obra. A Coalizão Rios Vivos passa a ser reconhecida como uma organização com legitimidade para o monitoramento desta obra pública, confrontando-se com as propostas dos próprios organismos estatais, na medida em que suas ações propositivas em relação aos conflitos e problemas socioambientais em torno da Hidrovia Paraguai-Paraná (HPP) eram bem fundamentadas. Porém, sempre muito cuidadoso em suas interpretações, Joviles adverte que “não nos interessa apontar quem venceu e quem foi vencido”. Assim, do campo da interpretação sociológica nos traz elementos relevantes para o entendimento da dinâmica e da contribuição destes novos atores coletivos em rede, dos quais gostaria de destacar: a produção de diagnósticos científicos alternativos e com credibilidade, com a contribuição de pesquisadores de reconhecida competência, e a respectiva publicização dos impactos
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e riscos socioambientais presentes no projeto governamental HPP, o que obrigou a uma revisão da proposta inicial. Vale registrar que com esse perfil, e naquele momento, a rede Coalizão Rios Vivos conseguiu respaldo positivo na mídia, o que contribuiu para o sucesso de sua ação. Nem sempre a mídia é tão sensível a demandas da sociedade civil organizada, especialmente quando envolve conflitos em relação à propriedade privada ou à redistribuição da riqueza. Talvez aqui, por se tratar de conflitos em torno de patrimônio comum da humanidade, especialmente em torno de um meio ambiente raro e diversificado, e sensibilizada pelo vídeo da WWF – “O Pantanal vai virar sertão?” – cuja denúncia, após alcançar a mídia internacional, passa a ser encampada fortemente pela mídia nacional. Joviles conclui que “o poder de pressão e influência das iniciativas civis transnacionais depende, sobretudo, da capacidade de conquistar a opinião pública e de mobilizá-la a seu favor. Quando isso não ocorre, o poder desses atores se reduz significativamente”. Novas pesquisas poderão avaliar comparativamente este caso com outros em que freqüentemente a mídia tem demonstrado uma visão negativa ou mesmo criminalizado os movimentos sociais. Este é um campo aberto à pesquisa social. Por toda sua riqueza de informações, interpretações e de desafios levantados, este livro será uma contribuição importante para os próprios atores organizados da sociedade civil, para a academia e, em especial, para pesquisadores das temáticas ambientais e dos movimentos sociais, bem como para a população em geral sensível aos destinos de nossa humanidade. Dra. Ilse Scherer-Warren Professora Titular do Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Movimentos Sociais Florianópolis, junho de 2007.
I NTRODUÇÃO
A invenção vem da imaginação e a imaginação é um labirinto em que o difícil não é a saída, é a entrada. Rubem Fonseca
Nas últimas décadas houve um exponencial crescimento do número de organizações sociais envolvidas em questões ecológicas, direitos humanos, paz, gênero, desenvolvimento sustentável, defesa das minorias, cidadania, educação, saúde pública, ajuda humanitária etc. Notadamente essa dinâmica indica uma espécie de revolução no associativismo civil em escala planetária. Os movimentos sociais e as organizações não-governamentais (ONGs), em particular, são os que melhor expressam essa proeminente dinâmica. As ONGs cresceram em número e tamanho. Parte delas atua em âmbito local e regional; um grupo mais restrito atua numa perspectiva transnacional. Diferem quanto ao volume de recursos, às orientações político-ideológicas, ao escopo de atividades, ao es-
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tatuto legal e à cultura organizacional. Movimentam um volume considerável de recursos, mas não visam a lucros. Parte delas atua isoladamente; outras formam redes e coalizões a fim de trocar informações e experiências e ampliar o escopo de suas atividades. As mais dotadas de recursos humanos e financeiros desenvolvem pesquisas, promovem campanhas, organizam lobbies, pressionam governos e instituições intergovernamentais. Um grupo seleto delas possui, inclusive, status consultivo na Organização das Nações Unidas (ONU). Os dados mais recentes sobre as ONGs internacionais (ONGIs) são particularmente ilustrativos. Em 1909, as ONGIs chegavam a 176; em 1951, eram 832; em 1981, eram cerca de 13 mil e, em 2001, chegavam a 47 mil. Entre 1981 e 2001, o crescimento foi de, aproximadamente, 300% (Anheier; Glasius; Kaldor, 2002, p. 194). Nos países que formam a OCDE, havia, em 1981, cerca de 1.700 ONGIs orientadas para o desenvolvimento. Em 1990, já eram 2.500 (Santos, 1995b). Na área de direitos humanos, a proliferação também é notória: 38 em 1950; 72 em 1960; 103 em 1970; 138 em 1980 e 275 em 1990 (Sikkink, 1993). Atualmente, cerca de dois terços dos recursos da União Européia, destinados à redução da pobreza e ajuda humanitária, são canalizados por meio das ONGs (Keane, 2001, p. 26). No período entre 1988 e 1999, o volume de recursos da OCDE, destinado aos países em desenvolvimento por meio das ONGs, foi de US$ 1,7 bilhão, um ligeiro decréscimo em relação ao valor repassado ao longo da década de 80. No mesmo período, em contrapartida, os doadores privados (indivíduos, fundações e empresas) repassaram às ONGs US$ 10,7 bilhões, mais que o dobro do valor repassado na década anterior, que foi de US$ 4,5 bilhões (Anheier; Glasius; Kaldor, 2003, p. 12). O orçamento anual do Greenpeace é de aproximadamente US$ 100 milhões; do World Wildlife Fund (WWF), é de cerca de US$ 170 milhões
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(Keane, 2001, p. 35). Os dois orçamentos superam o valor destinado ao Programa de Meio Ambiente das Nações Unidas e aquele que muitos países destinam à área de meio ambiente. A Anistia Internacional tem, hoje, mais de um milhão de membros e doadores, distribuídos em cerca de 140 países. No escritório internacional da organização, sediado em Londres, trabalham mais de 300 funcionários. A organização possui escritórios em mais 56 países, onde trabalham cerca de 100 pessoas, voluntárias ou não (Anheier; Glasius; Kaldor, 2002, p. 193). Tão importante quanto as dimensões quantitativas descritas são os aspectos qualitativos, especialmente o crescente poder político (de influência e de pressão) que esses novos atores vêm assumindo na gestão dos problemas coletivos locais e globais. As iniciativas das organizações da sociedade civil, nessa direção, são amplas, variadas e com resultados muito diversos. Para efeito de síntese, as experiências mais notórias, nas quais as organizações da sociedade civil tiveram considerável participação e revelaram sua proeminência política, foram as cúpulas mundiais organizadas pela ONU a partir de 1992. Sem superestimar a qualidade e os resultados efetivos dessa participação, as conferências ofereceram o palco e o enredo para que os atores da sociedade civil apresentassem suas posições, desacordos e propostas. Durante a Eco-92 e ao longo de todas as demais conferências internacionais organizadas pela ONU, as ONGs ganharam centralidade. Outra importante iniciativa nessa direção tem sido o Fórum Social Mundial (FSM). Já em sua sétima edição, o FSM tem sido capaz de mobilizar milhares de organizações e cidadãos em todo o mundo. A primeira edição do FSM, realizada em 2001, em Porto Alegre, contou com a presença de 4.702 participantes oficialmente inscritos; em 2002, foram 12.274; em 2003, 27 mil; em 2004, 74.126; em 2005, 155 mil e, em 2007, 60 mil (Glasius; Timms, 2006, p. 200).
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Além do crescimento quantitativo das organizações da sociedade civil a partir da década de 80 e da relevância política que esses atores conquistaram, há um outro aspecto que merece ser salientado. Trata-se da crescente dinâmica de transnacionalização dos atores civis. A mobilização das ONGs e dos movimentos sociais, nos últimos anos, tem levado inúmeros cientistas sociais, políticos e ativistas a falarem na emergência de uma sociedade civil global. Como sugerem Anheier, Glasius e Kaldor (2001, p. 17), trata-se de “uma esfera de idéias, valores, instituições, organizações, redes e indivíduos, localizados entre a família, o Estado e o mercado, que operam além das fronteiras da sociedade, da política e da economia nacionais”. Ainda que embrionária, a sociedade civil global pode ser definida como uma ampla, heterogênea e complexa dinâmica, composta por movimentos, associações e iniciativas (redes, coalizões, alianças etc.) não-estatais e não-econômicos, que ultrapassam as fronteiras dos Estados nacionais, com relativa autonomia em relação aos governos, que ligam as necessidades locais com os interesses globais, no intuito de preservar e/ou efetivar valores, princípios e interesses públicos. São iniciativas que procuram universalizar determinados princípios e valores coletivos que dizem respeito tanto ao convívio dos homens entre si quanto à relação desses com o meio ambiente onde estão inseridos. Enquanto uma globalização contra-hegemônica, é formada tanto pelas práticas de cosmopolitismo quanto pelas iniciativas em defesa do patrimônio comum da humanidade. Além de lutar pela emancipação humana, uma parte expressiva dos esforços que formam a emergente sociedade civil global visa a preservar os patrimônios que pertencem a todos, tanto às atuais gerações quanto às futuras. Por tratar-se de uma dinâmica relativamente recente, os estudos sobre os processos de transnacionalização dos atores e das práticas
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da sociedade civil são ainda muito incipientes. Apesar da enorme contribuição que as ciências sociais, e a sociologia em particular, têm dado ao estudo dos movimentos sociais, das ONGs e de outras tantas formas de ação coletiva, há uma carência de trabalhos que investiguem a atuação dos atores da sociedade civil no âmbito transnacional. Dado esse contexto, algumas interrogações de fundo motivaram o desenvolvimento desta pesquisa e foram responsáveis por uma série de outras escolhas teóricas e metodológicas. Entre tantas, cabe destacar algumas delas, consideradas as mais importantes: (1) como opera uma rede transnacional de atores da sociedade civil?; (2) que estratégias de ação são mobilizadas?; (3) que oportunidades de poder inauguram?; (4) que poder as iniciativas civis transnacionais exercem num contexto de globalização, em que os Estados e os agentes do mercado são os atores preponderantes? Tendo essas questões, decidimos “ir a campo” com o propósito de investigar uma rede transnacional de atores da sociedade civil em plena atividade. Após um extenso estudo exploratório, optamos por investigar a Coalizão Rios Vivos, uma rede de ONGs e movimentos sociais composta por aproximadamente 300 entidades civis de inúmeros países da América do Sul, Estados Unidos e Europa. Instituída em 1994, a coalizão surgiu com o objetivo de, entre outros, monitorar o Projeto Hidrovia Paraguai-Paraná (PHPP), uma ambiciosa obra proposta pelos governos da Argentina, do Brasil, da Bolívia, do Paraguai e do Uruguai, ligando o Porto de Cáceres (Mato Grosso, Brasil) ao de Porto de Nueva Palmira (Uruguai). O projeto propunha obras de grande envergadura no leito dos rios Paraguai e Paraná, capazes de provocar alterações no ciclo hidrológico dos rios e desencadear uma série de outros impactos socioambientais na região da bacia do Prata, sobretudo na região do Pantanal.
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Em 1988, os países signatários do Tratado da bacia do Prata (Argentina, Brasil, Bolívia, Paraguai e Uruguai) deram início aos trabalhos de conformação do Projeto Hidrovia Paraguai-Paraná (PHPP), uma hidrovia com extensão aproximada de 3.340 km, ligando o Porto de Cáceres (Brasil) ao Porto de Nueva Palmira (Uruguai). O Projeto HPP nasceu no bojo das negociações do Mercosul e, desde seu início, foi apontado como a espinha dorsal do Mercado Comum do Cone Sul e um importante canal de escoamento da produção agrícola da região para o mercado internacional, especialmente a soja. Dado que há séculos existe navegação nos rios Paraguai e Paraná, o referido projeto foi proposto com o objetivo de ampliar o sistema de navegação, permitindo que embarcações de maior calado pudessem trafegar vinte e quatro horas por dia e durante o ano todo. Em 1990, foi publicado o primeiro esboço da hidrovia, o Relatório Internave. A empresa contratada para elaborar o projeto e avaliar sua viabilidade econômica, a Internave Engenharia, propôs um volume considerável de obras de intervenção no leito dos rios Paraguai e Paraná. As taxas de retorno, segundo o Relatório, seriam tanto maiores quanto maiores fossem as obras de aprofundamento dos leitos, a retirada de rochas, a redução do número de curvas dos rios etc. A subestimação dos impactos ambientais de tais intervenções despertou a atenção de uma série de organizações da sociedade civil do Cone Sul e dos Estados Unidos, especialmente as ligadas ao movimento ambientalista, que passaram a denunciar a insustentabilidade do projeto HPP. Imediatamente, passaram a demonstrar que qualquer alteração no sistema hídrico do rio Paraguai provocaria redução no tamanho do Pantanal e geraria impactos imediatos sobre toda a fauna e a flora do sistema pantaneiro. Além desses e de outros tantos impactos ambientais, as ONGs também denunciaram os impactos sociais do projeto,
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especialmente os efeitos sobre os 150 mil índios que vivem na região e que dependem diretamente dos rios para a sua sobrevivência física e cultural. Durante a fase preparatória da Eco-92 e no âmbito do Fórum Paralelo, as organizações da sociedade civil aprofundaram as análises sobre o projeto HPP e começaram a discutir a formação de uma articulação transnacional. Em dezembro de 1994, uma coalizão de atores da sociedade civil de diferentes países foi criada com os propósitos de monitorar o Projeto Hidrovia, exigir acesso aos documentos e aos estudos de impacto ambiental e o direito de participar e influir no processo decisório. Com a mobilização das ONGs, o Projeto HPP se tornou polêmico e, em torno dele, estruturou-se um conflito socioambiental de grandes proporções. De interesse exclusivo do Comitê Intergovernamental da Hidrovia (CIH) e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a hidrovia foi, gradativamente, convertendo-se numa polêmica internacional. Esta pesquisa se propôs a reconstruir o conflito socioambiental que se estruturou em torno do projeto HPP com o intento de identificar as estratégias de ação e as oportunidades de poder inauguradas pelos atores civis ao longo da campanha da hidrovia. De modo mais objetivo e pontual, este trabalho pretendeu responder a duas questões fundamentais: (1) quais foram os recursos de poder mobilizados pelos atores da sociedade civil para enfrentar a “guerra de posição” e dotar sua normatividade política de capacidade de convencimento?; (2) quais foram as fontes que deram poder e legitimidade às ONGs ao longo da campanha da hidrovia? Tendo em vista as características do objeto em estudo (em forma de rede, difuso e processual), optamos por um procedimento metodológico que poderíamos denominar de histórico-reconstrutivo. Pri-
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mamos por captar o movimento, a dinâmica e a mudança de discursos e de posições dos diferentes atores que participaram do conflito em análise. Por meio de um mapeamento do conflito em estudo, procuramos descrever e analisar como os diferentes atores foram se constituindo e transformando-se ao longo do processo, ora legitimando-se, ora deslegitimando-se. O livro que ora vem a público é uma versão reduzida e modificada de uma tese de doutorado defendida junto ao Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo. Incorpora também um conjunto de estudos e reflexões desenvolvidos durante um estágio de pósdoutoramento desenvolvido no Centro de Estudos Sociais, da Universidade de Coimbra, durante o ano de 2006. O primeiro capítulo deles situa o fenômeno da globalização na sua pluralidade. As iniciativas civis transnacionais surgem no contexto da globalização e se relacionam com ela de forma muito ambivalente. Ao mesmo tempo em que denunciam e combatem determinadas causas e efeitos da dinâmica global, dela também participam com o propósito de universalizar determinados valores e práticas. Este capítulo oferece subsídios teóricos e empíricos que permitem compreender a emergente sociedade civil global como parte do processo de globalização. Além disso, situa algumas das principais dimensões do ativismo civil transnacional. O segundo capítulo mostra que não há uma explicação monocausal para a emergente sociedade civil global. Como fenômeno típico do período pós-Guerra Fria, ele se liga a um conjunto muito variado de transformações políticas, sociais e econômicas, nomeadamente o fim do socialismo real, a crise do reformismo nos países centrais e do desenvolvimentismo nos países periféricos, a expansão da democracia política e da agenda neoliberal, a crise de regulação social e política do Estado-nação e do sistema internacional e a complexificação dos pro-
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cessos e dos mecanismos de governação global. Liga-se, de forma genérica, aos processos de globalização, afirmando e nutrindo alguns, ora negando e resistindo a outros. A transnacionalização dos atores e das práticas da sociedade civil se relaciona estreitamente à crescente dinâmica da compressão do tempo-espaço político, cujo efeito mais imediato é a atual crise de regulação social e política nacional e internacional. Os Estados nacionais estão, embora de modo desigual, no centro dessa crise, sendo tanto causa quanto efeito dela. As globalizações vêm modificando, mais uma vez, os parâmetros e os termos da contratualidade entre Estado e sociedade. O terceiro capítulo reconstrói a história do projeto HPP e apresenta uma síntese dos dois principais esboços da hidrovia, apresentados pelo Relatório Internave e pelos Consórcios HLBE e TGCC. Além do detalhamento das dimensões técnicas do projeto HPP, esse capítulo destaca os principais impactos ambientais e sociais implícitos, especialmente sobre o Pantanal e sobre as comunidades indígenas sediadas na região. O quarto situa o conflito socioambiental que se estruturou em torno do projeto HPP, destacando, sobretudo, a mobilização dos atores sociais e suas estratégias de ação ao longo da campanha. O quinto capítulo detalha as estratégias de ação mobilizadas na campanha e procura entender como o poder das ONGs foi sendo gerado e exercido. Dito de outra maneira, ele situa com mais clareza o papel que os atores da sociedade civil exerceram ao longo da campanha da hidrovia.
Título
Atores sociais e meio ambiente: análise de uma rede transnacional de organizações da sociedade civil
Autor
Joviles Vitório Trevisol
Assistente editorial Assistente administrativo Secretaria Divulgação Diagramação Capa Preparação Revisão dos originais
Formato Tipologia Papel
Hilario Junior dos Santos Neli Ferrari Alexandra Fatima Lopes de Souza Josué Carvalho Franciéli Roos e Hilario Junior dos Santos Ronise Biezus Rosa Maria dos Santos Débora Vivian e Jakeline Mendes Ruviaro
16 X 23 cm CaslonOldFaceBT entre 7 e 15 pontos Capa: Cartão Supremo 350 g/m2 Miolo: Pólen Soft 80 g/m2
Número de páginas
295
Tiragem
800
Publicação Impressão e acabamento
agosto de 2007 Gráfica e Editora Pallotti - Santa Maria (RS)
Argos - Editora Universitária - UNOCHAPECÓ Av. Attilio Fontana, 591-E - Bairro Efapi - Chapecó (SC) - 89809-000 - Caixa Postal 747 Fone: (49) 3321 8218 argos@unochapeco.edu.br - www.unochapeco.edu.br/argos