O gênero gauchesco: um tratado sobre a pátria

Page 1


o gĂŞnero gauchesco


Coleção Vozes Vizinhas - Os Melhores Ensaios V.1 Raúl Antelo Maria Lucia de Barros Camargo Coordenadores

É vedada a reprodução total ou parcial desta obra.

Associação Brasileira de Editoras Universitárias

Argos - Editora Universitária - Fundeste - Campus Chapecó Av. Atílio Fontana, 591-E - Bairro Efapi - Chapecó - SC - 89809-000 - Caixa Postal 747 Fone: (49) 3218218 argos@unoesc.rct-sc.br - www.unoescchapeco.br/argos/


josefina ludmer o gênero gauchesco um tratado sobre a pátria tradução antônio carlos santos

Chapecó, 2002


CAMPUS CHAPECÓ Av. Senador Attílio Fontana, 591-E Fone/Fax (49) 321-8000 Cx. Postal 747 CEP 89809-000 - Chapecó - SC PRÓ-REITORA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO: Arlene Renk; PRÓ-REITOR DE ADMINISTRAÇÃO: Gilberto Luiz Agnolin; PRÓ-REITORA DE ENSINO: Silvana Marta Tumelero

801 L945g

Ludmer, Josefina O gênero gauchesco : um tratado sobre a pátria / Josefina Ludmer ; trad. Antônio Carlos Santos. - - Chapecó : Argos, 2002. 240 p. - - ( Vozes vizinhas – Os melhores ensaios; v.1) 1. Literatura - Teoria. 2. Literatura gauchesca. I. Título.

ISBN: 85-7535-023-4

Catalogação: Biblioteca Central Unoesc-Chapecó

EDITORA ARGOS Conselho Editorial: Cláudio Jacoski (Presidente); Arlene Renk; Marinês Garcia; Mary Neiva Surdi; Nedilso Lauro Brugnera; Odilon Luiz Poli; Valdir Prigol; Volnei de Moura Fão Coordenador: Valdir Prigol Assistente Editorial: Hilário Junior dos Santos Assistente Administrativo: Neli Ferrari Projeto gráfico e capa: Hilário Junior dos Santos Foto de capa: Regina Stella


sumário

Prólogo à segunda edição ............................................................ 07 Parte 1 - O corpo do gênero e seus limites Ensaio para a construção de um contexto e um conjunto de objetos ............................................................ I. Do lado do uso .......................................................................................... As duas cadeias ............................................................................................. As leis ..................................................................................................... As guerras ............................................................................................... Sarmiento e as palavras do espaço exterior O coração do espaço histórico do gênero ................................................. A voz “gaúcho” na voz do gaúcho: o espaço interior Um exercício com o dicionário ................................................................ Primeiro traçado do gênero ..................................................................... As margens baixas e altas do gênero - As revoluções literárias e duas definições do gaúcho como homem argentino ......................................... A transparência de Hidalgo é a distribuição das vozes .............................

13 15 18 18 19 20 28 32 40 58

II. Do lado do dom ...................................................................................... 85 “Pequeno cruzeiro preliminar a um reconhecimento do arquipélago Joyce” 85


Parte 2 - Desafio e lamento, os tons da pátria ................................ 117 No espaço interno do gênero ........................................................................ 119 Quatro definições do gênero e seu espaço interno .................................... 119 E quatro fórmulas para os tons ................................................................ 121 Os prelúdios ou o código dos tons ................................................................ 123 O desafio do cantor patriota .................................................................... 124 O lamento do letrado patriota .................................................................. 132 A lógica do cantor ................................................................................... 140 Os desafios (do lado do uso) ......................................................................... 151 A primeira festa do monstro .................................................................... 151 Outros desafios com degola .................................................................... 161 Os desafios do matreiro ........................................................................... 169 Os lamentos (do lado do dom)...................................................................... 183 A ida, fichas técnicas e notas .................................................................... 183 Os tons e os códigos em Borges .............................................................. 200 Separação dos tons em Evaristo Carriego ................................................ 200 Borges diante da lei ................................................................................. 205 Parte 3 - No paraíso do inferno - O Fausto argentino Um pastiche de crítica literária ..................................................... 215 I ............................................................................................................. 217 II ............................................................................................................ 229 Parte 4 - Pacto e pátria A picardia da curandeira do doutor Hernández ............................ 251 O livro do pacto ............................................................................................ 253 Em penitência nas margens: dois incorrigíveis .............................................. 257 Uma lição de língua nacional e um jogo com as instituições .................... 257 Inclusões externas ................................................................................... 258 Exclusões internas ................................................................................... 263 Quem educa ................................................................................................. 269 Uma revisão ........................................................................................... 269 A voz (de) “Picardia” .................................................................................... 283 E a literatura do futuro ............................................................................ 283 Anexo - Poemas traduzidos ......................................................... 297


prólogo à segunda edição

Este livro foi escrito com a idéia absolutista de que a imaginação crítica é puramente verbal. Por isso se desloca em uma série de palavras que se põem em movimento ao entrar em contato com outro universo verbal, sonoro, o do gênero gauchesco, cuja substância é a relação entre vozes ouvidas e palavras escritas. O escritor do gênero usou as posições e tons da voz do gaúcho para escrevê-lo, e nesse mesmo momento deu a voz ao gaúcho. Uso e dom, as palavras que organizam O gênero gauchesco. Neste livro escrito a duas vozes as palavras tornam-se conceitos, entram em contato entre si, referem-se umas às outras, desdobram-se, e traçam cadeias, fitas, anéis, montagens, idas e voltas. A rede de palavras em movimento constitui algo assim como um aparato verbal para ler o que então queria ler no gênero gauchesco: as formas que tomavam as relações entre o oral e o escrito e o espaço da aliança ou do anel, o lugar onde se unem. Por isso “uso” e “dom” aparecem como noções de duas caras ou de dois sentidos e se submetem a um desdobramento


o gênero gauchesco

perpétuo. As duas caras do uso do gaúcho: o uso literário da voz e o uso econômico ou militar dos corpos. E as duas caras do dom, a cara do escritor que dá a voz e a cara do patrão. A lógica dual da língua (que domina a matéria verbal deste livro e que se move em dois níveis de “realidade”: a literária do gênero e “a outra realidade”) queria representar a relação entre a cultura popular e a letrada no gênero gauchesco. No desdobramento perpétuo deste livro também pode ser lido, em um certo sentido, outro “gênero”, o feminino. Uma das fórmulas do mundo verbal do gênero: “na voz do gaúcho define a palavra ‘gaúcho’”. Anos após o aparecimento deste Tratado sobre a pátria, em New Haven e querendo inserir-me de algum modo em uma tradição crítica latino-americana, imaginei que o aparato verbal para ler o gênero gauchesco podia funcionar em outras regiões em que se têm escrito textos que põem em relação a cultura oral e a letrada e usam a voz do outro: a literatura indianista da zona andina, no Peru e Equador, e também a literatura anti-escravagista do Caribe. Escreveria um livro em três partes: a primeira consistiria em uma ficção abstrata sobre os dispositivos verbais (e políticos, econômicos, militares, didáticos, literários, sexuais) com que foi lido e escrito O gênero gauchesco. A segunda parte seria uma análise da literatura indianista da zona andina e da literatura anti-escravagista do Caribe usando esse aparato de leitura fundado na noção de uso dos corpos, em correlação com o uso das vozes. E a terceira parte seria uma “teoria” sobre estas três literaturas latino-americanas que fizeram ouvir a voz de um corpo usado para a guerra, para a economia, e também para o sexo. O livro futuro queria ser também uma história dos problemas dos sujeitos modernos, progressistas, que escreveram essas ficções no marco da nação-estado. Analisaria os dramas de representação do escritor: gerar sub-alteridades ou sub-alternidades, falar pelo outro, falar do outro, falar o outro: usar e dar-lhe a voz. 8


prólogo à segunda edição

Essas três literaturas foram escritas ou culminaram em momentos em que as economias regionais entravam no mercado mundial e, portanto, no momento em que o gaúcho, o índio e o negro eram os produtores da riqueza nacional (o livro futuro deveria conter dados econômicos precisos sobre as três regiões). Colocaria então esses gêneros de distribuição e administração das vozes em territórios específicos: a região chave, produtora, da nação, o território do poder econômico: a estância, a fazenda, a mina, o engenho. Estes seriam os cenários do livro; em um capítulo seguiria os trajetos dos forasteiros e os escravos fugitivos - dois sujeitos que persistem nos três gêneros por esses territórios. Imaginei o título desse livro (“Gaúchos, índios, e negros. Aliança de vozes nas culturas latino-americanas”) para poder pensar verbalmente as três regiões que fizeram destas literaturas (destes “gêneros” de duas culturas) um elemento central de sua identidade cultural e nacionalestatal. Gênero gauchesco, gênero indianista, gênero anti-escravagista acompanham a história da idéia do nacional-popular; escreveria um capítulo sobre a história dessa idéia estatal. E também acompanham a história da constituição de identidades latino-americanas na relação entre região e nação (outro capítulo estaria dedicado a esta relação). E como não há postulação de identidade sem um trabalho com os tons da voz, sem afecto-música na voz, seguiria na literatura de José Maria Arguedas o que dizem os personagens em quíchua ou em espanhol para poder ver as relações exatas entre as duas línguas-culturas: as relações de tradução, de transcrição, de edição. A chave eram as posições e tons da voz do índio e do negro em conjunção com a escritura; a chave era, outra vez, o tipo de aliança. O livro seria também uma história das alianças - sonhadas, desejadas, postuladas - desses escritores modernos, progressistas (em relação ao estado e à lei) com os outros e suas culturas (com sua voz e sua língua) contra o inimigo político ou econômico. Um capítulo dedicado a “Diamantes y pedernales”, 1954, de Arguedas, mostraria os limites possíveis da aliança.

9


o gênero gauchesco

Estas textualidades especificamente latino-americanas levam-nos a pensar que a literatura, quando trabalha a duas vozes, com as duas culturas, politiza-as de um modo imediato. Funde o político e o cultural porque funda as linguagens com relações sociais de poder. E porque não há relação entre culturas sem política porque entre elas só há guerra ou aliança, queria que o livro fosse, outra vez de um modo absolutista, puramente político-cultural. Que fosse uma reflexão sobre certa literatura latino-americana fundada nos usos diferenciais das vozes e palavras dos gaúchos, índios e negros, que definem os sentidos dos usos dos corpos. (Imaginava que nos corpos torturados, marcados e abjetos dessas literaturas encontraria o segredo do desdobramento perpétuo da língua.) Pensava também que em Aves sin nido (1889) de Clorinda Matto de Turner, e em Saab (1841) de Gertrudis Gómez de Avellaneda, poderia ler, também, esse gênero feminino que faz alegoria, como o gênero gauchesco, com o indianismo e o abolicionismo, e depois com o gênero de testemunho. Ao largo destes anos de New Haven o livro foi sempre futuro porque não há relação entre culturas sem a dimensão do futuro: os gêneros gauchesco, indianista e anti-escravagista formariam séries com diversas descendências e se abririam a outros gêneros literários como o Bildungsroman, a autobiografia e o testemunho. O desejo de continuar e pluralizar o Tratado sobre a pátria só gerou um livro excessivo e espectral, que se dissolveu no ar quando fui mergulhando na bibliografia desta tradição crítica latino-americana1 e

1. A história da relação entre as duas culturas identifica-se com a história, já clássica, de uma tradição crítica latino-americana que se abre com o conceito de transculturação de Fernando Ortiz (Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar, 1940) e conclui talvez com o conceito de subalternidade. Uma e outra história coincidem. Para Fernando Ortiz a transculturação é um processo cultural –social em que as diversas culturas se fundem na vida cotidiana e na cultura. O conceito foi adaptado à literatura por Ángel Rama (Transculturación narrativa en América Latina, México, Siglo XXI, 1982), que

10


prólogo à segunda edição

percebi que o que eu havia imaginado já estava tudo dito, tudo escrito, e que nunca escreveria esse livro. Para cobrir esse vazio reedita-se hoje O gênero gauchesco. E para deixar que a imaginação crítica mostre sua substância puramente verbal, tratei de despojar esta edição dos números, letras e gráficos que abundavam na primeira. New Haven, março de 2000

também escreveu Los gauchipolíticos rioplatenses. Literatura y sociedad (Buenos Aires, Calicanto, 1976). Para Rama a transculturação aparece como uma mestiçagem cultural; ocorre entre a alta cultura e a subalterna, está a cargo de uma vanguarda de escritores e críticos, e se relaciona à identidade nacional e ao estabelecimento e consolidação do Estado. Diz Rama que a literatura de José Maria Arguedas mostrou que era possível a fusão das culturas, porque essas operações não se situam nem no nível dos assuntos nem dos programas explicativos, mas funcionam no texto mesmo. Antonio Cornejo Polar (Literatura y sociedad en el Perú: la novela indigenista, Lima, Lasontay, 1980) expôs o problema a partir da categoria da heterogeneidade. Nas literaturas heterogêneas, diz, um ou mais de seus elementos constitutivos correspondem a um sistema sócio-cultural que não é o que preside a composição dos outros elementos postos em ação em um processo concreto de produção literária. Na novela indianista plasma-se exemplarmente a heterogeneidade que define o indianismo. Esta novela não deve ser compreendida em relação exclusiva com o mundo indígena, mas como um exercício cultural que se situa na interseção conflituosa de dois sistemas sócio-culturais, tentando um diálogo que muitas vezes é polêmico, e expressando, no nível que lhe corresponde, um dos problemas medulares da nacionalidade: sua desmembrada e conflituosa constituição. Em Escribir en el aire. Ensayo sobre la Heterogeneidad Cultural en las literaturas andinas (Lima, Horizonte, 1994), Cornejo Polar reelaborou e pluralizou o conceito de heterogeneidade. E em um de seus últimos trabalhos (“Una heterogeneidad no dialéctica: Sujeto y discurso migrante en el Perú moderno”, Revista Iberoamericana, 1996: 176-177 e 837-844) analisou a migração do altiplano às cidades costeiras do Peru. Diz Cornejo Polar que este “fenômeno diaspórico” debilita a base andina essencialista do nacionalismo utópico de Arguedas, que imaginava uma “nova cidade” que sintetizaria os melhores elementos da costa criolamestiça com os Andes indígenas. Arguedas produziu essa “alegoria nacional”, mas a imigração debilitou a autoridade do modelo indianista. Nesta tradição crítica insere-se também Alejandro Losada (La literatura en la sociedad de América Latina; Perú y el Río de la Plata: 1837-1880, Frankfurt, Vervuert, 1983). E Martín Lienhard (La voz y su huella. Escritura y conflicto étnico-social en América Latina 1492-1988, Hanover, Ediciones del Norte, 1991). E também se insere Carlos Pacheco, com “Trastierra

11


o gênero gauchesco

y oralidad en la ficción de los transculturadores”, Revista de crítica literaria latinoamericana contemporánea, Año XV, Nº 29, Lima, 1989: 25-38. E com seu livro La comarca oral. La ficcionalización de la oralidad cultural en la narrativa latinoamericana contemporánea, Caracas; La Casa de Bello, 1992. São importantes as compilações La voz del otro: testimonio, subalternidad y verdad narrativa, editado por John Beverly e Hugo Achugar, Lima e Pittsburgh: Latinoamericana Editores, 1992. E Asedios a la heterogeneidad cultural. Livro de homenagem a Antonio Cornejo Polar, coordenado por José Antonio Mazzotti e U. Juan Zevallos Aguilar, e editado pela Associación Internacional de Peruanistas, 1996 (aqui se encontra o artigo de Martín Lienhard “Mestizajes, heterogeneidades, hibridismos y otras quimeras”, em que a relação entre as duas culturas é pensada como diglossia). A história da relação entre as duas culturas na crítica latino-americana culmina, de certo modo, na “Declaración Fundadora del Grupo Latinoamericano de Estudios Subalternos” (“Founding Statement, Latin American Subaltern Studies Group”, que apareceu em The Postmodernism Debate in Latin America, editado por John Beverly, José Oviedo e Michael Aronna, Durham e Londres, Duke University Press, 1995. Este grupo se baseou em parte na desconstrução historiográfica que Ranajit Guha (fundador dos “Estudos da Subalternidade”) realiza em seu trabalho “La prosa de la contra-insurgencia” (em Silvia Rivera Cusicanqui e Rossana Barragán, (comps.), Debates Post coloniales: Una introducción a los Estudios de la Subalternidad, La Paz, Bolivia, Historias/SEPHIS/Aruwiyri, 1997: 3372). Para Guha a subalternidade é um problema de representação, como para o Grupo de Estudos Subalternos. Guha critica as construções teleológicas (explicar um fato do passado como antecedentes de acontecimentos posteriores) e as “grandes narrativas”. John Beverly (“Los límites de la ciudad letrada: subalternidad, literatura y transculturación”, em Historia y Grafia. Expediente Historia y subalternidad, México, Universidad Iberoamericana, nº 12, 1999: 149-176) relaciona a idéia de transculturação de Ángel Rama com a teoria da dependência (necessidade de produzir uma cultura e uma literatura nacionais), e diz que o importante para os estudos subalternos hoje (frente às mudanças devidas aos meios massivos que deixam de lado a idéia de uma cultura literária como modelo ou prática de uma cidadania) é registrar os momentos em que aparece uma contra-racionalidade oposta à racionalidade do Estado colonial ou nacional-burguês. Sustenta além do mais que é necessário um nacionalismo multicultural ou cultural homogêneo, não baseado na lógica da transculturação ou hibridização.

12



Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.