O beijo através do Atlântico: o lugar do Brasil no panlusitanismo

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O beijo através do Atlântico ○


Coleção Debates Argos - Editora Universitária Unoesc-Chapecó Av. Attílio Fontana, 591-E - Bairro Efapi, Chapecó - SC 89809-000 - Caixa postal 747 - Fone: (49) 321 8218 E-mail: argos@unoesc.rct-sc.br

Associação Brasileira de Editoras Universitárias


MARIA BERNARDETE RAMOS ÉLIO SERPA HELOISA PAULO (Organização)

O beijo através do Atlântico ○

O lugar do Brasil no Panlusitanismo

Chapecó, 2001.


Conselho Editorial: Odilon Luiz Poli (Presidente); Arlene Renk; Claudio Jacoski; Marinês Garcia; Mary Neiva Surdi; Nedilso Lauro Brugnera; Valdir Prigol; Volnei de Moura Fão Diretor Executivo: Valdir Prigol Assistente Editorial: Hilário Junior dos Santos Assistente Comercial: Berenice Kopstein Assistente Administrativo: Neli Ferrari Revisão: Ana Alice Bueno e Arisangela Denti Projeto Gráfico: Hilário Junior dos Santos Diagramação: Mauren Rigo e Rodrigo Francisco Cozer Capa: Hilário Junior dos Santos e Rodrigo Francisco Cozer, com reprodução da gravura “Alegoria de Mora”, comemorativa do Centenário da Independência do Brasil, encontrada na casa de um emigrante retornado, Beira Alta, Portugal

O beijo através do Atlântico : o lugar do Brasil no 981 Panlusitanismo / Maria Bernardete Ramos, Élio B422b Serpa, Heloisa Paulo (orgs.) - - Chapecó : Argos, 2001. 480 p. - - (Debates)

1. Brasil - História. 2. Portugal - História. 3. Relações internacionais - Brasil - Portugal. I. Ramos, Maria Bernardete. II. Serpa, Élio. III. Paulo, Heloisa. IV. Título. ISBN: 85-7535-006-4

Catalogação: Biblioteca Central Unoesc-Chapecó

UNIVERSIDADE DO OESTE DE SANTA CATARINA Santo Rossetto REITOR

PRÓ-REITORA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO: Arlene Renk PRÓ-REITOR DE ADMINISTRAÇÃO: Gilberto Luiz Agnolin PRÓ-REITORA DE ENSINO: Silvana Marta Tumelero


Sumário ○

Apresentação ...................................................... 07 I

Presença portuguesa nas comemorações do Quarto Centenário do Descobrimento do Brasil Vânia Maria Cury ........................................... 25

II

A participação do Brasil na exposição do mundo português Luciene Lehmkuhl ........................................... 63

III

Brasil e Portugal nas revistas portuguesas: língua, literatura e história Élio Serpa........................................................... 89

IV

Portugal no discurso do catolicismo brasileiro pré-conciliar Artur Cesar Isaia ............................................. 137


V

Fragilidades do Absolutismo Português do século XVIII na América Meridional Augusto da Silva ............................................. 175

VI

O Brasil no ensino da História em Portugal António Simões Rodrigues ............................ 223

VII

Empresários portugueses na indústria têxtil do Rio de Janeiro (1870-1914): uma dimensão da presença lusitana na economia brasileira Almir Pita Freitas Filho Margareth Guimarães Martins ..................... 249

VIII

Norton de Matos, O Brasil e as raízes do paraíso - a construção da colônia ideal e o ideal colonialista Heloisa Paulo Armando B. Malheiro da Silva ..................... 279

IX

Germanismo e germanofilia numa revista universitária: o “Boletim do Instituto Alemão” da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (1926-1943) Luís Reis Torgal ................................................ 327

X

A intimidade luso-brasileira - Nacionalismo e Racialismo Maria Bernardete Ramos ............................... 357

XI

A cultura alemã como “ameaça” à cultura lusobrasileira: nacionalização e conflitos culturais em Santa Catarina Méri Frotscher .................................................. 423


Apresentação ○

Afonso Celso (1860-1938), jornalista, romancista, professor, republicano na monarquia e monarquista na república, presidente perpétuo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, filho do Visconde de Ouro Preto, pertenceu ao círculo dos intelectuais que, no início da República brasileira, sonharam em reabilitar o passado da ex-colônia portuguesa, pela defesa do catolicismo e da “raça lusitana”. Na sua obra “Por que me 1 ufano de meu país” , muitas vezes reeditada, faz o elogio do Brasil, pela natureza, pelo povo e pela história. As primeiras razões do ufanismo encontrar-se-iam na base territorial. Um mundo que supera em tamanho a

1. CELSO, Afonso. Porque me ufano de meu país. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1997.


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maioria dos países do globo, uma beleza reconhecida pelos viajantes, poetas e pintores, imensa riqueza natural, variedade e amenidade de clima. Privilegiado pela Providência, o Brasil do qual se ufana Afonso Celso não apresenta flagelos, catástrofes, ciclones, terremotos, vulcões. A natureza não amedronta, não maltrata e não aflige. Na seqüência, a cartografia da população. O Brasil é grandioso em sua composição: beleza, força e coragem do índio; estoicismo, coragem e labor do negro; bravura, brio, tenacidade, união, filantropia, amor, trabalho, patriotismo do português. Afonso Celso, na sua narrativa, mapeia as razões para a existência da nação brasileira, cimentando-a no ideário nacionalista: sentimento de independência, afeição à ordem, civismo e cumprimento do dever, moral cristã, caridade, tolerância, honradez, doçura... A procura de um caráter nacional, ou da identidade nacional, do Brasil Independente, fora uma problemática constante entre os intelectuais brasileiros. Na Europa, o Romantismo inseriu-se numa dialética negativa com o presente. No Brasil, o Brasil-só-natureza reconfortava o poeta frente aos costumes e “usanças” da terra, paródias do atraso cultural. A nação mestiça que sonhava constituir-se como branca, e que experimentava os primeiros impulsos da indus-trialização, desejava ver-se moderna. Nos finais do século XIX, no timbre ufanista à moda de Afonso Celso, festejou-se o IV Centenário do Brasil, projetado no desejo de idealizar uma civilização branca, católica, de matriz portugue○

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sa. Dentro da tradição judaico-cristã, repensou-se a relação do homem com o tempo, no retorno do milenarismo de fim de século. O tempo das Grandes Navegações, constituído como promessa da nova primavera do mundo, na interpretação de Marilena Chauí, é re-atualizado. Os profetas Daniel e Isaías, os evangelhos de Mateus, Lucas e Marcos e o Apocalipse de João são referenciais míticos fundamentais que mobilizam 2 os homens na conquista do outro e de territórios , entorno do século XIX, como “no tempo das grandes navegações”. Ao se considera que o mito move e unifica vontades humanas, especialmente na civilização ocidental, católica, entende-se como o apelo à Bíblia, naquilo que ela tem de profético, forneceu as condições míticas para a idealização do “Quinto Império Lusíada”, no desejo de que houvesse um só pastor e um só rebanho “sob a égide de Portugal”. O IV Centenário do descobrimento do Brasil teve o Rio de Janeiro como palco das festividades, exposições, congressos e lançamentos de livros, paradas militares, solenidades políticas, banquetes oficiais, regatas, cortejos festivos, coretos musicais e muito foguetório, em torno da Baía da Guanabara. A elite mostrava seus anseios. Este é o tema, neste livro que ora apresentamos, do I capítulo, “Presença Portuguesa nas Comemora-

2. CHAUÍ, Marilena. Profecias e tempo do fim. In: NOVAES, Adauto. (org.). A descoberta do homem e do mundo. São Paulo: Cia das Letras, 1998, p. 454. ○

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ções do quarto Centenário do Descobrimento do Brasil”. O sonho de uma civilização moderna branca nos trópicos, tal qual esperava realizar o grupo hegemônico republicano, encontrou fundamento e matriz no passado colonial português. A nossa herança lusitana fora exaltada. Convidados os intelectuais portugueses para o festim, estes trouxeram o tema das grandes navegações como mito da nação forte e imperialista. Re-encenavam os escritos do Padre Antônio Vieira, intitulado “História do Futuro ou do Quinto Império do Mundo e as Esperanças de Portugal”. Portugal, pelo escrito do padre Antônio Vieira, colocava-se como o escolhido para realizar a obra portuguesa do milênio, o “Quinto Império do Mundo”. O Brasil profeticamente aparecia como feito divino do gênio de Camões e constituía-se no mote da geração de intelectuais das próximas décadas, entrando no período Salazar, para renascer os tempos áureos do Império Português e o sonho de sua antiga unidade. Antônio Sardinha, ao escrever o texto “A lição do Brasil”, em homenagem a Jackson de Figueiredo, proclamara que: “O Brasil, criação inconfundível do gênio de Portugal, seu filho primogênito, seu morgado e esplêndido continuador, resultou como nacionalidade concorde das duas forças tradicionais que fizeram a nossa pátria e que o nosso nacionalismo se impôs a defender e a rea3 bilitar: a Igreja e a Realeza” . No final dos anos 20, a intelectualidade portuguesa, principalmente a que gi3. SARDINHA, Antonio. A lição do Brasil. In: Revista Nação Portuguesa, 1928. ○

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rava em torno dos princípios da Revista Nação Portuguesa, proclamava, em meio ao anticlericalismo da jovem república, a restauração dos princípios do catolicismo e da monarquia. Ao projetarem o “V Império Português”, mergulhavam numa tradição intelectual – vinda desde o padre Antônio Vieira – que ornava o mito da unidade lusitana. E já que o mito tece os significados das relações do homem com o mundo, com Deus e com o outro, a religião, a língua e a história, ditas comuns, constituir-se-iam no ligamento que funde a uni4 dade, evita os desmoronamentos e os desvios . Nas primeiras décadas do século XX, “O mundo que o português criou” enfrentava os abalos provocados pelos interesses ingleses, franceses e americanos, no que se referia ao Brasil e às colônias africanas. Estabelecer a unidade, fazer ressurgir o “V Império”, significaria lidar com o outro através de vozes autorizadas pelo passado, como a do padre Antônio Vieira. O desejado “V Império” da era Salazar assentava-se nos princípios do catolicismo, da unidade lingüística, do passado comum. O historiador Fernando Rosas destaca que “o império aparece como ser ontológico, como realidade transtemporal inerente à essência orgânica da Nação, como imperativo da raça, redescoberto através do reencontro que o Estado Novo Salazarista operara na

4. Cf. ANSART, Pierre. Ideologias, conflitos e poder. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978, p 28-9. ○

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nação, isto é, com seu passado heróico . A tessitura das relações entre o criador – Portugal - e a criatura – Brasil - marcadas por turbulências, é, pois, pensada neste momento muito específico em que o país criador de nacionalidades via-se na contingência de se mostrar ao mundo como criador de nações; o Brasil comemorava sua origem européia, para dourar sua entrada na civilização, potencializando e reforçando a glória do país colonizador. Para a festa do V Centenário do Brasil apresentada em grande estilo no Pavilhão do Brasil na Exposição do Mundo Português, em 1940 (capítulo II, “A participação do Brasil na Exposição do Mundo Português”), arranjos políticos, comerciais, turísticos, pouco entusiasmo despertaram entre os historiadores. Talvez o convite não tenha vindo, ou não tenha chegado, com a clara intenção de comemorar/rememorar nosso passado colonial. No entanto, oportunidades foram criadas para a reflexão sobre a História do Brasil. Arquivos foram abertos outra vez, fontes foram relidas, publicações enriqueceram os debates em torno das relações entre Brasil e Portugal. A coletânea reunida aqui em “O beijo através do Atlântico: O lugar do Brasil no panlusitanismo”, constituí-se em mais uma das práticas de escrita da história, manifestadamente política. São resultados de pes-

5. ROSAS, Fernando. Estado Novo, Império e Ideologia Imperial. In: Revista de História das Idéias, n.º 17, 1995, p. 21-2. ○

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quisas em ambos os países sobre afinidades, dissonâncias e ambigüidades das práticas discursivas, empreendidas por grupos de intelectuais interessados ou não no estabelecimento das relações de ordem cultural, política e econômica, na primeira metade do século XX. Os autores discutem como o “Portugal” presente no “Brasil”, por força da inventada e invocada tradição, era cultuado, reafirmado ou negado por intelectuais envolvidos no processo de construção da nacionalidade, conservadora e autoritária, de ambos os países. Uma relação ambígua, fluída, controversa, sustentada no mito da origem, o que conferia a Portugal o status de “criador de nacionalidade” – o Brasil moderno. A língua, a história e a literatura, tema do capítulo III, “Brasil e Portugal nas revistas portuguesas: língua, literatura e história”, e o catolicismo, tema do capítulo “Portugal no discurso do catolicismo brasileiro pré-conciliar”, constituíramse em suporte básico, desafio para a intelectualidade comprometida com o estabelecimento de relações amistosas entre a ex-colônia e a ex-metrópole. Língua, literatura e história eram pressupostos para criar a adesão do Brasil à causa da lusitanidade, tal como se expressou Afrânio Peixoto por ocasião da exposição de livros portugueses, realizada durante a visita de Júlio Cayolla, diretor das colônias portuguesas, ao Brasil: “livros do nosso passado comum, quando Portugal, antes e depois de nós, inventou o mundo...quando nos defendeu, conosco, das cobiças estrangeiras. Tesouro de cultura, jóias de conhecimen○

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to e de memória” . Criar uma memória comum, apagar as dissidências, era trabalho fundamental, uma vez que o antilusitanismo no Brasil fazia parte da própria instituição da nacionalidade brasileira. Renato de Almeida, jornalista brasileiro respondendo a Fidelino de Figueiredo, editor da “Revista de História”, posicionava-se contrário à idéia de se considerar o Brasil um desdobramento português na América; nosso destino, segundo Almeida, não seria dar continuidade à obra portuguesa, mas fazer algo livre e próprio, com marcas das influências e heranças recebidas, mas sem sujeição política, nem unidade literária com Portugal; nem haveria como falar de raça comum, uma vez que o caldeamento étnico do Brasil produzira tipos diversos dos portugueses, assim como, a língua acentuava cada vez mais a separação. O Brasil, com o qual Portugal estava interessado em se relacionar como “país irmão”, encontrava-se também em pleno contexto nacionalista em busca de justificativas internas para afirmar sua identidade, em busca do povo, tentando, por vários meios, especialmente, pelos debates em torno da língua falada e da literatura, afirmar sua originalidade em relação à mãe pátria. Cabia à literatura e à historiografia indicarem

6. CAYOLLA, Júlio. Brasil - Terra Lusíada. Lisboa: MCMXLII, 1942, p. 19. ○

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as suas peculiaridades. A historiografia, praticada pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tentava corresponder à expectativa da configuração da Nação pela escrita de uma história que criasse referenciais de sustentação à continuidade européia. A literatura, por sua vez, vista como expressão e, conseqüentemente, como prova da existência da Nação, assumia não só o seu caráter nacional, pela diferença que tentava estabelecer com a literatura da antiga metrópole e, ainda, pela função política que assumia na tentativa de enquadrar o Brasil no mundo civilizado. Na proposta de construção de uma literatura nacional muitos dos intelectuais brasileiros afastaram-se das relações com Portugal, dialogaram com a França, com a Inglaterra. Lúcio de Azevedo, intelectual português, manifestou-se na Revista de História, perguntando se “realmente existe no Brasil a idéia de que este país seja propriamente uma colônia mental de Portugal”? Para ratificar sua assertiva, fez uso de uma fala de Joaquim Nabuco, proferida na Academia Brasileira de Letras: “Portugal tem muito pouco de primeira mão que lhe queremos tomar, uns e outros nos fornecemos de idéias, de erudição e pontos de vistas nos fabricantes de Paris, de Londres e 7 Berlim” . O Brasil, nação mestiça que sonhava constituir-

7. NABUCO, Joaquim. Academia Brasileira de Letras. In______ Escritos e discursos literários. São Paulo/Rio de Janeiro: Cia Editora Nacional/Civilização Brasileira, 1939, p. 201. ○

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se como branca, desejava romper com o passado colonial, tecendo novas relações no contexto internacional, apropriando-se de idéias econômicas, políticas, culturais e tecnológicas que lhe possibilitassem superar o passado de colônia portuguesa. Observamos que desde os tempos da colônia, a unidade política cultural entre o colonizador e o colonizado ensejava constantes arranjos políticos. Exemplo disso é tratado no capítulo V, “Fragilidades do Absolutismo português no século XVIII na América Meridional”. Os poderes locais pontuam conflitos e ações de acomodações de dissensos, na relação Brasil (colônia) e Portugal (metrópole). Se para o Brasil, a afirmação da identidade nacional podia negar a identificação com Portugal, para os portugueses, o passado das grandes navegações e a imagem da sua “vocação” colonial são dados inerentes ao discurso nacionalista, seja ele republicano ou salazarista. No entanto, havia também uma certa complexidade. Os intelectuais portugueses tinham dificuldades em lidar com a história do Brasil, como nação independente. Os manuais escolares conferiam uma presença diminuta e, por um longo período, pelo menos até 1974, a memória preservada através da escrita da história em Portugal, conforme o capítulo VI, “O Brasil no Ensino da História em Portugal”, é perspectivada por uma visão europeísta, ou seja, em que a Europa é tida, quase naturalmente, como mestra do mundo. Afirmar-se colonizador e negar-se colonizado

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são jogos políticos que expressam dissensos, os quais aparecem de forma explícita, com lucidez, na maioria dos casos, por entre os discursos. Temos a compreensão de que a busca pela notoriedade e glória demanda conscientes estratégias políticas. Marcar a diferença deveria ser o postulado da ex-colônia; mostrar a permanência era o da ex-metrópole, que se arvorava no direito dado pela história de conduzir vontades, definir destinos e propor caminhos para além de seu território. O Atlântico, assim como o Mediterrâneo no tempo dos romanos, era o maré-nostrum, que a “política do espírito” do governo Salazar deveria singrá-lo simbolicamente pelo beijo, porque em tempos idos já havia sido conquistado pelo gênio português. Isto possibilitaria a tão almejada conexão Lisboa/Rio de Janeiro/Angola. A política de aproximação entre Brasil e Portugal contava, em boa medida, com o empenho de grupos ou indivíduos que se destacavam entre o enorme contingente de imigrantes portugueses no Brasil. Estes formavam entidades associativas, as Colônias Portuguesas, sobre as quais recaía tanto a defesa dos interesses econômicos, junto ao governo brasileiro – um dos aspecto desta economia é tratada no capítulo VII, “Empresários portugueses na indústria têxtil do Rio de Janeiro” - como a propaganda da nação de origem entre os associados. O Estado Novo português tinha plena consciência da necessidade de incentivar os vínculos de seus emigrados com a pátria de origem. A mensagem para o candidato à emigração, através da Junta de Emigração ○

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que fazia o engajamento oficial do estado salazarista, era o “apelo ao nacionalismo e a fidelidade a Portugal, do qual o regime se coloca como defensor”. Os periódicos nacionalistas, pró-identidade com a pátria-mãe, alguns existentes desde o século XIX, são mantidos pelos patrícios mais abastados e geridos pelos mais cultos. Nos anos trinta, no governo Vargas especialmente, ganharam força e tornaram-se “obrigatórios” nos estabelecimentos comerciais e casas dos portugueses. A imagem do Brasil como “filho dileto” de Portugal era peça fundamental na elaboração do nacionalismo português ancorado no império colonial. A Grande Guerra e a Liga das Nações trouxeram consigo uma nova visão das questões coloniais. A idéia de que só podia ser mandatária a potência que dispusesse de dinheiro e de técnica para desbravar, valorizar e civilizar os países atrasados, ameaçava Portugal, nessa época, considerado pobre, desgovernado e incapaz. O pensamento e a ação de Norton de Matos, em Angola, como Governador-Geral e Alto-Comissionário, discutidos no capítulo VIII, “Norton de Matos, o Brasil e as raízes do paraíso”, referem-se aos esforços para a modernização do sistema colonial português: a defesa militar contra as pretensões germânicas na região e a demonstração de que Portugal queria, sabia e podia gerir os seus territórios ultramarinos em total sintonia com o espírito civilizacional moderno. O Brasil viria a ser um campo de referência na construção de um império colonial português indivisível em África. Daí a criação, em 22 de Maio de 1930, da socie○

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dade Luso-Africana no Rio de Janeiro, voltada para a defesa e divulgação dos ideais colonialistas na excolônia, especialmente entre os membros das Colônias Portuguesas do Rio de Janeiro e de São Paulo. O objetivo era fazer a campanha do panlusitanismo. Adotando como símbolo o escudo português, ladeado de oito castelos representantes das diversas colônias, a associação tinha como legenda “Pela Raça, Pela Língua”. Como mote da campanha propagandística está a idéia da criação de uma “nação panlusa”, formada por uma “raça lusônia”, para criar nos brasileiros a idéia de considerarem “como seus irmãos esses outros ramos da raça lusônia, de tal maneira que esses filhos mais novos do panlusismo se encontrem, de futuro, fortalecidos pela idéia de que atrás deles se encontra a sombra protetora deste seu grande irmão mais velho, desta grande nação panlusa que é o Brasil” (p. 321, neste livro). O sonho panlusitano projetava-se, pois, dentro da nova ordem mundial. Os pan-etnicismos das primeiras décadas do século XX giravam em torno dos nacionalismos étnicos, línguísticos ou culturais e serviam, agora, de bases ideológicas para reordenar e legitimar novos blocos de alianças e acordos políticos, comerciais, econômicos, destronando a velha ordem dos impérios coloniais. Falava-se em turkificação do Império Otomano, russificação das terras tzaristas; falavase em pan-americanismo, em pan-eslavismo, surgia o pangermanismo. A influência, em Portugal, da cultura germânica

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e do germanismo como base de uma unidade nacional, vinha do século passado. Tal verificou-se no domínio da literatura, da história, da filosofia, da sociologia, da antropologia, das teorias sociais, ou da explicação científica do Homem, da Natureza, do Direito e da Filosofia do Direito, discutido aqui no capítulo XIX, “Germanismo e germanofilia numa revista universitária – O Boletim do Instituto Alemão da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (1926-1943)”. Mas no caso presente, mais do que o intercâmbio cultural, importa talvez encontrar uma linha fundamental do seu percurso, no contexto geral das linhas de rumo da cultura portuguesa das primeiras décadas do século XX. Não há dúvida que depois da geração de 70, revolucionária e republicana de fundo racionalista, científica e positivista, a “nova geração”, que despontava no princípio do século XX– ou mesmo na década de 90 do século anterior – apontava para outro tipo de concepções, mais sentimentais, de cunho nacional, se não mesmo nacionalista, ligadas à terra, ao país e à religião, ao povo, à alma nacional, à raça. É esse, por exemplo, o sentido da “Renascença Portuguesa”, da Sociedade Nacional de História e do discurso da Reconstrução Nacional. Um consenso cultural de sentido nacional por parte significativa dos intelectuais dos anos 20, momento em que surge também uma série de partidos de caráter político que anunciam o espírito de “Revolução Nacional”, vai eclodir em 28 de maio de 1926, com o fim da República e o início do período Salazar. O Boletim do ○

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Instituto Alemão criado para ser um órgão científico e cultural imprime uma germanofilia simpática do nazismo. O desejo de unidade portuguesa movia a reflexão sobre a unidade alemã – uma unidade cultural e espiritual e não só propriamente política –, com admiração perante o poder indelével e miraculoso da idéia nacional, da idéia de integridade nacional, da idéia de nacionalidade. A interpretação do discurso intelectual de aproximação Brasil-Portugal pelo viés da lusitanisação do Atlântico Sul, a partir de premissas raciais e a exemplo do que acontecia com os pan-etnicismos das primeiras décadas do século XX, é o tema do Capítulo X, “A intimidade luso-brasileira: racialismo e nacionalismo”. Tratava-se de acomodar uma unidade política com base étnica, dentro da cultura nacionalista vinculada à cultura de raça como base da hierarquia das nações. Questão bastante difícil para Portugal, uma vez que o Brasil era tido como país miscigenado, às raias da degeneração. Pelo lado do Brasil, o dilema também se fazia presente. Se este se debatia sobre a fatalidade da miscigenação no âmbito da colonização portuguesa, como, então, a ex-colônia participaria das comemorações centenárias de 1940, as quais apresentavam Portugal imperialista e colonialista? Como o Brasil cunharia o signo da brasilidade com base na história da colonização portuguesa, alçando o português a raça originária da nação? A defesa da construção da nacionalidade fundamentada na valorização do elemento luso-brasileiro ○

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está relacionada à problemática da concentração das populações descendentes de alemães, no Sul do país, tida como uma ameaça à brasilidade. A grande motivação das discussões acerca do “perigo alemão” pela falta de assimilação dos descendentes de alemães é tratada no capítulo XI, “A cultura alemã como ameaça à cultura brasileira: nacionalização e conflitos culturais em Santa Catarina”. Se a política imigratória da segunda metade do século XIX continha a intenção do branqueamento da nação pela introdução da “grande, bela e vigorosa raça ariana”, a presença alemã agora parecia uma ameaça à identidade nacional. Intelectuais, a exemplo de Sylvio Romero e Oliveira Vianna, vêem a concentração dos alemães no Sul do país como risco fatal de separação ou mesmo de conquista Alemã de terras brasileiras. Além da idéia de espalhar os descendentes de imigrantes europeus para promover o branqueamento da população brasileira, Romero defendeu o “revigoramento do caráter brasileiro” através do reforço da influência do elemento português, “já que os europeus de outras origens quaisquer não querem espalhar-se por toda a parte”. Era o português o que tinha a melhor qualidade de aliar-se aos demais habitantes, portanto, o que convinha ao ideal de branquear o país, por intermédio da miscigenação. Não se pode minimizar, portanto, o papel significativo do discurso nacionalista na invenção das maquinarias imaginárias para a constituição da nação, ○

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as quais emergiram, na Europa, a partir de 1830 e desdobraram-se como mito, ao longo do século XIX e primeira metade do século XX. De 1830 a 1880, esboçamse os chamados “princípios de nacionalidade”; de 1880 a 1918, constitui-se a “idéia nacional”; e de 1918 aos anos de 50/60 do século XX, explode a chamada “ques8 tão nacional” . No primeiro momento, a constituição da nação vinculava-se ao território, no segundo, à língua, à religião e à raça e, no terceiro momento, sobressaiu a discursividade em torno da constituição da consciência nacional. Perscrutar os empreendimentos em torno da invenção da nação possibilita, em termos de Brasil, compreender a mudança das preocupações com a idéia de caráter nacional para a da busca da identidade nacional. Primeiramente, destacavam-se as práticas que imprimissem a idéia de nação e a nacionalidade; a problematização da constituição da identidade nacional pode ser inserida no momento em que se propalava a “questão nacional”(1918-1960). Como de resto, em outros países, a constituição do caráter nacional implica em formação de fronteiras e defesa do território, em preocupações com o estado da população, com a língua, raça, usos e costumes como fundadores “naturais”

8. HOBSBAWN, Eric. Nações e Nacionalismos desde 1780: Programa, mito e realidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

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e constituidores da cultura e da história, base e expressão da nação. Como bem assinala Perry Anderson [...] o conceito de caráter é um principio compreensivo, cobrindo todos os traços de um indivíduo ou grupo; ele é auto-suficiente, não necessitando de referência externa para sua definição; e é mutável para 9 se acomodar às perspectivas do nacionalismo.

No jogo de imaginários, na formas de idéias, símbolos e utopias temos um Brasil que começou em 1500 com uma identidade lusa, católica e cordial, construída através de operações escriturísticas que lidam com o esquecimento, com o trabalho da rememoração, com muitos erros e muitas fugas. Houve muito esquecimento quando se difundiu o mito da passividade do povo brasileiro. Houve muito equívoco quando se propagou que no Brasil havia democracia racial e fuga na exaltação da natureza como principal motivo de orgu10 lho nacional . Os organizadores

9. ANDERSON, Perry. Zona de Compromisso. São Paulo: Edunesp, 1996, p. 151. 10. Cf. CARVALHO, José Murilo. A memória nacional em luta contra a história. In: Folha de São Paulo, São Paulo, 2000, Caderno Mais, p. 18. ○

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