Palavra e imagem, memória e escritura

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Associação Brasileira de Editoras Universitárias


Mรกrcio Seligmann-Silva (Org.)

Chapecรณ, 2006


REITOR: Gilberto Luiz Agnolin VICE-REITORA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO: Maria Assunta Busato VICE-REITOR DE ADMINISTRAÇÃO: Gerson Roberto Röwer VICE-REITOR DE GRADUAÇÃO: Odilon Luiz Poli

801 P154p

Palavra e imagem : memória e escritura / Márcio Seligmann-Silva. org. - - Chapecó : Argos, 2006. 403 p.

1. Literatura – Teoria. 2. Arte – Teoria. I. Seligmann-Silva, Márcio. II. Título. CDD 801 ISBN: 85-98981-43-5 Catalogação: Yara Menegatti CRB 14/488 Biblioteca Central da UNOCHAPECÓ

Ricardo Rezer (Presidente); Alexandre Mauricio Matiello; Antonio Zanin; Arlene Renk; Eliane Marta Fistarol; Flávio Roberto Mello Garcia; José Luiz Zambiasi; Josiane Roza de Oliveira; Juçara Nair Wollf; Maria Assunta Busato; Maria dos Anjos Lopes Viella; Maria Luiza de Souza Lajus; Monica Hass; Valdir Frigo Denardin

Coordenadora: Monica Hass Assistente editorial: Hilario Junior dos Santos Assistente administrativa: Neli Ferrari Revisão: Fabiana Cardoso Fidelis, Jakeline Mendes e Rosa Maria dos Santos Projeto gráfico e diagramação: Ronise Biezus Capa: Hilario Junior dos Santos a partir da obra “Ciranda” da artista Leila Danziger, da série “Nomes-próprios”, 1998. Livros, mesas, serigrafia, fotografia, óleo de linhaça e betume. Museu de Arte Contemporânea, Niterói, Rio de Janeiro.


sumário

Introdução 7 Jay Winter – a geração da memória: reflexões sobre o “boom da memória” nos estudos contemporâneos de história 67 Maria Stella Bresciani – a compaixão pelos pobres no século XIX: um sentimento político 91 João Camillo Penna – sobre viver no lugar de quem falamos (giorgio agamben e primo levi) 127 Kathrin H. Rosenfield – broch, musil, benjamin: três abordagens da imagem e da história 185


Márcio Seligmann-Silva – escrituras da história e da memória 205 Maria Angélica Melendi – antimonumentos: estratégias da memória (e da arte) numa era de catástrofes 227 Jerusa Pires Ferreira – zoran music: arte e memória contra a morte 247 Márcia Tiburi – filosofia cinza 257 Maria Esther Maciel – o inventário do mundo: registros sobre a arte de arthur bispo do rosário 289 Maria Zilda Ferreira Cury – memórias da imigração 303 Francisco Foot Hardman – canudos e outros mundos extintos: as poéticas de euclides e de pompéia 327 Jaime Ginzburg – tempo de destruição em caio fernando abreu 367 Vera Lins – traços de cor: a crítica de artes plásticas e uma tradição de críticos-poetas 375 Marta Nehring – vídeo memória 387 sobre os autores 399


introdução

Os textos aqui reunidos foram originalmente apresentados no evento Palavra e imagem, memória e escritura, promovido pelo Programa de Pós-graduação em Teoria e História Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP nos dias 25 e 26 de novembro de 2002.1 A proposta do evento era transdisciplinar e partia de questões atuais das assim chamadas “Ciências Humanas” de um modo geral: a nova reflexão sobre o signo diante do desafio histórico das catástrofes acumuladas ao longo do século XX e que, ao que tudo indica, continuarão a se repetir no século XXI, bem como o tensionamento de nossas tradicionais concepções de signo diante da revolução nas mídias. Procurávamos estratégias

1 A única exceção é a contribuição de Jaime Ginzburg, que foi substituída pelo ensaio sobre Caio Fernando Abreu, uma vez que o texto de sua palestra entrementes já foi publicado.


para aproximar questões que normalmente são pensadas de modo separado e que, deste modo, não são confrontadas e contextualizadas, correndo o risco de se tornarem abstrações sem sentido. As mudanças que se acumulam de modo vertiginoso e não controlado exigem uma reflexão crítica sobre questões éticas e históricas impostas aos pensadores que não querem recusar seu papel na esfera pública. Diante da presença esmagadora da indústria cultural, como manter uma memória crítica e aberta do passado e não o seu falseamento amnésico? Como a literatura e as artes se comportam e atuam neste processo de reinvenção da linguagem e dos conceitos e valores básicos que determinam nossa visão de mundo? Quais categorias da reflexão e tradição estética (que estuda justamente este espaço “enfeitiçado” entre o “mundo real” e o “homem”) estão mais aptas a descrever as mudanças que ocorrem? Como nossa visão tradicional de historiografia – de escritura do passado – se transforma diante destas mudanças? Para responder a estas inquietações e questões urgentes é necessário não abrir mão do “trabalho do conceito”, que é sempre lento e nunca pode dispensar a história. Os textos que estão reunidos nesta coletânea, com toda a multiplicidade que eles encerram, apontam justamente para a complexidade dos nossos desafios atuais. Responder a eles exige um pensamento transdisciplinar, uma vez que a história e o real estão além de qualquer disciplina. Para orientar a leitura dos textos que se seguem, vale a pena citar aqui o texto que constava no convite que foi enviado aos pesquisadores que participaram do evento na UNICAMP:

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A proposta deste evento é pensar a questão da Palavra e Imagem, Memória e Escritura com o auxílio dos seguintes conceitos: a) Teoria do Testemunho. Abordagem da história do conceito com ênfase na comparação entre diversas modalidades do Testemunho pós Segunda Guerra Mundial, em particular a literatura e a arte ligadas à Shoah e a literatura e a arte produzidas na América Latina na chave do testemunho. Aqui encontramos questões da teoria estética, como a da representação de eventos-limite, teoria do sublime, do trágico, do abjeto etc. b) Teoria e História da Memória pensadas tanto na tradição Retórica, como na Filosófica e nos seus desdobramentos pós-modernos. Incluímos aqui também a teoria da memória traumática e a teoria e história da autobiografia. c) Teoria da Diferença tal como ela se articula no pensamento ocidental e determina tanto a noção metafísica de identidade quanto a sua desconstrução no século XX. Como é sabido, a Historiografia nasce para criar uma espécie de ‘espelho’que ao excluir o ‘outro’ estabelece os contornos/fronteiras do próprio. A Literatura também se desdobra desde a Antigüidade a partir da tarefa de traçar as identidades. d) Teoria da relação entre as Palavras e as Imagens, incluindo aqui a articulação entre literatura e artes plásticas, a teoria da imagem na literatura, a questão das artes plásticas como uma escritura. No contexto deste evento tentaremos iluminar o campo escritural enquanto memória que funciona simultaneamente como ‘traçamento’ e ‘apagamento’. A idéia geral do evento é eminentemente inter- e transdisciplinar. Levando isso em conta, o encontro terá 4 blocos: 1) O Campo histórico, 2) O Campo estético, 3) Políticas da Memória e 4) Traços literários/artísticos do passado. ***

O texto de Jay Winter discute a questão do “boom da memória” que pudemos acompanhar nas últimas décadas, do ponto de vista de um historiador. O trabalho é dividido em três momentos principais: apresenta o que ele entende sob a noção de “boom de memória”, tenta pensar as origens econômicas, políticas e sociais deste boom e, por último, destaca o

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papel histórico e meta-histórico dos discursos atuais da memória. O movimento do texto é muito rico, pois articula o raciocínio descritivo e a averiguação das causas (ou seja, um discurso de certo modo “típico” da historiografia e das ciências de um modo geral) com uma reflexão “quente” sobre o papel da memória como construção de vínculos entre gerações e como fruto da sobrevida traumática de passados violentos. Não por acaso o texto se inicia com uma citação do historiador Pierre Nora – idealizador da obra monumental Les lieux de mémoire –, que afirma: “Quem diz memória diz Shoah.” Com efeito, conforme podemos constatar também no texto de Winter, muito do que tem sido pensado e realizado em torno da(s) noção(ões) de memória parte da memória do assassinato de mais de seis milhões de judeus, que aconteceu no “coração” da Europa, do Ocidente – do lógos – em pleno século XX. É a memória deste fato sem limites que comandou (e ainda o faz) em grande parte a reflexão sobre a narrativa do passado e as modalidades da sua conservação, enlutamento, comemoração e encenação. Por um lado, a memória é analisada como parte de um debate público em que as narrativas do passado se decantam também em argumentos mobilizados dentro da luta pelo poder. Mas não só o Estado se utiliza do discurso comemorativo da memória. Também as minorias costuram sua identidade a partir de questões “privadas” que se tornam “públicas” na medida em que estabelecem uma ponte entre as suas narrativas e a da “nação”. Winter exemplifica de modo paradigmático este fato com o Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos em Washington. O judeu-americano reconhece-se como

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americano na medida em que entra na “narrativa americana” da luta pela tolerância e liberdade. Ou seja, no momento em que narrativas étnicas e “particulares” são alinhavadas com o registro mais amplo da nação, reproduz-se um potente aparelho ideológico de identificação. Mas os discursos da memória não são apenas canalizados para a identificação com a nação ou com projetos de domínio. Existe também uma generalização do “contradiscurso” da memória de minorias que nunca tiveram a oportunidade de alçar suas vozes. Este processo de narrativa do passado de opressão conduz a uma desconstrução das narrativas históricas dominantes (e reprodutoras do status quo). Elas realizam aquilo que Walter Benjamin (1974, p. 697) batizou, em 1940, de “escovar a história a contrapelo” (die Geschichte gegen den Strich zu bürsten). Este alçamento de voz está ligado ao movimento histórico de independência das ex-colônias, bem como às lutas pelos direitos civis das minorias. Os julgamentos históricos, destas lutas e das guerras do século XX, possibilitaram também uma potente apresentação do passado através do testemunho judiciário. Não por acaso, Winter recorda os julgamentos de Eichmann, Barbie, Touvier e Papon (ver Wieviorka, 1998; Winter; Sivan, 1999; Felman, 2002). Winter analisa ainda a base material do boom de memória – o outro lado da moeda – ao destacar tanto o aumento demográfico quanto a impressionante melhora no acesso às universidades que ocorreu no primeiro mundo nos últimos 40 anos e a globalização da indústria cultural. Ou seja: vivemos em uma sociedade que não apenas pode pagar o bem cultural memória, mas também oferece o ócio necessário para

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seu consumo. Assim como seus membros podem ir ao analista, podem financiar a verdadeira febre de construção de museus com todos os fins e acervos imagináveis. O “negócio da memória” vingou! Mas isto não é tudo, ou ao menos não é de modo algum suficiente para esclarecer o fenômeno do boom ou mesmo seu potencial crítico. Apenas mantendo a visão simultânea de todas as facetas envolvidas nas práticas discursivas da memória podemos tentar articular uma reflexão sobre a questão. Daí Winter dedicar as duas últimas partes de seu ensaio à questão da história familiar e da memória traumática da guerra. Nas suas palavras: Uma forma de compreender o grande crescimento e viabilidade econômica dos museus e ficções sobre as guerras do século XX é vê-los como lugares onde as histórias familiares são posicionadas num quadro mais amplo, às vezes em contextos universais. Alguns avós conheceram o Blitz. Agora eles podem levar seus netos para a ‘experiência do Blitz’ no Imperial War Museum de Londres. Tais imagens da guerra são atraentes porque elas se apóiam no vínculo contemporâneo entre gerações e em particular entre a geração velha e a nova, entre avós e netos, muitas vezes pulando a geração problemática dos pais que se encontra no meio.

As esferas privada e pública se enlaçam nos programas das exposições dos museus históricos. Mais do que isso, neste processo tenta-se recuperar também as vidas danificadas – na expressão de Adorno – dos membros da família que foram destruídas pelas guerras. Muitas pesquisas desde os anos 1970, no caminho aberto pelas investigações de, entre outros, Freud, Ferenczi, Ernst Simmel e Karl Abraham, e sobretudo após a guerra do Vietnã, levaram a um aprofundamento da teoria do trauma de guerra e à introdução, em 1980, do diagnóstico

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de Post-traumatic Stress Disorder (PTSD) (Caruth, 1995, p. 3; Bohleber, 2000, p. 810). Este diagnóstico, como nota Winter, serviu para fornecer um lugar aos veteranos de guerra não apenas dentro de sistema de pensões, mas também na família e na sociedade. A contribuição de Maria Stella Bresciani aportou uma importante reflexão acerca da compaixão enquanto sentimento político e estético, a saber, enquanto momento de interseção entre estas duas esferas. Enquanto a contribuição de Winter destacou a tensão entre memória e história, mostrando em que medida as imagens da memória ocupam mais e mais os locais antes reservados à historiografia, esta segunda contribuição vinda do campo da disciplina histórica retratou o funcionamento da utilização das imagens pela historiografia e pela reflexão política no século XIX. Estas imagens também estão carregadas de pathos e visavam – retoricamente – a atingir (movere) um público burguês dividido entre uma postura universalizante da democracia e, por outro lado, mais elitista e aristocrática. As emoções mobilizadas nestes discursos são desdobramentos daquelas que Aristóteles colocara no centro da sua teoria da tragédia: phóbos e eleos, medo e piedade.2 A tradição retórica, que entrara em

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Vale a pena ler a passagem aristotélica de sua Poética (1449b): “É pois a Tragédia imitação [mímesis] de uma ação [prazeos] de caráter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com as várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes [do drama], [imitação que se efetua] não por narrativa, mas mediante atores, e que, suscitando o terror [phóbos] e a piedade [eleos], tem por efeito a purificação [kátharsis] dessas emoções.”

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decadência ao longo do século XVIII e atingira seu colapso com o romantismo, não tinha simplesmente se evaporado: seus teoremas foram incorporados por novas disciplinas que então surgiam, como a estética, assim como pela teoria política. O princípio da psychagogia, ou seja, da reciprocidade entre as imagens mentais e as emoções despertadas, permanecia central nestas duas áreas do conhecimento (e estas “imagens”, não necessariamente visuais, eram também pensadas como parte do resultado da linguagem poética bem-sucedida).3 Evidentemente não podemos deixar de considerar a atualidade desta reflexão de Bresciani sobre estas imagens e seu emprego, já que justamente elas voltam a povoar nosso imaginário contemporâneo. Nesse sentido ela realiza uma espécie de arqueologia de nossa consciência histórica. Ela parte da imagem

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Na Poética Aristóteles estabelecera também uma série de regras para garantir a identificação do espectador/leitor com a tragédia: sem isto o efeito catártico não ocorreria. Um homem “bom demais” que sofresse uma má fortuna geraria repugnância; já um muito mal não geraria piedade, pois seu destino desafortunado seria interpretado como merecido. “A piedade tem lugar a respeito do que é infeliz sem o merecer, e o terror, a respeito do nosso semelhante desditoso”, afirmou o estagirita (1453a). Além disso, para que o abalo catártico ocorra, o protagonista deveria desfrutar de grande reputação e fortuna. Já Edmund Burke, no seu tratado sobre o sublime (1757), nota não apenas que as paixões vinculadas à autopreservação são as mais intensas, como também estabelece uma tipologia (I, 14) relacionada ao que pode originar “sympathy” com relação aos infortúnios dos outros (ver Smith, 1983, p. 124). Também neste autor lemos a relação entre terror, dor e piedade (e a teoria do sublime é em grande parte uma reflexão sobre a relação do corpo e do espírito mediada pela dor): “terror is a passion which always produces delight when it does not press too close, and pity is a passion accompanied with pleasure, because it arises from love and social affection.” (Ver Seligmann-Silva, 1998).

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da multidão que surgia então no imaginário ocidental: massa informe e ameaçadora, capaz de realizar ações, antes inimagináveis, como a Revolução Francesa (com sua miríade de aspectos e espectros que deixaram profundas marcas no imaginário – estético e político –, entre os quais a imagem das cabeças rolando...). As multidões pobres, lembra a autora, eram vistas como carregando em si um poder destrutivo (terrorista, diríamos hoje em dia), já que eram vistas como uma espécie de força bruta e irracional, movida apenas pelo “instinto de sobrevivência”, pela autopreservação. Neste sentido, Bresciani estabelece com precisão a passagem para o conceito de sublime, chave na teoria estética do final do século XVIII e início do seguinte (e que voltou à ordem do dia no final do século XX). Com efeito, Kant (1959, p. 95), para tomarmos um exemplo eloqüente, tanto na sua definição do sublime matemático (advindo de fenômenos da natureza superdimensionados, como massas gigantescas de cordilheiras e o oceano sombrio), como na do sublime dinâmico (nascido de fenômenos naturais que provocam medo devido a sua força e potência destruidoras, como os terremotos, vulcões em erupção e tempestades), trabalha com a geração de sentimentos que reaparecem no discurso sobre as multidões pobres. Para ele também – como era tópico na teoria da tragédia –, o sentimento sublime para ser garantido exige que o perigo esteja de certo modo sob controle. A ameaça deve apenas reforçar nossa auto-estima.4 Ou seja: as

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Também na sua Antropologie podemos ler uma citação de Lucrécio (De rerum natura) que está próxima desta teoria das paixões sublimes e da reflexão sobre a compaixão: “É agradável observar a partir da terra firme as necessidades do

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bases teóricas que refletem sobre o prazer advindo dos parques jurássicos (contidos nos limites estéticos de uma tela, seja ela de lona ou de cinema), Hanibals e Tonnie Krugers da vida – bem como dos nossos programas jornalísticos com suas coberturas de guerras – já estavam formuladas na teoria do sublime. Rousseau no seu Discours sur les origines de l’inégalité parmi les hommes fundamenta o direito natural a partir da noção de compaixão, recorda Bresciani. Mas neste autor a compaixão estaria não mais vinculada ao espetáculo da dor, e sim – em uma reversão moralizante – a uma repugnância generalizada com relação “a ver morrer ou sofrer”. Também a teoria moral do século XVIII fala de um desconforto com relação à visão do sofrimento alheio. É a imaginação – entronizada pela estética – que permite a identificação com quem sofre e desperta a paixão política, comunitária.5 A dinâmica da identificação

próximo, quando no mar as tempestades tornam as águas turbulentas; não porque o sofrimento de alguém represente de modo geral um prazer atraente, mas antes porque é agradável perceber sofrimentos dos quais estamos livres.” (Kant, 1980, p. 166). Vale lembrar que Horácio falava em “nave do Estado”, e a imagem do barco que afunda foi interpretada por Quintiliano como uma alegoria política, na qual a tempestade equivaleria à guerra civil. Com relação à história destas metáforas ver o belo livro de Hans Blumenberg (1979). 5 Para Kant (1980, p. 165), “sofremos por meio da imaginação juntamente com o outro”. Para ele o prazer que temos com o sofrimento dos outros não tem nada a ver com a moral, pois estamos apenas felizes por estarmos sendo poupados do sofrimento. Ver também esta passagem de Francis Hutcheson (1996, p. 118), no seu ensaio Uma investigação sobre o bem e o mal do ponto de vista moral, de 1725: “Assim como o sr. Hobbes explica todas as sensações de piedade pelo nosso medo de possíveis males quando, pela imaginação, nos colocamos na pele dos que são suas vítimas, também outros explicam toda a aprovação e condenação de ações em épocas ou nações distantes por um esforço análogo de

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fica, no entanto, entrecortada pelo sentimento da diferença, como recorda a autora, ao notar que Adam Smith percebia também uma “repulsa” diante da situação do homem pobre. Desta oscilação entre o desconforto moral e o medo (político) Bresciani deriva a necessidade de se estudar a fundo o “trabalho das metáforas nos textos que se referem à pobreza”.6 Edmund Burke reconhecidamente deve ocupar um lugar de destaque nesta investigação, uma vez que ele foi não só um dos maiores teóricos das emoções vinculadas ao sublime, como também o autor das Reflections on the revolution

imaginação [...]” Hutcheson vê na compaixão “sem qualquer intuito de vantagem particular” um dos sentimentos que prova “nossos instintos benevolentes”. Na mesma coletânea em que se encontra seu texto lemos, de Willian Wallaston (do seu A religião da natureza: um esboço, de 1724), uma afirmação que deixa claro que as temáticas se cruzavam, na teoria estética e na política, mas os tratamentos dos temas não eram idênticos: “O prazer é a consciência de algo agradável, a dor de algo contrário e, vice-versa, a consciência de alguma coisa agradável é prazer, do contrário, dor.” (1996, p. 105) Já o Bispo Butler, nos seus Fifteen Sermons, de 1726, critica a tentativa de Hobbes de eliminar a diferença entre o medo e a compaixão, ao afirmar que nesta última o “objeto somos nós próprios”, ou seja “a compaixão é apenas medo por nós próprios”. Para ele o sentimento autêntico de compaixão é um “verdadeiro pesar e preocupação pelo infortúnio de nossos semelhantes” (1996, p. 241). Nietzsche, no século seguinte, desmontará esta moral cristã por meio de sua figura do homem dionisíaco que sente prazer na dor: dele próprio ou do outro. 6 Foucault, como é conhecido, notou também a ligação entre o culto do medo, na virada do século XVIII para o XIX, e a generalização do panóptico e das instituições nascidas para controlar o proletariado que surgia. “Sem delinqüência não há polícia” (1986, p. 133), ele formulou. A burguesia necessitava e necessita do aparato de segurança/controle. Desta época data também o nascimento da literatura policial. Quanto maior a escala da dominação e espoliação, maior será a dimensão da indústria do medo: depois do 11 de setembro de 2001, o “show de violência”, mais do que nunca, “não pode parar”.

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in France, onde, como nota a autora, a poética do sublime é desdobrada na tentativa de apresentar aquele evento histórico. No seu ensaio acompanhamos como este imaginário a um só tempo estético e político atuou nas obras de Thomas Carlyle e John Stuart Mill. Carlyle, um tory conservador, encontra-se entre os mais interessantes críticos da modernidade como mecanização. Ele vê no “demônio da Mecânica” um monstro que esmaga a multidão de operários que, selvagem e muda, poderia se revoltar. Por outro lado, ele foi também um dos primeiros pensadores sensíveis ao fenômeno do sublime mecânico ou industrial, ao comparar o movimento das máquinas de Manchester com o “impacto de uma vaga atlântica, [...] tão sublime quanto o Niágara, ou ainda mais”. Sua visão do homem moderno como um autômato também pode ser aproximada do sublime Unheimlich dos contos de E.T.A. Hoffmann e das idéias de Kleist. Já Stuart Mill verá no sufrágio universalizado um remédio para as tensões sociais que ameaçavam a ordem. O texto de João Camillo Penna nos apresenta, a partir da discussão de duas obras essenciais de Giorgio Agamben, Homo sacer: o poder soberano e a vida nua e Quel che resta di Auschwitz: l’archivio e il testimone, uma reflexão extremamente atual sobre a nova situação da política e sobre seu elemento biopolítico. O testemunho – elemento central na segunda obra de Agamben discutida – representa também, no fundo, a voz (ou o grito) que as estratégias políticas de Carlyle e Stuart Mill visavam a calar. Se Carlyle falava de uma sociedade moída por um poderoso mecanismo, a carnificina produzida neste processo é de certo modo o tema de Agamben

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em Homo sacer, obra que se ocupa com o dispositivo genocida, que elimina a vida “do outro” – a vida nua – como uma peça central da política ocidental: da Grécia a Auschwitz. Se a paixão do sublime tinha o sentimento de autopreservação como a sua fonte mais garantida, é esta mesma autopreservação que se encontra elevada ao núcleo do pensamento (bio)político na análise de Agamben. Ou seja: as imagens sublimes retornam (se é que haviam partido) ao campo das metáforas políticas na teoria biopolítica, mas agora não mais para mobilizar uma máquina política normalizadora, mas sim para pensar em estratégias alternativas e contra a lógica biológica, tal como ela se impõe de modo cada vez mais explícito na política internacional e nacional: nas políticas de distribuição/controle de alimentos, na catástrofe da AIDS na África e na reação hipócrita do Ocidente diante dela, nos debates e políticas de biogenética, no neo-imperialismo norteamericano com sua política de dominação das fontes de riqueza naturais e divisão entre humanos “bons” e “terroristas” etc. Esta biopolítica demonstra que de modo algum podemos considerar a vitória sobre o nazismo uma superação da sua “ontotipologia”, ou seja, de sua teoria política organizada a partir da lógica identitária mais absoluta, que pensa o “próprio” como uma mônada que para se auto-afirmar deve eliminar tudo o que a nega, tudo o que foge ao “tipo” (LacoueLabarthe; Nancy, 2002). Daí a centralidade no ensaio de Camillo Penna da obra de Primo Levi (1988, 1990), autor que está entre os que melhor apresentaram a barbárie dos campos de concentração (figura-chave do pensamento e prática biopolíticos do século XX) e mais profundamente refletiram

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sobre ele. No campo a vida é reduzida à mera sobrevivência. Se Levi no seu título-pergunta afirma É isto um homem?, Robert Antelme (1957), outro sobrevivente, dirá também L’espèce humaine no título de seu relato testemunhal. O homem “zerificado” em tudo o que o Humanismo havia lhe atribuído também é um homem – ou seja, um homem mesmo sem compaixão e para quem vergonha significa “simplesmente” enrusbecer (Agamben, 1999, p. 115), desnudar-se e ser seu corpo frágil, mortal, matável.7 Esta verdade revelada nestes testemunhos exige uma revisão de nossos mais caros conceitos políticos e éticos. Uma ética do testemunho parte justa-

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Claude Lévi-Strauss notou em uma entrevista de 1979 de modo cortante a compatibilidade intrínseca entre o humanismo e o que ocorre na grande biopolítica ocidental: “Todas as tragédias que vivemos, de início com o colonialismo, depois com o fascismo, enfim com os campos de extermínio, tudo se inscreve não em oposição ou em contradição ao pretenso humanismo sob a forma em que praticamos há vários séculos, mas, diria eu, quase como seu prolongamento natural.” (apud Todorov, 1993, p. 83). Vale notar que Todorov cita esta passagem de Lévi-Strauss para criticá-la e defender um modelo no mínimo inocente de humanismo. Lévi-Strauss, contra o antropocentrismo de Descartes, pensa em uma definição do homem como “ser vivo”, o que pode ser desdobrado em uma ética ecológica e não, como quer Todorov, em uma diluição da ética. Lévi-Strauss concordaria com a afirmação de Derrida (2002, p. 87), segundo a qual “não há o animal no singular genérico, separado do homem por um só limite indivisível”. Sendo que isto não significa apagar os limites entre os homens e os animais, mas apenas complexificar este “corte” que não é tão simples quanto o humanismo tradicional sustenta. Por outro lado, não se trata de negar que Todorov (1993, p. 74) esteja certo ao apontar para o compromisso entre o anti-iluminismo e anti-humanismo, por exemplo, de um Maurice Barrès, e o pensamento racista ontotipológico, o que faz pensar também no atual neo-racismo genético e politically correct.

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mente desta figura “mínima” do corpo humano dilacerado no Lager (campo de concentração nazista). Ela deve poder responder ao neodarwinismo que também serviu de estrutura à ideologia nazista. Se Primo Levi (1988, 1990) fala da polaridade entre os “salvos” e os “afogados” é para pôr em movimento as fronteiras: para mostrar a situação do “salvo” como alguém condenado a viver “na morte” de que escapou; e, por outro lado, para apresentar os “afogados” como figuras fantasmáticas, visadas, mas nunca alcançadas pelo testemunho de “terceiros”. Ele desmonta a visão tradicional, cristã, que separa os salvos dos condenados. Do “experimento” biopolítico que os nazistas perpetraram em Auschwitz não existe nenhuma “lição” a ser aprendida, como afirma Ruth Klüger (1992) e Jean Améry (2002, p. 52): “Não nos tornamos mais sábios em Auschwitz.” O inumano que Adorno (1993, p. 127) vê se manifestar ali é humano: este último conceito enquanto eliminava de si o “mal” revelou-se como uma categoria “moral” ultrapassada. Se a lógica nazista reduz o ser humano ao jogo pela sobrevivência e, deste modo, “regride” sua razão à mera astúcia é porque, como Adorno e Horkheimer o demonstraram, a razão astuciosa não deixa de ser um núcleo da razão abstrata, instrumental, que triunfou nos campos de concentração. O mito já era lógos. Auschwitz se apresenta para ser analisado de vários pontos de vista, e a tarefa (impossível) consiste em interligá-los: o trabalho do historiador, o do filósofo, o do artista, o do sobrevivente etc. O elemento mítico presente em Auschwitz não deve negar seu momento de razão. Daí a impossibilidade de se esgotar o tema do “mal radical”: no pólo da perspectiva

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histórica ele pede e precisa ser explicado, no da dor ele está além de toda palavra. Sua singularidade destroça sua universalidade (Améry, 2002, p. 13). Com relação à teoria agambenina do testemunho, vale fazer uma ressalva. Primo Levi e outros sobreviventes do campo de concentração viram na figura máxima da despersonalização o chamado muçulmano (o último passo antes da morte nos Lager, conforme uma alcunha comum então8), a verdade daquele campo biopolítico. Toda testemunha do universo concentracionário seria apenas suplemento àquela testemunha que não pôde testemunhar e sucumbiu. Ao formular este teorema Levi não quis, no entanto, apagar o valor da escritura testemunhal, mas antes revelar o seu chão aporético, ruinoso,

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Ver a definição que Jean Améry (2002, p. 34), outro sobrevivente, deu do “muçulmano”: “Está claro que toda a questão da eficácia [Wirkung] do espírito [Geist] não pode mais ser colocada ali [no Lager] onde o sujeito, imediatamente diante da morte por esgotamento e fome, encontra-se não apenas sem espírito [entgeistet], mas desumanizado [entmenscht] no sentido próprio da palavra. O assim chamado “muçulmano” [Muselmann], como a língua do Lager denominava o prisioneiro que renunciara a si e fora abandonado pelos companheiros [den sich aufgebenden und von den Kameraden aufgegebenen Häftling], não possui mais nenhum espaço consciente, no qual poder-se-ia defrontar o bem e o mal, o nobre e o comum, o espiritual e o sem espírito. Ele era um cadáver cambaleante, uma trouxa de funções físicas nas últimas convulsões.” Logo após esta descrição, Améry diz que não pode tratar de sua experiência do ponto e vista do “muçulmano”, mas apenas do seu próprio. Ele deixa aquela figura “aus unseren Erwägungen ausgeschlossen”: “excluído de nossas considerações”, vale dizer – a bem da verdade – fora e dentro, de modo não passível de ser traçado definitivamente. Améry desdobra aqui o círculo vicioso do aufgeben: propor algo, um problema e também, simultaneamente, abandoná-lo, como na noção benjaminiana de tradução como Aufgabe: tarefa e desistência (Benjamin, 1972).

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impossível e necessário (Seligmann-Silva, 2000). Assim como o “muçulmano” no Lager é um vulto invisível (que os demais resistem a olhar e cujo olhar está embaçado), o próprio sobrevivente convive com a imagem de si como um vulto. Ele está cindido entre o mundo “dentro” e o “fora” do campo de concentração, e o que está “dentro”, a realidade “entre parênteses” (como também fala uma das entrevistadas no filme Que bom te ver viva, de Lúcia Murat, referindo-se a sua tortura durante a ditadura brasileira), engloba o fora (Derrida, 1999). O sobrevivente sofre do pânico de ser apenas um vulto: ele sente a necessidade de testemunhar, contar a sua história para religar os fragmentos de sua identidade; por outro lado, teme que ninguém queira ouvir a sua história “inverossímil”, inimaginável, invivível. O sonho de angústia que Primo Levi narra (e muitos outros sobreviventes), no qual enquanto ele conta a sua história, após a libertação dos campos de concentração, os ouvintes aos poucos se levantam e o abandonam sozinho, é na verdade a manifestação da permanência do “olhar de medusa” a que o “muçulmano” se entregou, mas que também roubou a vida do sobrevivente. Levi escreveu que os que miraram o “olhar da Medusa” ou voltaram mudos, ou morreram. Na verdade, a morte e a mudez habitam o seu próprio testemunho, assim como o dos demais sobreviventes. Agamben, ao seguir de modo muito literal a divisão estabelecida por Levi entre os “afogados” e os “sobreviventes”, entre o “muçulmano” e os demais presos, acabou por hipostasiar o que existiu apenas de modo dinâmico. Muitos “muçulmanos” sobreviveram e testemunharam, como o próprio Agamben – contraditoriamente – o reconhece. O maior

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problema desta divisão estanque que ele procura traçar é a eliminação e condenação de qualquer raciocínio jurídico: para Agamben o testemunho deve ser pensado apenas como superstes, sobrevivente, e não como testis, terceiro em uma cena jurídica, “testemunha ocular”. Na economia-política da memória, no entanto, o julgamento e o testemunho têm um valor inestimável.9 Uma ética haurida a partir do testemunho não pode, do meu ponto de vista, descartar a cena jurídica. Deve, evidentemente, pensá-la novamente a partir da situação extrema do Lager, da impossibilidade e necessidade do testemunho, mas simplesmente descartar o jurídico é uma “solução” fácil demais para ser aceita, sobretudo do ponto de vista do sobrevivente. Senão corre-se o risco de cair no “esquecimento feliz”, nietzscheano, do homem dionisíaco que sempre diz sim, que, como Camillo bem recorda com Agamben, é antípoda da ética do testemunho. O amor fati é (programaticamente) antiético. Améry (2002, p. 118-148) tentou pensar o “ressentimento” (no capítulo com este nome de seu livro) para além de Nietzsche, que articulava na sua Genealogia da moral o ressentimento à moral para o condenar (desdobrando a sua crítica ao “excesso” de consciência histórica do escrito Vom Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben). Como lemos na “Segunda dissertação” da Genealogia:

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Como Améry (2002, p. 20) também o notou, na introdução de 1966 de seu livro Jenseits von schuld und sühne (Para além da culpa e expiação), ele resolveu redigir o seu testemunho em 1964, depois de vinte anos de silêncio, a partir do impacto dos processos de Auschwitz em Frankfurt daquele ano.

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Criar um animal que pode fazer promessas – não é esta a tarefa paradoxal que a natureza se impôs, com relação ao homem? Não é este o verdadeiro problema do homem?... O fato de que este problema esteja em grande parte resolvido deve parecer ainda mais notável para quem sabe apreciar plenamente a força que atua de modo contrário, a do esquecimento [Vergesslichkeit]. Esquecer não é uma simples vis inertiae, como crêem os superficiais, mas uma força inibidora ativa, positiva no mais rigoroso sentido, graça à qual, o que é por nós experimentado, vivenciado, em nós acolhido, não penetra mais em nossa consciência [...] Fechar temporariamente as portas e janelas da consciência [...] para que haja lugar para o novo, sobretudo para as funções e os funcionários mais nobres, para o reger, prever, predeterminar [...] – eis a utilidade do esquecimento, ativo, como disse, espécie de guardião da porta, de zelador da ordem psíquica, da paz, da etiqueta: com o que logo se vê que não poderia haver felicidade, jovialidade, esperança, orgulho presente [Gegenwart], sem o esquecimento. (Nietzsche, 1988, p. 291, 1998, p. 47).

Nietzsche defende o “animal que necessita esquecer, no qual esquecer é uma força, uma forma de saúde forte”, contra sua “faculdade oposta”: a memória.10 Sem memória não haveria

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Nietzsche condena a tradição da mnemotécnica, cujo lema ele deriva do seguinte modo: “Como fazer no bicho-homem uma memória? Como gravar algo indelével nessa inteligência voltada para o instante, meio obtusa, meio leviana, nessa encarnação do esquecimento? [...] Grava-se algo a fogo, para que fique na memória: apenas o que não cessa de causar dor fica na memória” (Nietzsche, 1988, p. 295, 1998, p. 50). Nietzsche critica a mnemotécnica, mas compartilha com a tradição retórica a visão que eu denominaria de “voluntarista” da memória e do esquecimento: como se este que ele denomina de “animal, ou bicho-homem” pudesse determinar o que pode ou não, o que deve ou não se lembrar e se esquecer. Por outro lado, ele reconhece (como também muitos mitos antigos o reconhecem e as próprias anedotas em torno de Simônides de Ceos o reafirmam) que existe uma memória “gravada a fogo”, uma memória da dor, que nos “domina” — e que não a dominamos. Em Ecce homo ele escreveu também: “die Erinnerung ist eine eiternde Wunde”, “a recordação/memória é uma ferida supurada” (1988a, p. 272). Ver quanto à

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lugar também para a vergonha na (anti-)ética nietzscheana. Referindo-se aos primórdios da humanidade, antes do nascimento do ressentimento, quando a crueldade era “uma festa”, ele escreveu: “naquela época, quando a humanidade não se envergonhava ainda de sua crueldade, a vida na terra era mais contente do que agora, que existem pessimistas. O ensombrecimento do céu acima do homem aumentou à medida que cresceu a vergonha do homem diante do homem.” 11 Nietzsche (1988a, p. 270) toma como modelo o

tradição retórica da mnemotécnica e Simônides de Ceos a minha contribuição e a de Sigrid Weigel no volume A memória da arte - a arte da memória (Org. M. Seligmann-Silva, S. Paulo: Ateliê, no prelo). 11 Nietzsche (1988, p. 302, 1998, p. 56). Ao desenvolver a sua teoria de que “fazer sofrer é altamente gratificante” (1988, p. 300, 1998, p. 55), Nietzsche está, por assim dizer, “para além”, ou ainda, aquém, da teoria burkeana do sublime que vimos acima. O sublime da reflexão estética do século XVIII não pode ser transposto sem uma mudança radical para o universo da Grécia dionisíaca. No XVIII a polaridade entre o prazer extraído do espetáculo do sofrimento e a “consciência moral” era um dado estético essencial. Isso apesar de Nietzsche utilizar inúmeras metáforas sublimes para caracterizar o homem/ animal dionisíaco, seu kommende Gott chamado Zaratustra, com o seu gosto pelo perigo, pela dor, pelo ar cortante das alturas. Toda esta metaforologia sublime também pontua seu escrito autobiográfico Ecce homo. Observo ainda rapidamente, em nota, dois pontos importantes para este volume desta mesma dissertação da Genealogia: 1) sua tese de que a moral nasce de uma estrutura de troca, do estabelecimento dos papéis de credor e de devedor. Pouco depois Marcel Mauss desenvolveu esta idéia em termos antropológicos a partir do seu conceito de potlatch (1999, p. 354). De fato a memória funciona dentro do círculo vicioso da economia do dom (como Derrida pensará mais tarde a noção de hospitalidade/ hostilidade, na senda de Nietzsche e Benveniste). 2) Neste texto de Nietzsche (1988, p. 309, 1998, p. 62) Agamben também pode reencontrar desenvolvida a teoria do soberano como aquele capaz de dar a “graça”, de perdoar, porque ele está “além do direito”, “Jenseits des Rechts”.

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mundo dionisíaco contra o da leitura aristotélica da tragédia: daí ele também descartar o Mitleid, eleos, como outra modalidade da culpa/dívida para com o outro: “Die Überwindung der Mitleid rechne ich unter die vornehmen Tugenden” (“Eu tomo a superação da compaixão entre as virtudes distintas”). É claro porque o homem pós-Auschwitz, o homem preso na “posteridade” insuperável daquele tempo-lugar, no intervalo do evento que não passa e não chega a ser totalmente testemunhado, como é o caso para o sobrevivente Améry, é evidente que, para ele, esta anti-ética que prega o esquecimento não pode ser considerada senão com desprezo. Não se trata, no entanto, nem de pregar vingança, nem de se pensar em expiação. Como Adorno (1975, p. 358), que estabeleceu como novo imperativo categórico moral após Auschwitz: a humanidade deve “orientar seu pensamento e ação de tal modo, que Auschwitz não se repita, que nada de semelhante ocorra”, Améry vai condenar o esquecimento e elaborar uma ética da memória do mal. Vale notar que Agamben de certo modo banaliza esta longa e complexa discussão de Améry sobre o ressentimento “além da culpa e da expiação”.12

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Camillo lembra também de modo muito apropriado a morte da morte em Auschwitz. Este tema é abordado por Améry, para quem a “morte estética” também morreu em Auschwitz. Não só a da filosofia heideggeriana (também sublime...), do “ser para a morte”, mas também aquela encenada sobretudo a partir do romantismo alemão: “Es führte keine Brücke von Tod in Auschwitz zum ‘Tod in Venedig’”, escreveu Améry (“Nenhuma ponte leva da morte em Auschwitz para a Morte em Veneza [de Thomas Mann]”) (2002, p. 47). Na

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O trabalho de Kathrin H. Rosenfield apresenta três modelos de memória a partir das obras de três autores nascidas no contexto das catástrofes do século XX: Hermann Broch (18861951), Robert Musil (1880-1942) e Walter Benjamin (1892-1940). Cada um a seu modo vai trabalhar com as imagens. Broch, como a autora recorda, escreve sob o impacto da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto. Sua obra principal, Der Tod des Vergil, data de 1945. Ele romanticamente mantém a centralidade do mito e de sua força representativa. Já neste ponto poder-se-ia aproximá-lo da tentativa aporética de Benjamin de salvar e criticar o mito. Broch nota também uma ruptura fundamental na literatura provocada por seu momento histórico. Mas seu diagnóstico é em alguns pontos oposto ao de Benjamin. Se para Broch, como Rosenfield destaca, “um mundo que se explode ele mesmo, não admite mais que se faça seu retrato”, para o estudioso do

mesma época em que Améry escrevia seu livro, Adorno ministrou suas preleções sobre a metafísica em Frankfurt (palco dos grandes julgamentos de Auschwitz então). Não é casual que várias idéias semelhantes se encontrem nos dois autores (que se liam mutuamente). Assim como Adorno, Améry (2002, p. 50) escreveu que “todos aqueles problemas que foram convencionalmente denominados de ‘metafísicos’ tornaram-se sem objeto”. Por outro lado, havia distâncias entre os dois pensadores: Adorno descartava o “existencialismo” de Améry, e este criticou o que ele denominou de repugnante “exercício dialético” realizado por Adorno a partir de Auschwitz. Mas como Detlev Claussen (1996) já mostrou, esta diferença deve ser pensada antes de mais nada em termos de uma reflexão sobre a distância (Adorno na Califórnia enquanto Améry estava em Auschwitz, o ressentimento de Adorno se expressando nos anos 1940 e o de Améry apenas em 1960). Ambos estavam comprometidos com uma crítica radical do Esclarecimento e da falsa reconciliação. Reencontraremos mais adiante no pintor Zoran Music esta mesma questão da distância e dos tempos da memória/esquecimento.

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drama barroco alemão valia a máxima: “Aquilo de que se sabe que logo não mais se terá diante de si torna-se imagem” (“Das, wovon man weiß, daß man es bald nicht mehr vor sich haben wird, das wird Bild”) (Benjamin, 1974a, p. 590, ver SeligmannSilva, 2003). A “solução” de Broch para esta impossibilidade do retrato tradicional é o desenvolvimento de uma literatura em que o épico é reduzido e abre espaço ao eu lírico. Daí sua tendência para o monólogo interior. Já em Musil vemos uma mescla de sobriedade científica e profunda desconfiança com relação ao épico. Como a autora escreve: “A valorização dos aspectos múltiplos da vida moderna e dos horizontes novos abertos pela precisão científica constituem o recorte especificamente musiliano da questão da memória e da arte.” Contra a literatura de Thomas Mann, que para ele era uma transposição para a literatura de teses filosóficas, Musil aposta na apresentação reflexiva de eventos cotidianos e da intimidade moderna. Sua obra prima, Der Mann ohne Eigenschaften, permaneceu incompleta, tendo sido publicada entre 1930-43. Não é casual seu elogio ao romance de Alfred Döblin, que Rosenfield recorda, enquanto a apresentação do mítico na modernidade. Já em Benjamin a autora vai analisar seu procedimento de pensar e exercer a crítica por meio de imagens. Ela elege para tanto a famosa tese “Sobre o conceito da história” de Benjamin, onde ele descreve o quadro de Paul Klee, Angelus Novus. Existe um quadro de Klee chamado Angelus Novus.13 Ele apresenta um anjo que parece estar na iminência de se afastar de algo para o

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Benjamin comprou este quadro em 1921 em Munique.

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qual ele olha fixamente. Seus olhos estão arregalados, sua boca está aberta e suas asas estendidas. O anjo da História deve ter esta aparência. Ele volta a sua face para o passado. Onde aparece para nós uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma única catástrofe, que de modo ininterrupto acumula escombros [Trümmer] sobre escombros e os lança diante dos seus pés. Ele gostaria de tardar-se, despertar os mortos e juntar o destruído. Mas uma tempestade sopra do Paraíso, prendeu-se nas suas asas e é tão forte que o anjo não pode mais fechá-las. Essa tempestade impele-o de modo irresistível para o futuro, para o qual ele vira as costas, enquanto diante dele a pilha de escombros cresce até o céu. O que nós denominamos de progresso é esta tempestade. (Benjamin, 1974, p. 697).

Rosenfield percebe que não se trata aqui de uma simples descrição (ekphrástica) do quadro de Klee, mas sim de um comentário (trata-se de uma iconologia e não de uma iconografia). Aquilo que deixa o anjo apavorado, o acúmulo das catástrofes, encontra-se diante dele: como os espectadores, nós, diante do quadro. Ou seja, estamos novamente, ainda, dentro do terreno da reflexão, da compaixão, das paixões do terror e do medo, mas agora a cena foi transformada em teatro dentro do teatro. Benjamin não está preocupado em manipular o medo das massas, o medo do nosso Unheimlich, mas antes está apresentando a própria cena histórica como uma máquina de gerar escombros e imagens partidas. Em Benjamin – autor de uma teoria e praticante da escritura histórica carregada de imagens hieroglíficas – vemos uma fusão da temática geral do evento, onde palavra é imagem e a memória se decanta em escritura imagética: uma escritura densa, oposta à narrativa fluida do historicismo e que, portanto, resiste ao seu apagamento. Esta escritura por imagens é também uma escritura que se dá, portanto, na chave do sublime. Não por acaso as definições

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que Benjamin deu ao seu conceito-chave de imagem dialética – desenvolvido no contexto do seu trabalho sobre as passagens parisienses – estão claramente dentro da tradição da definição do sublime – e do trauma. Citemos uma de suas definições deste operador: Não é que o passado lance a sua luz sobre o presente ou que o presente lance a sua luz sobre o passado, mas, antes, imagem é aquilo em que o ocorrido [das Gewesene] encontra-se com o agora [Jetzt] como num raio [blitzhaft] formando uma constelação. Em outras palavras: Imagem é a dialética paralisada [im Stillstand, em suspensão]. Pois, enquanto a relação do presente com o passado [Vergangenheit] é puramente temporal, contínua, a do ocorrido [Gewesene] com o agora [Jetzt] é dialética: não é decorrer mas sim imagem, ao modo de um salto [sprunghaft]. – Apenas imagens dialéticas são autênticas imagens [i.e., não arcaicas]; e o local onde elas encontram-se é a linguagem (Benjamin, 1982, p. 576).

Este encontro do ocorrido com um agora “como um raio”, ou “ao modo de um salto” – como na definição do trauma, que quebra nossas defesas e se inscreve na nossa memória de assalto – gera uma dialética paralisada, ou em suspensão. É esta paralisia tensa que caracterizava também, no século XVIII, a imagem sublime, tal como, por exemplo, Winckelmann descreveu a tensão entre a simplicidade e a nobreza e entre a grandeza e a quietude nas estátuas do Belvedere (Lessing, 1998, p. 83). A minha contribuição parte do mito da origem da pintura – Dibutade desenhando o contorno do seu amante refletido na parede – para pensar as aporias da representação da memória: particularmente quando se trata da memória da Shoah. O conceito central de minha contribuição é o de testemunho, que

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primeiramente desdobro a partir do livro de Ruth Klüger com suas memórias e reflexões sobre sua experiência no campo de concentração e, em um segundo momento, a partir da obra da artista plástica carioca Leila Danziger. Vale a pena retomar aqui nesta introdução rapidamente alguns traços básicos da noção de testemunho. O testemunho implica tanto uma proximidade, uma primeiridade, como, em outro sentido, uma capacidade de julgar. Isto não apenas em termos do testemunho jurídico contemporâneo. Desde a Antigüidade vincula-se testemunha à visão. Benveniste (1995, p. 174) recorda que, também no sânscrito, vettar tem o mesmo sentido de testemunha e significa “o que vê, em gótico weitwops, particípio perfeito [...] é aquele que sabe por ter visto; da mesma forma o irlandês fiadu (< *weidon), ‘testemunha’. O grego ístor entra na mesma série”. O autor cita um texto do Satapatha-Brahmana: “se agora dois homens disputam entre si (têm um litígio), um dizendo ‘eu vi’, o outro ‘eu ouvi’, o que diz ‘eu vi’, é nele que devemos acreditar”. Benveniste ainda nota que originalmente arbiter significava também “testemunha” e apenas posteriormente assumiu o sentido de “árbitro”. Enquanto “o que vê” a testemunha se aproxima tanto dos paradigmas da historiografia como da cena do tribunal. Neste último sentido também o termo mantém ecos de sua origem em “terstis”, terceiro, enquanto instância para decisão em um julgamento entre duas partes. Benveniste (1995, p. 277) nota ainda um outro parentesco semântico da noção de testemunha que pode nos ajudar a pensar melhor a situação do torturado e do sobrevivente. Superstes, como ele comenta, “não é somente ‘ter sobrevivido a uma desgraça, à morte’,

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mas também ‘ter passado por um acontecimento qualquer e subsistir muito mais além desse acontecimento’, portanto, de ter sido ‘testemunha’ de tal fato.”14 Mas o fato de aceitarmos a incomensurabilidade entre as palavras e esta experiência da morte não deve levar a uma negação da possibilidade do testemunho como testis: afinal de contas, como já afirmei acima, os caminhos da memória e do esquecimento do mal sofrido passam também pela construção da história e pelos julgamentos propriamente jurídicos. Devemos aceitar o testemunho com o seu sentido profundamente aporético de exemplaridade possível e impossível, de singularidade que nega o universal da linguagem e nos remete “diante da lei”15, mas ao mesmo tempo exige e cobra esta mesma lei. Sua negação determinada deixa sua marca desconstrutivista tanto na linguagem, na literatura, como na lei. Paul Celan remeteu insistentemente no seu famoso discurso Der Meridien (22 out. 1962) a esta idéia de um “encontro misterioso”, “geheimnis Begegnung”,

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“Verificamos a diferença entre superstes e testis. Etimologicamente testis é aquele que assiste como um ‘terceiro’ (terstis) a um caso em que dois personagens estão envolvidos; e essa concepção remonta ao período indo-europeu comum. Um texto sânscrito enuncia: ‘todas as vezes em que duas pessoas estão presentes, Mitra está lá como terceira pessoa’; assim o deus Mitra é por natureza a ‘testemunha’. Mas superstes descreve a ‘testemunha’ seja como aquele ‘que subsiste além de’, testemunha ao mesmo tempo sobrevivente, seja como ‘aquele que se mantém no fato’, que está aí presente.” (Benveniste, 1995, p. 277-278). 15 Penso aqui no texto de Kafka, Vor dem Gesetz, que pode ser traduzido tanto como “diante da lei” como também como “antes da lei”, fora dela, sendo que este “fora” reproduz a estrutura da cripta, do encripatamento/recalcamento, do banimento para o interior (Derrida, 1999, 1985).

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que implica justamente a capacidade “trópica” da língua de unir e cortar pontos aparentemente isolados uns dos outros. “Niemand/zeugt für den/Zeugen”, lemos no poema Aschenglorie, ninguém testemunha para quem testemunhou, para quem vivenciou o invivível. Mas o testemunho ocorre, “se dá” e é a prova e a manifestação destes encontros. O artigo de Maria Angélica Melendi apresenta a questão da arte na sua relação com a memória da catástrofe no campo histórico da América Latina e, mais especificamente, da Argentina. Ela toca em um ponto delicado e que merece toda atenção: a relação da “arte da memória” latino-americana com outras tradições de representação de catástrofes, com destaque para a da Shoah. Como vimos, o real que se manifesta na catástrofe desmonta a estrutura discursiva que é justamente a responsável pelo “juízo que distingue”, pela particularização e individualização que caracteriza o discurso dito racional. Diante dos eventos-limite a linguagem se cala. Daí a importância das artes plásticas na tentativa de representação desses fatos que lançam uma sombra sobre a linguagem. Mas o fato de se estar “fora” da linguagem leva a equívocos, como por exemplo o da relativização dos eventos que estão na origem das diversas modalidades de arte e memória. As artes contemporâneas – profundamente marcadas pelo dever de memória nascido das inúmeras catástrofes humanas do século XX –, devido também à internacionalização cada vez mais evidente da cena artística global, tendem a aproximar estratégias de representação e de apresentação do irrepresentável. Mas isso não deve justificar o relativismo histórico. Daí também a necessidade dos estudos históricos que servem de moldura para este trabalho de

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memória. É interessante perceber as oscilações deste movimento de memória. A “memória da dor” é incomensurável e tende a tratar seu conteúdo como algo “indizível” e absolutamente “próprio”. No registro “pós-moderno” esta memória serviu para estabelecer os vínculos entre grupos e comunidades, não mais capazes de serem costurados pelos discursos políticos tradicionais. Esta “memória da dor” tende a posturas fundamentalistas se permanecer encapsulada na retórica da literalidade e da unicidade. Mas ela também, paradoxalmente, uma vez que justamente não se mistura com o discursivo, permite uma comparabilidade relativista: via identificação com a dor do outro, via semelhanças de processos lutuosos e constituição de pares dicotômicos (oprimidos/opressores) que levam à constituição de uma “memória das vítimas” que tende a se universalizar. Não podemos esquecer que os entrecruzamentos entre as práticas artísticas memoriais criam um campo comum compartilhado pelas artes na atualidade. Devido justamente ao caráter programaticamente híbrido das artes contemporâneas – que como a imaginação atuam entre e com as palavras e as imagens – elas têm o dom de poder estabelecer canais de comunicação com o passado recalcado e que não se deixa facilmente simbolizar. As artes abrem as portas da “cripta”, permitindo uma perlaboração do seu conteúdo. Esta universalização deve ser compreendida também como uma espécie de ato-reflexo, de agieren, de uma sociedade que se sente – não por acaso – como que “carregando” o peso da culpa daquelas catástrofes. A “vontade de justiça” a que se liga a arte da memória, assim como os movimentos pelos direitos humanos a que elas muitas vezes se vinculam –

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sobretudo na América Latina, como recorda Melendi –, é uma resposta à barbárie. A “lei” fraturada pelo movimento incessante de barbárie patrocinada pelo Estado – que prova a sua cumplicidade com o encarceramento e com a tortura, com o desaparecimento e a câmara de gás – alimenta a “vontade de justiça”, e a justiça é a grande ausente da cena política. A “lei” se revela como uma “máquina de proscrição”, de banimento, de morte. Se pensarmos na função da arte enquanto “vanguarda da linguagem” (ou guardiã de sua “porta dos fundos”), não fica difícil compreender o seu – relativamente recente – namoro com a loucura, o “outro” da lei, que revela esta última como loucura instituída. A arte contemporânea testemunha muito deste “enlouquecimento” da lei, ou melhor, do “ser louco” da lei: as inúmeras tentativas de rompimento das fronteiras, de quebras dos tabus, de ritualização regressiva – que levaram à body art e à abject art – têm um paralelo com o teor mnemônico da arte, na medida em que se trata aí de encenações do esquecido e recalcado (Seligmann-Silva, 2003a). Melendi toca também na questão da institucionalização da memória. Como comparar, por exemplo, o projeto “monumental” do Parque de la Memoria, de Buenos Aires, com as inserções no cotidiano Página 12 de fotos com os nomes dos desaparecidos? Ou ainda, com o Bosque de la Memoria, no qual, por uma iniciativa da Universidad de Tucumán, foram dependuradas nas árvores de um bosque os nomes dos desaparecidos daquela região? O risco da institucionalização corresponde ao perigo de se criarem novas “criptas” para o esquecido que dariam continuidade ao apagamento da história, típico tanto dos regimes totalitários, como dos autoritários

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na América Latina. Este apagamento mistura-se – de modo perverso – a um movimento das próprias vítimas que enfrentam o passado traumático com um misto de resistência e “dever de memória”, e, por outro lado, com uma política coletiva que vê na anistia uma porta aberta para a reconciliação da sociedade – deixando o passado para trás, com suas injustiças. O único “detalhe” é que a memória do mal não pode ser apagada por decreto. A “solução” para esta questão de Melendi não é simples, mas decerto ela mesma já indica a resposta ao privilegiar as ações de memória mais próximas do cotidiano e que têm um potencial maior de quebrar o pacto de silêncio em torno do passado.16 Se no caso do monumento aos judeus assassinados no Terceiro Reich, de autoria de Peter Eisenman no centro de Berlim, é evidente que a retórica monumentalista tradicional acabou por vencer os projetos mais “radicais” e que possibilitariam um “trabalho de memória” voltado para um debate vivo, mais do que de um enterramento lutuoso e comemorativo, no caso do Parque de la Memoria, que ainda se encontra em construção, a resposta, creio, ainda deve permanecer em suspenso. O cercamento do parque e sua localização fora do eixo principal de circulação da cidade – mas ao lado do simbólico Rio de

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Com relação à recente onda de antimonumentos ligados à memória da Shoah, mas que também pode ser vista em vários países da América Latina, ver também a contribuição de Horst Hoheisel ao livro que organizei A memória da arte - a arte da memória, op. cit. Este volume reuniu as falas do evento “A arte da memória” realizado no Instituto Goethe de São Paulo de 11 a 13 de setembro de 2001, que girou em torno da representação da catástrofe e das poéticas dos antimonumentos.

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La Plata, como destaca Melendi, e, o que é digno de nota, em meio aos escombros do prédio da AMIA, que aterraram o local posteriormente cedido para o parque – pode ser lido como parte das atuais negociações entre memória privada e memória coletiva que se desdobram no conflito entre poéticas subjetivas e outras mais universais, assim como repercutem no traçamento entre as esferas privada e pública. No caso da realidade violenta da América Latina estas negociações e traçamentos ocorrem em meio a processos de democratização nos quais esta memória é ora solicitada, ora ocultada e se materializam em cercas e muros para proteger as obras dos eternos “proscritos”, vulgos “vândalos”. O recurso à lista dos trinta mil nomes de desaparecidos que o parque deve incluir não é incompatível com uma memória ativa, sobretudo se pensarmos que ele está sendo ocupado por projetos artísticos do tipo do “El Olimpo”, de Nuno Ramos, que se encaixa na (anti-)retórica dos antimonumentos.17

17 Ramos projetou a reconstrução em escala real de um recorte de um dos maiores “campos” argentinos (os CCD, Centros Clandestinos de Detención), invertendo os locais de passagem e os opacos: as paredes serão em vidro e as portas e janelas em pedra (recuperando tanto o princípio da inversão como toda a simbologia das pedras). No memorial do Vietnã de Maya Lin em Washington – “The Vietnam Veterans Memorial”, – o recurso a uma listagem cronológica e não-alfabética dos nomes possibilita que os veteranos e parentes encontrem os seus (na lista dos 57 mil desaparecidos ou mortos) em determinados locais da longa listagem. É comum ver os visitantes que literalmente “tocam os nomes” em um gesto de rememoração e luto. Ver o belo texto de Maya Lin sobre o seu projeto que pode ser caracterizado, em termos de Hölderlin, como uma estética sacro-sóbria (2000). Evidentemente, por outro

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O texto de Jerusa Pires Ferreira trata da obra de Zoran Music, nascido em Görz (Gorizia, ou ainda: Gorica, região de tríplice fronteira austro-ítalo-iugoslava), em 1909, que passou a morar em Paris a partir de 1947. Music sofreu uma experiência que provocou uma reviravolta na sua carreira: ele foi preso em 1944 sob suspeita de colaboração com um grupo antinazista e enviado ao Campo de Extermínio de Dachau, onde ficou preso por quase dois anos. O excepcional na obra de Music é justamente a sua capacidade de conciliar a narrativa mais brutal e literal dos cadáveres nos Lager com a pintura de paisagens italianas que marcaram sua infância. Jerusa nota as influências tanto do expressionismo alemão como da potente representação que Goya realizou dos “desastres da guerra”. Nas palavras da autora: “O paradoxo da beleza acompanha morte e vida nesta obra.” Se sua obra está intimamente ligada à vida, e à sobrevivência, por outro lado esta obra para existir criou um duplo espaço, calcou-se em uma dupla memória. Uma situação de ruptura anímica tão comum entre os sobreviventes de situações extremas, mas que em Music pode ser traçada historicamente ao longo de sua obra.

lado, pensando em termos de uma memória ativa, não podemos esquecer os dados históricos que estão na origem do parque em Buenos Aires e da Guerra do Vietnã. Lin recorda que seu projeto era (ou pretendia-se) “apolítico”, mas o fato de ele não tornar os mortos em mártires e heróis provocou a fúria do establishment norte-americano. Ou seja, ele também era político. No caso da América Latina, o ativismo da memória, característico dos movimentos como o das mães e avós da Plaza de Mayo ou da Comissão de Familiares dos Mortos e Desaparecidos, no Brasil, visa a uma justiça que passa, como veremos com a contribuição de Marta Nehring, também pela possibilidade de se fazer um trabalho de luto.

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Em 1945, ainda em Dachau e logo após a libertação do Campo, ele se dedicou à representação realista e detalhada dos cadáveres empilhados. O que torna mais assustadoras estas suas representações “realistas” é a impressão de que estes cadáveres falam e gesticulam uns com os outros.18 Outro fato não menos importante é o dos “tempos da memória” na obra de Music. Se sua obra se curvou totalmente às realidades do Campo no momento em que ele a vivia e no instante imediatamente posterior, quando se tratava de mostrar e documentar a barbárie que ocorrera no “coração da Europa”, pouco depois – como se passou com outros pintores com experiência semelhante – ele abandonou esta temática. Ele mergulhou então em um estilo quase infantil e nas memórias rurais de sua infância. Além disso, seus trabalhos tendem mais e mais para a abstração: até 1970, quando, repentinamente, ele volta a representar os cadáveres do Lager (Amishai-Maisels, 1993, p. 95). A partir daí sua obra alterna entre esta temática e a pintura das paisagens. Mas o que é importante notar nesta volta do trabalho de memória do Lager, mais de uma década

18 Eis como o próprio Music explica este fato: “Nos últimos meses em Dachau as pessoas estavam morrendo aos montes... Tinham tantos mortos que eles não podiam ser todos aniquilados de uma vez. Seus corpos eram empilhados no pátio... Toda manhã percebia-se que um ou outro havia morrido. A morte parecia inevitável... Eu fiquei fascinado por aqueles montes de corpos... com as suas pernas e braços despontando, porque eles tinham um tipo de beleza, uma beleza trágica. Alguns deles ainda não estavam mortos, seus membros ainda se moviam e seus olhos te seguiam, implorando socorro. Então durante a noite caía uma fina neve. O monte não mais se movimentaria.” (Music apud Amishai-Maisels, 1993, p. 52).

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depois, é a mudança no estilo. Ele deixa de ser realista. Devemos levar em conta que Music nesta época justificava esta “volta”, lembrando não apenas que “tudo deve aparecer no seu tempo próprio”, mas também que o que o impressionava era que se continuava a matar e empilhar cadáveres. Ou seja, percebemos que a sua “repetição” segue uma outra repetição – o movimento biopolítico, para recordarmos a contribuição de Camillo, do sacrifício, como as imagens do Vietnã e de Biafra o mostravam na época. São estas catástrofes que levaram o artista a voltar à cena dos corpos que continuava vívida na sua memória.19 A mudança de estilo pode ser compreendida dentro deste movimento de decalagem, de “temporização” do passado, e também como um sinal desta universalização de sua memória. O individual, singular, tornava-se universal. “O horrível está no próprio homem e não em uma sociedade específica”, ele afirmou (apud Amishai-Maisels, 1993, p. 96 e 353). Os mortos-vivos de suas telas agora, a partir de 1970, passam a olhar para o público: como o anjo da tese de Walter Benjamin.

19

Music tem várias declarações nas quais explicita este local “críptico” em que ele guarda as suas memórias de Dachau, como lemos no texto de Jerusa, onde ele se refere a Dachau como “um outro planeta” que anulava tudo o que estava “fora”. Em 1982 ele comentou esta questão com relação as suas obras: “No final das contas, talvez as vistas de Veneza e os interiores da catedral... tenham sido uma fuga, um refúgio. Algumas vezes eu penso que os únicos momentos verdadeiros da minha pintura foram as memórias de Dachau, os cadáveres e as primeiríssimas coisas que fiz – os cavalos, as paisagens da Dalmácia e a campesina. Porque estas duas coisas ficam voltando. Elas são minhas, são minhas raízes, minha verdade.” (apud Amishai-Maisels, 1993, p. 97).

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O ensaio Filosofia cinza de Márcia Tiburi também trata da representação do irrepresentável, da apresentação dos “mortos vivos”, espécie de protofenômeno do século XX. Partindo da metáfora da cor cinza – como símile de um não-lugar entre o conceitual e o imagético – Tiburi pensa o elemento cinza (a morte-vida) a partir das obras de Beckett, H. R. Giger e Adorno. Calcada na noção de história como trauma, ela descreve a arte contemporânea como manifestação do estranho, daquilo que foi estranhado e (re)surge como matéria, corpo, que não se deixa abarcar pelo simbólico. Com Vilém Flusser, ela recorda a caixa preta da câmara fotográfica como um análogo da máquina filosófica que cria imagens/metáforas que apresentam o mundo sem a pretensão arrogante e totalizante do conceito da filosofia tradicional. O cinza da teoria reflete este abismo (e abismar-se) diante do mundo. Beckett e Giger criam obras cinzas, assim como a dialética negativa de Adorno nega a luminosidade translúcida do conceito ao mesclá-lo com a opacidade (cinza mas marcada também pela evidentia) das imagens. Se Beckett ensaia o “drama” do sujeito pós-iluminista, lançado ao pântano da mesmice e reduzido a um corpo capaz apenas de movimentos-reflexo, Giger apresenta a humanidade transformada em cyborgs e com seu corpo desfigurado: figura fiel de seu estado de espírito. Mostrando a humanidade reduzida ao agir mimético e repetitivo, estes autores/artistas guardam um espaço para a reflexão: eles colocam um espelho diante de nós, e a imagem desagradável exige interpretação. Sem uma referência explícita à maquinaria de morte dos campos de concentração – mas nem por isso distante o universo imagético de Music –, em Giger, como lemos no texto de Tiburi, “o intan-

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gível assume um rosto: das mulheres mortas, belas e mortas, vivas e mortas, crianças mortas, vivas e mortas, armas/corpos”. Literatura e arte se transformam em prosopopéia: elas dão voz aos mortos, ecoando o imperativo categórico adorniano da recordação da catástrofe. Nesta passagem entre o mundo “dos mortos” (e da morte) e o “dos vivos” (da vigília e do conceito), a linguagem é reestruturada. A radicalidade da vivência da catástrofe entrava o funcionamento do logos. Como vimos, do ponto de vista do corpo e da sua dor, tudo é singular, único, irrepresentável. Esta singularidade a um só tempo absoluta e impossível está na origem também de várias das querelas entre os historiadores desde a Shoah. Adorno, como por exemplo no seu ensaio Was bedeutet: Aufarbeitung der Vergangenheit (O que significa elaborar o passado), havia discutido esta questão que tensiona o “círculo hermenêutico” e corre o risco de fraturá-lo irremediavelmente. Como vimos acima com Celan, o travo na interpretação é o mesmo que, se não impede, ao menos entrava a poesia, nos termos tanto da sua produção como de seu consumo. Tanto o poeta, o artista como o filósofo agora têm como matéria-prima suas vidas danificadas. Mais do que nunca, escritura, biografia e tanatografia se unem no momento “pós-Auschwitz”. A ética da representação – que só pode ser pensada agora no sentido de apresentação das marcas – desloca o trabalho da expressão para o campo de forças entre o silêncio e a palavra. Como Tiburi escreve, a partir de Beckett, “o mutismo é a impossibilidade da fala que se forma como compromisso com o desejo do silêncio”. Aqui não estamos no campo do “silêncio que não é mudez” – dos poemas fragmentados de Ana Cristina Cesar – mas sim de um silêncio determinado

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pela história que marca a escritura que quer “dizer” o indizível. O cinza e o pó das catástrofes do século XX penetram nos nossos pulmões e dão um tom monocromático às nossas falas e imagens. Se o mestre dos matizes cinza, Kafka, nos ensinou que “existe apenas um objetivo, nenhum caminho” (“es gibt nur ein Ziel, keinen Weg”) e ainda acrescentou a este diagnóstico nada animador que “o que nós denominamos de caminho é hesitação” (“was wir Weg nennen, ist Zögern”), poderíamos imaginar que o que os autores empreenderam neste livro testemunha esta (difícil) arte de “hesitar”. O belo ensaio de Maria Esther Maciel trata da poética da memória (e da desmemória) do artista Arthur Bispo do Rosário. Para iluminar o universo de sua obra, que reúne fragmentos e ruínas de sua vida (e testemunha sua pertença a um grupo de excluídos: pela etnia, pobreza e “loucura”), ela parte de uma reflexão sobre a memória, o colecionismo e a taxonomia, enquanto componentes estruturantes das obras de importantes autores e artistas do século XX, como Borges, Perec, Calvino, Pavitch e Greenaway. Este último desconstrói em seus filmes e obras de arte a lógica da enciclopédia iluminista (que hierarquiza os saberes e acredita que existe “O saber”) através de uma disseminação de enumerações e da construção de “documentários” e mapas imaginários. Borges é um dos autores que mais explorou as tensões entre o mundo e os conceitos, as palavras e as imagens, a escritura e o esquecimento/a memória. Com muita ironia ele narra, por exemplo, como Maria Esther recorda, o universo de “Funes, el memorioso”, que nega a linguagem porque com a sua memória total rompe com ela, revelando-a como uma pobre máquina de universalização e

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generalização muito aquém de sua inumana capacidade de registrar as diferenças. A linguagem sucumbe diante do mundo, e a literatura, desde o romantismo, oscila entre a resposta irônica diante desta constatação e o luto. Perec, também na chave irônica, leva a tendência taxonômica da linguagem ao limite em obras como A vida: modo de usar, Pensar/classificar e La disparition. Quer via radicalização do gesto descritivo da literatura, quer via elisão de palavras e letras, quer criando métodos “absurdos” de classificação, ele trabalha no interstício entre o dito e o não dito, transformando a própria linguagem em gesto que aponta para este vazio intervalar. A impressão que se tem diante da obra de Bispo é que ele visaria a uma salvação total, apocatastasis, no termo de Origines, do mundo, de todas as coisas, pessoas, pensamentos e sonhos: em suma, visa a uma segunda “arca de Noé”, como afirma Maria Esther, voltada para salvar os “restos” da (pós-)cultura industrial. A busca da completude (paradoxal) da coleção de “restos” leva-o a coletar, como escreve Maria Esther, “sapatos, canecas, pentes, garrafas, latas, ferramentas, talheres, embalagens de produtos descartáveis, papelão, cobertores puídos, madeira arrancada das caixas de feira e dos cabos de vassouras, linha desfiada dos uniformes dos internos, botões, estatuetas de santos, brinquedos, enfim, tudo o que a sociedade jogou fora, tudo o que perdeu, esqueceu ou desprezou”. Esta descrição não por acaso lembra as palavras de Baudelaire – citadas por Benjamin no seu Paris do Segundo Império em Baudelaire, autor não só do poema O vinho dos trapeiros, mas também de uma descrição do trapeiro que aproxima esta figura urbana moderna do trabalho do próprio poeta:

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Aqui temos um homem – ele tem de recolher na capital o lixo do dia que passou. Tudo o que a cidade grande jogou fora, tudo o que ela perdeu, tudo o que desprezou, tudo o que destruiu, é reunido e registrado por ele. Compila os anais da devassidão, o cafarnaum da escória; separa as coisas, faz uma seleção inteligente; procede como um avarento com seu tesouro e se detém no entulho que, entre as maxilas da deusa indústria, vai adotar a forma de objetos úteis ou agradáveis. (Baudelaire apud Benjamin, 1989, p. 78).20

A “genial loucura” de Bispo iluminou seu trabalho de coleta e salvação. Sua antilógica analógica também desconstrói nossos hábitos lingüísticos e classificatórios. Suas listas de nomes – de pessoas com quem se encontrou na vida – lembra tanto a poética (melancólica) de W. G. Sebald (que colecionava e redigia biografias de vidas danificadas), como a antiquíssima tradição do epitáfio, da lista de nomes dos mortos e os livros da memória (referência à força mágica da linguagem e da escrita), mas também remete à resposta (irônica, novamente) de Novalis à tendência classificatória da linguagem. Seu Allgemeine brouillon (Rascunho universal), que acabou não sendo publicado em vida, coligia momentos autobiográficos, comentários sobre história da filosofia, uma “teoria de máquinas incompletas”, uma teoria da própria “enciclopedística”, crítica literária e musical, uma “poética do mal”, fragmentos de

20 Com relação às semelhanças deste procedimento com o trabalho do próprio Benjamin, ver este fragmento do seu livro sobre as passagens de Paris: “Método deste trabalho: Montagem literária. Eu não tenho nada a dizer. Apenas a mostrar. Eu não vou furtar nada de valioso ou apropriar-me de formulações espirituosas. Mas sim os trapos, o lixo: eles eu quero não inventariar, mas, antes, fazer justiça a eles do único modo possível: utilizando-os.” (Benjamin, 1982, p. 574).

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história “sobre o tempo em que pássaros, animais e árvores falavam”, uma teoria dos símbolos, equações, estudos de mineralogia, uma “coleção de problemas de todo tipo”, uma “doutrina da classificação”, uma “teoria do acaso e da necessidade”, aforismos sobre medicina, saúde, classificação e história das doenças etc. Nesta (anti)enciclopédia Novalis (1978, p. 488) define o romantismo justamente como “classificação do momento individual, da situação individual etc.” e falou de um tempo quando apenas livros literários existirão, belas composições, já que para ele toda ciência tende para a poesia. Como em Borges, a “solução” é a passagem para o literário, para a imagem, capaz de uma memória mais aberta e capaz de sugerir o “resto” não simbolizável. Bispo, assim como estes outros “enciclopedistas”, fazia da coleção uma arte de “desloucamento” do mundo, para lembrar o modo que Günter Anders sugeriu para definir a poética de Kafka (Anders, 1993, p. 15). A “analógica” da coleção salva os objetos e ao mesmo tempo retira do contexto: revelado-o como falso e falsa continuidade. Deste modo, presenciamos um encontro do artista com o filósofo (Adorno, Benjamin e outros), que, vindo do universal, pensa estratégias para salvar o singular. A arte ensina-nos a jogar com a crise aberta no “círculo da interpretação” (o conhecido “círculo hermenêutico”, a passagem do individual ao universal, da parte ao todo). Se na tradição iluminista havia uma tendência a se anular o individual sob o peso do universal, no intermezzo pós-moderno apostouse no momento singular. O que estes artistas e filósofos propõem é algo mais complexo que uma hipotética “terceira via” que mesclaria os dois pólos. Trata-se da arte de pensar por cons-

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telações, onde o singular brilha na tensão do desenho – que é movimento, coleção, recorte, recordação ativa.21 Este volume procura justamente retraçar estas fronteiras móveis entre conceito e imagem, filosofia e as artes. Maria Zilda Cury aporta uma rica análise da literatura de imigrantes brasileira recente, a partir dos romances do escritor manauense Milton Hatoum, Relato de um certo oriente (1989) e Dois irmãos (2000). Maria Zilda recorda com razão a importância desta literatura de imigrantes no panorama da cultura brasileira e a localiza no espaço-tempo do pensamento pós-colonial. Com efeito, as vozes dos emigrados elevam-se na segunda ou terceira geração dos emigrados para delinear o perfil de um passado quase sempre abandonado e esquecido, sob a pressão do tempo para o trabalho e construção de uma nova vida em solo americano. Assim como nos países africanos, caribenhos e asiáticos, uma potente literatura pós-colonial surgiu nos últimos anos, testemunhando décadas ou séculos de amordaçamento e exploração do “outro” – que no caso das excolônias africanas e asiáticas era constituído pela própria população autóctone –, do mesmo modo, no Brasil e nos demais países da América, o momento de dissolução das grandes narrativas permite e solicita estas novas-antigas narrativas não só dos índios oprimidos mas também dos emigrados. Estas últimas não possuem mais o tom da “saga heróica” e passam a iluminar os momentos (grandes e pequenos) de ruptura no processo de construção de um novo “lar” na terra hospedeira. Esta construção

21

Também o testemunho demanda o pensamento de uma “terceira via”, “entre” a ficção e a escrita realista/historiográfica. Ver Seligmann-Silva (2000, 2003).

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ocorre de modo conflituoso, e as experiências do passado surgem neste momento como armamento e consolo. O mais interessante, no entanto, nesta literatura dos imigrados, como nota Maria Zilda, é o trabalho de metamorfose da memória do passado, transformado no presente da imigração. Esta literatura “descreve” a sociedade de um ponto de vista “deslocado” – assim como as obras de Bispo – acelerando o processo de construção identitária como eterno trabalho de desconstrução. A literatura da imigração, ao deslocar, “minoriza”, para falar com Deleuze e Guattari (1977), revela a “nação” e sua “formação”, como um processo (mais uma vez: Kafka), um conflito que exige negociações constantes e não é nem linear nem uniforme (Hall, 2003). Mais do que isso, estes estudos das literaturas de imigração permitem também uma revisão crítica de nossos hábitos interpretativos. Se a Shoah representou um abalo na visão tradicional do Iluminismo e do Humanismo que revelou o logos e seu representante, o “Ocidente”, como máquinas mortíferas, a literatura do emigrado aponta para mais um dos momentos do “Ocidente”, para o seu trabalho de diluição do “outro” e a resistência a esta diluição: que pode gerar tanto respostas fundamentalistas (que reduplicam a lógica da proscrição e negação do outro e levam muitas vezes ao terrorismo), como também pode possibilitar uma construção aberta da identidade como eterno jogo de negociações. Para não se passar a linha divisória que transforma esta pluralidade em uma expansão do mercado (como vimos com Jay Winter, o capitalismo quer transformar a pluralidade em mercadorias) devese conceber a identidade como algo dinâmico, político. É justamente neste contexto que a literatura de imigrantes assume um papel importante, onde, de modo cristalino, as esferas privadas e

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públicas novamente se cruzam. A autobiografia, ou, melhor dizendo, a auto-etnografia, insere-se em um contexto de recoleta do passado dentro de um presente preciso. O conceito de exílio – e de literatura do exílio – também pode ser de utilidade no estudo destas obras, uma vez que também é no espaço-tempo pós-colonial que inúmeras ditaduras foram implantadas e geraram o fenômeno do exilado e da sua literatura. Em ambos os casos temos a questão do distanciamento: o imigrado com o seu olhar “de fora” que não se sente em casa e teve sua diáspora determinada por questões econômicas e políticas (de políticas etnicidas, nos casos dos judeus e ciganos que conseguiram fugir da Europa em meados do século XX). Já o exilado leva em si o seu local de partida, sua “terra natal” e também estará condenado ao deslocamento no estrangeiro. Nos dois casos existe um trabalho de luto que pode muitas vezes descambar para a melancolia. Por outro lado, é evidente que este “trabalho da literatura” não é, em hipótese alguma, homogêneo. Cada escritor em cada uma de suas obras vai proceder de modo distinto. As camadas estéticas, políticas, identitárias etc. vão se articular sempre de maneira nova. Aqui a escritura nasce da memória de imagens de um passado que também é sempre mais do que tudo construção e não (apenas) representação. O intérprete tem que saber avaliar as estratégias literárias de cada texto: sua vinculação positiva e negativa com a tradição, a construção de imagens e metáforas etc. Maria Zilda faz isso com muita precisão no caso da literatura de Hatoum. Não por acaso o rio aparece como uma imagem forte que tanto guia sua construção literária mnemônica – narrando suas histórias em Manaus,

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desterritorializando o Líbano e a Amazônia, a um só tempo – como também o esquecimento. Os rios da memória e do esquecimento (Lete) encontram-se como o rio Negro e o Amazonas, diante de Manaus. Em Dois irmãos lemos uma expressão desta relação de dependência entre lembrar e esquecer: “Omissões, lacunas, esquecimento. O desejo de esquecer. Mas eu me lembro, sempre tive sede de lembranças, de um passado desconhecido, jogado sei lá em que praia de rio.” A casa também aparece como uma arquitetura da memória e do esquecimento. O foco da memória caminha pela casa como o personagem de uma pequena história de Kafka, Odradek, que “tem o aspecto de um carretel de linha achatado e em forma de estrela”, uma construção que foi de “alguma forma útil e agora está apenas quebrada”. Odradek “se detém alternadamente no sótão, na escadaria, nos corredores, no vestíbulo” (Kafka, 2001, p. 43). Ele – composto de “pedaços de linha rebentados, velhos, atados uns aos outros” – é a encarnação do esquecimento, como notou Benjamin. Outro “esquecido” que tem um local eminente nas memórias da “criança-adulto” Hatoum é, como recorda Maria Zilda e como não poderia deixar de ser, o quarto de empregada. Local atópico nas nossas casas onde mora este ser “transparente” que acompanha as vidas dos membros da nossa classe média. Aqui também vale a pena fazer um paralelo com Kafka, uma vez que no seu universo as empregadas habitam um local de encruzilhada, desempenhando um papel singular, na tríplice fronteira entre o de objetos sexuais, de crianças e de animais. Por fim, a linguagem (e a escritura) também tem um papel importante na obra de Hatoum, na medida em que ela é que liga o passado ao presente e denuncia esta passagem como

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um processo dinâmico permanente. A língua guarda as marcas desta passagem que não passa, no acento, no sotaque e na criação de uma “terceira língua” que também desloca as línguas ditas originais (a do emigrante e a do local para o qual imigrou). A escritura árabe, que se transforma aos olhos da criança em asas de pássaros, pode ser lida também na obra de Hatoum como metonímia do trabalho de memória, já que esta escritura, como a hebraica, caminha da direita para a esquerda, desfazendo a escritura do tempo ocidental. O ensaio de Francisco Foot Hardman apresenta de modo brilhante as “poéticas da extinção” de Raul Pompéia e Euclides da Cunha. Foot detecta nestes companheiros de geração traços de uma psicologia melancólica determinada em grande parte pelo embate com as grandes questões históricas, seus sonhos e desilusões. O autor deixa clara a sua vinculação à metaforologia de Araripe Jr., que em um artigo sintomaticamente denominado Dois vulcões extintos já aproximava Euclides de Raul Pompéia. Se o nome deste último pode facilitar a metáfora da catástrofe vulcanológica e da extinção cataclísmica da história, esta imagem é desdobrada por Foot com uma mão segura, ao revelar as passagens entre o arruinamento da natureza e da cultura em Euclides como parte deste teatro (barroco, no sentido benjaminiano deste termo), assim como o teor melancólico da escritura de Pompéia22 (calcada na narrativa impossível 22 Foot escreve sobre as “afinidades entre a ‘escritura artística’ de Pompéia e a linguagem rebuscada, exuberante e ‘excessiva’ em Euclides, a atração, em ambos, por paisagens naturais ou humanas arruinadas”. Esta atração por paisagens em ruínas remete a uma interessante tradição, não apenas barroca, mas que também foi atualizada no século XVIII (como vemos nas obras de artistas como Hubert Robert e Piranesi) e no romantismo. Vale lembrar uma

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da morte de seu pai e, enquanto crítico social, no confronto com a sociedade conservadora, preconceituosa, escravocrata e racista). Ambos participaram de um momento de desilusão e esgotamento das lutas justas abolicionistas e contra a monarquia. O paralelo com a nossa situação, cem anos depois, é patente! Tendo as lutas sociais sido dissolvidas em um mar de decepções, só restou aos espíritos nobres daquela época a volta para si mesmo, num ensimesmamento lutuoso – e poético. Como escreve Foot: a República [...] ruía em seus corações e mentes como o regime das ilusões perdidas. Conjuntura propícia para a eclosão, em nível da sensibilidade afetiva e estética destes poetas, da ‘caverna de pavores’ em que a melancolia profunda tece seus demônios, e a crise do pensamento humano pode ser traduzida em ‘queda satânica’, sendo a militância civil e política substituída por uma ‘nostalgia da forma’. Assim os objetos perdidos da razão histórica e da memória afetiva, num compósito instável, são sublimados pela busca estética que é também trabalho precário de luto, pois a forma perfeita de restituição equivaleria a um completo esquecimento. Resta uma forma sonhada e sua sondagem melancólica, que recobre a trilha da morte, arrisca-se a todo instante a dissipar-se, mas oferece-nos ainda os belos vestígios dessa pesquisa do inexprimível.

frase de Wilhelm von Hulboldt em uma carta a Goethe, posteriormente incorporado pelo últimos em seu encômio a Winckelmann: “A Antigüidade deve aparecer para nós apenas à distância, apenas separada de tudo que há de ordinário, apenas como passado. Ocorre aqui, ao menos para mim e para alguns dos meus amigos, como o que ocorre com as ruínas. Sempre nos irritamos quando desenterram uma meio enterrada. Isso pode no máximo significar um ganho para a erudição às custas da fantasia.” (Goethe, 1989, XII, p. 109, grifo meu). Haja fantasia, no caso destes escritores, sobretudo de Euclides, para apresentar as tragédias que haviam presenciado. A poética da ruína significa tanto uma espécie de literalização da paisagem anímica, como um jogo de encobrimento/revelação para apresentar aquilo que escapa, seja a Antigüidade ou as guerras e demais catástrofes.

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Foot analisa as obras dos dois autores, perscrutando também os interstícios do diálogo deles com autores como Leopardi e Baudelaire, bem como estabelecendo paralelos com a pesquisa de Laura Riding sobre o significado do poema em um mundo que aparentemente resiste a qualquer transformação social e se transforma em uma espécie de exílio, de paradoxal caixa de ressonância do indizível. Além de Riding, Foot passa também – sempre de modo muito cuidadoso nas suas aproximações – pela teoria da linguagem (benjaminiana) de Agamben – que vai tomar as palavras como um medium para as coisas mudas – e pelas poéticas expressionistas de Else Lasker-Schüler e Jakob van Hoddis. No caso extremo do testemunho euclidiano da guerra de Canudos, Foot fala de uma “poética das ruínas, onde a paisagem resultante dos traumas da história e dos afetos já não sinaliza possibilidades estáveis de representação. Bem ao contrário: passa a sinalizar os impasses de qualquer representação e o eu lírico desdobra-se em sucessivas desidentificações.” Sua apresentação do fortíssimo poema de Euclides, Página vazia, é um digno exemplo do que ele entende por poética da extinção e pela impossibilidade de representação e dissolução do “eu” no espaço “após” a catástrofe. O ensaio traça uma constelação de autores e obras, recuperando luzes estelares “extintas” que ainda sobrevivem e podem ser lidas por nós com toda sua força poética e crítica. Jaime Ginzburg apresenta-nos uma interessante leitura do conto Depois de agosto de Caio Fernando Abreu, do volume Ovelhas negras, de 1995. Um conto emblemático na literatura brasileira, ao menos com relação a duas questões: a apresentação literária da AIDS e a relação entre autobiografia e ficção. A cena inicial de que a leitura de Ginzburg parte é de fato marcante. A temporalidade é a do “tarde demais”: “tarde demais para a

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alegria, tarde demais para o amor, para a saúde, para a própria vida”. E também a cor predominante é a cor cinza, característica do espaço “entre” da vida-morte, vinda dos “reflexos do sol cinza nos túmulos do outro lado da avenida Dr. Arnaldo”. No conto, Jaime percebe o entrelaçamento da marginalização social radicalizada pela situação do soropositivo, o preconceito e a repressão sexuais, a AIDS como negatividade e destruição. Por outro lado, as reações do protagonista do conto levam a uma reversão positiva da sua situação precária. Seu desejo de viagem é lido como vontade escapista, mas também de conhecimento de si, de seus novos limites. A situação de exilado (pela doença e pela sexualidade) permite ver neste conto a figuração da situação de dessubjetificação, de fragmentação do eu. Esta situação é apresentada por Caio via recursos literários de fragmentação da própria narrativa, e não via representação no registro realista. O final do conto aponta para uma abertura de horizonte: um encontro com outro soropositivo que permite, como nota Jaime, passar do “tarde demais” para o “cedo demais e nunca tarde”: “Porque era cedo demais e nunca tarde. Era recém no início da não-morte dos dois”, escreve Caio. Este “horizonte de esperança”, nas palavras de Jaime, não deixa de lembrar do final de outro texto paralelo a este de Caio, o A doença, uma experiência, de Jean-Claude Bernardet, publicado em 1996. Este livro foi escrito também em 1995 e sob o impacto de uma tradução que Caio Fernando Abreu fizera do conto Assim vivemos agora, de Susan Sontag (que também descreve a situação de personagens aidéticos).23 No final do li23

Conforme a entrevista de Jean-Claude Bernardet a Marcelo S. Bessa (Bessa 2002, p. 294).

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vro de Bernardet, também lemos uma reviravolta: “A celebração da vida pela aceitação da morte.” (Bernardet, 1996, p. 68). Na capa do livro lemos o qualificativo: “ficção”. Jean-Claude conseguiu – assim como Caio – encontrar uma dicção aquém e para além do autobiográfico, no sentido confessional, tradicional deste termo. A passagem para o literário é a força destas narrativas. A vida alimenta a escritura, deixa suas marcas nela, em uma escritura nascida do corpo, mas trabalhada literariamente. Sem pathos. Não é a dor que é narrada, mas sim “uma experiência”; “uma experiência literária” (Bessa, 2002, p. 319), como afirma o próprio Bernardet. Nestes escritos existe uma nova “negociação” entre o eu e o mundo, entre a ficção, a literatura e o sujeito que enuncia. O testemunho é transformado em traço testemunhal, em “momento” da narrativa. O mesmo ocorre em outros autores nos anos 1990, mas raramente com a mesma força destes escritos “arrancados” do corpo.24 A contribuição de Vera Lins trata da tradição dos críticospoetas no Brasil – Murilo Mendes, Mário de Andrade, entre eles – com destaque para a produção de Gonzaga Duque. Este último tem a peculiaridade de ser não apenas um de nossos primeiros críticos de arte, mas também um crítico que, de modo

24

Estes textos nascem também de um terrível silêncio, de um “pacto de silêncio”, estabelecido com uma sociedade violenta que marginaliza, exclui, e onde a infecção pelo HIV fragiliza ainda mais aqueles que já não podiam se “localizar” na sociedade. Michael Pollak (1990, p. 104) recorda que os “mini-atos regulamentares que degradam a posição de uma pessoa” e “a destinam à lenta morte social bem antes da morte física”. Este mesmo processo é descrito por Bernardet na sua narrativa, quando ele escreve: “Preciso sair desse limbo dos pré-mortos para onde vou sendo empurrado, o que vai me matar não é a doença, é a rede que está se fechando em volta de mim [...]” (Bernardet, 1996, p. 12).

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programático, não se restringiu às fronteiras entre os gêneros. Assim ele praticou a crítica ficcional em romances, o que lhe permitiu explorar ao máximo a presença das imagens no texto. Lins apresenta também esta prática de trânsito entre as palavras e as imagens, o conceitual e o icônico, em algumas cartas de Gonzaga Duque. Já este crítico enquanto salonnier – na esteira de Diderot, Stendhal e Baudelaire – vai também lançar mão de uma teatralização da exposição para apresentá-la. A alegoria serve aí de instrumento para a vivificação das obras. Como lembra a autora: “Os textos de Gonzaga Duque sugerem que a crítica também é lugar de uma imaginação produtora, que acolhe o paradoxo e o enigma. Suas imagens mostram o limite dos conceitos. Mostram a movência singular da crítica.” O pequeno e precioso texto que fecha esta coletânea é de autoria de Marta Nehring, cineasta paulista que dirigiu, ao lado de Marilia de Oliveira, o documentário “15 filhos”, de 1996. Este documentário – que foi apresentado no IEL durante o evento em novembro de 2002 – contém o depoimento de 15 filhos de prisioneiros políticos, ou de pessoas cujos pais foram mortos ou “desaparecidos” durante a ditadura de 1964-1984 no Brasil. Marta Nehring – que teve seu pai, guerrilheiro, torturado até a morte em 1970 –, no seu texto que reflete sobre seu filme, procura localizar seu trabalho (artístico e mnemônico) dentro de um projeto maior de abertura do “vasto latifúndio da nossa memória oculta”. Ela contrapõe a memória dos “filhos”, que seria “pura reminiscência”, à “memória ativa” dos pais, emoldurada no quadro das lutas políticas. Os filhos viveram aquelas situações como tripulantes de uma embarcação: sem terem optado. É evidente que cada um foi construindo seu quadro político e depositando nele

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– ou ao menos tentando – as suas memórias, suas “puras reminiscências”. É justamente disto que trata o artigo de Nehring. Antes de mais nada este documentário teve um papel catártico, pois permitiu estabelecer de modo claro a existência de um grupo: os “filhos de pais presos, mortos ou desaparecidos”. Este elemento é central para organizar a narrativa privada na mesma medida em que permite ancorá-la no espaço público da memória: que inclui o direito, a luta pela justiça, pelo esclarecimento dos fatos, pela descoberta dos cadáveres. É neste quadro maior que o “filho” pode aos poucos (ao menos tentar) superar sua memória melancólica que o faz “prisioneiro do passado” e transforma-o em “idoso” avant la lettre. O documentário permitiu aos seus participantes e a outros “filhos” perceber a existência de uma “experiência comum”. Nehring destaca o método de construção do filme: a partir de uma lista de temas comuns às duas diretoras estabeleceu-se um questionário. As imagens do filme reduzem-se as dos entrevistados (apenas com a exceção de cenas do golpe militar no Chile, em 11 de setembro de 1973, presenciado por vários dos depoentes). O círculo de empatia criado pelas histórias permite traçar um campo comum para a memória e sua narrativa, antes fragmentada, tomada como absolutamente singular e irrecuperável em seu sentido. A ruptura do silêncio através do reconhecimento do “duplo contexto” da memória (pessoal e político) permite a saída do esquecimento e da “memória oculta” que, no limite, como lembra Nehring, é cúmplice do “cale-se imposto pela ditadura militar”.25

25

Neste sentido é interessante o paralelo que podemos traçar entre este texto de Marta Nehring (e seu filme) e o livro de Vera Jarach, Diana Guelar e Beatriz Ruiz (2002) sobre a memória dos adolescentes exilados durante a ditadura

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É interessante que no texto de Marta, após notar este traçamento deste círculo de pertença – anel de unidade e fidelidade –, ela parte para uma seção intitulada “Índios” e trata de sua empatia, na sua infância, com os índios e sua posição de perseguidos pelos yankees. Aos poucos suas memórias vão assumindo dimensões históricas até este parágrafo quase no final do texto: Os sobreviventes da violência voltaram aos seus vilarejos com uma história terrível para contar, que foi relatada para os vizinhos e os parentes destes, que se espalhou como doença para as vilas vizinhas. A ela somaram-se as histórias, caladas, das índias raptadas de suas tribos para casarem com os degredados europeus, dos escravos africanos e de suas mulheres, de uma miscigenação que não aconteceu apenas na malemolência das redes, mas em lágrimas, a ferro e fogo. As histórias acumuladas ao longo das lutas, das revoltas populares reprimidas, raramente iluminadas nos livros escolares.

Esta memória da história como catástrofe e trauma permite reinscrever as próprias experiências em uma tradição dos oprimidos e de luta pela justiça (no Brasil e na América Latina). 26 Novamente vem à mente a imagem do anjo argentina. Na introdução as compiladoras das entrevistas escrevem que “o primeiro impulso para o trabalho foi então quebrar o silêncio que ainda existe; todo silêncio é cúmplice, inclusive o daquele que diz não saber...” (Jarach; Guelar; Ruiz 2002, p. 15). 26 Este quadro político, coletivo, da memória também é destacado na introdução do volume sobre os adolescentes exilados da Argentina (Jarach; Guelar; Ruiz, 2002, p. 17): “De algum modo sentíamos que a prioridade no ‘dever de memória’ deveria atribuir o primeiro lugar aos desaparecidos, aos presos e aos sobreviventes dos campos, e que assim a nossa própria experiência de exílio pertencia apenas a uma instância privilegiada no contexto daquela história horrorosa. [...] A adolescência no exílio é um dos capítulos da História Argentina do último quarto do século XX, uma história cuja memória devemos

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benjaminiano da história, novamente recordamos da passagem da memória lutuosa, para a memória ativa. Podemos também lembrar aqui do papel das mulheres neste trabalho ativo de memória, que não por acaso é associado desde a Antigüidade ao trabalho da tecelã. Marta lembra das mães da Plaza de Mayo e da Comissão dos Familiares dos Mortos e dos Desaparecidos, onde as mulheres também desempenham um papel fundamental. Poderíamos lembrar novamente do filme de Lucia Murat, Que bom te ver viva, outro filme-documentário essencial para a memória da ditadura militar, todo baseado na entrevista de mulheres torturadas durante a luta política daquele período. Com esta passagem final pelas imagens e narrativas da memória que também escrevem a história de nosso passado recente, este volume percorre uma série de caminhos entre as margens das artes e das letras, da palavra e da imagem, do passado e do presente, para desembocar em uma “terceira margem” dentro de cada leitor. Mantendo um certo frescor de um evento que reuniu alguns amigos engajados em pesquisas diversas, mas buscando um diálogo construtivo, este livro deve sua existência à editora Argos. Aos seus editores nosso agradecimento, por acolher-nos em seu projeto editorial. Márcio Seligmann-Silva São Paulo, novembro de 2003. conservar. Deve integrar a Memória Coletiva ao lado das outras histórias das vítimas do terrorismo de Estado que imperou nos anos 70 até a recuperação do Estado de Direito e da Democracia. Esta parte da história está começando a ser reconstruída, e este trabalho pretende tomar parte nesta reconstrução.”

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