Os Sinos se dobram por Alfredo

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Paulino Eidt

OS SINOS SE DOBRAM POR ALFREDO Cortesia de parte do 1o capítulo. Mais informações da obra em www.unochapeco.edu.br/argos

Chapecó, 2009


REITOR: Odilon Luiz Poli VICE-REITOR DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GR ADU AÇÃO: Claudio Alcides Jacoski PÓS-GRADU ADUAÇÃO: VICE-REITOR DE ADMINISTRAÇÃO: Sady Mazzioni OR A DE GR ADU AÇÃO: Maria Luiza de Souza Lajús VICE-REIT VICE-REITOR ORA GRADU ADUAÇÃO:

981.64 E34s

Eidt, Paulino Os sinos se dobram por Alfredo/Paulino Eidt. – Chapecó : Argos, 2009. 376 p.

ISBN: 978-85-7897-002-4 1. Santa Catarina - História. 2. Colonização. 3. Antropologia cultural. II. Título. CDD 981.64

Catalogação: Joseana Foresti CRB 14/536 Biblioteca Central Unochapecó

Conselho Editorial: Elison Antonio Paim (Presidente); Antonio Zanin; Arlene Renk; Claudio Alcides Jacoski; Darlan Christiano Kroth; Edilane Bertelli; Iône Inês Pinsson Slongo; Jacir Dal Magro; Jaime Humberto Palacio Revello; Leonardo Secchi; Maria dos Anjos Lopes Viella; Mauro Dall Agnoll; Neusa Fernandes de Moura; Valdir Prigol; Paulo Roberto Innocente; Ricardo Brisolla Ravanello; Rosana Badalotti C o o r d e na d o r : Valdir Prigol nad


Alfredo: uma vida entre a unidade e a multiplicidade

E Alfredo nasceu A linha evolutiva de que se tem conhecimento talvez tenha mais curvas do que voltas, novas retas que se avolumam num novelo a partir da mesma linha. O que faz com que o percurso de todo ser vivo, em si mesmo, e na sua espécie, seja inflacionado de opções de saltar de uma etapa a outra da linha, sem preocupar-se se está regredindo ou progredindo, mas tendo atenção apenas em manter-se vivo em todo o percurso. [...] Outras se estruturam, promovem uma série de perdas para que obtenham o ganho de continuar existindo Michel Serres O conhecimento propicia a saúde, a pesquisa traz o bem-estar saudável, a beleza envolve a invenção com sua auréola de luz generosa e calmante, da mesma forma que a ausência de idéias pode tornar qualquer um feio, áspero, ciumento, sofredor e velho. Michel Serres A mais antiga de todas as sociedades, e a única natural, é a da família; ainda assim só se prendem os filhos ao pai enquanto dele necessitam para a própria conservação.


Desde que tal necessidade cesse, desfaz-se o liame natural. Os filhos isentos da obediência ao pai, e este isento dos cuidados que deve aos filhos, voltam todos a ser igualmente independentes. J. J. Rousseau

Os quatro filhos de Arthur e Teresa haviam acabado de adormecer. Era abril do ano de 1927. Repentinamente, foram acordados por cochichos e movimentação dentro da casa de madeira cheia de rangidos. Paulo, o mais velho, fechou os olhos e ficou a escutar. Percebeu que a voz da mãe entremeou-se de soluços, enquanto o pai corria freneticamente de um lado para o outro com o lampião quase apagado. Nos instantes seguintes, ouve ruídos e vozes abafadas. No silêncio do quarto, bloqueado pela obediência que torna sua acuidade sensorial frígida, adormece sem conseguir entender o que sucedera. No dia seguinte, porém, não reparou, nos olhos secos e avermelhados e nas pálpebras inchadas da mãe, nada que lembrasse seu comportamento habitual. Antes que fizesse alguma interrogação a respeito, teve sua curiosidade impulsiva saciada: – A cegonha trouxe, na noite passada, mais um irmãozinho! – balbuciou o pai. A exemplo dos demais irmãos, Paulo era demasiado jovem para poder saber questões de adultos. Também não lhe passava pela imaginação a impertinente ideia de querer saber algo sobre um assunto tão misterioso. Todos permaneceram imóveis e reverentes frente à nova realidade que se apresentava. Sobre o acontecido, havia a prescrição do silêncio. Nos dias seguintes, percebe que o evento havia sido insignificante e pouco afetara a vida da família.

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Mais alguns dias, e os pais foram cumprir a obrigação do batismo. Sabiam que crianças que morrem sem ser batizadas são condenadas pelo pecado original. O recém-nascido não recebeu o nome que fora manifestado ser do interesse dos pais. Na pia batismal, sob olhares fixos e em meio ao silêncio, o padre Henrique, com sua voz grave, proferiu: – Seu nome será Alfredo. Em homenagem a um cristão virtuoso das Colônias Velhas! Os primeiros anos de vida de Alfredo transcorreram sem maiores percalços. Em meio à mata e com uma vida limitada ao grupo familiar, percebe desde cedo que os esforços de seus pais, incessantemente, eram drenados para a derrubada de árvores. Preso a um cesto de cipó ou cativo dentro de uma carroça de bois, observava a exuberância da natureza que o rodeava. O mundo de Alfredo se restringia à família patriarcal. O modesto círculo familiar se resumia a um cenário onde a imaginação era incitada somente para a luta pela sobrevivência em meio à hostilidade do espaço natural. Os pais, a exemplo dos demais pequenos camponeses da região, transformavam a natureza. Sempre à noite, após a reza, sua mãe o fazia deitar de bruços e untava-lhe o corpo com óleo, com o intuito de fortalecer seus músculos, fragilizados pela vida carente do universo pioneiro. Numa certa ocasião, após a prece, Alfredo acompanhou sonolento a conversa dos pais no quarto vizinho: – Nada do que foi anunciado nas colônias velhas sobre a nova colonização é verdade. Fomos largados num mundo primitivo e enganados pela propaganda mentirosa da colonizadora, que nos vendeu um sonho de felicidade. Cadê as planícies? Onde comprar e vender nossos produtos? E os vizinhos, quando virão?

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Arthur, mesmo concordando que a colonização cheia de privações foi um movimento inverso e regressivo ao mundo das regiões de procedência dos migrantes, retrucou: – Precisamos de calma, nos próximos dias virão mais famílias e jovens. Os padres da Companhia de Jesus estão prestes a assumir a Paróquia e Porto Novo1, daqui para a frente vai andar!

A construção dos universos simbólicos As personalidades do pai e da mãe imprimem-se nas almas infantis para sempre. Edgar Morin O mundo, para cada indivíduo, significa aquela parte do mundo com o qual tem mantido contato, o seu partido, a sua igreja, a sua seita, a sua classe social. John Stuart Mill

Alfredo percebe, na sua tenra idade, o avançar da colonização e as novas construções que se erguem em meio à floresta. Construções edificadas a partir dos produtos da natureza, como pedras, barro, cipós e madeiras. Nota uma atmosfera alegre e um entusiasmo contagiante todas as vezes que famílias inteiras se dirigem para praticar os Gemeidearbeiten e Fronarbeiten (trabalho comunitário e trabalho doado). Na família, Alfredo aprende os deveres e as regras a partir da prática de seus irmãos mais velhos. Os mesmos enunciados são

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O processo de ocupação e estruturação da colonização de Porto Novo já foi descrito pelo autor na obra “Porto Novo: da escola paroquial ao processo de nucleação escolar, uma identidade em crise” (1999). 34


repetidos, palavras e práticas não entram em desuso, e determinados assuntos lhe são proibidos. Dos seus pais ouve, quase que diariamente, a recomendação de que uma pessoa precisa, desde pequena, da Bildung e Kultur (retidão de conduta e comportamento; conhecimento e sabedoria). À medida que vai crescendo, as regras e os trabalhos infantis lhe roubam a doce sensação de liberdade. A objetividade e a relação com o meio interditam as múltiplas possibilidades e vias que afloram na sua subjetividade. A curiosidade impulsiva e aguda colide com os valores da família nuclear. Arthur e Teresa arvoravam-se, sempre, quando Alfredo expressava suas ideias extravagantes. Repreendiam o filho em seus devaneios, e assim os pensamentos inquietantes eram sempre contidos dentro de sua submissa curiosidade de jovem, cheia de autodomínios. No cotidiano, Alfredo se ocupava com as coisas próprias de sua idade. Cercado por animais e vegetais, a vida social se limitava ao grupo familiar. A interação com pessoas de outros locais e outras possibilidades de amizade faziam parte somente do mundo adulto. Alfredo gostava de brincar com os animais domésticos, os quais recebiam nomes próprios e muito carinho. Soube distinguir, desde cedo, o conjunto de sons e representações emitidos pela natureza. Chegava mesmo a simular o enterro dos animais mortos que lhe eram mais queridos. Sentia muita pena dos bois que eram maltratados rudemente quando não suportavam o peso das toras de madeira. Com sete anos completos, acompanha sua mãe na costura de uma mochila de pano. A partir daquele ano, deveria frequentar a escola. Nunca se entusiasmara por essa ocasião: por diversas vezes ouvira, dos seus irmãos, histórias horripilantes que sucediam nela. Antes do primeiro dia de aula, sua mãe já havia comunicado o que se deve e não se deve fazer na escola.

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Batismo: um rito iniciat贸rio do Catolicismo Fonte: Arquivo do autor.

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Chegado o dia, seus irmãos encilharam os cavalos, mostravam-se impulsivos para o retorno às aulas. Alfredo apanhou sua mochila, onde se encontrava uma lousa e a merenda preparada pela sua mãe na noite anterior, começou a se embrenhar pela floresta numa estrada que subia e descia. Dos dois lados da estrada via somente vegetação; de vez em quando surgia uma casa provisória, logo ocultada pela densa floresta. De repente, abriu-se uma clareira onde se avistava uma construção simples, rodeada de crianças descalças. Estavam na Schulkapelle (escola-capela). Alfredo se mostrava arredio e sentia vontade de golpear a cabeça dos seus futuros colegas: afinal, todos lhe pareciam hostis.

Alfredo é um burrico O último a entrar foi o professor, que mandou todos ficarem de pé, para rezarmos. Como nenhum dos “burricos” soubesse falar português, o professor grunhiu, em alemão, uma oração que se rezava em casa, antes e depois das refeições. Afonso J. Wailand O professor, o sacerdote, o príncipe e o pai vêem em todo novo homem uma indiscutível ocasião de nova posse. Friedrich Nietzsche Os educadores eram responsáveis pela alma dos seus alunos [...]. Era um dever também usar de seus poderes de correção e punição, pois envolvia a salvação da alma das crianças, pelas quais eles eram responsáveis perante Deus. Philippe Ariès

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Porto Novo recebe seus alicerces: construção da Casa Paroquial (1932) Fonte: Museu Municipal de Itapiranga (SC). 39


Em meio à desordem que se instala no seu mundo, Alfredo percebe que muitas crianças chegam, para o primeiro dia de aula, arrastadas pelas mãos embrutecidas e fortes de seus pais. O mundo da maioria delas foi, até então, sua família. Um silêncio reina na sala de aula, olhares se cruzam, e somente entre algumas crianças existe certa disposição afável. Concentradas em seus medos, viam agora o seu único mundo conhecido se confrontar com o outro: o mundo da escola e da vida social. A vergonha refreava-as todas; desprotegidas, não encontravam nada que suavizasse seu sofrimento, quando repentinamente alguém exclamou: – Lá vem ele! Por detrás da vegetação rasteira, aparece o professor. Ele calçava alpargatas. Alfredo se sentia, de certa forma, aliviado, e a presença do professor transmitia-lhe alento e proteção. Teria, a partir daquele momento, mais um tutor. O professor era um ex-seminarista de meia-idade, aprovado após triagem feita pela comunidade e pelo padre, por estar investido de um plano intelectual superior2. Homem de religiosidade arrojada e exuberante, logo nas primeiras palavras tratou de estabelecer

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As escolas da região, na sua maioria, eram paroquiais até 1939. A comunidade escolar pagava o professor com dinheiro ou donativos. O professor era criteriosamente mapeado pela comunidade e pelo vigário, deveria residir no centro da comunidade, junto à escola e à igreja, numa casa construída especialmente para ele. O mestre se constituía num agente estratégico de ligação entre a Igreja e a comunidade. Recrutado entre os mais letrados pela retidão de conduta, deveria sempre estar disponível para as extensas funções sociais e religiosas, como pacificador de desavenças, acolhedor do padre, tocador do sino... Atribuir prerrogativas morais e religiosas ao professor foi uma cópia do modelo confessional e autoritário das escolas paroquiais que existiam na Alemanha até a laicização do ensino no século XIX.

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os lugares na sala de aula. Os iniciantes ou “burricos”, como eram denominados pelos veteranos, separados por sexo, foram enfileirados do menor para o maior no lado esquerdo da sala. Alfredo, na condição de novato e com seu porte físico frágil, passou a ocupar o primeiro banco, de onde ouviu o professor proferir as regras escolares e a respectiva punição para quem as descumprisse. Por um instante, achou que estivesse na sua família, tal a semelhança de certas práticas, como a oração, a seriedade e as recomendações morais. Todos instalados, e feita a oração inicial, o professor solicitou que cada um anunciasse o seu nome, a começar pelos “burricos” e pelos meninos. Apreensivos e nervosos, os nomes masculinos foram sendo proferidos: Alfredo, Pedro, Jacó, José, Francisco, Nicodemos, Paulo, Moisés etc., para, em seguida, ouvirem-se os nomes da ala feminina: Lúcia, Maria, Ana, Rosa Maria, Matilde etc. Quebrada, um pouco, a distância gélida entre alunos e professor, esse anunciou a primeira aula de religião. Todos passariam a estudar o nome dos 12 apóstolos. O professor foi enunciando o nome dos apóstolos, provocando ansiedade, interesse e euforia em alguns. Pedro, antes que alguém questionasse seu entusiasmo, balbuciou: – Eu tenho nome de apóstolo! Uma melancolia tomou conta do coração de Alfredo; afinal, seu nome não apareceu na nominata de apóstolos, tampouco recebeu menção especial como o nome de Maria, colega que mais tarde passou a ser conhecida como uma das dez Marias3.

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A religiosidade fez com que os pais de uma família da região dessem às suas dez filhas nomes de Maria: Helma Maria, Maria Sônia, Maria Adélia, Maria Catarina, Maria Bronilda, Teresinha Maria, Maria Sidônia, Maria Neli, Maria Suzana e Maria Helena.

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Escola: além das funções pedagógicas, era responsável pela “alma” dos alunos 43


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Os sinos se dobram por Alfredo Paulino Eidt Alexsandro Stumpf Neli Ferrari Alexandra Fatima Lopes de Souza Neli Ferrari, Jocimar Vazocha Wescinski, Maiara Demenech e Marta Rossetto Alexsandro Stumpf e Ronise Biezus Ronise Biezus Marilia Müller Jakeline Mendes Ruviaro e Marilia Müller 16 X 23 cm Minion entre 10 e 13 pontos Capa: Capa dura Miolo: Pólen Soft 80 g/m2 376 800 julho de 2009 Gráfica e Editora Pallotti – Santa Maria (RS)

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