Estudos sobre a mathesis ou anarquia e hierarquia da ciência: uma aplicação especial à medicina

Page 1


Estudos sobre a mathesis ou anarquia e hierarquia da ciência com uma aplicação especial à medicina Johann Malfatti von Montereggio Primeira edição (1845) Tradução do alemão para o francês (1849) Christien Ostrowski Introdução da reedição francesa (1946) Gilles Deleuze Tradução do francês para o português Patrícia Chittoni Ramos Reuillard Revisão técnica Maurício D’Elia Novello

Chapecó, 2012


Reitor: Odilon Luiz Poli Vice-Reitora de Ensino, Pesquisa e Extensão: Maria Aparecida Lucca Caovilla Vice-Reitor de Planejamento e Desenvolvimento: Claudio Alcides Jacoski Vice-Reitor de Administração: Antônio Zanin Diretora de Pesquisa e Pós-Graduação Stricto Sensu: Maria Assunta Busato 1ª edição: Studien über Anarchie und Hierarchie des Wissens: mit besonderer Beziehung auf die Medicin (1845) Este livro ou parte dele não podem ser reproduzidos por qualquer meio sem autorização escrita do Editor. 100 Montereggio, Johann Malfatti von M778e Estudos sobre a mathesis ou anarquia e hierarquia da ciência: com uma aplicação especial à medicina / Johann Malfatti von Montereggio ; tradução Patrícia Chittoni Ramos Reuillard. – Chapecó : Argos, 2012. 222 p. ; 23 cm. – (Grandes temas ; 18) Tradução de: La Mathèse ou anarchie et hiérarchie de la science: avec une application spéciale de la Médecine, 1849. Inclui bibliografias ISBN 978-85-7897-046-8 1. Filosofia. 2. Medicina – Filosofia. I. Título. II. Série. CDD 100 Catalogação elaborada por Caroline Miotto CRB 14/1178 Biblioteca Central da Unochapecó

Todos os direitos reservados à Argos Editora da Unochapecó Av. Atílio Fontana, 591-E – Bairro Efapi – Chapecó (SC) – 89809-000 – Caixa Postal 1141 (49) 3321 8218 – argos@unochapeco.edu.br – www.unochapeco.edu.br/argos Conselho Editorial: Rosana Maria Badalotti (presidente), Carla Rosane Paz Arruda Teo (vice-presidente), César da Silva Camargo, Dirceu Luiz Hermes, Elison Antonio Paim, Érico Gonçalves de Assis, Maria Aparecida Lucca Caovilla, Maria Assunta Busato, Murilo Cesar Costelli, Tania Mara Zancanaro Pieczkowski Coordenador: Dirceu Luiz Hermes


Sumário

Nota da tradução brasileira Patrícia Chittoni Ramos Reuillard

7

Prefácio Maurício D’Elia Novello

9

Introdução: Mathesis, ciência e filosofia Gilles Deleuze

21

Apresentação Johann Malfatti von Montereggio

35

Advertência do tradutor francês Christien Ostrowski

39

PRIMEIRO ESTUDO A mathesis como hieróglifo ou simbólica da vida tripla do universo, ou o Órganon místico dos antigos indianos

43


SEGUNDO ESTUDO Somente no processo, não no produto

99

TERCEIRO ESTUDO Sobre a arquitetura do organismo humano, ou a tripla vida dentro do ovo, e o ovo triplo dentro da vida 119 QUARTO ESTUDO Sobre o ritmo e o tipo, o consenso e o antagonismo em geral e particularmente no homem 163 QUINTO ESTUDO Sobre o duplo sexo em geral e sobre o sexo humano em particular 175 Posfácio 211 David Reggio Quadro 1 – Figuras 218 Quadro 2 – Figuras 220 Lista dos principais nomes em sânscrito com sua transcrição moderna 222


Prefácio Maurício D’Elia Novello

“Sum, ergo cogito; Sum, ergo genero”

A difícil e primorosa tradução desta obra em língua portuguesa, por iniciativa do professor David Reggio e da Argos Editora da Unochapecó, nos fornece um excelente material de grande relevância para a reflexão sobre medicina, psiquiatria, psicanálise e filosofia desenvolvidas no Brasil. Do ponto de vista contemporâneo, somos agraciados pela presença de uma introdução à Mathesis realizada pelo filósofo francês Gilles Deleuze, que continua desempenhando um papel importante na construção de nossas reflexões e práticas terapêuticas e sociais. A introdução de Gilles Deleuze nos revela um exercício filosófico cristalino, oferecendo-nos um pequeno texto introdutório de sua autoria, no interior mesmo da Mathesis, pois só ela pode servir de prefácio a si mesma. A ausência desta obra com sua introdução em nossas bibliotecas, por se tratar de um plano fundamental, constitui uma dificuldade suplementar e específica na compreensão de seu filosofar e de suas relações com toda a tradição da psicoterapia institucional, da psiquiatria fenomenológica e da psicanálise existencialista. 9


Esta obra se revela inestimável à compreensão dos fenômenos psíquicos e do teor das teorias psicanalíticas, por se referir à natureza humana e à natureza sexual humana. Em tal compreensão, podemos incluir uma harmonia até então impossível às críticas de Gilles Deleuze e de Felix Guattari à psicanálise, em consonância com esse esboço genuíno, que nos abre um leque de novas possibilidades e de novos horizontes às ciências e, em particular, à medicina. A psicanálise deve ser questionada na sua origem, no seu projeto e no seu desenvolvimento, pois sendo oriunda de uma outra cultura, de um outro contexto e momento histórico, foi incluída em processos de catequização, de escravidão e de colonialismo implementados no Brasil. A crítica das neurociências, como tentativa de recuperação e deformação da psicanálise, por meio da invalidação do método psicanalítico pela noção de modernidade e desenvolvimento, o que não passa de um outro método da ciência, se torna uma exposição da impossibilidade de compreensão dos fenômenos psíquicos sem a compreensão dos fenômenos físicos ou as respectivas “des-compressões” e “des-apreensões”. A Mathesis revela, assim, à psicanálise o não colonial, do qual ela se oculta no seu expansionismo e na sua teorização: a dimensão humana e um saber da vida. Essa dimensão “não colonial” ultrapassa a adesão ao movimento anticomial na psiquiatria ou anti-hospitalar na medicina, pois não se trata apenas de uma relação socioeconômica e terapêutico-humanista, mas da terapêutica em sua medicina e da ciência stricto senso. Quando a Mathesis cessa de ser a Ciência Universal da Vida, a importação de modelos e o não estudo concomitante sobre os 10


métodos e os problemas subsequentes influem na nossa realidade e na nossa História, ao ponto destas serem reduzidas à pura aplicação teórica e à satisfação de um ego num participar, ao reproduzir e contribuir à evolução de práticas de outras realidades. Delinea-se nesta escolha a estratégia importadora, como recusa à excepção e ao individual – a negação do próprio descobrimento –, o que não é plausível por não comportar a diferença e a distância duramente investidas, que demonstram uma realidade incompatível a ser respeitada e uma compatibilidade a ser fabricada. Sem dúvida, o processo colonial de importação e imposição de um modelo no seio de outras práticas e modelos, que não seriam menos universais, mas que seriam, certamente, menos coloniais, nos interroga sobre a tradução desta obra; entretanto, esta obra está longe da implantação de uma instituição colonial de práticas corporais e de práticas do pensamento. O recurso à Mathesis nos permite entender por meio da psicanálise – servindo de exemplo à legítima importação científica de outras realidades, extendida à ciência brasileira e à ciência brasileira no mundo – o modo pelo qual estamos implicados na problematização e solução dos problemas brasileiros, que não precisam ficar necessariamente à parte e isolados. Muitas vezes, e não necessariamente, estão em conjunção com os problemas do mundo, todavia sem jamais se constituírem nos mesmos problemas. Esse movimento em nome de uma ciência “des-territorializada” e “des-nacionalizada”, por ser integrada sem identidade e “a-histórica” – ciência do mundo ou ciência global –, não pode continuar a impor como História a História da Ciência ou a Ciência da História. Torna-se sempre problemático quando tentamos focalizar este mundo padrão, ao qual a ciência se refere, sem se considerar a 11


Mathesis, o que impede o engajamento em nossas revoluções passadas e inibe as nossas revoluções futuras. A psicanálise como projeto de uma psicologia científica e social, enquanto ciência produtora e experimental, supõe a ruptura e a consequente construção posterior e substitutiva, desqualificando e desclassificando a realidade de origem, donde um problema de leitura da Grécia e de seus mitos, pois haveria uma modificação do cenário mental, como no modelo do sonho, somente pela modernidade social. Este projeto operacional do homem-máquina, túmulo vazio da Mathesis, demonstra o “alienismo” como paradigma científico, que é também presente na nosologia da psiquiatria de Pinel. Isto porque ele concebia a pedagogia e a terapia como bases de adaptação e de resposta humana, fundadas numa trama de influências ou “paixões” – razões de uma diferença, variando e doutrinando o meio ambiente, como num projeto da res publica, “estranhamente” ausente em Descartes. Em referência ao que vem sendo tratado como norma consensual, ou o que observamos numa disputa cartesiana pela ruptura entre a norma da razão e a norma da loucura, num contexto de lutas e resistências, trata-se unicamente da utilização da loucura como razão em todo esse processo de modernização urbana – a loucura “sem loucura” ou a loucura com loucos determinados por uma loucura social, em que são assinaladas e justificadas as razões de um tratamento fisicalista do psíquico, baseado na res extensa e no “homem-máquina”. A física engloba a química na fisioquímica pelo átomo e pelo método cartesiano de fragmentação de toda sentença – a óptica do micro, como dúvida estrutural pertinente a um modelo constru-

12


tor de sentenças –, os métodos de análise e, necessariamente, os métodos de síntese. Tal método institui a desconstrução para a reconstrução por meio de sua realidade última ou essencial. Diferentemente em Pinel e em Freud, havia em Pinel a tensão entre natureza – cultura ou a doença natural com seu posterior tratamento social para se reestabelecer o estado natural (o tratamento moral de Pinel é baseado nos animais com alma – “tratamento animalesco”); em Freud, já estávamos na ruptura entre natureza – cultura e na produção das novas doenças sociais, as âncoras da modernidade e as raízes do inconsciente. Malfatti deixa claro na Mathesis que a consciência de si não pode ser deduzida da reflexão pura, como tampouco a individualidade possa ser reflexo da reprodução pura. É somente no centro da reflexão e da reprodução, em seu ternário, como um ego coletivo, que surgem a consciência e a personalidade. A “excitação animal” e a invenção da “pilha de Volta” vão produzir uma revolução na física e na química, no que se refere ao magnetismo e à eletricidade, estabelecendo-se e possibilitando uma integridade sistêmica. A relação entre tecido vivo, tecido excitável e tecido sensível demonstra assim a relação do psíquico à Ciência da Vida, conceituando-se a Vida em suas relações, ou atrações, ou afinidades ou magnetismo. O magnetismo animal encontra-se no bojo do desenvolvimento da Ciência Psíquica moderna. Na Mathesis, o físico não mais será conceptualizado como uma mera base do psíquico em relação à uma anterioridade psíquica criativa, aonde estabelecem-se relações de objetivo, representação, cultura interiorizada em sua mentalidade e materialidade inferiorizada em sua intelectualidade, em que o lugar do psíquico é a própria Vida, requerendo assim vitalidade e liberdade. 13


A Mathesis renuncia à formulação do “UM” na concepção do “homem-social-puro-humano” e do “homem-máquina”, como sua formulação lógica (res publica) e sua formulação política (re publica), baseadas no ocultismo, que fundamentam a associação e a confusão entre iniciado e místico. Malfatti ainda se refere na Mathesis sobre o grande erro na concepção da consciência da espontaneidade (individualidade) psíquica por algo diferente do senso comum (simpatia) da existência física, como se esta pudesse existir sem a primeira e como se aquela pudesse ser dominada pela outra. Todo esse dilema é importante para a ciência experimental, pois a escolha de uma realidade por um sonho pode se tornar um pesadelo em seus efeitos e em seu futuro. A anarquia revelada na Mathesis atinge proporções preocupantes pelo difusionismo e produtivismo, sem sequer se referir ao dualismo e à antítese, face à lógica da extinção e do esquecimento, pela adequação e modernidade. Os passos civilizatórios e os passos humanos necessitam dessa avaliação dos problemas e da escolha das soluções, analisando-se o campo e a extensão da intervenção científica por outros paradigmas, que não se resumem a um consenso social de um tempo considerado como expectativa de vida. Isto revela nossa participação no Brasil e no mundo, mas também no futuro e no passado, ao se precisar inteligentemente o que é adotado e a sua evolução. A nossa independência e a nossa participação no mundo, mesmo que passemos de escravos a senhores de escravos, seja pela nossa diversidade e singularidade, seja pelos nossos problemas cotidianos e pela dimensão da Nação, deveriam ser revistas no intuito de respeitarmos a nossa história e a nossa evolução, sem nos isolarmos, para assim se contribuir a esse mundo interno, como 14


diferença inalienável, diante de nossa “identidade de si” e de nossa “identidade-universal”. Entendemos que a pura conceptualização geolocalizada e subjetivada não seja suficiente para entendermos o que há de universal em teorias, a exemplo da psicanálise, nem o que elas contêm de contextual e de equívoco clínico. Apenas desta forma poderemos conceber teorias que nos permitam conceptualizar as realidades, para assim poder produzi-las e tratá-las, revelando o seu “grau de alienação” ou a posição da Mathesis. A importância de sistemas em rede é paradoxal – lógica dos paradoxos –, por nos depararmos com imposição sistêmica, risco de incompatibilidade e impossibilidade de aplicação. Ao serem guiados pela homogeneização imaginária maléfica, desenvolvida em seu experimentalismo e futurismo, mas principalmente por agir sobre os planos concebidos como descartáveis e subdesenvolvidos, relegam-se o presente e o local à migração pela simples deslocalização, como se atingíssemos o universal na imaginação do conforto e no uso do outro. Todo esse cenário acontece ao não se respeitar e ao não se entender o que deve ser desenvolvido sem ser submetido, por reconhecer ter se alcançado uma linguagem não pertinente à realidade-própria e à identidade em si, então reveladora de um circuito externo, para não esgotar a imaginação na visão retrospectiva do pesar e da deformação, donde o conflito e o complexo, mas fundamentalmente, por se relevar a importância capital da Mathesis. O reducionismo implicado numa concepção única do mental – conforto de uma técnica e de uma verdade, investidas pelas pressões do que incomoda e do que se elimina ou se faz desaparecer, mesmo sendo referente ao paradigma de uma época – deve ser contextualizado e localizado, pois não podemos nos referir ao pas15


sado com arquétipos desbotados e com camadas “a-concêntricas”. É interessante notar que o reducionismo nos leva à fragmentação, expansão e profusão de técnicas e teorias, embora em torno do mesmo eixo egoico. O que talvez pareça óbvio e irreversível num certo desenho do mundo porventura careça de proposições que coloquem em causa a sua atualização individual e sistêmica a cada momento, ao se entender a importância da árvore do conhecimento com suas raízes, e não apenas ao ser consumida em seus frutos, jogados ao acaso e sem liberdade como “favelas da consciência”. Em absoluto, o movimento exige uma análise do grau de liberdade, pois não está se propondo uma defesa a um projeto regional como negação de um projeto global, que é referido ao desenvolvimento de centros optimais por estruturas individuais e sistêmicas. Não se trata da lógica oportunista da escolha de um em detrimento do outro, por um deslocamento e fixação de indivíduos, por intermédio de uma homogeinização da diferença substancial – escravidão, implicando-os numa ilusão geoperceptiva e cultural – a construção de um mundo lunar, e numa despolarização pela ilusão da projeção – a síntese como superação da antítese. Nesse mundo lunar, a dupla realidade de cada um desaparece pelo “a-gravitacional”, perdendo-se à luz cônica ao se inviabilizar instantaneamente tanto o universal quanto o individual e tanto o universal quanto o local, por uma verdadeira impostura sistêmica. Aumenta-se o consumo de conhecimento sem relação substancial com os problemas e soluções da raiz quadrada de cada indivíduo, ao se perder a dimensão da doentia manifestação social nos indivíduos por se fazer do geral o específico.

16


Usa-se humanisticamente o subentendido e o subliminar para se afirmar uma cultura ocultada em sua própria negação, seja no singular (não sendo uma cultura), seja no plural (a descaracterização e desvalorização das culturas). A imagem da Ciência do “UM” produz a Ciência única, e paradoxalmente ela se estabelece como um germe de cultura pela ciência científica e “a-cultural”, por meio do produtivismo aplicado às operações e modificações integradas à noção de intervenção e de unidade universal – o corpo vivo. É importante ressaltar que este debate sobre a crise identitária é um tema capital em nossas sociedades pela implantação deste modelo científico lunar, e que afirma e fundamenta a importância do entendimento humano. Este conteúdo crítico e radical é essencialmente epistemológico, por ser necessário ao que se considera adquirido e que pode se revelar inadequado e obsoleto pela renovação da mesma sistemática em sua nova apresentação. A Mathesis nos arraiga na terra no momento nos distanciamos da Terra, descartando do Planeta, pela invenção e possibilidade de um novo paraíso. Neste sentido, deveríamos nos perguntar se o Brasil não seria uma Nova Europa ou se seria uma Nova Zelândia. O hábito nos leva a pensar que estamos no auge de nossa ciência pela evolução dos instrumentos terapêuticos, sempre mais modernos e mais eficazes. Isto nos autoriza a um voo sobre um passado ultrapassado, construindo-se o espelho do que possa ser considerado como diferente e melhor, ao se estabelecer uma competição definida por rígidos padrões e parâmetros, dentro de um oportunismo espacial para ser especial. A persistência do passado em desuso e defasado, enquanto inscrito no cérebro dos sentidos – a passagem de uma dependên17


cia à interdependência moderna –, nos faz alcançar a garantia ilusória da solução dos problemas da primeira lógica e da passagem, sem, portanto, se considerar a posteriori a sua múltipla fragmentação e os apelos dos antepassados – a soberania nacional estaria, assim, ameaçada no seu precário espírito federativo. A História presente na tradução desta obra sobre a “Mathesis e a anarquia das ciências”, do Dr. Johann Malfatti von Montereggio e no palimpsesto dos borrões de Christien Ostrowski e de Gilles Deleuze, nos imprime estes sinais de advertência, sem considerá-los como um exercício do medo ou de fuga, ou seja, como pura reação e alienação de sua própria corrida, todavia como uma atenção necessária à criação, ao que não pode ser introduzido, e desta forma, muito menos alterado. Um sistema dualista anárquico para se afirmar o dominante manipulador e sua técnica, em que o sujeito da manipulação ou o objeto manipulado são somente soluções ou questões secundárias à manipulação e à problematização, sendo estas últimas, finalmente, as questões descartadas e essenciais da ciência. Ao criticar a psicologia desencarnada e desincorporada no pensamento e a fisiologia cristalizada na matéria, orientando-se no interior da Mathesis, Gilles Deleuze revela que a unidade não deve ser abstrata ou transcendental. Ele propõe a unidade como uma terceira ordem ou a hierarquia para além da dualidade anárquica, ou seja, a unidade irredutível da vida ela mesma. A res cogitans e a res extensa seriam inexoravelmente distintas, donde a unidade do saber cartesiano se faz num outro plano, sendo este referente a um Deus abstrato e transcendente à humanidade. Ao se afirmar a unidade do saber no instante em que se afirma, rompe-se e se destrói, como o conceito de substância em 18


Spinoza, o espírito cognoscente, que não abdica à ordem das coisas no pensamento, pensando a ordem de suas representações, permite a Gilles Deleuze revisitar a Mathesis, para invocar o reencontro e a completude com a unidade perdida no homem vivo e na vida, que é inapropriadamente concebida como humana, sendo presente no símbolo. A Mathesis demonstra tal unidade nesta verdadeira medicina, em que a vida se define como saber da vida e o saber como a vida do saber. A árvore do conhecimento não é uma mera imagem, não podendo se conceber a aparência na aparência, nem a banalização da aparência, por não se poder ainda visualizar os efeitos da aparência na aparência. A tensão entre a tradição e o estranho produz a introdução necessária ao que não faz apenas por se ler uma obra, acompanhada de um dicionário na cabeceira do conhecimento e da imaginação, pois nos implica e nos responsabiliza adicionar essa advertência, “in-traduzindo” a sua enorme importância.

19


Introdução

Mathesis, ciência e filosofia Gilles Deleuze

Talvez seja interessante definir a mathesis em suas relações com a ciência e a filosofia. Forçosamente, tal definição permanece, de certo modo, exterior à mathesis em si; ela é simples, provisória e tende apenas a mostrar que, mesmo independentemente de qualquer momento histórico, a mathesis delineia uma das grandes atitudes do espírito, ainda atual. Isso significa que faremos aqui somente uma crítica aos argumentos que os cientistas e os filósofos ficam sempre tentados a invocar contra ela, além de um esclarecimento sobre a significação da palavra “iniciado”. Que não se perca de vista este plano de civilização indiana onde se desenvolve a mathesis; isso é o essencial. Não se dirá, dessa civilização, que é abstrata, seja em que grau for, mas apenas que, no próprio seio de nossa mentalidade ocidental, certas exigências fundamentais se deixam apreender, que a mathesis, em uma espécie de introdução, de prefácio a si mesma, é a única a satisfazer. É desse ponto de vista que o livro do Dr. Malfatti apresenta um interesse capital. Com certeza, outras obras, que adentram mais a consciência indiana, foram publicadas depois dela; mas poucas introduzem melhor a noção de mathesis em si, em suas relações com a ciência e a filosofia, do que esta. (continua...) 21


Sobre o autor

Johann Malfatti von Montereggio: nasceu na cidade toscana de Lucca, em 1775. Estudou com o grande físico e médico italiano Luigi Aloisio Galvani. Depois, estudou com Johann Peter Frank, em Viena, com quem completou seus estudos de medicina em 1797. Malfatti logo ganhou a confiança da nobreza vienense, tornando-se um confidente de importantes círculos diplomáticos. Com a autoridade que foi-lhe confiada por esses dignitários, Malfatti criou a Sociedade Imperial de Médicos em 1837, mesmo ano em que foi-lhe formalmente concedido o título de “Edler von Monteregio” pela nobreza vienense. Nesta altura, o renomado Malfatti tornava-se médico pessoal de Ludwig van Beethoven, mantendo contatos regulares com o teosófico martinista e filósofo Franz von Baader, com Friedrich Wilhelm Schelling e com Lorenz Oken. Johann Malfatti von Montereggio, reputado médico da elite europeia, fica então conhecido como místico e ocultista para alguns; e como um fisiologista importante na história da medicina para outros. Em 1859, morreu em sua casa de campo, perto de Hitzing, de complicações no coração. Seu trabalho sobre a mathesis universalis continua a ser uma das obras mais intrigantes e um dos estudos mais eloquentes sobre o organismo humano, concebendo-se a cosmologia e a antropologia humana no seio da tradição romântica alemã. Esta obra é uma exploração ainda a ser plenamente compreendida no seu âmbito e totalidade.


Argos Editora da Unochapecó Site: www.unochapeco.edu.br/argos Título

Estudos sobre a mathesis ou anarquia e hierarquia da ciência: com uma aplicação especial à medicina

Autor

Johann Malfatti von Montereggio

Tradutora

Patrícia Chittoni Ramos Reuillard

Revisor técnico Colaborador Coleção Coordenador Assistente editorial Assistente de vendas Secretaria Divulgação, distribuição e vendas

Maurício D’Elia Novello David Reggio Grandes Temas Dirceu Luiz Hermes Alexsandro Stumpf Neli Ferrari Leonardo Favero Neli Ferrari Felipe Alison Zuanazzi Luana Paula Biazus

Capa

Alexsandro Stumpf

Diagramação

Alexsandro Stumpf Mariani Tauchert

Preparação dos originais

Araceli Pimentel Godinho

Revisão

Carlos Pace Dori Araceli Pimentel Godinho Rodrigo Junior Ludwig

Formato Tipologia Papel

16 X 23 cm Minion Pro entre 10 e 14 pontos Capa: Supremo 250 g/m2 Miolo: Pólen Soft 80 g/m2

Número de páginas

222

Tiragem

800

Publicação Impressão e acabamento

2012 Gráfica e Editora Pallotti – Santa Maria (RS)


Este livro está à venda:

www.travessa.com.br

www.livrariacultura.com.br


Esta é uma obra rara, complexa e bela, concebida no âmago da filosofia romântica no século XIX, seguindo a tradição dos antigos gregos, neoplatônicos e místicos hindus, para apresentar os princípios universais do caminho cosmológico e fisiológico do homem. Este trabalho fora anteriormente republicado pela Griffon d’Or em 1946, prefaciado por um jovem Gilles Deleuze, representante de uma geração pós-guerra de pensadores franceses. Esta é a primeira tradução adotada por um editor a partir do projeto de Christien Ostrowski, em 1849, e a primeira republicação do livro desde 1946. O autor do trabalho, Johann Malfatti von Montereggio, descreve a mathesis como a descoberta da “chave perdida”, revelando os princípios divinos perdidos nas areias do tempo, mas que estão sempre presentes a trabalhar profundamente nas dimensões da fisiologia e da psicologia humanas.

ISBN 978-85-7897-046-8

9

7 8 8 5 7 8

9 7 0 3 9 0


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.