Vale o escrito: a escritura autobiográfica na América Hispânica

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vale o escrito


Coleção Vozes Vizinhas - Os Melhores Ensaios V.3 Raúl Antelo Maria Lucia de Barros Camargo Coordenadores

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sylvia molloy vale o escrito a escrita autobiográfica na américa hispânica tradução de antônio carlos santos prefácio de silviano santiago

Chapecó, 2004


REITOR: Gilberto Luiz Agnolin; VICE-REITORA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO: Maria Assunta Busato; VICE-REITOR DE ADMINISTRAÇÃO: Gerson Roberto Röwer; VICE-REITOR DE ENSINO: Odilon Luiz Poli

B860.09 M727m

Molloy, Sylvia À vista - a escrita autobiográfica na América hispânica / Sylvia Molloy; trad. Antônio Carlos Santos. - Chapecó : Argos, 2003. 347 p. - - (Vozes vizinhas. Os melhores ensaios ; 3)

1. Literatura hispano-americana – crítica e interpretação. 2. Literatura hispano – americana – Autobiografia. I. Título. CDD 860.09 ISBN: 85-7535-054-4

Catalogação: Yara Menegati 14/488

Conselho Editorial: Josiane Roza Oliveira(Presidente); Alexandre Mauricio Matiello; Arlene Renk; Eliane Marta Fistarol; Flávio Roberto Mello Garcia; Hermógenes Saviani Filho; José Luiz Zambiasi; Juçara Nair Wolff; Leonardo Secchi; Maria dos Anjos Lopes Viella; Maria Luiza de Souza Lajus; Ricardo Rezer Coordenadora: Monica Hass Assistente Editorial: Hilario Junior dos Santos Assistente Administrativo: Neli Ferrari Projeto gráfico e capa: Hilario Junior dos Santos Foto de capa: Regina Stella


sumário

prefácio das margens sobre a margem ............................. 07 introdução ......................................................................... 13 primeira parte a cena de leitura ......................................... o leitor com o livro na mão ............................................................... de servo a sujeito: a autobiografia de Juan Francisco Manzano ...... o teatro da leitura: corpo e livro em Victoria Ocampo ......................

27 29 63 95

segunda parte infância e histórias de família ..................... 129 infância e exílio: o paraíso cubano da condessa de Merlin .............. 131 uma escola de vida: Juvenilia de Miguel Cané ............................... 161 em busca da utopia: o passado como promessa em Picón Salas ....... 177 jogo de recortes: Cuadernos de infancia de Norah Lange ................ 205


terceira parte memória, linhagem e representação ........... a autobiografia como história: uma estátua para a posteridade ........ santuários e labirintos: um lugar para lembrar ................................. primeiras lembranças, primeiros mitos: o “Ulises criollo” de José Vasconcelos ...........................................................................

221 223 255 297

bibliografia ......................................................................... 333


prefácio da margem sobre as margens

Além de ser um notável estudo sobre a autobiografia na América espanhola, Vale o escrito, da estudiosa argentina Sylvia Molloy, é um elogio ao livro, à literatura e à leitura, independentemente das considerações sobre barreiras geográficas ou lingüísticas. Estas representam apenas o preço que a scholar hispano-americana teve de pagar ao retalhamento do espaço teórico, imposto pela instituição acadêmica de onde sua pesquisa deriva. No caso de livros como o que vamos ler, a setorização do objeto pela linguagem ou pela geografia deve ser unicamente tomada como alusão às restrições de caráter departamental, fixadas pelo currículo universitário. Em Vale o escrito, como em alguns poucos outros livros produzidos como requerimento acadêmico, a subdivisão assumida pelo saber nele estampado representa o modo como a pesquisa literária em regiões periféricas (diríamos hoje: marginais) suplementa a teoria eurocêntrica. A reflexão teórica de Sylvia Molloy redimensiona as lições recebidas, através da análise de certos objetos literários que, a partir do século


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19, se extraviaram da trajetória programada pelo colonialismo. Depois de se ter formado pelas coordenadas culturais ditadas pela rota dos grandes descobrimentos modernos, a estudiosa hispano-americana se engaja na leitura do significado dos extravios de rota, de (ir)responsabilidade dos grandes escritores hispano-americanos. Como numa mise-en-abîme gideana, é levada a atentar para o modo como (1) toda evocação marginal é um “saque do arquivo europeu” e (2) “o arquivo europeu, evocado das margens da América espanhola, é lido de maneira diferente” (grifo da autora). A subdivisão determinada pela geografia ou pela linguagem tem de ser, pois, compreendida como força suplementar a um todo europeu, ou seja, como margem hispano-americana. Nesta vieram brotando, crescendo e se afirmando efeitos semânticos diferenciais. A intervenção semântica operada pelas obras da literatura hispano-americana abala o todo das belles lettres européias pela irreverência. As figuras da irreverência (contradição, perversão, transgressão, etc.) solicitam a teoria literária no modo como é configurada e exposta a partir do cânone europeu. A irreverência (de primeiro grau) e suas figuras transformam o extravio de rota dos objetos literários tanto em mecanismo assustador de sinalização histórica, quanto, em terras “onde o presente guarda tão pouca esperança”, em fé num futuro que tarda e chegará. No mesmo movimento de resgate dos valores da margem, Sylvia Molloy dá conta dos efeitos nocivos que decorrem de qualquer sedimentação abusiva desses valores. A intervenção suplementar, quando institucionalizada por essa ou aquela força política nacionalizadora (vale dizer, quando se transforma em “tradição afortunada” pela historiografia literária das respectivas nações hispano-americanas), também deve ser desconstruída, sob pena de transformar-se em arma, cujo poder impactante se debilitou, a ponto de se apresentar como mero marco simbólico e gratuito de rebeldia, sempre em atraso. Citemos um exemplo de contra-sedimentação, retirado do livro. Segundo a analista, os relatos autobiográficos hispano-americanos, no 8


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que se refere à infância, são omissos ou enganadores. Para melhor entendê-los não há que pedir socorro ao cânone; seria antes preciso atentar – insiste a estudiosa – para o papel desempenhado por um texto autobiográfico que, por ser “triplamente marginal”, se tornou especialmente significativo. Refere-se ela a Mis doce primeros años, da cubana Mercedes Merlin. Tal texto autobiográfico foi escrito no exílio (França), em língua que não era a do sujeito (francês) e por uma mulher. Através da irreverência autoral (de segundo grau), podem-se desconstruir o ufanismo, o monolinguismo e o falocentrismo, pilares do alicerce onde se assentou a tradição historiográfica nacional. Compreendido como elogio ao livro, à literatura e à leitura, podemos entender porque Sylvia Molloy exclui da sua “ficção crítica” os relatos de caráter testemunhal, como Me llamo Rigoberta Menchú (pelos quais os hispano-americanos foram tão admirados nas últimas décadas do século 20). Ela escolheu textos de “autobiógrafos que, ao decidir trasladar-se ao papel, têm consciência, de uma ou outra forma, do que significa verter o eu um uma construção retórica”. Nos testimonios, para usar a expressão castelhana original, o modelo de vida que se quer comprobatório é mais importante do que a escrita que o re-presenta (isto é, que apresenta de novo e de modo diferente aquele modelo de vida). A tarefa da escrita, melhor dito, a grafia-de-vida é de tal forma estranha à experiência-de-vida que o traslado desta para aquela é quase sempre delegado a um terceiro. Em última instância, nos testimonios, o eu escrito se apresenta, ao se representar, como uma forma vicária dum ele elusivo. A ausência de construção retórica por parte do narrador torna-se limbo político-religioso, onde são validadas a autenticidade da experiência e a inocência da escrita. Compreendido como elogio ao que é, podemos também entender porque Sylvia Molloy, seguindo os passos de Paul de Man, acredita que o relato autobiográfico, no seu limite, possa ser melhor apreendido pelo conhecimento da figura da retórica clássica chamada prosopopéia. Esta, nos informam os dicionários de tropos, consiste em 9


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encenar os ausentes, os mortos e os seres sobrenaturais, ou mesmo os seres inanimados. Fá-los agir, falar e responder. Seria a experiência vivida de tal modo ausente, morta e sobrenatural, de tal modo desprovida de palavra (mas não de escrita, de traço mnésico, no sentido da leitura feita por Jacques Derrida do inconsciente freudiano), que só o movimento gráfico e retórico da prosopopéia nos conduziria à compreensão da singularidade do gênero? A inscrição do eu na página em branco teria como causa e seria conseqüência da morte do sujeito, de que a literatura, referência maior do texto autobiográfico, tornou-se depositária na modernidade? O rosto de que fala o título do livro em inglês (At face value), antes de ser o humano-do-ser que se autobiografa, não seria o do ser-humano-ressuscitado que a escrita literária da autobiografia estampa? Na autobiografia, entre a experiência de vida e a sua grafia irrompem-se a morte e um aparente paradoxo. É pela ruptura, conseqüência da retirada abrupta do sujeito do solo empírico, que a morte (a escrita) estampa e revela a vida (experiência). A morte autobiográfica não é a cova, rasa ou profunda, onde o sujeito foi depositado pelas circunstâncias da vida domesticada pelas convenções sociais e passou a ser mastigado pelos vermes machadianos; ela é o túmulo, erguido à luz do sol e da atenção cabralinos e à espera do leitor. Este, à semelhança de personagem dos filmes de Jean Cocteau, nele penetra como se adentrasse por um espelho saliente e convexo. A análise crítica de autobiografias não deixa de ser produto dum duplo exercício – de exumação e necrofílico. A assepsia teórica se casa com o gozo do usuário. Atentemos para as inscrições tumulares. Ao atentarmos, leiamos os versos finais do poema de Jorge Luis Borges: “quando tu mesmo és o espelho e a réplica / daqueles que não alcançaram teu tempo / e outros serão (e são) tua imortalidade na terra” (Fervor de Buenos Aires). Ou leiamos o verso mágico de Mallarmé, que amplia a leitura borgesiana: “Tel qu’en lui-même enfin l’éternité le change? (?Le tombeau d’Edgar Poe?). 10


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Não tenhamos dúvida: o multifacetado caráter funerário da escrita autobiográfica permite e convida ao exercício da solidariedade entre as experiências-de-vida e da comunhão das memórias individuais e coletivas no cemitério das belles lettres – at face value, para retomar o título em inglês do livro. Memória, linhagem e representação, como diz o título do capítulo. Além de ser um notável elogio ao livro, à literatura e à leitura, o ensaio de Sylvia Molloy, tomado no seu radicalismo teórico, em que a experiência vivida, quando narrada pelo próprio experiente, se confunde com a retórica da prosopopéia, com a morte do sujeito e com a escrita funerária, seria semelhante a um capítulo que foi acrescentado posteriormente à “gramatologia”, de Jacques Derrida – o da ética. Ética da escrita filosófica, ética da escrita ficcional. Consciente de que faltava a O ser e o nada, de Jean-Paul Sartre, uma reflexão ética, Jacques Derrida tem tomado de empréstimo a pensadores desgarrados do cânone filosófico grego, em especial a Emmanuel Levinas, as possibilidades de articular filosofia e ética pelo emaranhado do pensamento judaico (ou bíblico). Como diz James Joyce: “Jewgreek é greekjew. Os extremos se encontram”. Pode-se afirmar com certa tranqüilidade que o trabalho de maior responsabilidade de Sylvia Molloy foi o de articular a literatura à ética pelos elementos auto-reflexivos que fazem a graça e a perdição do texto autobiográfico. Literatura e automodelagem do eu (pelo próprio sujeito) não se excluem, assim como (em Jacques Derrida) filosofia e judaísmo não são antagônicos. Os extremos se encontram. O valor, de que fala o título do livro em inglês, tem o seu preço aquilatado pela experiência-de-vida, que morta e ressuscitada, se revela a Sylvia Molloy tão confirmadora da qualidade literária do autor quanto a sua poesia ou ficção.

Silviano Santiago 11


introdução

Já foi sugerido que a prosopopéia é a figura que rege a autobiografia. Escrever sobre si mesmo seria essa tentativa, sempre renovada e sempre fracassada, de dar voz àquilo que não fala, de trazer o que está morto à vida, dotando-o de uma máscara (textual).1 Escrever uma introdução é uma forma mais modesta, embora não menos exigente, da mesma figura. Terminado o texto, é preciso dar-lhe um rosto, fazê-lo falar com a voz do autor, pela última vez. A introdução é, precisamente, o momento que marca a última vez em que alguém fala pelo texto e, também, perturbadoramente, a primeira vez em que se começa a sentir quão distante este texto ficou. Como as autobiografias, as introduções também começam pelo fim.

1. Paul de Man, “Autobiography as De-facement”, Modern Language Notes, 94 (1979), pp. 919-930.


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Mas este é o ponto limite desta comparação. Não me sinto tentada, como mais de um crítico quando escreve sobre o tema, a sugerir que escrever sobre autobiografias é, em si mesmo, uma forma de autobiografia, nem postular que a organização deste livro espelha um itinerário pessoal. Se escolho escrever sobre autobiografia e, mais precisamente, sobre autobiografias hispano-americanas, a escolha se dá simplesmente por curiosidade crítica. Quero me deter em textos que pretendem fazer o impossível — narrar a “história” de uma primeira pessoa que existe apenas no presente de sua enunciação — e quero observar o quanto esta impossibilidade se torna plausível em textos hispanoamericanos. Não me detenho na natureza paradoxal da autobiografia, nem é meu objetivo fazê-lo. Em vez disso, estou interessada em analisar formas diferentes de autofiguração para extrair as estratégias textuais, as atribuições genéricas e, claro, as percepções de si que informam os textos autobiográficos escritos na América hispânica. Em outras palavras, sem deixar de lado os dilemas lingüísticos e filosóficos que a escrita autobiográfica necessariamente propõe, tentei abordar temas que são basicamente culturais e históricos em sua natureza. O que procurei descobrir não foi tanto o que o “eu” está tentando fazer quando escreve “eu”, mas, mais modestamente, quais são as fabulações a que recorre uma escrita de si em um certo espaço, em um certo tempo e em uma certa linguagem, e o que estas fabulações nos dizem sobre a literatura e a cultura a que pertencem. A autobiografia tem sido notadamente descuidada por parte de leitores e críticos na América hispânica. E isto não se dá porque, como se afirma freqüente e impensadamente, a autobiografia seja pouco comum, nem porque os escritores hispânicos, por suas indefiníveis características “nacionais”, sejam pouco afeitos a expor suas vidas no papel. A perceptível escassez de histórias de vida escritas na primeira pessoa é menos uma questão de quantidade do que de atitude: a autobiografia é tanto uma maneira de ler quanto uma maneira de escrever. Portanto, pode-se dizer que, embora haja e sempre tenha

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introdução

havido uma boa quantidade de autobiografias na América hispânica, nem sempre elas têm sido lidas como autobiografias: filtradas pelo discurso dominante da época, foram saudadas como história ou como ficção e raramente se lhes atribuiu um espaço próprio. Esta reticência é em si mesma significativa, pois, geralmente, ao negar ao texto autobiográfico a recepção que merece, o leitor está apenas refletindo um desconforto que o próprio texto acolhe, às vezes bem escondido dos olhos, outras, mais aparente. A angústia de ser traduz-se em angústia de ser em (e para a) literatura. O desdém ou a incompreensão com que se tem recebido o texto autobiográfico na América hispânica torna-o, sem maiores surpresas, um campo ideal de estudo. Por não estar limitado a uma classificação estrita, à validação canônica ou a uma crítica cheia de clichês, está livre para revelar suas ambigüidades, suas contradições, a natureza híbrida de sua composição. É então, neste estado de fluidez, que o texto autobiográfico tem mais para dizer de si próprio — com a condição, é claro, de que se esteja disposto a ouvi-lo até o fim em seus próprios termos. Além disso, da posição mal definida e marginal a que tem sido relegada, a autobiografia hispano-americana tem muito o que dizer sobre aquilo que não é. Constitui uma ferramenta de valor incalculável para investigar outras formas, mais visíveis e ratificadas, da literatura hispano-americana. Como tudo que foi reprimido, negado, esquecido, a autobiografia retorna para assombrar e iluminar com uma nova luz o que já estava ali. Por razões genéricas, escolhi limitar meu estudo, principalmente, mas não exclusivamente, aos séculos XIX e XX. Narrativas em primeira pessoa, é verdade, existem em abundância na literatura colonial. As crônicas de descobrimento e conquista, especialmente aquelas que envolvem alguma medida de autoconsciência por parte do autor — Naufragios, de Cabeza de Vaca, Comentarios reales, de Garcilaso de la Veja, seriam dois destes textos —, podem ser vistas como formas remotas do modo autobiográfico. Da mesma maneira, documentos auto15


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reflexivos, como a Respuesta ao bispo de Puebla, de Sor Juana Inés de la Cruz, ou as confissões diante do tribunal da Inquisição, dadas as estratégias defensivas adotadas e a reivindicação de si que propõem, podem ser considerados, e de fato o foram, autobiografias. Sem negar a preocupação com o “eu” nesses textos, proponho que sua finalidade primária não é autobiográfica — mesmo que a autobiografia seja um de seus indesejados efeitos. Mais ainda, as circunstâncias em que foram escritos evitam, ou ao menos modificam consideravelmente, a autoconfrontação textual — sou o objeto de meu livro — que marca a escrita autobiográfica. O fato de que os livros acima mencionados tenham sido escritos para um leitor privilegiado (o Rei de Espanha, o bispo de Puebla, um tribunal eclesiástico) que tem poder sobre o escritor e o texto; o fato, também, de que a narrativa de si seja mais um meio de se atingir um objetivo; e o fato, por fim, de que raramente haja uma crise nesta escrita de si (ou um ser em crise), tornam esses textos, em minha opinião, apenas tangencialmente autobiográficos. Ao mesmo tempo, resisto a afirmar peremptoriamente que a autobiografia hispano-americana “comece” no início do século XIX, e espero poder evitar (a conferir com que sucesso) a noção de que a autobiografia é uma forma em progresso da torpe hibridez do século XIX para a perfeição estética do século XX. Esta visão evolucionista da literatura, em que a América espanhola está sempre buscando alcançar supostos modelos europeus (quando o cerne da literatura hispano-americana é desviar-se destes modelos), parece particularmente inadequada neste caso.2 Se escolho começar meu próprio estudo da autobiografia hispano-americana nos inícios do século XIX, é porque estou especialmente interessada na maneira peculiar de dar-se conta

2. Willam C. Spengemann propõe uma concepção evolucionista similar da literatura norteamericana do século XIX e sua “ânsia de insuficiência cultural” em seu A mirror of Americanists (Hanover and London: University Press of New England, 1989), pp. 7-27.

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de si e da cultura trazida pela crise ideológica, e porque estou curiosa sobre a maneira com que se reflete sobre esta crise, ou melhor, sobre a maneira como é incorporada na construção da autofiguração hispanoamericana. A crise de que falo, trazida pela influência do Iluminismo europeu e pela independência das colônias da Espanha, que marcaria seu ápice na América hispânica, é, claro, uma crise de autoridade. Não é coincidência, creio, que questões sobre a validade da autobiografia ou reflexões sobre seus objetivos apareçam num momento em que uma ordem recebida é lentamente substituída por uma ordem produzida; que apareça, além do mais, em um contexto de debates mais amplos sobre identidades nacionais e culturas nacionais, debates em que as relações com a autoridade canônica espanhola e, mais genericamente, européia estão sendo forçosamente renegociadas. Se, no caso de escritores dos tempos da colônia, a autobiografia era legitimada por um Outro institucional para quem se escreve (a Coroa, a Igreja), no caso dos escritores de autobiografias pós-coloniais, estas instituições não cumprem mais sua função. Mesmo o conceito de instituição, tal como vinha sendo entendido, passa a ser seriamente questionado. Se não se escreve mais autobiografias para o Rei ou para a Igreja, para quem, então, se escreve? Para a Verdade? Para a Posteridade? Para a História — a disciplina a que tantos escritores de autobiografias se voltariam em busca de uma fonte de validação? A esta crise de autoridade corresponde um sujeito em crise, escrevendo em um vácuo interlocutório. As dificuldades do escritor de autobiografias hispanoamericano, as vacilantes figurações a que recorre e o constante afã por conquistar o reconhecimento do leitor configuram um modelo ambíguo que sempre aponta à mesma pergunta (nunca feita abertamente): para quem sou eu um “eu”?, ou melhor, para quem eu escrevo “eu”? A hesitação entre pessoa pública e pessoa privada, entre honra e vaidade, entre sujeito e pátria, entre evocação lírica e anotação factual do passado são apenas algumas poucas manifestações dessa hesitação que marcou (e ainda hoje marca) a autobiografia hispano-americana.

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Embora esteja interessada nas conexões entre autofiguração, identidade nacional e autoconsciência cultural, bem como nos modelos de representação que tais conexões, ou contaminações, fazem aparecer, não desejo alinhar este livro com as muitas tentativas, dentro e fora da América hispânica, de elucidar, definir — inventar, finalmente — uma essência “nacional” hispano-americana da qual a literatura seria uma não-mediada manifestação. Tampouco compartilho a visão de que todos os textos hispano-americanos, não importa o quão “privados” pareçam, sejam, na verdade e invariavelmente, alegorias nacionais e devam ser lidas especificamente como tais.3 À primeira vista, este critério pode parecer apropriado quando se consideram autobiografias hispanoamericanas que misturam sujeito e nação em um memorável corpus gloriosus: os calculadamente messiânicos Recuerdos de provincia no século XIX e, no XX, o histrionismo nacionalista do Ulises criollo, de Vasconcelos, podem sem dúvida (mas não necessariamente devem) ser lidos desta maneira. Uma tal visão, no entanto, supõe modos invariáveis de produção textual na América hispânica, ignorando o fato de que, à medida que a política diversifica suas práticas discursivas, o mesmo acontece à literatura — e, claro, certamente, à autobiografia. O “eu” fala a partir de mais de um lugar. A aceitação de qualquer destes critérios — o texto como essência nacional ou como alegoria nacional — suspende a reflexão crítica, em vez de encorajá-la, e canaliza o texto para uma leitura exclusiva. O que parece mais proveitoso é permitir que a preocupação com a identidade nacional (sem dúvida presente na autobiografia hispano-americana) reverbere no texto como uma cena sempre renovada de crise necessária à retórica da autofiguração; vê-la como um espaço crítico, marcado por uma ansie-

3. Fredric Jameson, “Third World Literature in the Era of Multinational Capitalism”, Social Text, 15 (1986), pp. 65-88. Para uma efetiva crítica às posições de Jameson cf. Aijaz Ahmad, “Jameson’s Rhetoric of Otherness and the ‘National Allegory’”, Social Text, 17 (1987), pp. 325.

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dade de origens e de representação, na qual o eu põe em cena sua presença e alcança uma efêmera unidade. A autobiografia é sempre uma re-presentação, ou seja, um tornar a contar, pois a vida a que supostamente se refere é, por si mesma, uma construção narrativa. A vida é sempre, necessariamente, uma história; história que contamos a nós mesmos como sujeitos, através da rememoração; ouvimos sua narração ou a lemos quando a vida não é nossa. Portanto, dizer que a autobiografia é o mais referencial dos gêneros — entendendo por referência o remeter ingênuo a uma “realidade” e a fatos concretos, verificáveis — é, em certo sentido, pôr a questão de maneira falsa. A autobiografia não depende de acontecimentos, mas da articulação destes eventos armazenados na memória e reproduzidos através de rememoração e verbalização. “Meu nome, mais do que me nomear, me lembra o meu nome.”4 A linguagem é a única maneira de que disponho para “ver” minha existência. Em certo sentido, já fui “contado” — contado pela mesma história que estou narrando. Ao considerar a mediação narrativa que ocorre em uma autobiografia, estou interessada em alguns de seus aspectos mais textuais; ou seja, não apenas no texto “não escrito” (uma pulsão, um fragmento, um rastro) armazenado na memória que guia a inscrição autobiográfica do sujeito, mas nas “formas culturais” e fragmentos de textos verdadeiros a que o escritor recorre, quando escreve, como veículos daquilo que a memória guardou. Os escritores de autobiografia hispanoamericanos recorrem com freqüência ao arquivo europeu em busca de fragmentos textuais com os quais, consciente ou inconscientemente, forjam suas imagens. No processo, estes textos precursores são consideravelmente alterados, não apenas porque são tratados com irreverência, mas porque o arquivo cultural europeu, evocado das

4. Antonio Porchia, Voces (Buenos Aires, 1943, reimp. Hachette, 1975), p. 80.

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margens da América espanhola, é lido de maneira diferente. Dedico grande atenção à elaboração textual do eu e à cena de (des)leitura que com tanta freqüência lhe serve de emblema, pois nesta cena se manifesta a diferença do escritor. Neste contexto, encontro autobiografias cujos autores estão distantes do cânone europeu por razões adicionais ao fato de serem hispano-americanos (por ser escravo, como Juan Francisco Manzano, no século XIX; por ser mulher, como Victoria Ocampo, no século XX). Marginalizados pela instituição (parcialmente excluído, no caso da mulher, completamente apartado, no caso do escravo), se valem de estratégias particularmente engenhosas de usar textos aos quais não têm acesso total, para lograr a auto-representação. As autobiografias hispano-americanas não são textos fáceis. A dificuldade com que se afirmam como formas viáveis, o escárnio com que foram e ainda são recebidas (os Recuerdos de provincia de Sarmiento, ridicularizados por Alberdi por sua frivolidade; o Ulises criollo de Vasconcelos, comparado com os boleros de Agustín Lara) fazem do autobiógrafo um escritor extremamente precavido, consciente de sua vulnerabilidade e da reprovação potencial do leitor. A autobiografia é uma forma de estar exposto que suplica por compreensão, mais ainda, por perdão. Que me perdonen la vida: a frase idiomática, que Victoria Ocampo utiliza para sintetizar seu apelo aos leitores, pode ser estendida a muitos escritores hispano-americanos de autobiografias. Não apenas a frase deve ser lida literalmente — que a vida dos autobiógrafos seja perdoada, que se leia sua vida com simpatia — mas também em seu outro sentido, mais drástico: que sua vida seja poupada, que sua execução seja adiada. A noção de transgressão evocada pela frase e o poder que dá ao leitor, cujo perdão solicita, são freqüentes. Há sempre uma suspeita de que aquilo que se faz pode estar errado, não tanto do ponto de vista moral, mas tático; uma suspeita de que, dado o estatuto incerto do gênero, pode-se estar indo na direção errada. Os autobiógrafos hispano-americanos são os mais eficientes autocensores;

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em suas histórias, mapeiam silêncios que apontam para o inenarrável — e freqüentemente narram aquilo que consideram impróprio de ser contado autobiograficamente em outros textos menos comprometedores. Um dos silêncios mais expressivos da autobiografia hispanoamericana do século XIX se refere à infância. Detenho-me neste assunto porque ele reflete algumas proibições que pesam sobre os textos autobiográficos e que, até certo ponto, continuam valendo. O fato de passar rapidamente pelos primeiros anos da vida de uma pessoa diz muito sobre o modo escolhido pelo autobiógrafo para validar seu relato. Considerando-o uma forma de história — uma biografia, não de um outro heróico ou exemplar, mas de um sujeito heróico e exemplar — fica difícil acomodar, dentro dos limites de seu documento, a petite histoire, cuja mera trivialidade poderia ameaçar a importância de seu empreendimento. Assim, quando as referências à infância aparecem, ou são vistas prolepticamente, como antevendo as aquisições do adulto, ou são usadas por seu valor documental. O menino Alberdi que balança nos joelhos do General Belgrano não é apenas um detalhe encantador e, sim, a marca ideológica, significando a lealdade da família Alberdi à causa da independência argentina. É digno de nota que, de todos estes autobiógrafos do século XIX, ardentes admiradores das Confessions de Rousseau, apenas um tenha devotado à infância um relato elegíaco à maneira do mestre. É especialmente significativo que este relato tenha sido escrito de uma posição triplamente marginal: foi escrito no exílio, em uma língua que não era a do sujeito e por uma mulher, a Condessa de Merlin, cujas pretensões à documentação histórica eram nulas. No entanto, o imperativo documental nunca desaparecerá da autobiografia hispano-americana; tomará as formas mais variadas e sutis. Minha leitura de Miguel Cané e Mariano Picón Salas encara seus textos — também memórias de infância — como afirmações ideológicas e exemplos de união de grupo. Paramentadas com as sedutoras vestimentas da singularidade e do fora de moda, abrigadas da

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intrusão da história e desafiando qualquer mudança, as histórias de infância tornam-se, neste caso, credos ideológicos. É preciso um tipo específico de escritor “excêntrico” — penso em Norah Lange, mas também poderia ter escolhido Felisberto Hernández — para libertar a infância desses constrangimentos ideológicos. Para textos tão ligados à auto-representação no passado, as autobiografias hispano-americanas são relutantes em lidar com aquilo que as torna possíveis. A memória é geralmente aceita como um mecanismo de reprodução confiável, cujo funcionamento é raramente questionado, cujas infidelidades são raramente contempladas. Embora esta aceitação cega seja mais característica do século XIX do que do XX, ela nos dá um bom ponto de partida para questionamentos posteriores sobre o funcionamento da memória nestes textos. Quero identificar as táticas de uma prática mnemônica que — assim como todas as maneiras de recordação — é uma forma de fabulação. Diferentemente do fabulateur de Janet, que implora por um indício que lhe permita distinguir o que aconteceu do que acredita ter acontecido, não estou buscando discernir fato de invenção. Se questiono a prática da memória e a fabulação do eu que dela resulta, faço-o porque desejo examinar os modelos sociais de representação que, com a mesma segurança dos modelos auspiciados pela cena de leitura, guiam a recuperação do passado de maneira satisfatória para o sujeito que rememora. O passado evocado molda-se por uma auto-imagem sustentada no presente — a imagem que o autobiógrafo tem, aquela que ele ou ela deseja projetar ou aquela que o público pede. Como Ña Cleme, a velha mendiga dos Recuerdos de provincia de Sarmiento que, gozando da notoriedade trazida pelos rumores de que era bruxa, “trabalhava em suas conversas” para cimentar a prestigiosa imagem com a qual começava a identificar-se, o autobiógrafo “trabalha em sua memória” com a mesma finalidade. Ainda que menos definida que a de Ña Cleme, a imagem de si existe como impulso que governa o projeto autobiográfico. Além da fabricação individual, essa imagem é um artefato social, tão revelador de uma

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psique como de uma cultura. Assim, por exemplo, Sarmiento elabora seu passado em Mi defensa de acordo com a imagem do intelectual autodidata e do pater familias da comunidade; cinco anos mais tarde, no entanto, em Recuerdos de provincia, trabalha um passado algo diferente, que concorda com a imagem do filho aplicado, digno elo na cadeia de renomados intelectuais e antepassados seus. As diferentes imagens, que correspondem a diferentes épocas da vida e levam a duas autobiografias diferentes, dizem muito acerca de Sarmiento. Mas também dizem muito sobre como se concebia a história — e o que então se considerava uma de suas modalidades, a (auto)biografia — em princípios do século XIX na América hispânica: como um panteão de exemplares figuras heróicas. Do mesmo modo, a autobiografia de Lucio Mansilla, apresentada como um ocioso passeio pela velha Buenos Aires, revela tanto sobre a imagem que Mansilla tem de si mesmo — o perpétuo e evasivo flâneur — como certa concepção de literatura na virada do século, que questiona a idéia de um todo orgânico e valoriza, por sua vez, o fragmento. Uma postura marcadamente testemunhal caracteriza os textos autobiográficos hispano-americanos. Mesmo que nem sempre se vejam como historiadores — este conceito vai perdendo terreno à medida que as diferenças de gênero se tornam mais específicas — os autobiógrafos continuarão se vendo como testemunhas. O fato de que este testemunho seja com freqüência coberto por uma aura de visões terminais — o autobiógrafo testemunhando aquilo que já não existe — não apenas engrandece a figura individual do autor como reflete a dimensão comunitária reivindicada pelo exercício autobiográfico. A autobiografia na América hispânica é um exercício de memória e, ao mesmo tempo, uma comemoração ritual, onde as últimas relíquias individuais (no sentido que lhes dá Benjamin) se secularizam e se reapresentam como acontecimentos compartilhados. Neste sentido, tem particular importância os loci da memória, os lugares escolhidos para os ritos comunitários: as casonas ou casas de família, as províncias so-

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nolentas (fortalezas da tradição), cidades irrevogavelmente mudadas, talvez destruídas, pelo tempo. Igualmente importante é a forma com que se destacam a memória coletiva e a confiança no que se podia chamar de uma linhagem mnemotécnica. Os romances familiares são depósitos de lembranças: como Borges, que agradece a sua mãe “tua memória e nela a memória dos mais velhos”, o autobiógrafo hispanoamericano incursiona pelo passado através das reminiscências familiares, principalmente as maternas. Se por um lado esta combinação de pessoal e comunitário restringe a análise do eu, com tanta freqüência associada à autobiografia (ponto de vista que, não se deve esquecer, aplica-se a apenas um tipo de autobiografia), por outro tem a vantagem de captar a tensão entre o eu e o outro, de fomentar a reflexão sobre o lugar flutuante do sujeito dentro de sua comunidade, de permitir que outras vozes, além daquela do eu, sejam ouvidas no texto. Ainda nos casos que parecem favorecer um dos pólos desta oscilação entre sujeito e comunidade, excluindo aparentemente o outro — digamos, por um lado, a primeira pessoa do plural de Regreso de tres mundos, de Mariano Picón Salas, tão deliberadamente “representativa” que se converte em abstração, e, por outro, o eu desafiadoramente privado de Cuadernos de infancia, de Norah Lange —, mesmo estes casos permitem, talvez sem que se suspeite, que exista essa tensão. Assim, embora possa ser tentador ver nos textos autobiográficos hispano-americanos um sujeito, requerido por diferentes táticas de repressão (o que não pode ser contado) e de autovalidação (o que deve ser dito de forma aceitável para a comunidade, para a nação), que ainda não se encontrou (ou seja, a história do eu “sozinho”), seria pouco razoável concluir que o progresso em direção à introspecção, da estreiteza do documento até a liberdade da ficção, é a meta necessária destes textos. Dada a história do gênero, dos componentes que gradualmente, secretamente, acabaram por integrar o que podia ser denominado uma tradição autobiográfica hispanoamericana, seria esta uma avaliação improcedente. Se no século XIX a

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emergência do sujeito autobiográfico se torna difícil porque não havia lugar para ele, institucionalmente falando, e se este frágil sujeito, para ter textura, necessitava recorrer a táticas de autovalidação que incluíam pretensões à historicidade, à utilidade pública, aos vínculos de grupo, ao testemunho — em resumo, pretensões que abriam o eu a uma comunidade —, ao chegar ao século XX estas táticas já adquiriram carta de cidadania e foram incorporadas a uma retórica autobiográfica. Mesmo quando não são consideradas uma necessidade histórica, continuam moldando o discurso de auto-representação na América hispânica, pois chegaram a ser um elemento intrínseco da autopercepção do sujeito. Quero acrescentar agora alguns comentários breves, de natureza mais prática, para explicar as razões pelas quais escolhi estes textos. Pelo emprego do termo “hispano-americano”, em lugar de “latinoamericano”, se entenderá que não vou me referir a autobiografias brasileiras, exclusão que talvez surpreenda, dada a rica tradição autobiográfica do Brasil. Precisamente por isto, porque me dou conta de minhas limitações neste campo, preferi deixar este setor da autobiografia latino-americana a estudiosos mais capacitados e concentrar-me na tradição lingüística que conheço melhor. Assim mesmo, decidi, talvez de maneira injusta, deixar de lado uma forma de auto-escrita mais recente, os testemunhos, relatos de sujeitos que, diretamente ou por meio de informantes, narram vidas marginalizadas. Neste caso, a exclusão responde a duas razões. Por um lado, a abundante produção literária testemunhal, as condições que a regulam, as regras não escritas que lhe dão forma, fazem dela um gênero à parte que deve ser considerado como tal. Por outro, escolhi estudar textos de escritores, ou seja, de autobiógrafos que, ao decidir trasladar-se ao papel, têm consciência, de uma ou outra forma, do que significa verter o eu em uma construção retórica; escritores que, com uma boa dose de lucidez literária, se resignam à necessária mediação da representação textual. Assim como excluí os testemunhos, excluí as autobiografias de políti-

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cos e homens de Estado para quem o ato de escritura inerente ao exercício autobiográfico não parecia problemático. Um último comentário refere-se às autobiografias escritas por mulheres, ou melhor, a forma com que as manejo neste livro. Não satisfeita com a maneira com que se classificam os textos de mulheres na América hispânica — agrupando-os em categorias anistóricas como “literatura feminina” ou “poesia feminina”, sem levar em conta a cronologia ou os movimentos literários — preferi estudá-las junto com seus colegas varões, para melhor analisar suas diferenças. Trabalhei apenas com uma reduzida porção de textos autobiográficos publicados a partir do século passado. Porque escolhi precisamente estes textos e não outros é questão puramente pessoal; ou, dito de outra forma, minhas ficções críticas escolheram por mim. No entanto, na bibliografia aparece uma lista de todos os textos autobiográficos que consegui localizar na América hispânica no período tratado por este livro. Descobrir a existência destes textos — por uma obscura referência em uma história literária, por uma ficha encontrada ao acaso em uma biblioteca, por conversas, por intuição — foi tarefa difícil, com freqüência penosa. Como me refiro só tangencialmente a alguns destes textos e deixo de lado muitos, achei que valia a pena mencionar pelo menos todos os títulos e assim economizar o tempo de outros críticos e não poucos incômodos. Tenho consciência de que a lista poderia ser melhorada e de que alguns países estão melhor representados do que outros. Imagino que haja muitos outros textos autobiográficos que não localizei, textos que poderiam impugnar e até mesmo contradizer as páginas que se seguem. Conto com o que outros pesquisadores possam ter a dizer sobre a escritura autobiográfica na América hispânica e com o diálogo que estabeleçam com este livro.

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