Uma pequena tábua quinhentista numa capela rural de Figueira de Castelo Rodrigo

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Uma pequena tábua quinhentista numa capela rural de Figueira de Castelo Rodrigo Armando Palavras Quando no Verão de 2004 iniciamos o trabalho de campo na Região Demarcada do Douro (composta por 22 concelhos) como sustentação para a defesa de tese doutoral1, da qual foi principal arguente o Professor Vítor Serrão, estávamos longe de imaginar que haveríamos de protagonizar a descoberta de uma pequena tábua quinhentista, na pequena capela de Santo André a 5 km de Almofala, no concelho de Figueira de Castelo Rodrigo2. Uma descoberta modesta, mas com alguma relevância para a conjuntura das situações artísticas de periferia3. Que, aliás, têm merecido pouca atenção por duas razões: 1 – o partir-se do princípio de que no exterior dos grandes “centros” não poderiam emergir artistas e obras de algum arrojo criativo; 2 – a verificarem-se algumas excepções, só se justificariam à luz da influência tutelar de Lisboa, como sucedera com o célebre Vasco Fernandes (Grão Vasco para o vulgo) de Viseu. Nos últimos dez anos têm surgido alguns trabalhos, entre os quais se destacam os de Vítor Serrão, onde se tem posto em evidência a importância das oficinas regionais4. Descrição 1

Os tectos durienses: a iconografia religiosa setecentista nas pinturas dos templos da região demarcada, defendida em 2011, na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Lusíada de Lisboa. Área científica: História da Arte. Orientada pelo Professor Doutor Luís Manuel Aguiar de Morais Teixeira, com a co-orientação da Professora Doutora Isabel Mayer Godinho Mendonça. 2 Acresce dizer que à época, com meios absolutamente limitados, tivemos o apoio possível do Sr. Presidente da Câmara Municipal, que nos cedeu transporte próprio e um guia. Ao tempo apenas nos interessaram as freguesias desse concelho que ainda se situam na Região Demarcada do Douro. 3 Coube-nos em sorte, no mesmo dia, depararmo-nos com outras duas tábuas. Uma da Virgem Maria e outra de São João Evangelista, pertencentes ao retábulo do “Senhor do Veloso”, na igreja Matriz de Escarigo, assim como um pequeno Ancião dos Dias pintado no frontão do mesmo retábulo, que fotografamos por sabermos do que se tratava, mas que remetemos para o nosso arquivo pessoal porque não constavam da matéria em estudo. Em Junho de 2012 enviamo-las a Vítor Serrão que, em e-mail datado de 25 de Junho desse mesmo ano, nos revelou uma agradável surpresa. Não revelamos o seu conteúdo, nem às tábuas e ao pequeno Ancião dos Dias dedicaremos mais que esta nota de pé de página, em virtude de estarem a ser objecto de estudo do professor, a ser publicado brevemente. 4 Onde se destacaram mestres pintores como Vicente Gil (Coimbra), Frei Carlos (Évora, “oficina do Espinheiro”), André de Padilha (Viana do Castelo), Bastião Afonso (Lamego), Francisco Henriques (Lourinhã), o célebre Vasco Fernandes (Viseu) e António Leitão, os mestres de Tavira, Rosmaninhal, Bucelas, Torres Vedras. São ainda inúmeras as oficinas ligadas aos frescos descobertos na última década: Mogadouro, Marco de Canaveses, Vila Marim, Midões. A propósito das oficinas de Lamego, Cf., SERRÃO, Vítor, O núcleo de pintura religiosa do Arciprestado de Vila Nova de Foz Côa, Foz Côa. Inventário e Memória. Programa de Inventário do Património Cultural Móvel das Paróquias do Arciprestado de Vila Nova de Foz Côa, coord. de João Mário SOALHEIRO, ed. Instituto Português de Museus e C. M. V. N. Foz Côa, 2000, pp.68-82.

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Esta pequena tábua representa a Última Ceia, um dos momentos mais importantes da narrativa evangélica. É ela que institui um dos principais sacramentos da liturgia cristã: a Eucaristia5. Nesta composição estão patentes o anúncio da traição6 e a instituição mística da Eucaristia, repetida no rito da missa católica. Ou seja, nela estão implícitos os dois temas iconográficos distintos que Louis Réau classificou de “Ceia histórica ou narrativa” e “Ceia simbólica”7, conforme os artistas privilegiaram a narração da traição de Judas, ou a instituição do sacramento da comunhão eucarística8. É ainda característica desta pequena tábua, o destaque dado pelo artista não apenas a Judas, mas também a João, normalmente representado junto ao peito do Mestre, atitude apenas mencionada no Evangelho de João (XIII, 23) e imposta pela tradição, também confirmada na literatura apócrifa, sendo explorada por numerosos artistas9. O Salvador encontra-se reunido com os Doze Apóstolos. O contexto arquitectónico, com pano vermelho debruado a amarelo, e óculo, distribuídos respectivamente à esquerda e à direita na parte superior do quadro, é simplificado. À direita, na parte inferior do quadro, assinala-se a figura de Judas, trajando de amarelo, seguindo a tradição simbólica a que essa tonalidade está ligada, segurando a bolsa dos dinheiros sinalizada a vermelho, com a mão esquerda, apoiando a direita junto do coração.

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O momento em que Jesus, simbolicamente através do pão e do vinho, oferece o seu corpo e o seu sangue aos Apóstolos (Math. XXVI, 26-29; Marc. XIV, 22-25; Luc. XXII, 19-20). João, o mais simbólico dos evangelistas, é omisso quanto à Santa Ceia Sacramental. 6 O relato de João, em certos detalhes, não coincide com os relatos sinópticos. Para Mateus, o traidor é o que mete a mão no prato. De acordo com Lucas é o que tem a mão sobre a mesa. Neste caso, a tábua analisada, não segue nenhuma das versões. É um pessoalismo do artista. 7 Que foi representada por inúmeros artistas: Fra Angelico (1436-1442 – fresco, museu de São Marcos, Florença), Justus of Ghent (1473-4, palácio ducal, Urbino), Luca Signorelli (1512, museu diocesano, Cortona), Juan de Juanes (1560-70, museu do Prado, Madrid). 8 RÉAU, Louis, Iconografia del arte Cristiano, iconografia de la Bíblia, Nuevo testamento, Ediciones del Serbal, 1996 , Tomo 1, vol. 2, p. 409. 9 Como Domenico Chirlandaio (1480), Jaume Huguet (1450), ou Albrecht Dürer (1471-1528).

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Em segundo plano, na rebarba superior do quadro, a meio, é assinalada A Disputa do Santíssimo Sacramento (Alegoria da Eucaristia)10, resguardada num cibório11. Um altar de mesa com antipêndio, sustenta uma custódia constituída por pixíde, rematada por uma cruz, ostentando no nicho uma hóstia. Está flanqueada, à direita e à esquerda, por dois anjos que seguram um círio cada. Comentário A hipótese de se tratar de obra do pintor lamecense António Leitão12, artista de estirpe nobilitada, com formação em Roma (c. 1560), e posterior permanência em Antuérpia, é de

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Os programas iconográficos que aludem e representam o Sacramento da Eucaristia são baseados na afirmação da autoridade da Igreja e seu triunfo. E implica a afirmação da real presença do corpo, sangue, alma e divindade de Cristo, sob a aparência do pão e do vinho. Os Padres da Igreja assim o entendiam, como Cirilo de Jerusalém (315-386). E esta noção patrística foi continuada na Igreja do século XII, a qual encontrou eco profundo na religiosidade popular. O problema eucarístico foi um tema central do Concilio de Trento. O primeiro cânone do decreto sobre a Eucaristia da décima terceira sessão estipulava que Cristo está “verdadeira, real e substancialmente presente na adorável plenitude do seu ser e na totalidade da sua Pessoa hipostática no sacramento da santa Eucaristia”. Esta proposição, acompanhada de prescrições mais ou menos detalhadas sobre as manifestações do respectivo culto, influenciou tanto a liturgia como a arte. A Adoração e o Triunfo da Eucaristia tornamse assim, temas típicos da arte da Contra-reforma e do Barroco. 11 Baldaquino que cobre o tabernáculo do altar-mor. Cujas colunas, neste caso, são muito semelhantes à coluna representada n’A Última Ceia atribuída a Gregório Lopes (1539-41?) 12 A figura e a obra desse fidalgo-pintor é ainda muito pouco conhecida. A sua existência foi dada a conhecer há noventa e três anos por Vergílio Correia numa monografia sobre o panorama de artistas e artífices activos na cidade de Lamego (CORREIA, Vergílio, Artistas de Lamego, Coimbra, 1922, pp. 26-28, referencia a presença de António Leitão activo em Lamego, como pintor, em 1565 e em 1571), e de novo, há cinquenta e três anos, pelo genealogista António Machado de Faria, a partir dos processos de habilitação de genere de três dos seus descendentes quando se candidataram ao cargo de Familiares do Santo Ofício e tiveram, por isso, de prestar dados sobre a «limpeza de sangue» e outros aspectos caracteriológicos dos seus parentes (MACHADO DE FARIA, A. «Dois pintores quinhentistas de escola estrangeira», Arqueologia e História, vol. X, 1961, pp. 183-199. O estudo, como nos diz Vítor Serrão, baseou-se na informação das diligências para familiares do Santo Ofício de Gregório Rodrigues, genro do artista, de 1622, e do Dr. António Leitão Homem e de Mateus Homem Leitão, netos do pintor, respectivamente de 1634 e de 1638 - ANTT, Habilitações do Santo Ofício, António, Maço 6, diligência nº 247; Gregório, Maço 1, diligência nº 4; e Mateus, Maço 1m, diligência nº 6). Só em 1998, saíram os primeiros dados específicos sobre obras do pintor existentes em templos de Cepões (Lamego) e de Vila Nova de Foz Côa (Cfr. SERRÃO, Vítor, Idem, op.cit., pp. 68-82, 109139, e 228-229, e Maria Beatriz ALBUQUERQUE, A Visitação da Capela de Santana – Cepões na Pintura Maneirista da Beira Alta, tese de Mestrado, Faculdade de Letras de Lisboa, orientação de Vitor Serrão, Lisboa, 2002).

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considerar, embora careça de comprovação documental13. Trata-se assim, de obra valiosa de pintura de “escola” regional, provavelmente da primeira metade (ou meados) do século XVI, absolutamente desconhecida, de tradição renascentista, ao estilo das oficinas viseenses. As características de estilo reveladas na tábua, sejam de mancha cromática ou de desenho14, sustentam a cronologia apontada. Mostrando um estilo muito pessoal no desenho e no forte cromatismo utilizado, segue livremente gravados ítalo-flamengos que circulavam pela região15, possivelmente o modelo da mesma xilogravura que Francisco Henriques usou na tábua de São Francisco de Évora16. É ainda de salientar que, pela primeira vez, se nos depara, na arte portuguesa, uma Última Ceia cujo segundo plano representa A Disputa do Santíssimo Sacramento17, com a particularidade de estar resguardada por um cibório.

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A única peça atribuível a António Leitão com fundamentação documental, até à data, é a grande tábua da Visitação da Virgem, descoberta por Teresa Albuquerque (Idem, op. cit..) na capela lamecense de Santana de Cepões, e que revela semelhanças evidentes de estilo com o acervo de Foz Côa que lhe é atribuído por Vítor Serrão (Idem, op. cit., p. 110). 14 Sejam os pormenores dos halos (ou diademas) duplos dos Apóstolos, ou a coroa ricamente trabalhada de Cristo. Estes detalhes são observáveis em várias obras da “escola” viseense. A título de exemplo, refira-se A Última Ceia do retábulo da Sé de Viseu (c. 1501-1506), Museu Grão Vasco. 15 A tradição do Renascimento manuelino-joanino, impunha-lhe a retoma de gravuras de Durer, Lucas Van Leyden, e ainda a inspiração em módulos dos mestres de Ferreirim e Grão Vasco. Superficialmente, Leitão sofreu ainda a influência da Bella Maniera romana, de artistas como os Zuccari, Marcantonio Raimondi, ou ainda certas “receitas” dos círculos miguelangescos. E do romanismo flamengo de pintores como Michel Coxie. 16 Que provavelmente tem origem em Zacharias Dolendo 17 Este tema foi desenvolvido por inúmeros mestres primitivos anónimos. A tal propósito, Cf. The Illustrated Bartsch, vol. 87, p.92.

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