A Fria Dhélida

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A Fria Dhélida e a Mulher Cadente © 2015 Wesley Nogueira Coletânea Klausen em Contos

Projeto Gráfico e Caligrafia Arnaldo Viana Ilustrações Nycolas Di Capa Arnaldo Viana Coordenação Wesley Nogueira

Klausen em Contos, nomes, caligrafia, símbolos, todos os direitos reservados ao autor.

Fortaleza, 2015.


uitos podem não acreditar, como também outros dizerem ser apenas lenda ou história para enganar crianças. Isto que foi e ainda é passado de geração a geração, causa conflito de crenças à sociedade, e de lógica à ciência tão estudada e dita como a única verdade. Dizem as conflitantes línguas que a fé erguida e sustentada pelos seguidores de Lirian, os liriânicos, não passa de uma reles metáfora relacionada à ciência. Dizem serem duas irmãs opostas, como outros afirmarem ser simplesmente uma única verdade, no entanto, interpretada de diferentes formas. Levando em consideração o que aos klauseanitas é instruído desde sua inocente infância, é narrado aqui a primordial e mais intrigante história que no mundo de Klausen aconteceu, e que as mais antigas e sociáveis criaturas da floresta não os deixam esquecer.

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endo hoje uma das províncias mais conhecidas e importantes de Ciprano, localizada no extremo norte do antigo e lendário continente de Bernos, Dhélida fora um lugar muito frio durante todo o ano, porém, com maior intensidade no inverno. Sua origem teve início a partir da indignação de Kádio, um homem que irado com as ordens dadas por um de seus líderes, decidiu apartar-se da cidadela de Píano e lançar-se no desconhecido com suas três famílias. Ao lado de seus filhos e dos cônjuges de suas filhas, invadiram terras distantes e selvagens, onde ali estabeleceram-se, multiplicaram-se e deram origem a aldeia de Dhélida. Chegando ao fim da vida, Kádio — agora conhecido como o Grande Patriarca — fora substituído por seu primogênito, chamado de o Ancião, líder de toda a aldeia. Este, depois de morrer, teve a liderança também passada para seu primogênito, como assim por diante. Tais des-

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O início de Dhélida

cendentes foram os responsáveis pela expansão do lugar a cada geração, sempre liderados pelo designado mestre, o Ancião. Mesmo em crescimento, Dhélida ainda não era tão grande. Havia muitas das velhas casas de aldeões em diferentes partes; estes se sustentavam com a caça de animais, pesca no rio e colheita na floresta ao redor e nas montanhas ao norte. Por opção e orgulho, preferiram não se relacionar com demais aldeias, vilas e cidadelas. No início, os tempos foram difíceis, já que desejando autonomia e território para habitar, eles entraram em conflito com ferozes animais, e com as persistentes criaturas que habitavam as árvores da localidade, as ghárulas. Antes de tomarem posse daquelas terras, havia certa calmaria na região. A maior parte dos animais racionais pelas ghárulas tinha respeito, pois em meio aos seus cânticos e intenso trabalho, a floresta era bem preservada por elas, proporcionando assim uma boa vida a todos. Uns dos poucos conflitos que naturalmente havia eram os das ghárulas entre si, pois por egoísmo de algumas maiores, proibiam as demais menores de habitar em suas árvores e tirar dela alimento. Egoísmo não é uma característica comum dessas criaturas, pois até mesmo as mais ranzinzas dividem entre si o que podem, lição outrora aprendida com suas ancestrais. As ghárulas são seres tão comuns quanto os animais racionais, como também os irracionais nesse mundo. São nascidas de árvores já adultas, algumas do caule, outras

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dos grossos galhos, da raiz ou até mesmo dos frutos; nelas crescem, se alimentam e adquirem assim características de sua moradia, onde nelas habitam até sua morte. Elas nascem com uma fina camada de pele por todo o corpo, algumas em tons alaranjados, marrons, ou até mesmo carmesins, mas que durante seu desenvolvimento adquirem certa dureza e semelhança às cascas de suas árvores. Umas lembram animais ou humanos transfigurados, outras parecem verdadeiros monstros, outras criaturinhas adoráveis em forma de frutos, ou simplesmente semelhantes à suas moradias. Não possuem gênero que possam as distinguir, o que é um pouco confuso, já que algumas têm semelhanças de machos e outras de fêmeas, como suas vozes, por exemplo. De vez em quando também havia discussão entre algumas dessas criaturas e esquilos de cauda longa, tudo por causa de árvore, mas nada tão sério que uma boa conversa não resolvesse. Com a chegada do Grande Patriarca e suas famílias na região, o medo se tornou um sentimento compartilhado entre todos, gerando posteriormente brigas entre as ghárulas e os animais da floresta contra os forasteiros. Tais conflitos duraram gerações, entretanto, a trégua só veio graças ao Ancião Geron, responsável pela quase extinção dos ursos daquele lugar.

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epois de dizimarem e expulsarem parte dos resistentes habitantes daquela terra, os homens ainda orgulhosos, enfim reconheceram serem estranhos em territórios alheios. Ordenados por Geron, seu baixo e corcunda Ancião, parte deles ao lado do líder atravessaram a grande cerca de madeira construída em torno da aldeia, dessa vez não para atacarem, mas sim estabelecerem um acordo de paz com os animais e as ghárulas. Um longo diálogo fora necessário com aquelas criaturas na beira do Riacho Verde, até que, naquele momento, o acordo de paz fora criado. — Não mais caçaremos vocês, animais racionais, como também não tomaremos posse de seus demais territórios. Tiraremos sustento das árvores que circundam nossa aldeia, onde vocês ghárulas não mais habitam, pois, assustadas com nossas antigas atitudes, outrora refugiaram-se em diferentes e distantes partes da floresta onde não co-

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A Aldeia

nhecemos. — disse o careca e enrugado Ancião, trajando uma espessa pele de urso sobre sua túnica, demostrando o poder que ainda tinha naquele lugar. Caminhando por entre os homens, armados caso houvesse qualquer tipo de rebelião, pondo a ponta de seu bastão na fria água do riacho, o Ancião continuou: — Aquele que desejar habitar em torno da aldeia, concedo minha permissão. Se viermos precisar das árvores mais distantes, prontamente as reflorestaremos, pois assim não quebraremos essa difícil relação entre nós, os homens, com vocês... as ghárulas. — em tom de deboche, puxando o bastão de madeira da água — Eis aqui todos, testemunhas deste acordo, com atenção me escutem: Que de agora em diante a igualdade habite entre nós, os homens, e os bravos remanescentes da floresta! — apontando o dedo indicador aos homens e as demais criaturas do outro lado do riacho de águas verdes — E que a paz reine entre os nossos povos até que findem-se os tempos! — enxugando o bastão na terra, encerrando assim suas palavras. Vários anos se passaram e o acordo fora honrado, mas, como talvez imaginado, a paz não durou para sempre. Diversos Anciãos passaram pelo poder. A aldeia aos poucos cresceu, as gerações antigas deram continuidade, invernos mais torturantes sobrevieram à região, esvaindo-se assim o equilíbrio outrora desejado. O desmatamento na floresta ao sul e oeste tornou-se descontrolado e o reflorestamento omitido, qualquer ani-

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mal passou a ser caçado, vindo sua pele a servir de vestimenta e sua carne de alimento, desde o mais tolo ao altamente sábio. O inverno aproximava-se, e assim como o clima local, a aldeia começava a se tornar um lugar frio, praticamente morto. A sobrevivência passou a ser uma real dificuldade. Como se a temperatura não fosse uma suficiente vilã para tanto sofrimento, uma ursa nas redondezas tornou-se mais uma dor de cabeça para os aldeões.

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ntes da chegada do temível inverno, durante a colheita das resistentes maçãs de mel na beira da floresta, três crianças aproveitaram o descuido de dois jovens sentinelas e atravessaram o portal da aldeia. Passaram discretamente pelas distantes mulheres que colhiam os frutos e dos homens armados que as acompanhavam, adentrando naquela escura e ainda resistente floresta ao norte. Por serem bastante travessas e desejarem aventura, não era a primeira vez que pregavam esse tipo de peça, no entanto, passaram-se dias e até então não haviam retornado. Um dos poucos e robustos animais castanho-escuros que tentavam sobreviver na região era a principal suspeita no desaparecimento daquelas crianças. Dias antes, perante as mulheres que trabalhavam na colheita, acusara alguns dos homens de assassinato, onde durante uma de suas caçadas, mataram sem misericórdia seus filhotes na floresta das montanhas nortistas, regiões que a eles não pertenciam.

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Suspeitas

— Como podemos viver em paz se não cumprem seu acordo? Aquele Sírio, o agora Ancião, está velho demais para saber o que é honrar com a palavra? — a profundos e tristes bramidos — Tens filhos? — olhando profundamente para as mulheres e ferindo o solo com suas garras — Eu sei que tens! Mas e os meus, não foram nada? Eles eram apenas bebês, humanos desprezíveis! — chorando, pois mal suportava a dor de perder suas crias — Vocês sabiam que eles não representavam perigo algum... Lembrem a eles dos meus pequenos, pois não me esquecerei do que fizeram... Lembrem dos meus filhos! — evitando se aproximar por medo dos homens que acompanhavam as mulheres, pois com foices estavam armados. O solitário animal aparentava blefar ao longe, mas em profunda tristeza e ódio, desejava vingar os seus. Em meio ao desaparecimento dos travessos, as mães lembraram das palavras da amargurada ursa daquela ocasião. Elas estavam visivelmente aflitas, entretanto, ao fundo esperançosas, pois qual mãe, mesmo em profunda angústia, imagina enterrar seu próprio filho? Os pais irados com o suspeito animal, entraram em acordo de ir à procura das crianças e à caça daquele que passaram a chamar de Monstro dos Inocentes. Desta forma, os homens se dividiram em dois grupos, um para montarem a guarda na aldeia e proteger as mulheres, velhos e crianças; e o outro grupo para adentrar na floresta e ir à procura dos desaparecidos. O portão fora fechado e a cerca passou a ser atentamente vigiada.

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Por estarem em maior número naqueles dias, as mulheres continuaram com seus trabalhos domésticos e o da colheita na beira da floresta; mas agora também arcavam com alguns dos trabalhos masculinos, como o lenhar, para o aquecimento de suas casas, e a caça de animais pequenos, para a alimentação de suas famílias. Ainda assim eram acompanhadas em seus trabalhos matutinos, mas na atual situação, agora iam ao lado de quatro homens e pouquíssimos jovens que não tinham idade de irem com os demais guerreiros a procura das crianças. Os que já tinham, foram juntos dos valentes homens, e ansiosos, treinavam assim para se tornarem a nova geração de guerreiros de Dhélida.

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ael era um tradicional ruivo de Dhélida, muito sardento, não era bonito, e tinha baixa estatura. Pouco parecia um guerreiro, e por isso, sofria desprezo por maior parte dos altos e fortes homens da aldeia. Nenhuma mulher o desejava, e tampouco recebia amor da própria mãe. A rechonchuda mulher não tinha nenhuma expectativa em relação ao filho, pois este não demonstrava destreza para caça, tampouco para a pesca. Diferente dos outros jovens, Dael crescera desenvolvendo mais seu cérebro do que seus músculos, entretanto, isso não era o suficiente para conquistar a admiração dos outros, como também o respeito de sua mãe. Sendo ele e sua irmã órfãos de pai, agora tinha que aprender a ser o homem que nunca foi. Era muito cobrado pela mãe, um terrível incômodo, desejando que ela, às vezes — como as crianças desaparecidas —, também sumisse na floresta.

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Na Alvorada

— Não é inteligência que enche prato de comida numa casa, infeliz, — puxando-o pelo o seu médio e enrolado cabelo cor de cobre — mas sim a força dos braços de um homem de verdade! — soltando-o. — Se não fosse pela força que em mim ainda resta, talvez já tivéssemos morrido de fome! — Era o que sempre ouvia de sua querida mãe. Como há males que vem para o bem, o desaparecimento das crianças mostrou-se para Dael uma perfeita oportunidade de mostrar o guerreiro que talvez nele existia, e agora assim, ser visto com outros olhos, tanto fora, como principalmente dentro de casa. — Vai-te com os outros a procura daquelas crianças. E vê se aprende a ser como teu pai, um guerreiro, um homem! — o obrigando ir ao resgate. — Certamente, minha mãe! — baixando a cabeça em sinal de respeito à sua genitora, algo que ele sempre fazia, mesmo depois de sofrer seu desprezo. — Mas saiba de uma coisa — pegando-o pelo ombro — Se encontrares aquelas pequenas, com certeza te darão alguma moça em casamento... — sorrindo — Entretanto, se não encontrares e fostes uma pedra no calçado dos guerreiros, faz-me um favor: Não volte para casa! —batendo no ombro do jovem — Se és tão inteligente como imagina, te lança como alimento aos ursos, aos lobos ou aos outros míseros animais. Talvez assim você sirva para alguma coisa nessa vida! — desejava o rapaz que aquelas palavras fossem apenas da boca para fora. Engano.

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Ainda em respeito para aquela que o desvalia, olhando de canto para sua irmã que tentava controlar o choro, ele disse para a mãe: — Nunca abri a boca para me elevar a vocês. Nunca te faltei com respeito, te honrei mais ainda após a viuvez, ajudei a criar minha irmã... Realmente, de nada servi. — sustentando as lágrimas de tristeza e ódio — Se isso é o mínimo que posso fazer por ti, certamente farei... Minha mãe... — respirando fundo, com um sorriso de desdém enquanto saía de casa. Do lado de fora, os homens que iam à procura das crianças se reuniam, corajosos, organizando seu arsenal. Dael preferiu não olhar para trás, fixava seu olhar para além da cerca da aldeia. A partir daquele dia, sua dignidade era lançada a prova. O grupo preparado, enfim, partiu. Passaram-se dias. Dentro daquele desconhecido lugar, quando o brilho das estrelas lentamente desaparecia, e o escuro azul da madrugada tentava resistir ao suave laranja da alvorada, o grupo de guerreiros descansava sob alguns larícios medianos. Cobertos com peles de alguns dos lobos que no passado caçaram, assim mantiveram-se aquecidos, pois a fogueira naquelas alturas apagada jazia. Poucos pássaros cantavam. Na verdade, mal dava para ouvi-los, pois gradativamente iam despertando para mais um dia. A maior parte das ghárulas repousava, deixando a floresta ainda silenciosa, até então sem seus cânticos diários.

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Na Alvorada

Com evidentes olheiras, Dael tentava se manter acordado, pois passara parte da madrugada como sentinela enquanto os demais descansavam. — Por que ele não dorme? — perguntava uma pequena ghárula em forma de pinha, sobre um dos galhos de um pinheiro próximo. — Ele está de vigia, sua tonta! — respondia outra ao seu lado, tentando se esconder, como se sua vozinha não fosse perceptível naquele silencioso início de manhã. Dael de vez em quando fechava os olhos, mas a discussão daquelas pequenas fazia com que no sono não caísse. Tentou ignorá-las, até ouvir algo que mudou todo o rumo da história. — São bem corajosos mesmo... Ouvi dizer que estão procurando aquelas crianças que deram de frente com aquela ursa... — estalando seus dedinhos cheios de ruguinhas. — A mãe daqueles filhotinhos que foram mortos por eles? – apontando para os homens. — Ela mesma! Não sabem eles que o problema não é ursa, pelo contrário, é ela quem está protegendo as crianças. Faz alguns dias que a coitada tenta levá-las para Dhélida, mas não está conseguindo. — Como assim? — Sabe os lobos azuis? — percebendo Dael levantandose, atônico a conversa. — Sei que um dia me arrependerei disso... Mas ouviu bem não é humano? — agora olhando-o fixamente do galho — Quem procura não passa de uma inocente. Os lobos azuis que alimentam o ódio de vocês

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é que são os culpados. A castanho-escuro, por outro lado, está muito machucada numa região perto do Riacho Verde. — Lokendo, não ajude esse humano! Não vê que eles estão violando o acordo da mesma forma que os lobos? — desesperada — A Mulher Cadente para aquelas bandas descansa. Cala-te Lokendo! – dando um grito muito agudo enquanto puxava seu amigo pelo pequeno e franzino braço. — Tenha calma Noli, sua tonta! – soltando-se – Humano, corra o quanto antes, pois se o líder da alcateia, o Duc, reencontrar a ursa, tenho certeza que ele que não terá misericórdia e irá matar tanto ela quanto suas crianças! — Vamos Lokendo, os outros humanos estão acordando! – correndo pelos galhos. — Vá para o norte meu caro, para o norte! – apontando enquanto sumia pelas folhagens. Dael não hesitou em acordar todos os seus companheiros e contar o que da ghárula ouviu. Por se tratarem de informações dadas por criaturas da floresta, os homens não deram muito crédito a princípio, mas perceberam que partes da história faziam sentido. O grupo logo se organizou, se equipou com suas armas pontiagudas, e juntos rumaram paras as bandas do riacho ao norte, como a pequena ghárula havia dito. Poucas horas se passaram até encontrarem alguns dos lobos azuis discutindo por onde iam na caça as crianças. Escondidos atrás de algumas árvores e arbustos, os guerreiros logo os embocaram, mas só um fora capturado. Os

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Na Alvorada

outros dois subiram algumas rochas mais acima e partiram em fuga. Dael, na esperança de agora se tornar um herói da aldeia, ganhar prestigio dos demais aldeões e até mesmo de sua própria mãe, após receber ordens de seu líder de ir à procura dos lobos que fugiram, teimoso, rumou novamente sozinho para as bandas do norte, a procura do riacho como a pequena ghárula lhe havia aconselhado.

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aminhando solitário, começou a se sentir desnorteado pelos agora constantes cantos das ghárulas em diferentes direções. Alguns tão graves que lhe dava a impressão de serem criaturas gigantescas, outros mais agudos, como se fossem minúsculas, iguais às que vira e conversara na alvorada. As músicas antes confusas, agora pareciam se harmonizar e se revelar um festejo, cantos de alegria. Curioso, pulou alguns arbustos a frente e presenciou uma espécie de ritual das ghárulas e de alguns animais no centro de uma clareira. Cantavam enquanto dançavam alegremente perante uma mulher de olhos fechados, deitada sobre duas rochas cobertas de musgos, bem em frente a um mediano e solitário larício. Ao redor das rochas havia muitas folhas e algumas maçãs de mel, avelãs amorangadas, cerejamargas, além de outros frutos resistentes ao frio daquele beira-inverno. Tudo era oferecido pelos presentes no ritual, como se a qualquer

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Amaruna e os Lobos

momento a tal mulher viesse a levantar e desfrutar de suas oferendas. A bela tinha uma aparência tão vívida que Dael imaginara não estar morta, mas sim dormindo profundamente em meio aos cantos. Instantaneamente, apaixonado, interrompeu o festejo adentrando na clareira, assustando assim as variadas ghárulas, raposas rubros, arminhos moriuns, além dos grandes alces de três chifres e outros animais que fugiram do local. Caminhou a apressados passos até o encontro da adormecida. Quando já se aproximava, fora interrompido por um estranho barulho vindo por de trás dos pinheiros. Do meio das árvores, a ursa surgiu ferida juntamente das crianças que corriam assustadas. Pareciam estar fugindo de alguém ou alguma coisa. Muito machucada, a castanho-escuro caiu próxima às rochas onde estava a mulher adormecida e ali agonizou em seus últimos momentos. — Não posso mais viver sem minhas crias... vocês, homens malditos... — olhando para Dael enquanto segurava sua foice — Vocês tiraram a vida dos meus filhos como fossem nada... E agora, por ajudar os teus, sou chamada de traidora e caçada pelos azuis?! — referindo-se aos lobos a quem enfrentara. — Não morra Amaruna! — gritava a menininha ferida. — Nós te somos malditos? — perguntava o garotinho acariciando a ursa. — Não, não... vocês não, meus queridos. Vocês... vocês farão a diferença naquela aldeia. — falando com maior

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dificuldade — Mas o sangue dos meus filhos... Ah meus filhos... Seus pais... Carregarão... Até o túmulo! — fechando lentamente os olhos. — Amaruna, por favor... — chorava a menininha agarrando a ursa. — Poderei nesta vasta escuridão, enfim, rever aqueles a quem tanto amei? — deixando a tão sofrida vida para trás, repousando sobre os frios braços da morte. — Ela já se foi! — o garotinho colocava as mãos sobre o rosto encharcado de lágrimas. Ambos soluçavam, chorosos. — Eles estão vindo! — gritava o mais velho dos três, olhando desesperadamente para os pinheiros de onde vieram. Daquela mesma direção, dois outros lobos azuis corriam a procura das crianças e da ursa. As três lentamente saíram de perto do corpo de Amaruna e caminharam para mais próximo de Dael. À base do diálogo, ele tentou persuadir os animais, entretanto, não queriam conversa. — Não vamos matar essas crianças. Só as levaremos para o nosso líder. — É... A vingança do que vocês fizeram ao restante do nosso bando cabe somente a ele. – andando em volta como se a qualquer momento fosse atacar. — Se não nos deixarem em paz, juro que mato os dois e ainda faço casaco com a pele de vocês! – empunhando a foice. — Da mesma forma que fizeram com os outros dos nossos? — caminhando a lentos passos para o lado esquerdo de Dael.

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Amaruna e os Lobos

— Acredita mesmo que um rapaz como você é capaz de deter dois azuis? — rindo. — Ora, vamos... quer dizer que guerreiros de verdade estão em falta lá em Dhélida? — Pergunta ao teu companheiro que eles mataram hoje cedo, talvez ele saiba te responder. — seco, finalizou — Não, não, espera... Certamente mortos não falam, não é mesmo? — sorrindo. — Ahhh... Humano insolente! — caminhando para o lado direito de Dael. Após dar um estranho uivo ao céu, o que estava à direita do guerreiro posicionou-se para atacar, todavia, distraindo assim Dael, o que estava à esquerda na verdade foi quem fez o primeiro movimento. O rapaz defendeu-se com a foice, enfiando quase que involuntariamente a arma no animal, enquanto o outro partiu para atacar uma das crianças. Dael, pondo seu pé direito sobre o peito do lobo ao qual caído agonizava, puxou sua arma e correu para atacar o outro. As outras duas crianças correram para perto do larício. O lobo agarrou a menina pelas suas longas e sujas vestes. Dael, ainda armado, os separou com um só golpe, cortando parte da orla da túnica remendada da criança, antes presa aos dentes do intrépido animal. Com um chute nas costas do lobo, o derrubou no chão. Pisou sobre sua pata dianteira, deslocando-a, e encravou a foice em terra dizendo: — Sei que não tem condições para se defender. — um pouco suado, jogou a mecha de cabelo que estava na testa para

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trás — Não vou matá-lo da forma que matei o seu amiguinho. Diferente dos outros aldeãos, eu terei piedade de você. — Puxando a arma do chão e chutando a areia insinuando para o lobo sair de sua presença — Vai-te imundo! O animal com dificuldade levantou do chão, deu alguns gemidos pela terrível dor e saiu mancando por entre os pinheiros que estranhamente se afastaram. As ghárulas sobre as árvores cochicharam entre si sobre o acontecido. Dael respirou fundo e caminhou até as crianças, pondo suas mãos sobre os ombros dos garotos perguntando se estavam bem. — Preparem-se para reencontrar seus pais. Eu e outros guerreiros da aldeia passamos dias dentro dessa floresta à procura de vocês, suas travessas! — sorrindo. — Pensei que íamos morrer, mas a Amaruna nos acolheu! — a garotinha se ajoelhou próximo à ursa morta. — Depois que os lobos nos emboscaram, ela achou melhor nos trazer pra essa clareira... — disse o mais velho dos três — Ela disse que... — parando de falar, olhando para a mulher sobre as rochas. — O que disse Amaruna? — Que essa moça poderia nos ajudar... — apontando para a estranha sobre as rochas. Todos curiosos fixaram o olhar na mulher.

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aminhando para mais perto da mulher, Dael fora interrompido por outros três lobos que chegaram na clareira uivando, desesperados. Chamavam os companheiros que outrora lutaram com o jovem. Ao verem um deles morto no chão, bem perto de Amaruna, ferozes, mostraram seus dentes ao rapaz, no entanto, olharam para trás e saíram às pressas. O grupo de guerreiros adentrou na clareira na caça daqueles repugnantes animais. Surpresos ao verem as crianças sãs e salvas, os pais não se contiveram, e largando a imagem de homens durões, banhados em lágrimas, jogaram suas armas no chão e correram para abraçar suas crias antes desaparecidas. Os corpos da ursa e do lobo eram cutucados por alguns dos homens, pois curiosos, queriam saber se ambos realmente estavam mortos. Dael naquele momento ganhara respeito perante todos sem ao menos contar sua

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Um Coração Apaixonado

parte da história, pois estava ele dando mais atenção a outra coisa. — Não ouse se aproximar dela, humano! — gritou em nota agudíssima uma ghárula que descia de um pinheiro — Não atrevam-se a ferir a Mulher Cadente! — Mulher Cadente? Então essa é a mulher de quem aquelas ghárulas estavam falando? — Olhando-a profundamente. — Então quer dizer que ela está realmente viva? — indagava o garotinho contente. — Mulher Cadente? — perguntou um dos guerreiros. — Quem é essa? Por acaso é essa defunta? — indagou outro. — Ela não está morta! — gritou a pequena ghárula que mais lembrava um esquilo de madeira vermelha-escura, com as pontas das orelhas e cauda cheia de raízes. — Está tão viva quanto o sol do verão. Só adormeceu... E nunca mais despertou. — complementava outra ghárula de voz anasalada, esta que parecia um pequeno larício, evidenciava a tristeza em suas palavras. — Chega interrompendo nosso culto diário a Mulher Cadente e agora pretende fazer o que? Vai ferí-la como fez com o lobo? – deixando o medo de lado, a esquilinho de madeira apontava em direção ao animal assassinado. — Eu não vou ferí-la. Só a levarei para um lugar seguro. — Refere-se à Dhélida, aquele lugar imundo? — rindo enquanto subia nos chifres de um dos alces que, corajoso, retornara a clareira.

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— Se é assim que chamam o meu lar, então sim, é para lá mesmo. — ajoelhando-se em frente à adormecida mulher. — Não ouse humano! — falava aquela pequena ghárula, agora apontando um de seus três dedinhos para o guerreiro. Sob os fortes sentimentos que se entrelaçavam no seu coração apaixonado, Dael se ajoelhou em frente à mulher e deu-a um profundo beijo. Não fora um simples beijo. Os lábios dela eram quentes. Como se um vento impetuoso entrasse em suas narinas, Dael caiu para trás pondo suas mãos sobre o peito. Sentira naqueles instantes algo que nunca havia sentido em toda a sua vida. Os demais guerreiros, após tal susto, apontaram suas armas em direção à mulher. O silencio pairou durante alguns instantes. Alguns pinheiros de braços grandes e pés largos se viraram, revelando-se na verdade ghárulas. Como pareciam árvores, resolveram só ficar de costas para a clareira, para que Dael não as percebesse quando adentrara no lugar. Uma a uma virava entoando notas bem obscuras, como se estivessem cantando para dentro de um profundo poço. As ghárulas que pareciam pinhas e esquilos, aos poucos iam surgindo, trazendo consigo melismas agudos e suaves. Misturando com as notas das demais, formaram assim uma bela melodia, bem carregada de lindos arranjos que chegava a impressionar tanto quanto a mulher, que despertara. Aquela era uma perfeita cena a ser contemplada e nunca esquecida pelos homens. — Quem és tu? — levantando um pouco confusa.

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Um Coração Apaixonado

Dael, impressionado, levantou seus olhos para a tão bela criatura que acabara de despertar. — Sou Dael, minha bela, guerreiro de Dhélida, descendente de antigas famílias de Píano. — aproximando-se, ajoelhado. — Mas tu... tu pareces comigo... teus braços, tua pele, teu cabelo... — passando as delicadas mãos sobre algumas mechas do rapaz. — Logicamente, minha bela..., mas antes de tudo, como se chama? — ajudando-a a levantar das rochas. — Lirian... Meu nome é Lirian. — E veio de onde, minha bela... quero dizer, Lirian? — De um lugar distante... Desculpe-me, estou um pouco... Confusa... Minha cabeça... — Não preocupe, levaremos você para um lugar seguro! — Onde estão as outras ghárulas? – andando sem a ajuda de Dael, limpando os olhos. — Estamos aqui, Mulher Cadente… Aos poucos, as outras criaturas assustadas iam saindo de seus esconderijos; por de trás de árvores, das águas do riacho próximo onde mergulharam, de dentro dos arbustos. Estas que pareciam crianças cheias de galhos pelo corpo, traziam consigo como presente a Mulher Cadente, uma canção que dizia:

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Um Coração Apaixonado

Os homens não sabiam se ficavam impressionados com as criaturas ou encantados com a beleza da mulher, derrubando assim gradativamente suas armas no chão. — Oh, minhas amadas ghárulas... abandonar vocês nunca foi minha intenção. Só precisei descansar, minhas amigas... Um longo descanso me foi necessário... — sorrindo enquanto pegava um raminho das doces avelãs amorangadas — E Dael... — mastigando as frutinhas, voltando a olhar para o rapaz — Há outros como vocês nesse lugar? — curiosa, apontava para os outros guerreiros, limpando com a outra mão o canto de sua rosada boca suja das avelãzinhas. — Muitos de nós lá, como em outras terras… — Mais de vocês... então... — engolindo a última fruta do raminho — Certamente não estou sozinha... — sorrindo em meio ao círculo de ghárulas e animais que a veneravam.

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om a saída de alguns homens da aldeia, o medo e a desesperança consequentemente abateram a todos que continuavam em Dhélida, tornando o lugar ainda mais triste. Dias haviam passado e acreditar no retorno das crianças sãs e salvas era coisa improvável. Mesmo com a temperatura baixa, a neve, parecendo se divertir com aquelas pessoas, não dava as caras há tempos. As árvores balançavam ao vento frio cortante desde as montanhas ao norte às proximidades das velhas casas ao sul. As pessoas se aqueciam pondo fogo nas poucas lenhas que ainda restavam em suas casas, tentando poupá-las ao máximo. Aquela foi a noite em que o impossível pairou na região como fosse algo comum. O reflexo da brilhante lua desaparecia no lago a medida que as densas nuvens cobriam o céu. As pessoas mais otimistas, acreditando que uma possível nevasca os afligiria e que pelo menos de frio não morreriam, tampavam as aberturas

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Além Campos

nas paredes que ainda chamavam de janela com os pedaços de madeira surrada. Mabel, uma senhora de idade já avançada, gritava do alto de sua casa, desesperada, pelo teimoso neto Murilo. Com certeza andava ele aprontando com seus amigos. — Murilo! Estás louco? Sei que tua coragem transborda aos montes, e que ao lado de seus amigos deseja sair à procura dos demais desaparecidos, mas também deseja ser devorado por uma ursa amargurada? — gritando da janela com o neto que agora entrava em casa. Era um lugarzinho arredondado, com folhas secas de pinheiros cobrindo o teto, sendo ela na parte inferior do mesmo tamanho e altura da superior, como as tantas outras casas da aldeia. De cara fechada pela teimosia de Murilo, Mabel aprontava-se para fechar as janelas. Forçando a já cansada visão ao longe, avistou algo diferente pelas brechas da cerca da aldeia. Uma luz distante. Logo após o campo, havia a floresta e foi de lá que sentiu a alegria retornando ao coração. Tochas foram avistadas de longe e os sentinelas no portão gritavam pelos demais aldeãos: — Vão em busca de Sírio! — Chamem o Ancião! As crianças, meus amigos, chamem o Ancião! Eram os bravos homens que retornavam a Dhélida depois de uma longa jornada dentro daquele lugar sombrio, agora acompanhados.

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A Fria Dhélida e a Mulher Cadente

Ainda da janela, Mabel, quase berrando, informara aos que ficaram na aldeia sobre a volta das crianças. — Bênçãos sejam derramadas sobre estas, pois agora salvas retornam ao seu lar! — gritava a idosa aos prantos para ela incontroláveis. Os portões da aldeia foram escancarados. Correndo ao encontro dos guerreiros, as mães em agonia, notaram que suas crianças, antes desaparecidas, nos braços de alguns deles repousavam, deixando a cena comovente. Estavam machucadas, mas nada aparentemente tão grave. Já na aldeia, um dos homens explicou que a ursa não fora a responsável pelo sumiço dos travessos, todavia os lobos azuis tiveram maior participação para a desorientação das crianças dentro da parte desconhecida da floresta. Aquela a quem chamavam de Monstro dos Inocentes teve uma diferente atuação na história. Por ter perdido suas crias, certamente desejava vingança, no entanto, por ainda possuir um coração maternal, não teve coragem de ferir outros que lembravam os seus. Por nela ter sido encontrado bondade e misericórdia, fora enterrada dignamente antes de retornarem a aldeia. O lobo morto, porém, fora levado nas costas de um dos homens para, talvez, se tornar roupa de inverno. Ainda em choro, Mabel apertando Murilo pelo sujo braço, informava que seus amigos retornaram sãos e salvos. Sorrindo, viu que o neto não demonstrava alegria, mas sim dúvidas em suas feições.

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AlĂŠm Campos

Depois de o observar seriamente, a idosa tornou o olhar aos homens, e viu que entre eles havia uma pessoa que nunca vira em toda sua vida. Um deles abrindo caminho, disse que durante aqueles dias dentro da floresta encontraram uma pessoa a mais alĂŠm de quem procuravam. Uma mulher havia sido encontrada por Dael e junta a eles levada a DhĂŠlida.

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reflexo da lua desaparecera por completo sobre a face do lago e a neve tão esperada, entretanto não desejada, começava a cair sobre a aldeia. O inverno enfim chegara. As demais crianças que saltavam de alegria pararam a algazarra quando, atônitas, perceberam a figura daquela mulher que, sorridente por trás dos bravos homens, olhava para o céu, contemplando a neve que lentamente caia sobre suas cabeças. “Mas quem é essa?”, “É mesmo uma mulher?”, “Por que ela sorri olhando a neve?”, “Ela veio de Píano?” ; foram as poucas perguntas que fizeram, pois o restante dos aldeãos nem a boca abriam para demais indagações. Curioso, Murilo soltou-se de sua avó e caminhou até aquela desconhecida e estranha mulher. Encostando delicadamente sua mão no braço dela, ela desceu seu olhar — antes

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Lirian

ao imenso céu — ao curioso menino, e com aquele lindo sorriso ainda estampado em sua face, encostou sua aveludada mão no rosto da criança. A multidão abria caminho para Sírio, o Ancião, que caminhava ao encontro de todos. Estava ele muito gordo e velho, seu longo cabelo desgrenhado castanho-prateado despencava sobre o rosto, obstruindo assim parcialmente seus olhos quase brancos. Andava com dificuldade entre suas duas filhas que iluminavam o caminho, cada uma carregando uma espessa vela branca. Mesmo com o pai já idoso, as duas eram bastante jovens. Não eram moças cortejadas na aldeia, mas não por falta de beleza, todavia, por terem aspectos sombrios no olhar e principalmente por serem mudas. Suas mãos não eram como as da estranha mulher que chegara na aldeia, eram mãos fortes, pois suportavam a dor da cera quente escorrendo por entre os dedos. Eram acostumadas a carregar velas acesas dessa forma desde a infância. Na presença da Mulher Cadente, Sírio olhou-a dos pés a cabeça. Estranhando suas vestes, o velho virou-se para os homens que a trouxeram, caminhou até eles e como sempre equivocado, não tardou em falar: — Levem-na de volta e larguem onde a acharam. Certamente não passa de uma meretriz de Píano. — zombando. — Ancião... — olhando-o sem ira — Não sejas precipitado! — criando sobre si uma forte luz, impactando assim todos os aldeãos. Andando em meio aos aldeãos, deixou-os assustados.

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A Fria Dhélida e a Mulher Cadente

Ficaram pasmos na presença daquela que outrora achavam ser uma simples humana. — Não estou aqui para atribulá-los. Pelo contrário. Antes de qualquer coisa, deixe-me apresentar da maneira apropriada. A responsável por tamanha confusão chamava-se Lirian. De acordo com suas próprias palavras, ela era vinda de outro mundo à procura de vidas, realidades e lugares para habitar, pois perdeu o seu antigo lar destruído por seus semelhantes. Chegou ansiosa em Klausen onde sentia que poderia enfim ser sua nova casa. A princípio, não encontrou nenhum habitante com uma aparência física igual a sua, o mais próximo a isso foram algumas ghárulas que possuíam uma levíssima semelhança a de humanos. Ela era chamada de Mulher Cadente por essas criaturas, tal motivo era explicado por ter descido do céu à Klausen. Estabeleceu logo no primeiro dia diálogo e confiança com tais ghárulas e com alguns dos animais da região, aonde mais tarde vieram a venerá-la. Do frio primaveril mais ameno ao outono, Lirian teve com quem passar todas as manhãs e noites, desde as formigas furadeiras aos ursos castanho-escuros, entretanto com a chegada do inverno, naturalmente hibernaram, perdendo assim sua companhia de todos os dias. Sem o que fazer, com quem conversar ou se expressar, encontrou na floresta duas longas rochas próximas ao larício solitário, e sobre elas deitou-se cansada. Caiu em um profundo sono que possivelmente se estendeu durante longos anos, pois Dhélida nem mesmo naquele tempo existia.

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Lirian

Lirian tinha aspetos de uma mulher nos seus vinte e poucos anos, longo cabelo ruivo, coberto por chamas que agora o avivavam, trajada em um longo vestido azul celeste com sua orla parecendo ser consumida por um vívido fogo que não cessava. Usava uma tiara negra em forma V na testa, um cinto dourado repleto de joias vermelhas e amarelas, um fino e extenso pano acinzentado em volta dos braços e dos ombros, cobrindo o seu busto e com as pontas semelhantes a pena de pássaro prateado. Mesmo com uma aparência diferente e magnífica, o fato de agora não existir gravidade em sua volta deixava as pessoas ainda mais boquiabertas em sua presença. Do pano cinza de ponta à outra, do cabelo à orla em chamas não consumidoras do vestido, todos bailavam no ar como se um vento em espiral a envolvesse constantemente. Mostrava perante todos um pouco de sua glória. As pessoas ainda estavam assustadas com a aparição da excêntrica Lirian, no entanto ela, caminhando por entre os homens segurando a mão de Murilo como se dele fosse amiga há tempos, e um sorriso delicado no rosto, parecia não ter interesse em causar espanto. Desejava naquele momento estabelecer uma comunicação com os aldeões da mesma forma que conseguiu com as ghárulas e com os animais. Assim, querendo não mais assustá-los, desfez-se por instantes de seu poder, parecendo novamente uma simples mulher. As crianças passaram a caminhar ao seu lado e seguí-la, revelando assim terem nela verdadeira confiança.

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A Fria Dhélida e a Mulher Cadente

Lirian não quis contar detalhadamente sua história de vida e de como perdeu seu antigo lar, mas propôs ajudar aquela aldeia com o que pudesse, já que agora se dizia fazer parte daquele mundo como uma semelhante. Durante a viagem de retorno, Dael a cortejou incansavelmente, entregando seu coração a tal mulher. Por mais insistente que fosse, Lirian não deu atenção à profundeza de suas palavras, da mesma forma que a de outros aldeãos que também vieram a cortejá-la. Por mais que revelasse certa sabedoria em suas palavras, Lirian não passava uma real imagem de mulher. Suas atitudes para com as crianças, como algumas brincadeiras infantis, sua curiosidade, tudo mostrava que ela não passava de uma menina dentro de um corpo adulto. Ficava explicito a inocência em seus olhos e em suas ações. Depois de chegarem à Dhélida, em meio a agora fama da Mulher Cadente, olhando-a decepcionado consigo mesmo, Dael desapareceu em meio à multidão com o coração despedaçado e mais uma vez rejeitado. Talvez por alguma misericórdia divina, recebeu algo inesperado de Sírio, o Ancião. Durante o agora festejo sob a neve, o medo ao desconhecido desaparecia a medida que Lirian conquistava a confiança dos aldeãos, divertindo-se com as crianças. As que foram encontradas recebiam a atenção devida dos demais, contando em detalhes suas desventuras na floresta. A alegria retornou à fria aldeia de Dhélida, com seus portões escancarados para o mundo, convidando, no entanto, também o mal para dentro de seus limites.

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ão sabiam eles, mas naquela mesma noite os guerreiros que resgataram as crianças foram seguidos discretamente pelos ferozes lobos azuis das montanhas. Aquele a quem Dael por misericórdia cedeu liberdade, aos mancos, reencontrou seus companheiros de bando, deixando Duc, seu líder, ainda mais irado com os humanos. Durante anos, a alcateia veio perdendo integrantes nas caçadas dos aldeãos, onde após matar alguns dos lobos, faziam de suas peles ornamentos para usarem com suas vestes como uma espécie de troféu, mostrando tal poder perante as demais criaturas da floresta, sobrepondo a todos. Mesmo tendo ouvido falar através de seus antepassados sobre os incríveis poderes de Lirian, Duc preferiu abandonar suas crenças na tal mulher, pois em seu coração a sede de vingança falava mais alto. — Estão vendo companheiros? Nunca em minha vida encontrei uma real oportunidade de ataque à aldeia como

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Ataque à Dhélida

essa. — com um maligno sorriso — Idiotas... Alegres, esquecem seus portões abertos! — dando gargalhadas, contagiando, assim, o restante do bando. Duc, o líder da alcateia, era um lobo de pelos ralos em certas partes do corpo, a orelha esquerda cortada como se um pedaço tivesse sido arrancado à força, cicatrizes nas patas e no focinho; características adquiridas depois de lutar com o antigo líder do bando a fim de tomar as rédeas da alcateia. Sendo ele bastante sádico e astuto, arquitetou com seus companheiros o plano de adentrar na aldeia e atacar aos aldeãos, de preferência as crianças, pois ele dizia que as matando, também matariam seus pais por dentro. — Não querendo me opor às ordens do senhor, grande Duc, mas... — interrompeu um dos lobos — Como vermes que festejam sobre a carne de um cadáver, seu banquete, assim também certos questionamentos nos consomem... – olhando para seus companheiros. — Conte-nos qual deles consume-te Igmu, meu amigo... — com desdém no seu sorriso. — Atacar a aldeia nesse... talvez “melhor momento”, na verdade não nos levaria a morte? Os guerreiros acabaram de retornar à aldeia, ainda estão armados... Com certeza ainda estão com o sangue quente. Deixamos nossas companheiras e filhotes para trás, mas… — “Mas”, “mas”, “mas” o que Igmu? Quer voltar com o rabinho entre as pernas? — desaparecendo seu irônico sorriso — Suas companheiras e filhos darão continuidade ao

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nosso sangue — caminhando por entre os lobos — E Igmu, meu caro... — indo para ao lado do animal, aproximando seu focinho na orelha do subordinado — Parabéns, pois acabara de pôr mais uma vez minha liderança em questionamento aos demais... Dessa vez, quando voltarmos para as tocas, lembre-me de puni-lo. Se eu tiver misericórdia até lá, talvez não ofereça teu cadáver a tais vermes que citastes. — extinguindo definitivamente seu sorriso — O sangue ao qual desejo sujar-me no momento não é um dos nossos, — mirando o olhar na aldeia — São os deles! — revelando suas presas sedentas de sangue humano. Caminhando sorrateiramente, viram que não havia sentinelas guardando a cerca. Não era muito alta, todavia impedia a entrada de animais de porte mediano e grande, como lobos, raposas, ursos ou alces. Suas finas brechas tinham largura o suficiente para adentrarem pequenas ghárulas ou esquilos de cauda-longa, mas estes não se atreviam a tal coisa. A aldeia — em comemoração — convidava a todos para o festejo. Não havendo ninguém no portão, a entrada continuava aberta. Vagarosamente os animais adentraram no lugar vendo as pessoas distraídas com a atual festa em meio à neve. Os lobos miraram em suas vítimas e após o uivo assustador de Duc, logo resolveram atacar. Correram e se separaram, cada um ao encontro de diferentes vitimas, mais especificamente crianças. Como fossem indefesos esquilos de cauda-longa prestes a serem devorados, gritaram e correram desesperados.

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Ataque à Dhélida

Lirian, ouvindo os gritos de terror, fechou os olhos, soltou-se de Murilo e das outras crianças que a seguravam pelas mãos e se virou. Abrindo os olhos, vira Duc correndo ao encontro do Ancião de Dhélida, e em questão de segundos, esticou sua mão direita e em tom mais grave, falou: — Não ouse atacar, lobo imundo! — parando instantaneamente todos os animais que adentraram na aldeia — Lembro-me perfeitamente que no passado, um dos teus também almejou me vitimar. — voltando sua voz ao suave e normal agudo, pondo as mãos sobre o busto, mas ainda sim deixando os animais paralisados — Vi o que fizeram àquela ursa... Pobre, mas corajosa ursa. — mudando sua forma de olhar — Meu coração arde desejando despedaçá-los neste exato momento – sentindo o ódio tomar conta de seu ser. — Perdão minha senhora, mas agora aliastes a humanos? – gargalhando ironicamente. Com um impacto mais forte do que quando criou a luz e chamas sobre si em sua chegada, pessoas caíram e outras se sustentaram para não desabarem sobre o solo já coberto de neve. Os minúsculos floquinhos de gelo no ar detiveram-se, o fogo nela reavivou e novamente seus cabelos a bailar. Sua imagem de doce e inocente mulher desaparecia à medida que aproximava-se de Duc. Os aldeãos, receosos com que atitude Lirian tomaria naquele momento, começaram a se afastar deixando um espaço aberto entre ela e o líder da alcateia. Murilo, reprimindo suas lágrimas de medo, tentou reencontrar a antiga e vasta coragem em seu coração. Caminhou até a mulher

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A Fria Dhélida e a Mulher Cadente

em frente ao lobo, deixou uma das lágrimas escapar, segurou a mão de Lirian e disse: — Não o faças mal! — chorando com as mãos trêmulas. Lirian foi retornando ao seu antigo eu, arregalando os olhos vendo sua real situação em meio a aldeia. Dissipando todo o fogo, deixando a neve e seus grandes cabelos ruivos despencarem do ar, baixou sua outra mão e disse: — Imagino que vem tramando esse ataque há um bom tempo, então... Por sua deplorável astúcia, eis aí covarde, na presença dos teus, castigo-o não só a ti, mas a todos os teus de sangue e de alma! — disse Lirian seriamente ao líder dos lobos, sem querer ouvir o seu lado da história. Derrubados com extrema força no chão, todos da alcateia agora nada falavam, pois como uma leve punição dada pela própria Lirian, eles perderam a capacidade de se expressar com palavras. Castigados, teriam que, a partir daquele momento, se contentar com seus uivos incompreensíveis aos ouvidos humanos. Duc, com palavras tramara o ataque, e agora sem elas, retornava para o restante da alcateia, carregando agora um castigo hereditário a todos os lobos azuis da região. Assombrados, olharam entre si e desabaram para a floresta feito loucos. O líder da alcateia uivou irado, no entanto percebendo estar sozinho e agora crente em Lirian e seu poder, deu com o rabo entre as patas e debandou com os demais. Sua vergonha seria companheira do castigo dado ao seu pecado.

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Ataque à Dhélida

Lirian, talvez esperando aplausos, permaneceu parada em meio às pessoas. O medo estava estampado em suas faces. — Sei que não és meretriz, mas mulher, realmente tu és? — indagou o Ancião sustentado pelas filhas, ambas com as mãos e vestes sujas, causadas pela cera das velas que antes seguravam. Por antes passar certa imagem e agir de outra forma, tomada pelo ódio momentâneo, soltou-se de Murilo, deu-o um profundo abraço e saiu da aldeia da mesma maneira que adentrara pelos seus portões. Sozinha, Lirian banhada de vergonha e horror de si própria, correu em direção a escura floresta, passando por entre os imensos abetos e larícios, se perguntando constantemente: — O que sou eu? — passando agora a se desconhecer.

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irian não mais retornou para a clareira, onde das duas rochas cobertas de musgos fora despertada pelo apaixonado Dael. Viajou por todo o mundo tentando compreender o seu verdadeiro eu. Sete longas gerações se passaram desde sua rápida estadia em Dhélida. Seu poder despertava gradativamente, conhecendo-o na medida em que se tornava uma sábia e real adulta. Quanto mais conhecia o mundo, mais perdia a inocência em seu coração, entretanto a bondade, nele permanecia intacta. O ódio passageiro, quase incontrolável, não mais a testava, conseguindo passar a imagem de quem realmente era e desejava ser a demais civilizações e pessoas que conhecia. Passou a ser venerada nas regiões em que pisava como uma perfeita deusa. Sua fama repercutiu pelos quatro ventos de Klausen e pedidos de ajuda chegavam a ela aos montes. Aos poucos, passou a abraçar toda a causa colos-

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Imura e Ammi

sal, desejando levar solução às pessoas, ghárulas e animais aflitos por todo o mundo. Conheceu os campos verdes de Gramiall, em Galaleades, foi presenteada com gardênias multicoloridas, pois muitas nos dedos das ghárulas-meninas de Florância brotavam, em Piágoras. Dançou na floresta repleta de amendoeiras cantantes de Balsano, nas Ilhas Rompidas. Banhou-se no néctar das raras cerejeiras do oásis do quente deserto de Eptágaro, em Saramago. Comeu uvas de ouro roxo, que dos cabelos das ghárulas de Coasba nasciam, nas Ilhas Levianas. Mudou a vida dos lentos e quase extintos furões de Shandéria, em Hasfas. Expulsou os pássaros carnívoros da vila de Maldriota, na Terra de Uzes, e fugiu dos gigantes e apaixonados homens de Joar, em Sobrehmar. Desde que deu início à sua longa jornada pelo mundo, ela não mais havia pisado em solo dhélidrio, pelo menos a vergonha e arrependimento não permitia tal coisa. A ajuda que prestava por todo Klausen a desgastava. O termo Deusa que adotou e tanto amava, a ela tornou-se sinônimo de sufocamento. Cansada, rejeitou tal adoração, se isolando do mundo nas regiões de Polemia, uma imensa floresta de clima quente e úmido na hoje monarquia de Trunna. Sabendo que não era uma simples humana, os animais e as ghárulas das variadas árvores da região atenderam ao pedido de Lirian de não a incomodarem. Em volta do doce cântico harmonizado daquelas criaturas em intenso trabalho na floresta, deitando-se sob a

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sombra de uma gigantesca e verde mangueira, Lirian pôs as mãos sob a cabeça e lentamente fechou seus olhos, se desvinculando aos poucos da realidade, caindo em um profundo sono como no passado. Dezenas de verões sobrevieram desde o dia do seu merecido isolamento, entretanto, seu repouso não durou para sempre, pois seria novamente despertada. — Eles estão vindo! Aqueles monstros estão vindo! — gritava uma ghárula, sem notar a mulher adormecida coberta de musgos e folhas secas atrás do grosso caule da árvore — Eles querem nos matar! — segurando com suas garrinhas na mangueira onde Lirian deitada estava. Todas as músicas da floresta, repleta de árvores, ghárulas e animais, foram silenciados. O calor da tarde estranhamente ganhava intensidade. — Onde está Ammi? A minha irmã, onde ela está? Onde ela está? — olhando para os lados. — Imura, estou aqui. Eles já estão se aproximan... — caindo sobre as folhagens secas. Da direção que veio a outra ghárula, um grande e robusto homem, trajando uma túnica dourada sustentada por três cintos no peitoral e cintura, com uma imensa pele de urso castanho-escuro nas costas, abriu caminho com uma foice na mão esquerda e um martelo na direita. — Então pensam que podem fugir suas endiabradas? Acham que esses gritinhos agudos me assustam? — pegando a que havia caído no chão pelo fino pescoço. — Não me faças mal, humano, te suplico!

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Imura e Ammi

— Então diga-me, onde está a Mulher? — Solta ela! — gritava a outra pequena que seguravase no caule da árvore. — Diga-me onde está para que Nela eu possa dar um beijo... diga-me sua praga! — apertando tão forte o pescoço da ghárula, partindo-o sem misericórdia — Ups... Degolei mais uma! — rindo enquanto passava na língua o doce sangue da pequena ghárula — Tão gostoso quanto as mangas que vocês se alimentam! — sorrindo. — Ammi! Não! — chorando em desespero, vendo a cabeça da irmã de árvore rolar pelo chão — Seu monstro! Seu monstro! – pulando no solo, apanhando algumas pedrinhas sujas de terra e jogando no assassino. — Poupe-me de escândalos! — pegando-a também pelo pescoço — Ou diz onde Ela está, ou morrerá como essa outra endiabrada! — apanhando a cabeça de Ammi do chão, mostrando-a para sua irmã. — Ammi... Minha irmã... — ao choro intercalado por soluços. — Não vai contar? Então o que posso fazer? — apertando sem dificuldade o fino pescoço de Imura. — Por favor, humano, não faça isso... por favor... — perdendo o fôlego — Por favor! — dando um último e agudíssimo grito. Em vez de um profundo e sentimental beijo dado por um apaixonado homem, Lirian dessa vez fora despertada bruscamente pelo grito por misericórdia de Imura. Poucos segundos depois de abrir seus olhos — um tanto desnorteada —, tirou todas as folhas secas e raízes que

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cresceram sobre seu corpo. Lirian presenciou a pequena ghárula de mangueira, uma criaturinha franzina, que lembrava a própria árvore, de grandes olhos amarelos, antes vívidos e brilhantes, agora derramarem lágrimas de desespero nas mãos daquele estranho homem barbudo e de longos cabelos ruivos. — O que houve? Quem é você? O que está fazendo com essa ghárula? — perguntou assustada, querendo acordar definitivamente e trazer o seu eu ao atual presente. — Olha o que você fez, sua imunda! — jogando a ghárula agonizando no chão — Você acabou despertando Lirian! Sabe quanto tempo eu passei planejando despertá-la, sua imunda? — empunhando seu martelo que havia jogado no chão — É por isso que criaturas como vocês são mortas sem um pingo de misericórdia! — esmagando a pequena ghárula com a arma, jorrando sangue amarelo em várias direções.

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irian ficou perplexa agora suja pelo sangue de uma inocente. Até então, o que conhecia de seus poderes, poderiam ser aplicados em vida, todavia, a vida que fora ceifada, essa ela não sabia como trazer de volta. — Por que fizestes isso? — caindo ajoelhada no chão perante a ghárula. — Minha Deusa, eu, Demétrio, passei toda minha vida desejando Te conhecer. Como fez meu antepassado Dael dando-te um beijo, assim também ansiei por esse momento. — Por que isso? — com os olhos cheios de lágrimas. — Depois que Dael salvou as crianças na floresta, outrora protegidas por Amaruna... — passando a mão sobre a pele do animal em suas costas — E deu-te um beijo, não fora um simples beijo. Ele de certa forma puxou para si parte do teu poder... Algo voltado para o fogo! — com um brilho nos olhos. Se ajoelhando perante a mulher, continuou:

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Massacre em Polemia

— Ele teve seu coração despedaçado após Te oferecer, mas como Tu eras praticamente uma criança, rejeitastes cair em amores pelos homens, preferindo se divertir com as outras demais. — pondo sua mão direita sobre o coração — Ele ganhou fama minha Senhora, fama! Tudo por sua bravura na floresta. Conquistou o respeito na aldeia, além de receber do próprio Sírio, aquele antigo Ancião, suas duas filhas em casamento. E olha que pelo o que fiquei sabendo, elas não eram tão belas quanto Você. Elas tinham mãos grosserias minha Deusa, cheias de cicatrizes por causa de velas... — dando gargalhadas — Com uma delas, a Avve, ele teve seu caçula, de quem sou descendente... Entretanto... Não adquiri tal habilidade com fogo como alguns dos meus antepassados e irmãos. — decepcionado. Enchendo o peito, Demétrio se orgulhava do passado. — Dhélida cresceu minha Deusa, ah, como cresceu. Por ter sido fiel ao meu sonho de Te conhecer e Te despertar, me viam como um louco, minha Deusa, como um louco! — dando gargalhadas em frente a Lirian — Desejo tomar posse daquelas terras, minha Senhora... Quero espalhar esse poder da mesma forma que alguns dos meus familiares fazem até hoje! — batendo com a mão suja de sangue em seu peito — Agora, minha Deusa, oh grande Lirian, talvez eu não precisasse Te acordar... Basta me dar do Teu beijo para que eu sinta o poder que agora do meu povo faz parte! — limpando as lágrimas do rosto de Lirian. A intensidade do calor aumentou, surgindo fogo em meio às árvores. Demétrio chegara à Polemia ao lado de

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A fria Dhélida e a Mulher Cadente

alguns companheiros que também saíram de Dhélida, no entanto, diferente dele, alguns possuíam tal habilidade com o fogo. Eles eram os responsáveis em criar e manipular as chamas que destruía a floresta, tudo baseado na energia dentro de si. Com as mãos, incendiavam as terras sem piedade, como se a eles elas tivessem feito algo contra. Gigantescas ghárulas mamutes corriam espalhafatosas em meio as chamas, em profundos e melancólicos cânticos.


Massacre em Polemia

Por onde elas passavam, destruíam as imensas árvores — talvez milenares — e sem perceberem, agoniadas, esmagavam os cadáveres de suas irmãs que jaziam sobre o solo. Tudo culpa de estranhos. Estranhos em territórios alheios. — Então só desejas o meu beijo? — enxugando as lágrimas. Sorrindo, limpou o rosto sujo de terra e sangue, ambos causados pelas mãos imundas de Demétrio. — Isso Mãe de Todos, só o Teu beijo me tornará um líder por completo! — apaixonado. Lirian, ainda sorrindo, acariciava o rosto sujo de Demétrio. Aproximando ele dos lábios da Mulher Cadente, preparava-se para sentir imenso poder. — Se é o meu beijo que anseias por toda a vida, meu caro homem... — beijando-o. Demétrio sentiu o mesmo vento impetuoso que Dael sentira naqueles tempos. Ansioso por tal momento, sua respiração acelerada ficou ainda mais constante e aos poucos descontrolada. Lirian levantava seu rosto castigado enquanto prolongava o tão sonhado beijo. Seus lábios, antes quentes, passaram a ficar insuportáveis. As veias de Demétrio dilataram e seus olhos foram impulsionados para fora. Com o grito preso na garganta e sem forças para empurrá-la, o tão bruto homem fora lentamente incendiado pelo beijo da bela mulher, e sua pele lançada a brisa quente, se dissipando assim por completo. — Então sinta-se satisfeito com ele, humano miserável! — limpando os lábios com as mãos sujas de sangue ghárulo.

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A Fria Dhélida e a Mulher Cadente

Irada com tamanha selvageria causada por Demétrio e sua legião de homens, Lirian passou de sorridente e feliz criatura para uma vingativa e aparente mulher sem coração. O ódio que achava não mais conter, foi derramado sobre todos aqueles que em Polemia trouxeram destruição. Da mesma forma que aqueles homens tiraram a vida dos animais que pelo chão jaziam, e das pobres ghárulas desfiguradas — que cessadas foram suas canções —, Lirian também ceifou a vida de todos aqueles invasores como punição a tal crueldade. Conteve as chamas na floresta em meio a grande destruição. Com os restos das pequenas ghárulas, Imura e Ammi, mortas em seus braços, Lirian em lentos rodopios levantou voo de Polemia ao céu. Deixando cair suas lágrimas de profunda tristeza, espirais começaram a se formar e as chamas coloridas na orla do vestido a ganhar intensidade. Em soluços, viu o tamanho estrago causado pelos descendentes daqueles há quem um dia desejou ser semelhante. Lançou os olhos molhados de lágrimas ao céu como olhou para a neve na sua chegada em Dhélida, não contendo novamente o choro.

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oando ainda mais alto ao imenso e agora triste céu, em degradê azul-alaranjado da tarde, foi ao encontro da distante lua para lamentar seus feitos. Ultrapassando as poucas e brancas nuvens, com o céu tornando-se mais escuro à medida que de Klausen se distanciava, Lirian com seus brandos pés tocou o solo da lua, levantando lentamente a poeira branca-acinzentada do lugar. Ajoelhando-se, pôs as ghárulas irmãs sobre o chão e com as suas próprias e delicadas mãos fez uma cova em terra, sepultando ali as duas pequenas inocentes. Caindo sua última lágrima de tristeza sobre o sepulcro, Lirian abriu os olhos com ar de decisão e desceu à Klausen a fim de lançá-los seu castigo. Lirian em profundo ódio desfigurou novamente sua imagem, de boa e delicada criatura que ajudara em Dhélida, a uma irada e descontrolada mulher. O fogo reacendeu

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O Sepulcro, as Lágrimas e o Castigo

em seus cabelos e em partes das vestes, e a gravidade novamente ao seu redor disse adeus. — Vocês por si só, aos outros tornaram-se perigo... — respirando fundo, esticando suas claras mãos. Se preparando para talvez exterminar os humanos da face de Klausen, o ódio de Lirian deu lugar à lembranças... Boas lembranças. Estando ela agora confusa sobre o que fazer como punição, lembrou das crianças que foram ajudadas pela Amaruna. Lembrou o que a pequena garotinha, antes desaparecida, lhe contou: “Amaruna foi uma boa mamãe, tenho certeza disso. Os homens da aldeia é que estavam errados pelo o que fizeram aos ursinhos. Nunca farei isso com nenhum animal, Lirian, nem com as ghárulas... eu gosto das ghárulas. Elas cantam muito bem. Quando eu for grande, vou ser diferente deles em Dhélida!” Recordando, então, Lirian chegou a uma conclusão. — Pelo amor que também tenho às tuas inocentes crianças, não destruirei a humanidade. Não tomarei meu poder involuntariamente roubado por Dael, ao qual dele descendeu em alguns humanos. Dele, homens não trarão somente destruição, também virá justiça... espero que também venha a justiça! — respirando fundo, tentando acreditar em suas próprias palavras — Todavia, não permitirei que compartilhem mais esse poder pelo restante do mundo. Há lugares que certamente não conhecem tal poder, então, que mergulhados no desconhecido permaneçam!

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A Fria Dhélida e a Mulher Cadente

Com movimentos de quem agredia alguém no ar, ela partiu todo o gigantesco continente de Bernos em diferentes partes. Como um jarro de vidro lançado contra a parede, resultando em cacos espalhados pelo chão, assim tornou-se Klausen. Toda a longa porção de terra em diferentes partes fora dividida, tornando-se mais tarde os grandes países que hoje formam o tal mundo. E assim pairou seu castigo.

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eza ainda tais contos — aqui juntos e resumidos —, que logo depois de dividir as diferentes regiões em longínquas partes, Lirian causou um maior rebuliço. Tremores de terras, civilizações sendo divididas, tudo aquilo duraram dias. Distante esteve de Klausen. Na lua preferiu permanecer contemplando as duas pequenas plantas – sem água, tampouco oxigênio – que estranhamente germinaram no solo lunar, sobre o túmulo das duas pequenas ghárulas ali enterradas. Lirian, com o coração em mãos, resolveu dá-las seu último adeus. Pouco preocupada com sua vergonha do passado, retornou ao seu início, na antiga e ainda existente região de Dhélida. Vira de longe, alces, ursos e outros animais, além de ghárulas, entrarem e saírem da cidadela como se deles nunca tivessem sido inimigos, acreditando que os que permaneceram na aldeia, enfim se tornaram justos e pacíficos.

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O Fim e o Início

Indo ao encontro da clareira na floresta, parou em um pico da montanha e contemplou a atual cidadela de longe, sob a agora alvorada. Adentrou na floresta chamando a atenção dos habitantes, sendo ela uma lenda viva. Encontrou as duas antigas rochas musgadas, bem em frente ao ainda vivo e mediano larício, e repousou seu corpo. Vira um grande buraco no chão, outrora túmulo da ursa Amaruna. Lirian não sabia, mas naquele passado, dias após o reencontro com as crianças, alguns dos guerreiros que enterraram a ursa, ali voltaram e retiraram os restos do corpo do animal ainda não consumidos pelos vermes da terra. Dela, fizeram um traje com sua pele e pêlos, e outros acessórios com seus ossos, lembranças do passado, para que suas futuras gerações nunca esquecessem a dita história. O traje feito com aquela a quem chamaram de Monstro dos Inocentes foi passado de geração a geração, possuída pelo designado Ancião de Dhélida. Dael fora um destes, e logo após sua morte os demais usaram e repassaram em sinal de respeito a valente Amaruna no passado. Sendo uma valiosa relíquia, entretanto, fora roubado e servira de adorno e “honra” a Demétrio, o verdadeiro monstro dos inocentes. Lirian, a algumas ghárulas e animais contou de tudo um pouco que viveu, aprendeu e se arrependeu. Sendo todas presentes verdadeiras testemunhas, contaram aos demais que nasciam o que ainda hoje muitos não esquecem e se orgulham de repassar as futuras gerações.

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A Fria Dhélida e a Mulher Cadente

A bela mulher ao sono profundo novamente retornou, desaparecendo misteriosamente da face de Klausen, tornando-se a lenda ou verdade mais contada e discutida de todos os tempos. Muitas evidências da passagem da Mulher Cadente existem pelo mundo, entretanto, sua história por lá chegou ao fim. Abriu-se assim os grandes portões para o novo início da humanidade em Klausen. Sua vida foi e é usada como exemplo para as demais, pois sendo herdeiros da Mãe de Todos e de Dael, a quem indiretamente fora abençoado, devem aceitar as responsabilidades de possuírem um poder ou habilidade como Lirian fez no passado. Diferente do que alguns liriânicos mais tradicionais pregam e defendem com unhas e dentes, a excêntrica e magnífica mulher que causou tamanho reboliço, teve sim seus arrependimentos desde sua chegada. Todavia, da mesma forma que aprendeu, não com seus pecados, e sim com sua paixão aos que poderiam lhe ser semelhantes, muitos — desde homens à ghárulas — usam sua imagem como referência para também aprenderem e precaverem futuros erros e arrependimentos, para juntos enfim, construírem um Klausen melhor.

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Este livro foi composto com a fonte Garibaldi, desenhada por Henrique Beier. Impresso em Fortaleza, 2015.




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