arte como elemento catalisador urbano — Arnon Lintz

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capa: In Motion — Antonio Dias, 1970



arte como elemento catalisador urbano Arnon Lintz

orientação: Masao Kamita ARQ1109 — PUC-Rio 2018 laboratório II — Ana Luiza Nobre e Masao Kamita



Operários, Tarsila do Amaral. 1933

A cidade é uma realidade plural e multifacetada, um fenômeno polifônico e polissêmico, um espaço povoado por uma multiplicidade de imagens, cores, sons, linguagens e informações, do qual emerge a diversidade. É uma materialização de momentos históricos e modelos culturais, que articula questões e problemáticas sociais, políticas, econômicas ideológicas.1


o pós modernismo e a nova lógica cultural — A arquitetura moderna viveu seu apogeu e declínio no pós segunda guerra. A destruição de cidades européias e japonesas nos conflitos, e consequente necessidade de reconstrução, abriram espaço para que as teorias modernistas formuladas no período pré guerras fossem acessadas e utilizadas, pois a demanda era imediata e não havia tempo para novas discussões. A proposta estética modernista foi massivamente difundida, porém, a escassez de recursos financeiros e de materiais provocou uma simplificação de seus elementos tecnológicos. Assim, no fim da década de 1950, começaram a surgir divergências internas no movimento, quando o arquitetos como Louis Khan e Phillip Johnson mostraram discordância da postura excessivamente dogmática dos princípios modernistas. O conjunto habitacional Pruitt-Igoe, baseado nos ideais modernistas, foi construído na década de 50 em Sant Louis, nos Estados Unidos, com o objetivo de controlar o crescimento pelo qual a cidade passava nos últimos anos. Em decorrência do isolamento do local em relação ao centro da cidade, a falta de manutenção e cuidado, segregação racial, falta de assistência e até mesmo alguns erros de projeto, o Pruitt-Igoe sofreu um processo de marginalização e consequente aumento da criminalidade. Porém, seu fracasso passou a ser associado unicamente a sua arquitetura. Sua demolição, em 1972 — coincidindo com o momento em que se contestava os princípios do modernismo —, é considerado pelo historiador Charles Jencks como o exato instante da morte da arquitetura moderna.


1. 2. 3. Pruitt-Igoe


Denise Scott Brown, Las Vegas. 1966


‘’The fact that many so-called modern architects still go around practicing a trade as if it were alive can be taken as one of the great curiosities of our age” Críticos à escala monumental e impessoalidade do modernismo ganharam força nos anos 1960, através de figuras como a socióloga e ativista política Jane Jacobs, e o arquiteto e matemático Christopher Alexander. Em 1970, as ideias de Jencks questionando os valores do International Style se popularizaram. No mesmo contexto, as idéias do CIAM, de Le Corbusier e de outros arquitetos do alto modernismo foram perdendo cada vez mais espaço, de acordo com o surgimento de diversas outras possibilidades. O livro Learning from Las Vegas, de Robert Venturi e Denise Scott Brown, traz em tom irônico críticas explícitas à arquitetura moderna, considerada dogmática e utópica. O argumento central é que arquitetos poderiam aprender muito com o estudo das paisagens populares comerciais, mais do que com a perseguição de ideais doutrinários teóricos e abstratos. Assim, surge uma série de novas propostas arquitetônicas designadas como arquitetura pós moderna, com o auge dos anos 1970 e 80, cujo objetivo era estabelecer crítica e romper com a arquitetura moderna. Torres de vidro, blocos de concreto e lajes de aço, estética modernista que antes parecia prestes a dominar todas as paisagens urbanas, foram progressivamente sendo substituídas por blocos, torres, ornamentos, praças medievais, fábricas e armazéns renovados, e paisagens de todos os tipos, tudo em nome da defesa de um ambiente urbano mais satisfatório.


O pós-modernismo apresentou também uma forte ligação com os espaços comerciais, o que fez o estilo ser associado a nova cultura do consumo, representando valores passageiros e menores. Aldo Rossi, arquiteto e teórico italiano, preocupou-se na relação entre o novo projeto e os edifícios existentes, acompanhando escala, altura e modulação destes. Esta postura de congregação entre o novo e o antigo convencionou se chamar de contextualismo. A valorização do usuário na elaboração dos projetos passa a ser protagonismo na concepção e execução das obras arquitetônica. Desta forma, o arquiteto deixa de ser impositor de seu trabalho para se tornar compartilhador de sua obra com o cliente, surgindo dessa troca uma arquitetura mais humana e de elevada diversidade cultural. Não se pode afirmar um final para o pós modernismo, como ocorre no modernismo. Muitos autores consideram que ainda vivemos na pós modernidade, mas na arquitetura, no entanto, é possível dizer que nos anos 90 o pós moderno perdeu forças. No ano 2000, na 7ª bienal de arquitetura de Veneza, que teve como tema “less aesthetics more ethics” — menos estética mais ética —, o pós modernismo mostra não mais sustentar suas questão em face das grandes transformações recentes, como globalização, novas tecnologias e concentração urbana.


A partir da década de 90, define-se uma nova concepção do atual estágio da sociedade, onde compreende estarmos vivendo numa era onde a cultura se torna o novo capital. Nessa nova versão expandida e atualizada do velho mundo, não mais se trata de ver a cultura como expressão relativamente autônoma da organização social, mas sim de entender que, nesse novo estágio do capitalismo, a lógica do sistema é cultural. As cidades não mais se movem somente pela lógica econômica e concentram-se também na produção e propagação da cultura e do conhecimento, deixando de ser apenas marcos financeiros e políticos e querendo ser vistas como marcos culturais. Essa nova era é identificada como o pós-modernismo, que atua como uma lógica implícita em toda a produção cultural — video, cinema, literatura, arquitetura —, que surge com a transformação do sistema social capitalista em direção ao capitalismo tardio, ou, mais popularmente, a “globalização” e a “terceira revolução industrial”. 2 O efeito da globalização trouxe para as cidades uma crescente preocupação com a qualidade da sua imagem, provocando uma reação social e cultural no espaço público, esquecido no período pós II Guerra Mundial. A partir da década de 70 e, sobretudo, na de 80, o espaço público deixou de ser apenas o espaço livre que resultava da implantação de um edifício e o espaço viário, assistindo-se à redefinição desses espaços urbanos nas áreas centrais e, posteriormente, nas áreas de crescimento.


A reestruturação e dinamização da cidade atinge o seu auge com a edificação de equipamentos dedicados à cultura, vistos como geradores de valores socioculturais, sendo capazes de renovar a imagem da cidade, estabelecendo-se como marcos arquitetônicos. O espaço público por eles gerado estabelece uma ligação com a rede de espaços públicos urbanos e reabilita as carências do entorno, gerando uma melhoria da infraestrutura urbana. Estes efeitos conduziram a um processo de revalorização dos espaços públicos como indicadores de qualidade urbana. Deste modo, a cidade contemporânea traz consigo novas realidades e novos usos para os espaços públicos urbanos, considerando a integração de distintas funções de vida coletiva e a criação de lugares onde as pessoas possam reunir. Desenvolveram-se, assim, sistemas de espaços públicos, capazes de costurar a malha urbana através das “clareiras 3” formadas. 4

vista aérea de Paris, com o Beaubourg em primeiro plano


a cidade — Segundo Aldo Rossi, a cidade é entendida como uma arquitetura. Arquitetura essa não somente imagem visível da cidade e seu conjunto de arquiteturas, mas também arquitetura como construção. Construção da cidade no tempo, ao dado último e definitivo da vida da coletividade: a criação do ambiente em que esta vive. “Entendo a arquitetura, em sentido positivo, como uma criação inseparável da vida civil e da sociedade em que se manifesta; ela é, por natureza, coletiva.” Ao descrevermos uma cidade, ocupamo-nos predominantemente da sua forma; essa forma é um dado concreto que se refere a uma experiência concreta. Percebe-se que a arquitetura não representa mais que um aspecto de uma realidade mais complexa. Ao levantarmos questões sobre a individualidade e a estrutura de um fato urbano singular, surge uma série de perguntas cujo conjunto parece constituir um sistema capaz de analisar uma obra de arte. Ambos os elementos ao serem postos em análise dizem respeito à uma construção na matéria, e não obstante a matéria. São condicionados e condicionantes. Esse caráter artístico dos fatos urbanos está bastante ligado à sua qualidade, ao seu “unicum”, portanto, à sua análise e definição. Tome-se um fato urbano qualquer, um museu, uma rua, um bairro. Sempre será uma experiência possível apenas para quem tenha


percorrido aquele museu, aquela rua, aquele bairro. O conceito que você tem de um fato urbano sempre será diferente do tipo de conhecimento de quem vive esse mesmo fato.

como a arquitetura pode se tornar um fato urbano coletivo? “A cidade é a memória coletiva dos povos; e como a memória esta ligada a fatos e a lugares, a cidade é o “locus” da memória coletiva.” Os acontecimentos e fatos urbanos estão atrelados à concepção de uma espécie de parâmetro de qualidade. Não se definem por sua função, mas por sua forma e papel que assumem na memória coletiva. Assim, tratando da arquitetura da cidade, Aldo Rossi refere-se ao “locus” como sendo o princípio característico dos atos urbanos; o “locus”, a arquitetura, as permanências e a história serviram para tentar esclarecer a complexidade dos atos urbanos. O Locus define um lugar, não materialmente, mas num campo do imaginário. Valoriza o juízo a partir do sítio, não necessariamente contextualista, mas levando em consideração as condições do campo em que se aplica.

Genius Loci (espírito do lugar) x Zeigeist (espírito do tempo)


Segundo Christian Norberg-Schulz, genius loci tornou-se uma expressão adotada pela teoria da arquitetura para definir uma abordagem fenomenológica do ambiente e da interação entre lugar e identidade. A expressão diz respeito, portanto, ao conjunto de características sócio-culturais, arquitetônicas, de linguagem, de hábitos, que caracterizam um lugar, um ambiente, uma cidade. Indica o “caráter” do lugar. O termo é abordado por Aldo Rossi num contexto em que se refere à preocupação com o local e o entorno do terreno das suas futuras construções. Enfim, a memória coletiva se torna a própria transformação do espaço, a cargo da coletividade. É provável que esse valor da história, como memória coletiva, entendida como relação da coletividade com o lugar e com a ideia dele, permita ou ajude a compreender o significado da estrutura urbana, da sua individualidade, da arquitetura da cidade, que é a forma dessa individualidade. Dessa forma, a união entre o passado e o futuro está na própria ideia da cidade, que a percorre tal como a memória percorre a vida de uma pessoa e que, para concretizar-se, deve conformar a realidade, mas também conformar-se nela. E essa conformação permanece em seus fatos únicos, em seus monumentos, na ideia que temos deles. Se as formas urbanas possuem esse forte significado, o “genius loci” que rege o lugar não resistiu, no entanto, às transformações operadas pelas mudanças dos aglomerados urbanos contemporâneos, as quais romperam com os elos que nos uniam ao passado e a seus significados.


A simbologia possível nesse novo mundo desencantado foi considerada pelas técnicas de linguagem e comunicação, como símbolos esvaziados de consumo global. A crise da subjetividade e sua correlata crise da “civitas” abortaram precocemente essas tentativas de atualização e ressignificação dos símbolos. A fragmentação da cidade, mais que um desenvolvimento interno da forma urbana, a superou como realidade técnica e social. Percepção, símbolos e representações urbanas têm agora que ser pensados a partir das novas formas de sociabilidade e da emergência do “cultural” como fenômeno central do capitalismo contemporâneo. 5


Neste sentido — e tendo em vista a renovação arquitetônica e revitalização econômica —, foi escolhida em 1969 a esplanada de Beaubourg, em Paris, como o lugar para a construção de um novo centro cultural multidisciplinar. O projeto foi selecionado mediante um concurso idealizado pelo então presidente da França, Georges Pompidou, com autoria dos arquitetos Richard Rogers e Renzo Piano. O impacto sobre a população foi enorme, tanto pelo desenho e decisões projetuais quanto pelos próprios arquitetos, ambos quase desconhecidos na época. A implantação, que “entrega” metade do terreno para a cidade, gerando uma ampla praça em uma região densa de Paris, é associada como uma das razões que fez o projeto ser escolhido, mostrando seu vanguardismo.

perspectiva militar — Beaubourg


O Beaubourg consiste em um modelo baseado nas possibilidades da alta tecnologia da época, estruturado com um sistema de conexões, tubos e cabos de aço. O conceito mais perceptível do projeto era externalizar toda a infraestrutura do edifício, tornando-a um componente do aspecto visual do edifício. Esse exoesqueleto estrutural e infraestrutural permite, por um lado, identificar claramente a função de cada elemento do edifício, e, por outro, que o interior seja completamente livre e desobstruído.

A identificação da função dos componentes do edifício se dá através da utilização de cores específicas. A estrutura e os maiores componentes de ventilação estão pintados em branco; estruturas de escadas e elevadores, em prateado; elementos de ventilação, em azul; instalações hidráulicas e de incêndio, em verde; elementos do sistema elétrico são amarelos e laranjas; e os elementos relacionados com a circulação pelo edifício estão pintados de vermelho. O principal deles é a escada externa da fachada oeste, pintada de vermelho nos seus planos inclinados inferiores, que possibilita uma surpreendente vista de Paris.


O edifício caracteriza-se pela sua identidade arquitetônica inovadora e revolucionária, onde o próprio entorno alcançou uma relevância que ultrapassou o seu caráter meramente residencial e de comércio seletivo, atraindo assim visitantes e dando uma nova vida à região. Quando inaugurado, sofreu um grande estranhamento por parte da população local. Só de analisarmos o tecido urbano tradicional de Paris em contraponto a um “corpo estranho” como o Beaubourg, é possível compreender o frenesi causado. Entretanto, seu uso e apropriação por parte dos usuários fez com que sua conotação aparentemente “hostil” fosse dissolvida e apropriada pelo tecido da cidade, sendo hoje, parte do imaginário coletivo que se tem da Paris contemporânea.

fachada — Beaubourg

Espaços culturais, tal como exerce perfeitamente o Centre Pompidou, desempenham um importante papel na regeneração urbana e na dinamização social — por serem espaços culturais, e não somente por abrigar cultura. Isso faz com que o Beaubourg consolide-se como sendo um fato urbano coletivo; um “locus” de êxito, com um “genius loci” notóriamente positivo. 6


a cultura — Cultura é um conceito de várias acepções, sendo a mais corrente a definição genérica formulada por Edward B. Tylor, segundo a qual cultura é “todo aquele complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e capacidades adquiridos pelo homem como membro da sociedade” — embora a definição de Tylor tenha sido problematizada e reformulada constantemente, tornando a palavra “cultura” um conceito extremamente complexo e impossível de ser fixado de modo único. 7 O uso de abstração é uma característica do que é cultura: os elementos culturais só existem na mente das pessoas, em seus símbolos tais como padrões artísticos e mitos. Entretanto, fala-se também em cultura material (por analogia a cultura simbólica) quando do estudo de produtos culturais concretos (obras de arte, escritos, ferramentas etc.). Essa forma de cultura (material) é preservada no tempo com mais facilidade, uma vez que a cultura simbólica é extremamente frágil.


a infiltração da reprodução técnica no campo das artes — No texto “A Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica”, de 1936, Walter Benjamin afirma que as mudanças ocorridas nas condições vigentes de produção refletem-se nos setores da cultura, apesar disso se dar com certo atraso. Quais seriam então as conseqüências da infiltração da reprodução técnica no campo das artes? A principal mudança apontada seria a perda da “aura” sofrida pelas artes. A aura seria a existência única de uma obra, o seu “aqui e agora”, sua autenticidade. Nesse processo, se desmantela a idéia de obra original, o que conseqüentemente traz uma inquietante aproximação entre obra e indivíduo. A aura, “a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja”, se atrofia e no lugar da existência única temos uma existência serial: o objeto reproduzido se atualiza a cada encontro com o espectador, num violento abalo da tradição. Segundo ele a pintura demonstra, no encontro com as massas, um sintoma precoce de crise. O quadro é feito para ser contemplado por um indivíduo e não por um grande público e por isso a pintura é uma forma artística que não permite, de maneira plena, a contemplação coletiva. Podemos tomar como um exemplo dessa mercantilização da cultura a obra La Gioconda, de Leonardo da Vinci, popularmente Monalisa. Somos expostos à reprodução de sua imagem de forma tão frenética e “vazia”, em situações desvinculadas de seu “papel”, tal como publicidades, que resultam na perda de seu valor como obra, e uma consequente capitalização desse símbolo pela indústria cultural.


Essa indústria cultural, no caso, é a produção e disseminação de produtos culturais para o consumo em massa, ou seja, o consumo de um grande número de pessoas em diferentes lugares, independentemente das particularidades culturais. Tal produção é realizada em geral pelos meios de comunicação e está interligada à atividade industrial propriamente dita. Jornais, revistas periódicas, programas de TV, livros, revistas em quadrinhos, músicas, filmes são exemplos de produtos culturais que passaram a fazer parte da sociedade de consumo, surgida nas primeiras décadas do século XX. Foi na segunda metade do século XIX, com o avanço do capitalismo liberal, que se consolidaram as duas condições fundamentais para a existência da indústria cultural: a economia de mercado e a sociedade de consumo. Os bens culturais, que antes tinham apenas valor de uso, passaram a ser produzidos para uma sociedade de mercado, adquirindo um novo caráter, o valor de troca, como qualquer outro objeto. Essa nova concepção de cultura como coisa a ser trocada no mercado denomina-se “reificação” (coisificação). Mas foi só no século XX que se consolidou a cultura de massa, a produção de bens culturais para o consumo de um grande público. Benjamin é tido como responsável por uma das primeiras aproximações teóricas entre arte e arquitetura, pois ao refletir sobre o papel da arte dentro da condição social conseqüente do modo capitalista de produção ele encontra no modo de recepção da arquitetura uma possibilidade de adequar a produção artística ao modo de percepção das massas. Assim, descarta convenções artísticas tradicionais para defender uma nova arte e uma futura produção cultural que se mantenha totalmente vinculada à sociedade através de sua politização.


Podemos considerar o auge do declínio do modo de contemplação tradicional e da herança renascentista de representação do real como sendo o final da década de 50 e início da década de 60, momento em que muitos artistas proclamaram a morte da pintura e buscaram criar uma nova categoria para a arte. Nessa época, por exemplo, vários artistas ligados à minimal art norteamericana, que iniciaram suas carreiras como pintores (Donald Judd, Robert Morris, Dan Flavin, Carl Andre, Sol LeWitt, entre outros) passaram a defender a superação dessa forma de expressão no intuito de romper com todas as convenções e características míticas e subjetivas da arte e de embasar uma nova produção no contexto das possibilidades abertas pelo desenvolvimento industrial. As obras minimalistas, ao mesmo tempo em que buscavam alcançar a total autonomia na arte — uma linguagem própria através da destruição de todo referente — também permitiam que tal autonomia se dispersasse para um campo expandido da atividade cultural. Isso se deu porque, ao livrar-se da moldura ou do pedestal que isolavam a obra do mundo “real”, a arte entra em estreita relação com o ambiente ou contexto que a circunda. Centrando-se nessa dispersão da arte para um campo expandido da cultura, iniciou-se uma outra vertente de produção nos anos 70 e 80, hoje chamada pósminimalista: vários artistas, dentre eles Richard Serra, Gordon Matta-Clark, entre outros, que passaram pela experiência minimalista, vão sair do espaço institucionalizado da arte para propor intervenções em outros espaços, como no próprio espaço urbano. 8


casos de estudo — Bernard Tschumi A arquitetura, segundo Benjamin, sempre foi percebida através de meios táteis e óticos, ou seja, pela contemplação e pelo hábito. Portanto a percepção arquitetônica, para ele, requer um misto de tempo transcendente (por exemplo, a atitude de contemplação “habitual dos viajantes diante de edifícios célebres”), e de tempo real, cotidiano (o uso do espaço arquitetônico que se dá pelo hábito). Mas estariam os arquitetos projetando cientemente dessa dupla característica arquitetônica? Para o arquiteto suíço-francês Bernard Tschumi, os arquitetos então chamados pós modernos estariam trabalhando mais com a primeira vertente, ao explorar com maior ênfase as características formais da arquitetura. Para ele, nessa época de extrema facilidade de reprodução das imagens, a arquitetura pode tornarse facilmente um objeto passivo de contemplação e esquecer que sua existência só tem sentido através do confronto com o espaço real e as ações que nele ocorrem. “A maioria das exibições de arquitetura em galerias de arte e museus encoraja práticas de ‘superfície’ e apresenta o trabalho do arquiteto como uma forma de pintura decorativa. Paredes e corpos, planos abstratos e figuras raramente são vistas como parte de um mesmo sistema de significação”.


Em 1978, Tschumi concebe um material teórico de reflexão sobre a condição contemporânea da arquitetura para ser exibido numa exposição individual no Artist’s Space em Nova York. O material exibido, constituído por textos e desenhos, foi publicado em 1981 em forma de livro, intitulado “The Manhattan Transcripts”. Com esse trabalho, os principais objetivos de Tschumi parecem ter sido o de denunciar a inadequação da arquitetura que então se produzia, na maioria das vezes focando somente aspectos formais dos edifícios; o de denunciar o fato considerado inadmissível de que até aquele momento ainda se utilizava, como alicerce básico do pensamento arquitetônico ocidental, o sistema clássico desenvolvido no renascimento; e o de mostrar a possibilidade de construção de uma nova e dinâmica concepção da arquitetura, mais compatível com as questões urbanas contemporâneas com as quais os arquitetos se deparavam naquele momento. Tschumi nota com descrédito o fato de que até então arquitetos continuavam a seguir as premissas vitruvianas, segundo as quais a arquitetura deveria seguir três objetivos: firmitas (que se refere à estabilidade, ao carácter construtivo da arquitetura), utilitas (que originalmente se refere à comodidade e ao longo da história foi associada à função) e a venustas (associada à beleza e à apreciação estética). Indaga-se: “Serão essas possíveis constantes arquitetônicas os limites intrínsecos sem os quais a arquitetura não existe? Ou sua permanência é a conseqüência de um mau hábito mental, de uma preguiça intelectual que persiste através da história?”


Em The Manhattan Transcripts, inicia-se um profundo questionamento das convenções clássicas de representação da arquitetura. No lugar de plantas, cortes, fachadas e perspectivas, Tschumi vai propor um outro modo de notação arquitetônica, cujos precedentes são alguns roteiros cinematográficos de Eisenstein. Segundo ele a notação é a representação através de um sistema de signos, símbolos e atributos. Se alguém pretende renovar a disciplina arquitetônica, o primeiro passo seria questionar seu modo de notação, sua linguagem clássica que é muito restritiva e faz com que a arquitetura se encontre em “um tipo de prisão da linguagem arquitetônica, onde os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo”.


Esse novo modo de notação proposto, parecido em alguns momentos com histórias em quadrinhos, é composto por três níveis de representação: a do espaço, a do movimento e a do evento. A essência de um espaço, argumenta Tschumi, só pode ser apreendida quando é lida junto com os movimentos e eventos que nele ocorrem e que dele são inseparáveis. Assim ele tenta demonstrar que a arquitetura não lida somente com o espaço, mas também, e principalmente, com o tempo. Seu modo tripartido de notação (espaço, movimento e evento) é usado “para introduzir [na arquitetura] a ordem da experiência, a ordem do tempo — movimentos, intervalos, seqüências — visto que tudo inevitavelmente intervém na leitura da cidade”. Assim ele propõe a substituição da clássica tríade vitruviana: no lugar de função, beleza e estabilidade, estariam o “espaço concebido” (através do uso da linguagem), o “espaço percebido” (matéria construída), e o “espaço vivenciado” (através do corpo). Tríade que ele posteriormente irá denominar simplesmente espaço, movimento e evento. O espaço é visto por ele como produto social, e não como uma cosa mentale ou uma forma pura, como concebido por Kant. O movimento seria o processo ou maneira de locomoção no espaço, que causa uma inevitável intrusão de corpos na ordem controlada da arquitetura, corpos que cavam espaços inesperados. Os eventos, por sua vez, seriam incidentes, ocorrências não programadas dentro do espaço arquitetônico. Inclui momentos de paixão, atos de amor e instantes de morte, e não somente atividades funcionais necessárias para a sobrevivência e a produção. São


comportamentos não padronizados pelo modernismo funcionalista, imprevisíveis e que podem “violentar” o espaço a partir do momento em que não foram programados para ocorrer nele. Tendo como exemplo o primeiro capítulo de The Manhattan Transcripts, intitulado “The Park”, que narra através da notação de seqüências a ocorrência de um assassinato. As seqüências são compostas por fotos, que narram o assassinato, por fragmentos de plantas do Central Park, local onde ocorreu o assassinato e que o testemunha, e finalmente por diagramas de movimento que indicam os caminhos percorridos, dentro do parque, pela vítima e pelo assassino. As fotos representam um evento não programado, mas que não pôde ser impedido de ocorrer. As plantas representam a total interligação entre o espaço e o evento, já que o assassinato só pode ocorrer daquela maneira porque se deu naquele espaço físico, com aquelas características. Os diagramas indicam a total interdependência entre evento, espaço e movimento, já que os movimentos foram totalmente determinados pelo evento — a perseguição do assassino, a fuga da vítima e o assassinato — e pelas próprias características físicas do espaço construído, que tornaram aqueles movimentos possíveis. Assim, sem a existência do espaço construído do Central Park, esse assassinato provavelmente não haveria ocorrido, e se ocorresse, o movimento dos corpos seria totalmente distinto. Desse modo Tschumi constrói seu argumento a favor de uma nova relação entre espaço, movimento e evento. Ele nega o preceito moderno de que forma segue função porque, para ele, o arquiteto deveria se preocupar com o contrário: não conceber espaços e restrinjam e limitem a ocorrência de eventos, mas sim espaços que permitam a ocorrência das atividades mais diversas e inesperadas possíveis.


imagem

planta

diagrama

imagem — ação (violência)

planta — manifestação arquitetônica (objeto)

diagrama — movimento do protagonista (assunto)


O principal argumento de Tschumi é o de que o elemento arquitetônico só funciona quando colide com um elemento programático, com o movimento dos corpos no espaço. Para isso é necessário desafiar o conceito moderno de unidade, que só é alcançado quando o objeto arquitetônico é considerado totalmente autônomo em relação aos eventos e aos movimentos que ocorrem nele e na cidade. O primeiro projeto no qual aplica suas teorias desenvolvidas em The Manhattan Transcripts é o Parc de la Villette, em Paris. Tschumi busca inovar na forma de concepção do projeto, que tem início em 1982 e que é feito através de uma seqüência de superposições de três sistemas autônomos e independentes: pontos, linhas e planos. Através da estratégia da seqüência de ações Tschumi busca fugir do método de trabalho tradicional: criar uma composição e uma configuração formal. Como conseqüência ele consegue uma estrutura sem centro, sem hierarquias, sem pontos de convergências. A malha abstrata é uma forma que não condiciona seu uso, que não é pensada para determinada função. Além disso é uma estrutura que não estabelece limites ao parque, ou seja, ela pode, teoricamente, se estender ao infinito, pode crescer e se transformar a qualquer momento porque sua estrutura formal nunca se encontra completa, finalizada. Se os limites da cidade não são mais claramente delimitados ou percebidos, por que os limites de um parque urbano deveriam ser?


“Os três sistemas autônomos e superpostos e as possibilidades combinatórias infinitas das Folies dão lugar a uma multiplicidade de impressões. Cada observador irá projetar sua própria interpretação. (...) Como conseqüência, não há verdade absoluta para o projeto arquitetônico, pois qualquer significado que ele possa ter é função de uma interpretação: não reside no objeto ou em seu material. (...) A adição da coerência interna dos sistemas não é coerente. O excesso de racionalidade não é racional. La Villette olha para novas circunstâncias sociais e históricas: uma realidade dispersa e diferenciada que marca o fim da utopia da unidade”.


Richard Serra Agora, como caso de estudo, a obra do artista Richard Serra, intitulada St. John’s Rotary Arc, de 1981. A escultura em aço Cor-Ten, composta por um arco de aproximadamente 60 metros de comprimento e 3,6 metros de altura, foi posta no centro de uma grande rotatória em Nova Iorque, na saída do Holland Tunnel, um dos acessos à cidade. Segundo o artista, sua motivação para propor tal obra foi a própria experiência oferecida pelo local: uma sensação de incessante mudança dada pelo tráfego de veículos contínuo e intenso que domina aquele local.


Serra percebe uma atual característica do espaço urbano: ele não é estático, mas dinâmico. Sendo o local uma das entradas da cidade observa-se que, no lugar de um limite urbano, que poderia ser normalmente esperado, temos um incessante fluxo de entrada (e saída), provavelmente de pessoas que trabalham em Nova York, mas moram nos arredores. O pleno uso dessa rodovia significa pelo menos uma coisa: que a cidade não se coloca mais como um organismo autônomo e fechado em si, mas encontra-se em constante troca com os seus arredores fazendo parte daquela “nebulosa conurbação de franjas urbanas”. O espaço escolhido por Serra encontra-se isolado, trata-se de uma sobra, “um ponto cego rodeado de asfalto”, um território destacado da cidade, inacessível tanto aos carros quanto aos pedestres por se isolar dentro de uma barreira de corpos em movimento. Ao escolher esse espaço, Serra declara ser seu grande objetivo intervir na forma de leitura do local. Parece que nossa forma de percepção tradicional - estática e que busca englobar tudo num mesmo olhar - não mostra mais eficácia diante desse espaço, que é um espaço disforme, com uma escala que o torna quase inapreensível: “Do nível do chão, a forma geométrica dessa área é ilusória, ilegível como forma”. Assim, Serra busca introduzir no local parâmetros para mediar nossa percepção: cria um elemento transversal que contrasta com a total planalidade do espaço e que redefine sua escala. Como resultado, a obra de Serra propõe um novo tipo de experiência ao transeunte, que é muito parecida, diz o próprio artista, com a experiência cinematográfica. Ao invés do espectador englobar e compreender o



espaço através de um único olhar, torna-se necessária a junção mental de uma multiplicidade de sucessivas e distintas vistas para a busca da compreensão do todo. Não há mais um observador absoluto e soberano, cujo olhar é capaz de varrer todo o horizonte, nem uma obra transcendente, localizada fora do tempo e do espaço ordinários do cotidiano. O espectador encontra-se sempre em constante movimento, e por isso percebe o arco como uma forma dinâmica: O motorista que sai do túnel, por exemplo, percebe um arco que gira centrifugamente para fora e que depois se retrai quase que numa única linha e começa a expandir-se novamente, tornando-se agora um plano chapado que se estabiliza. A experiência cinematográfica, segundo Rosalind Krauss, teria influenciado decisivamente a carreira de Serra. A principal questão seria a de que a feitura de um filme requer a junção de várias cenas, a emenda de diferentes fotogramas e, apesar do filme ser feito de cortes e emendas, somos persuadidos de que ele é composto por uma narrativa contínua. Na obra de Serra, quem opera o corte e depois reúne os espaços é o próprio espectador através de seu movimento: o pedestre visualiza diferentes ângulos do mesmo objeto (do arco, no caso) e em sua mente pode relacionar essas imagens de diversas formas para tentar apreender o todo. O ponto de vista imóvel da perspectiva tradicional é substituído pela “súbita multiplicação das dimensões da matéria” e por isso nosso modo de apreensão do espaço urbano se daria de modo muito parecido ao da experiência cinematográfica, “composta por inúmeros fragmentos, que se recompõem segundo novas leis”, como afirmou Benjamin.


A principal contribuição de Serra, portanto, seria a de trazer para o âmbito da escultura a dimensão temporal necessária para a apreensão do espaço urbano. A percepção não se dá mais através do olho, mas sim do corpo que se insere no tempo. A passagem do tempo é fundamental para a existência das obras de Serra, e nesse sentido sua aproximação ao cinema faz parte do processo de “ampliação dos limites do meio” iniciado pelos minimalistas. Teria também essa nova consciência da passagem do tempo influenciado o desenvolvimento do campo da arquitetura? Segundo Benjamin, esta sempre foi percebida através de meios táteis e óticos, ou seja, pela contemplação e pelo hábito. Portanto a percepção arquitetônica requer um misto de tempo transcendente (por exemplo, a atitude de contemplação “habitual dos viajantes diante de edifícios célebres”), e de tempo real, cotidiano (o uso do espaço arquitetônico que se dá pelo hábito). “Memória e antecipação, o tempo peripatético do caminhar, tornam-se o veículo da percepção. O tempo da experiência é cumulativo, lento em sua evolução”.


Ambos Tschumi e Serra afirmam que, na percepção de suas propostas, assim como na percepção da cidade contemporânea, a utilização da memória tem papel fundamental, pois é através dela que a experiência se torna cumulativa. Se não podemos mais apreender o todo, utilizamos em nossa percepção um tipo de montagem de distintas imagens ou sensações captadas. Isso faz lembrar a análise que Benjamin faz da drástica transformação pela qual passa o ator de teatro que, ao atuar em filmagens e deparar-se com o novo processo de “montagem”, percebe a realidade de um modo inteiramente distinto. O primeiro tem a exata noção da totalidade da peça que encena. O ator de cinema, ao contrário, dificilmente percebe claramente o contexto total no qual se insere sua ação: “Sua atuação não é unitária, mas decomposta em várias seqüências individuais, cuja concretização é determinada por fatores puramente aleatórios, como o aluguel do estúdio, disponibilidade de outros atores, cenografia, etc. Assim, pode-se filmar, no estúdio, um ator saltando de um andaime, como se fosse uma janela, mas a fuga subseqüente será talvez rodada semanas depois, numa tomada externa”. Serra e Tschumi, ao relegarem a incumbência da montagem da experiência ao próprio expectador acabam negando a obra (escultura ou a arquitetura) como mera presença física e estática e a transformam num processo que transcorre no tempo. Ao demonstrarem um desinteresse pela forma final, pelo produto acabado, o interesse de ambos volta para o processo de relações que a obra pode ativar entre obra—espaço—espectador ao atuar num espaço urbano.


Quando Benjamin diz que a reprodução técnica pode “aproximar do indivíduo a obra”, ele está, de certa forma, prenunciando a entrada da arte no âmbito de uma temporalidade cotidiana. Diz que, no lugar da existência única, temos uma existência serial, ou seja, no lugar da “unidade e durabilidade”, a “transitoriedade e a repetibilidade”. É dentro dessa existência serial, marcada por encontros cotidianos e repetidos com o espectador, que se encontram tanto a obra de Serra quanto a de Tschumi. Diante dessa situação o objeto — escultura ou arquitetura — ganha uma nova dimensão temporal na medida em que passa a perpetuar-se no espaço em termos de ocasiões repetidas de recepção/uso. Passa a existir no tempo do próprio expectador e a fazer parte do tempo contínuo de duração no espaço porque a percepção se dá através de encontros cotidianos repetidos, não há o momento único e tradicional de compreensão da obra em que o espectador se sente mergulhado dentro dela tem as noções de tempo e espaço suspensas. Quando a obra se desloca do espaço-tempo mítico da arte para o espaço-tempo do cotidiano, ela entra em relação com o espaço-tempo de percepção do cinema, como já havia sido pressentido por Benjamin. Por isso o interesse de Serra e de Tschumi por esse modo de expressão.


Tal interesse faz parte de um processo de abertura do campo de atuação das disciplinas, da exploração de seus limites e de reinvenção de seu campo de atuação, seja através do questionamento dos meios tradicionais da pintura/escultura e do modo de recepção nas artes ou através do questionamento dos princípios vitruvianos e do modo de representação e na arquitetura. Mas essa abertura do campo de atuação de cada disciplina e a conseqüente negação dos modos de percepção e representação clássicos presentes tanto em Serra quando em Tschumi, se por um lado podem ser vistas como conseqüências de um desenvolvimento interno ao campo da arquitetura ou das artes, por outro lado, nos colocam uma outra perspectiva segundo a qual as mesmas transformações podem ser encaradas como uma reestruturação global, que se dá pelo embate com a cidade e sua nova condição contemporânea e que e afeta primeiramente nosso modo de percepção do que nos cerca e por isso refletem-se, também, no modo de fazer e pensar a arte. São as “tensões do nosso tempo”, entrando em jogo no interior das disciplinas artísticas e arquitetônicas. 8


arte pública, cidade privada — “Brasil, ame-o ou deixe-o” foi a mensagem imperiosa amplamente usada pelo governo militar brasileiro que ocupou o poder de 1964 até o final da década de 1970. Hoje o mesmo slogan sinistro poderia ser aplicado à cidade de São Paulo, metrópole mundial e o centro mais importante do Brasil. Com seus 18 milhões de habitantes, espalhada sobre 900 quilômetros quadrados de área construída, São Paulo é uma impressionante cidade caótica na qual disparidades sociais, econômicas e culturais convivem lado a lado, propiciando os mais perturbadores contrastes. Enquanto Brasília representava o manifesto artificial e um tanto quanto caipira do Brasil moderno, São Paulo sempre foi moderna de verdade. A arquitetura, os museus de arte, os eventos culturais, um ambiente urbano sempre em transformação e a mistura de culturas suscitam a “intensificação da estimulação nervosa” que Georg Simmel identificou como uma das características mais fortes da vida urbana no século XX. Internacionalmente, a Bienal de São Paulo (primeira edição em 1952) assegura à cidade seu lugar no mundo internacional da arte. Entretanto, diante de seus problemas econômicos e sociais cada vez mais críticos, as paredes de vidro do Pavilhão do Ibirapuera concebido por Oscar Niemeyer para abrigar a Bienal parecem impróprias para articular a relação entre a cena cultural contemporânea de São Paulo e o seu entorno urbano, que está caindo aos pedaços física e socialmente. — Elizabetta Andreoli e Laymert Garcia dos Santos


Arte/Cidade — Arte/ Cidade resulta de uma iniciativa do curador Nelson Brissac, que havia sido convidado pela Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo a conceber um evento cultural e midiático. Brissac sugeriu que se trouxesse para a esfera pública um projeto que atualizasse a discussão sobre a cidade. A proposta emplacou com o governo estadual e o estabilishment. Em termos gerais, o binômio arte/cidade já vem sendo usado há algum tempo como uma maneira de valorizar a cidade, se não substancialmente, ao menos em termos de imagem, marketing, sobretudo numa época de globalização, quando as identidades nacionais parecem dar lugar a outras, mais locais. Além disso, em São Paulo, como em toda parte, os debates atuais sobre “pós modernismo” e “globalização” acarretaram um interesse maior pelo tema cidade, particularmente da metrópole e de suas transformações. Num nível mais específico, a proposta ocorreu num momento em que várias iniciativas afirmavam a urgência de tratar dos problemas da cidade, e em particular do centro histórico de São Paulo, que vem sendo abandonado pelas grandes instituições financeiras e comerciais em favor de áreas mais periféricas recentemente valorizadas. No contexto das artes, o objetivo mais evidente do Arte/Cidade consistiu em possibilitar aos artistas um espaço menos limitado e artificial do que a moderna galeria de arte e convidá-los a se comprometer com um espaço urbano intenso que atua como cena das contradições marcantes da sociedade. Claro que nada disso é novo no mundo da arte. Desde os anos 1970 há artistas adotando uma série de estratégias para sair da galeria de arte: enquanto uns também deixaram a ci-


dade — como no caso da land art —, outros consideraram o espaço urbano como um locus privilegiado de intervenção — Richard Serra, Joseph Beuys, Gordon Matta-Clark, para mencionar alguns dos artistas que se dedicaram ao site-specific na cidade. Tais estratégias também tem sido institucionalizadas em prestigiadas exposições como a Documenta, em Kassel, e o Skulptur Projekte, em Münster, durante as quais todo o espaço urbano é considerado como um local para a produção de arte. Entretanto, considerar hoje o espaço urbano como um locus de intervenção significa confrontar uma série de questões que são e têm de ser diferentes daquelas abordadas na década de 1970. Nesse sentido, são reveladoras as experiências de Münster e Kassel. O primeiro Skulptur Projekte ocorreu em Münster em 1977 e teve duas edições subsequentes, em 1987 e 1997. Mais formal ou formalista, a primeira edição foi concebida como site-specific, e nela as obras foram colocadas. Naquela época, o site-specific se dava contra a ideia modernista da autonomia da obra de arte, estabelecida nessa espécie de espaço tabula rasa que é a galeria de arte. Na segunda edição, organizada dez anos depois, o conceito de site-specific mudou, integrando ao trabalho referências topográficas, urbanas e sociais. O “campo” ampliou-se para a paisagem urbana, e os artistas foram previamente convidados a encontrar locais por maio dos quais pudessem se comprometer com a cidade em termos espaciais, históricos e pessoais, e a estudar o contexto urbano no qual iriam intervir. Menos formal, mais narrativo, frequentemente irônico, o Projekte expandiu o diálogo entre a arte e a cidade. Naquela época, o site não era muito considerado por suas características físicas


e formais, e sim por sua “moldura” cultural. Em 1997, a terceira edição pareceu voltar para os critérios e sentidos da própria arte através da escultura autônoma, ao mesmo tempo que adotava com humor o viés global pós-industrial dos serviços, nesse caso da “arte como um serviço”. Recusando tanto a volta ao passado como a adoção da lógica de mercado, a edição da Documenta de 1997 enfrentou as mesmas questões. Para Catherine David, curadora do ano passado, a questão não é mais elaborar estratégias para confrontar o espaço institucional e o consumo de arte, mas sim encontrar um caminho para a arte lidar com a vida na era da globalização. David tentou tratar do problema de diversas maneiras, até mesmo levando em conta o ambiente urbano construído que registra as mudanças econômicas, políticas e sociais provocadas pela globalização. A promenade artística de sempre foi alterada, tornando-se o que David denomina um parcours. Em consequência, aos edifícios e parques que habitualmente acolhem a exposição foi acrescentado o “aqui e agora” de Kassel: a velha estação, parcialmente desativada e atualmente remodelada com o intuito comercial; as passagens subterrâneas, abandonadas pelo público e prestes a fechar; e o “modelo” de rua para pedestres, que combina passeio e consumo. Todos esses locais foram concebidos nos anos 1950 como parte do projeto modernista e agora são “ruínas recentes”, em virtude do impacto da globalização na economia da cidade. As edições do Arte/Cidade apresentam alguma ressonância com tais experiências. A primeira mostra foi mais diretamente site-specific, marcando e demarcando o lugar; a segunda confrontou-se com a cidade


mais abertamente; a terceira edição desenvolveu-se em torno das ideias de escala urbana, percurso e ruínas; e a última edição, que abordou a zona leste de São Paulo, investiga as desarticulações causadas na cidade pela implantação de diferentes infraestruturas de transporte e por processos de reestruturação urbana de caráter global. Uma complexidade que acarreta no colapso da experiência individual e dos procedimentos convencionais de percepção e mapeamento. Mas se as experiências de Münster e Kassel já testemunhavam quão complexa e contraditória pode ser a relação entre arte e cidade, em São Paulo a questão explode, dada a violência com que os dois termos se tencionam. São Paulo não pode ser comparada a Kassel. Se a globalização infligiu a Kassel as “marcas de ruínas recentes”, o que dizer do impacto da desregulamentação e das transformações econômicas na cidade de São Paulo? A metrópole vem sofrendo um processo de degenerescência urbana nas duas últimas décadas, o que resultou, entre outras coisas, na perda do papel econômico e simbólico do centro, no declínio do espaço público, na perda crescente da cidadania. Em São Paulo, as “ruínas recentes” crescem numa escala inimaginável na Europa. Se no caso de Kassel a promenade é considerada inadequada para responder às questões atuais sobre as características do espaço urbano, tornando-se um ingrediente ativo do discurso cultural e político, em São Paulo há um problema adicional e, literalmente, mais pedestre: é que São Paulo quase deixou de ser um lugar para passeio em virtude da fragmentação urbana, de razões de segurança e das distâncias geográficas e sociais. A violência cada vez mais intensa — que, aliás, São Paulo compartilha com outras cidades — faz com que as pessoas comuns tendam a evitar a cidade, atravessando-a somente quan-


do necessário, enquanto os privilegiados se isolam atrás dos vidros fechados dos carros ou dos muros dos enclaves residenciais e comerciais. Aqui, a cidade é experienciada como um inimigo, ou, na melhor das hipóteses, como um obstáculo. 9

Rubens Mano, 1998



São Paulo: antítese da cultura como nova mercadoria da cidade pós moderna São Paulo — o caso de estudo proposto —, saltou muito rapidamente de vila a metrópole. Foi construída pela associação singular entre mamelucos, imigrantes e migrantes nordestinos, com a presença urbanizada da linha férrea, na passagem entre as economias cafeeira, industrial e de serviços. A cidade cresceu sem cultivar qualquer memória ou identidade, destruindo-se para se reconstruir várias vezes, resultando em uma dimensão histórica quase ausente. O que se ensaia aqui, é uma arqueologia dessa cidade imensa e inapreensível, pujante e violenta. Vários são os personagens enfocados: pessoas, edifícios, propagandas, muros. Num lugar em que as coisas se acumulam, se apagam e se sobrepõem freneticamente, como em São Paulo, os processos são movidos muito mais pela urgência do mercado e pela informalidade do que por um planejado controle público. Assim, as construções foram se sucedendo umas às outras sobre uma estrutura fundiária e viária que, no entanto, se manteve. Prédios subiram nos lotes onde antes havia casas. Espaços públicos foram sacrificados para a passagem de automóveis. A cidade se agigantou sobre uma base acanhada. São Paulo possui um sentido de proximidade sufocante, que marca sua vivência, sem vistas aéreas ou perspectivas abarcadoras. Nessa metrópole gigante e informe, que recusa a fixação de uma imagem sintética, nos vemos quase sempre imersos, sem recuo para a observação crítica.


Tomando como base uma experiência pessoal de vivência, um simples caminhar por São Paulo frisou o quão vital para o desenvolvimento de uma cidade a cultura é. Um domingo na Avenida Paulista é um retrato da ambição mais bela que poderíamos ter para nossas cidades. Ao longo desta, dividem-se grupos das mais variadas origens e intuitos, onde se instalam livremente como se fosse um despretensioso festival; um constante festival de apropriação e ressignificação da cidade. O vão do MASP é sinônimo de democracia. Não só ele como toda a extensão da avenida, sinônimo de discussão política, debates sobre gênero, aulas de dança e ginástica, comércio, performances, shows, práticas de esporte, coletivas ou individuais, aberto para todos. Existe uma troca entre aqueles que ali habitam que eleva o território a outra qualidade urbana. Incentivos culturais são correspondidos, e quase que numa antropofagia, inspiram o desejo de serem propagados.


Na verdade, não importa o dia ou a hora, existe de fato um circuito vivo que engloba a arte, arquitetura, design, dança, moda, gastronomia, música, esporte e afins, cultura seja ela qual for, e que tem como consequência uma cidade plenamente integrada a suas atividades humanas. Os museus estão constantemente cheios, de visitantes do mundo todo a alunos de toda a região. O que inspira é ver que há um interesse, um diálogo para que a cultura seja entendida como parte de ser, de viver. Isso não se aplica a um ou dois, mas a inúmeros museus e centros culturais espalhados pelo território de 1.521,11 km2, que se funde com as cidades do entorno, com programações educacionais, muitas vezes gratuitas; galerias de arte com circuitos diurnos e noturnos separados por regiões da cidade, de forma a fomentar o deslocamento esporádico de um público que talvez não tivesse acesso pleno apenas em horário comercial; os SESCs, que não param de abrir — vide as novas unidades da Av. 24 de Maio e Av. Paulista — e a ampliar as atrações culturais, agem como verdadeiras escolas, estando em pontos estratégicos da cidade, de forma a atender a todo o público, sem segregar ou generalizar: tudo é para todos; a cidade é para todos. São inúmeras atividades que se catalisam em um dia específico, no qual a avenida fecha, mas que, na verdade, são retrato da cidade em todos os dias da semana, o ano inteiro. São Paulo tem uma vida cultural que é consequência chave para seu desenvolvimento como megalópole. Ao analisarmos de perto, fica claro que não é algo esporádico ou forçado: é o que a cidade é, de forma quase que espontânea, de tão intrínseca. Importante também destacar o fator peculiar de os arquitetos ativos na transformação da cidade terem compreendido essa condição na qual ela se encontrava,


uma sobreposição de camadas que se ressignificam e dão continuidade entre si. Obras de arquitetos como Joao Batista Vilanova Artigas, Paulo Mendes da Rocha, Lina Bo Bardi, David Libeskind, entre outros, são uma verdadeira expressão advinda dessa condição presente, que causa uma aglomeração de informação e escalas que são elementos sensíveis tanto do projeto para cidade. Tais arquitetos citados — Lina, PMR, etc — foram capazes de compreender nuances da cidade de São Paulo, situações que divergem de qualquer outro grande centro urbano do mundo. São Paulo não seria a cidade que é se não fosse pela sensibilidade dos grandes arquitetos. Uma cidade fadada ao enclave em concreto, considerada por tantos como sinônimo de cinza, de opressora, de cidade “sem amor”. Bom, romantizar São Paulo sem parâmetros não nos contribui de forma contundente, até por sua infinidade de problemas que ainda persistem. A questão da habitação continua sendo um problema, a discrepância de rendas, a falta de atenção em áreas periféricas, e por ai segue. Mas é importante apontarmos o que se tem de vivo em um lugar tão propenso ao vazio. Andando pelos centros, sejam estes comerciais, residenciais (de alto padrão, afinal, São Paulo é residencial onde puder ser — e não tiver um segurança armado para tirar quem quer que se aventure a reclinarse no chão da rua), podemos perceber que, afinal, São Paulo tem vida. Tem verde. Tem parques. Mas porque a cidade continua passando a mensagem de sufocar o usuário? Salve alguns projetos notórios, a cidade persiste sua imagem de gigante de concreto, cortada — e fragmentada — por grandes avenidas e viadutos, que reprimem o pedestre, o cidadão. Porém, de alguns


anos para cá, mais precisamente desde a década de 90, podemos identificar projetos que almejam quebrar essa postura rígida da cidade, e transformá-la em um lugar, não mais somente um espaço, como foi o caso do Arte/ Cidade e suas intervenções urbanas, e como apontarei em alguns casos de estudo que contribuem para a imagem de uma São Paulo humana, com seus fatos urbanos consolidados, “locus” culturais de sucesso, espaços democráticos, e assim sucessivamente, tornam-se uma antítese da nova lógica de cultura como mercadoria. Voltando à sua questão geográfica, é impossível termos uma referência da cidade como temos em cidades tradicionais européias, ou em cidades como o Rio de Janeiro. São Paulo é densa, gigante, plana. O relevo da avenida Paulista divide a cidade, mas impede que se tenha alguma perspectiva além da vista do mirante, aos pés do MASP — uma das vistas mais interessantes da cidade, mesmo que enquadre um viaduto e uma avenida. Bem São Paulo. A questão é, essa falta de compreensão do território como um todo faz com que “fatos urbanos” tornem-se pontos referenciais, por vivência, por beleza, por interesse. Seja o Ibirapuera e sua enorme área de lazer, lagos, pistas, museus; seja a Pinacoteca, o parque e a estação da Luz, antes abandonados pelo poder público, hoje sinônimo de vida e regeneração urbana; seja o MASP e seu vão invejável. Tais fatos urbanos representam as “clareiras” na memória coletiva do cidadão, assim como as clareiras guiam em uma floresta. Elevam o espaço à outra qualidade e acabam por se tornarem “o caminho mais agradável, mesmo que mais longo”; “a rua mais arborizada, mesmo que seja uma volta maior”; “aquele casarão bonito perto da Luz, que nao fui por medo, mas veja bem, quantas pessoas! Acho que não é mais tão perigoso assim.”.


Avenida Paulista


equipamentos urbanos

bibliotecas

SESCs

cinemas

museus

escolas pĂşblicas

casas de cultura


Masp: o imponente ícone de São Paulo — e da democracia O edifício do Masp é um “edifício-acontecimento”, conforme o termo de Gèrard Monnier: uma obra que extrapola seus fins ordinários e se torna peça relevante para além do contexto arquitetônico e urbanístico, incorporando significados diversos à memória coletiva. Seguindo esse raciocínio, no caso de pesquisas em história da arquitetura, Monnier recomenda o estudo não circunscrito apenas aos fatos do projeto e da construção do edifício: é desejável abrangermos seus acontecimentos posteriores (que podemos chamar história dos usos) e também as apropriações pelo público (as recepções à obra), seja leigo ou especializado, distante ou próximo ao objeto. Ambas as práticas são pouco aplicadas a estudos de arquitetura, embora não sejam na literatura e nas artes plásticas. Felizmente, Lina Bo e Figueiredo Ferraz viram o edifício do Masp executado como queriam. Mas os anos posteriores à sua inauguração incluem acontecimentos inquietantes, que só podem ser compreendidos integralmente se os considerarmos independentes das idéias dos arquitetos-autores – o que não significa desconsiderar suas idéias. Não se trata de defender intervenções indiscriminadas nos edifícios, apartadas da integridade arquitetônica, desprezando-a como produto mental e material, como tampouco de ignorar os anseios dos autores com suas obras, perdendo-os de vista, fazendo a apologia da obra aberta; mas sim de considerar o objeto com autonomia, fora do âmbito restrito da produção de quem o projeta e de suas vontades. Pois as obras não



pertencem e não se destinam aos arquitetos – salvo aquelas em que eles são comitentes e usuários. A história de um edifício pode ser mais que a história de seu projeto e construção quando incorpora os acertos e erros das propostas de usos e materiais, considerando seus desgastes e durabilidades, reformas e manutenções, ambientes inalterados, transformados ou deformados, mudanças de funções, improvisos e gambiarras. Não se pode avaliar um edifício somente pelas “imutáveis e sublimes imagens fotográficas dos períodos heróicos”, conforme a expressão de Monnier. Os usos e acontecimentos posteriores fazem parte indissociável de sua história, independente das vontades e ideais de seus autores e admiradores. São resultados concretos da arquitetura. A incorporação da história dos usos se faz extremamente necessária ao caso do Masp, um edifício que serve ainda hoje (embora controversamente) às funções previstas. Vermelho-bombeiro Sabendo do problema recorrente de goteiras do Masp, uma empresa se dispôs a participar da “renovação da fachada do edifício”, doando produtos “aplicados há décadas em todo o mundo para a proteção de concreto aparente contra a deterioração, o ataque de gases industriais, assim como o ataque de fungos e algas”. Poderia manter-se a “característica estética e original do concreto aparente” ou aplicar cor e brilho. Sabiamente, a iniciativa seria mantida em sigilo até a conclusão efetiva das negociações. E, sabiamente, a proposta foi encaminhada à arquiteta Lina Bo Bardi. O Masp aceitou a proposta, optando pela aplicação de


uma cor marcante para destacar ainda mais a estrutura do edifício. Realizaram-se vários testes até chegar à cor escolhida por Lina: o vermelho-bombeiro. A escolha era perfeita às estratégias da empresa, que enquadrou o problema do Masp em um projeto “para estimular o uso de tintas coloridas nas edificações das grandes cidades como forma de humanizar e valorizar os ambientes cotidianos”, e para “reverter a tendência de utilizar tintas nas cores branco e gelo”, que representavam 70% do consumo nacional. Para o museu, era uma excelente oportunidade não só de resolver o problema infindável dos vazamentos, como também de recuperar e fortalecer a credibilidade na instituição. A mudança na aparência do edifício seria um marco desta virada. Era o momento em que a rede Globo e o banco Itaú promoviam uma campanha para eleger o símbolo arquitetônico de São Paulo. Mesmo que o Masp não fosse escolhido, a campanha ajudaria a divulgar seu novo visual. Faltava apresentar uma justificativa para a pintura vermelha. Evidentemente tratava-se de uma questão técnica: era necessário impermeabilizar as vigas. Mas por que não foram impermeabilizadas antes? A solução estava na história do edifício. Segundo a arquiteta, a idéia de utilizar o vermelho era antiga (como indica um croqui provavelmente do final da década de 1950) e a cor aparece em alguns elementos do projeto arquitetônico – o que, no fundo, pouco importa. Interessa saber como a justificativa da pintura foi colocada ao público.


Em linhas gerais, o que saiu na imprensa foi o seguinte: “Se o projeto de Lina Bo Bardi já se mostrava arrojado em 68, quando o Museu de Arte de São Paulo foi inaugurado, o impacto seria ainda maior se as quatro grandes vigas de sustentação ostentassem cor vermelha como agora. A idéia original e vanguardista da arquiteta foi retomada para resolver problemas de infiltração que persistiam depois de três anos de restauração do edifício. Como lembra o arquiteto Marcelo Ferraz, da equipe de Lina, a pintura cumpriu dupla finalidade: à função técnica somou-se o efeito estético”.


A cor vermelha como “idéia original” incorporavase à origem mítica do edifício. A gloriosa história do Masp reconquistava uma glória adiada: a pintura descartada em 1968 porque o “impacto seria ainda maior” – porque, talvez, a ditadura militar visse o vermelho como subversivo (Lina, como sabemos, era comunista). De resto, os fatos não são totalmente esclarecidos; ao contrário, a explicação é dada pela metade, com distorções. O momento era delicado e a honra do Masp não poderia ser ainda mais maculada. Não assumir o erro foi uma forma de preservar o museu, o edifício, o engenheiro e a arquiteta – heróis, e não vilões de sua história. Uma defesa que, como lembra Duby, “exagera os méritos, é óbvio, concentrando neles toda a luz, mantendo criteriosamente na sombra o que é menos glorioso, apagando mesmo o que possa deslustrar a imagem”. Mudança significativa, simultânea à mudança visual do edifício: Bardi cedia a direção a Fábio Magalhães, que meses antes o vinha auxiliando. O nonagenário professore abriu mão do cargo de presidente de honra. Conduzira o museu por mais de quarenta anos, colecionando mais acertos que erros. Era justo que descansasse. Uma etapa se encerrava e outra começava, renovando as insistentes esperanças por um Masp melhor. 10


Velha-nova Pinacoteca: de espaço a lugar a simultaneidade da dicotomia: o novo e o preexistente Não deveria haver o problema específico da intervenção arquitetônica em preexistências, somente o problema único da arquitetura. A intervenção em preexistências é essencialmente Arquitetura, com A maiúsculo: concepção que transcende a mera recuperação estilística e estrutural e os fatores técnicos e construtivos da materialidade da obra. Se deixarmos a necessidade aristotélica de classificação e a dogmatização arquitetônica instaurada, e afastarmonos da pressuposição romântica de Riegl de que há diferenças incompatíveis entre o passado e o presente, poderemos transformar esta aparente dicotomia em simultaneidade e alcançar o ponto desejável onde a Arquitetura não estará subordinada à temporalidade; pelo contrário, saberá buscar na complementaridade entre o velho e o novo sua unidade e expressividade. Caberá ao arquiteto, então, exercitar sua inteligência (no sentido etimológico de ler) e reconhecer os aspectos potenciais da arquitetura preexistente que conclamam participar e dialogar na criação contemporânea. Evocando o velho sem elevá-lo a protagonista e sensibilizando a nova ação à preexistência, estaremos adotando a correta postura de uma prática arquitetônica que testemunha o preexistente mas não se dobra a ele por excesso de zelo e que não abre mão de fazer o que acha necessário em cada circunstância.


Com a intervenção do arquiteto Paulo Mendes da Rocha e equipe no antigo edifício do Liceu de Artes e Ofícios e sua refuncionalização para um museu artístico – a Pinacoteca do Estado, em São Paulo/ SP – procuraremos demonstrar como se pode gerar uma obra de arquitetura que parta do essencial da preexistência e, no ponto zero de simplificação, faça uma leitura atenta dos aspectos que o velho conclama para instituir um diálogo simultâneo e necessário com o novo, um discurso atual que transforma a Arquitetura em uma resposta adequada ao momento contemporâneo, onde os aspectos da temporalidade não ficam presos às questões estéticas, éticas e morais de como conjugar dois tempos que, em verdade, não podem ser tomados como coisas diferentes, mas avança em seu comprometimento com a realidade que deve articular.


Nova Pinacoteca: um ajuste contemporâneo da arquitetura O projeto de intervenção teve início em 1993 quando Paulo Mendes da Rocha, juntamente com os arquitetos Eduardo Colonelli e Welliton Torres, impulsionados pela entusiasmada direção do artista plástico Emanoel Araújo frente à Pinacoteca, deram início ao empreendimento de reformar o edifício do antigo Liceu de Artes e Ofícios – um projeto do escritório de Ramos de Azevedo construído entre 1897 e 1900 –, para ali instalar as novas dependências do museu artístico mais antigo de São Paulo. Esta iniciativa, completada em fevereiro de 1998, transformou o então “invisível” edifício neoclássico, encravado numa das regiões mais deterioradas da capital paulista, num dos museus mais modernos do país – um espaço privilegiado capaz de acolher devidamente o seu valoroso acervo e de receber exposições de nível internacional com toda a pompa, competência e circunstância que requerem. A obra, financiada pelo Ministério da Cultura e pelo Governo de São Paulo, através de sua Secretaria da Cultura, participa de um projeto de revitalização mais amplo que busca progressivamente devolver a vida ao Bairro da Luz, transformando-o em um democrático espaço cultural no coração da cidade. O edifício foi dotado de toda a infra-estrutura necessária técnica e funcionalmente, como a construção de um elevador para transporte de material e de público e de novos sanitários, a adequação da rede elétrica e a ampliação das áreas de depósitos e acervo, laboratórios de restauro e biblioteca. Também um projeto especializado de iluminação foi encomendado,



assinado pelo italiano Piero Castiglioni – o mesmo do Museu d’Orsay, de Paris e do Palazzo Grassi, de Veneza. A intervenção de Mendes da Rocha e equipe previu, simultaneamente, consolidar as estruturas em alvenaria portante, naturalmente desgastadas pelo tempo e pela poluição ocasionada pelo intenso tráfego automotivo na Avenida Tiradentes, e agregar valor ao velho edifício a partir da reaparição do existente – da valorização dos elementos que o projeto conclama, emergidos a partir de uma confrontação com o presente e que nos fazem atentar à experiência arquitetural do passado. Foi, portanto, uma intervenção “eminentemente técnica” mas que “buscou desvendar o que estava lá” (1), esclarece oportunamente o arquiteto. Para tanto, algumas medidas pontuais foram efetivadas. Sobre os pátios internos e sobre o octógono central da tipologia neoclássica do antigo Liceu, muito semelhante em planta ao Altes Museum, em Berlim, de Schinkel, no lugar onde haveria uma cúpula (nunca construída pelo edifício ter ficado incompleto) os arquitetos dispuseram clarabóias planas em estrutura metálica reticular e vidros laminados que levemente pousam sobre as estruturas de alvenaria, evitando a entrada da chuva no interior dos até então úmidos e sombrios poços de luz. Com esta ação triplicou-se os espaços de exposições e providenciou-se exuberância de luz natural no interior do edifício, enriquecendo a apreciação das obras de arte e da própria Arquitetura. As cerca de cem esquadrias de suspensão que vedavam estes poços foram retiradas, ficando seus vãos abertos de modo a criar transparência e potencializar a perspectiva



através dos ambientes, assim como permitir que a bela alvenaria portante do edifício pudesse ser visualizada, pois não há reboco encobrindo a estrutura. Como diz Paulo Mendes da Rocha, “É claro que com essas clarabóias a espacialidade se transformou de um modo absolutamente arquitetônico, como se fosse uma conseqüência imprevista. Foi prevista, então” (2).

Desta primeira ação resulta a outra efetiva colaboração contemporânea em sua sensibilização com o existente: o espaço coberto pelas clarabóias permitiu a criação de um novo eixo de circulação, na longitudinal, que mudou o acesso principal do edifício para a Praça da Luz, na face sul, retirando-o da Avenida Tiradentes onde o intenso tráfego e o estrangulamento espacial da avenida prejudicavam o contato do edifício com o contexto urbano. Para realizar a inversão e saldar a “visão labiríntica” do projeto original foram previstas passarelas metálicas que cruzam os pátios internos em dois níveis, rompendo com a verticalidade de 22 m de pé-direito e estabelecendo a horizontalidade como seqüência


de percepção. Essa configuração possibilitou uma nova articulação entre todas as funções onde as salas, antes estanques, agora se integram, trazendo fluidez, imprevisibilidade e dinamismo ao espaço. Como ressalta Paulo Mendes da Rocha, “com esses artefatos autônomos, as coberturas e as pontes, a transformação ficou evidente, com sucesso, animando a complementação do projeto” (3); “Agora é possível visitar o prédio como só as andorinhas podiam fazer, não precisa mais ficar circundando os pátios como num convento” (4). Com este novo acesso a fachada perdeu em representatividade, mas certamente ganhou em funcionalidade: o trânsito é relativamente mais tranqüilo e o estacionamento mais fácil na fronteira com a Estação. Além disso, no novo acolhimento foi possível instalar necessários serviços de recepção, como guarda-volumes e local de informações. O deslocamento do acesso permitiu também a criação de um belvedere, um balcão metálico curvo colocado em lugar da antiga escadaria principal, debruçado sobre a Avenida Tiradentes. Este balcão aproveita o antigo hall de entrada como um espaço alternativo de exposições, onde as pessoas podem reunir-se ou tomar contato com a espacialidade da cidade. Paulo Mendes da Rocha justifica esta decisão dizendo que “achava aquela escada mal-ajambrada, muito dura, muito íngreme, e o espaço de recepção era quase nulo. A escada precipitava-se sobre a avenida, que foi se encolhendo. O acolhimento ficava prejudicado, porque a circulação não fluía” (5). Também foi criada, no espaço do octógono central, uma laje intermediária que delimita um auditório com cerca de 150 lugares destinado a cursos,


conferências, cinema, desfiles e outros eventos, o que torna o museu, juntamente com os espaços do café/restaurante e das diversas oficinas, um lugar versátil e multifuncional. Além do auditório, neste pavimento inferior localizam-se serviços gerais da Pinacoteca como depósitos, oficinas e dependências para funcionários; no primeiro pavimento, o espaço prioritário é reservado às exposições temporárias e, no segundo, à exposição do acervo da Pinacoteca. As esquadrias frontais do pavimento superior do edifício foram substituídas por chapas metálicas, criando um contraponto com o tijolo sem revestimento das paredes externas do edifício. Internamente, depois de eliminar todas as cicatrizes mais desprezíveis herdadas dos vários “inquilinos” que se apropriaram do edifício ao longo do tempo – lajes intermediárias, “puxadinhos”, revestimentos inapropriados, etc. – descascou-se as paredes, criando uma espacialidade onde, como numa ruína, a estrutura da construção resulta numa inefável marca do tempo e onde o estado inacabado e o uso in nuce dos materiais sugere uma experiência contundente que serve como trunfo da atitude estética do arquiteto frente ao existente. Esta atitude é dada pelo uso de novos materiais – vidro e aço –, que aliados aos tijolos da alvenaria descascada resultam evidentes e ressaltados, numa espécie de “colagem” do novo no velho e do velho no novo que forma um todo único e harmônico sem banalmente mimetizar e confundir. O diálogo é mais abstrato: passarelas metálicas e clarabóias de cristal justapõem-se aos elementos originais do edifício neoclássico agregando-os à criação contemporânea e valorizando-os como testemunhos arquitetônicos. A universalidade racional da técnica (e não da


imagens: Nelson Kon


tecnologia) e o uso potencial dos materiais (e não dos produtos) são coordenadas importantes na intervenção da Pinacoteca, como são em todas as obras de Paulo Mendes da Rocha. O que resulta deste ajuste contemporâneo da arquitetura é uma construção original essencialmente mantida como estrutura onde cerebrais interferências alteram substancialmente a aura do edifício. Aqui nada é silencioso, nada é sutil, e embora seja mínimo, é enfático, é gestual, resultando uma simplicidade aparente que é, no entanto, solução da tensão intrínseca colocada pela complexidade das exigências arquitetônicas contemporâneas. Distante de um método especializado de intervenção, tão ao gosto de restauradores e técnicos do Patrimônio, que preferem a fidelidade estilística à real compreensão do edifício com o qual estão trabalhando, Paulo Mendes da Rocha segue fiel a si mesmo (6) e devolve, com elegância e simplicidade, através de uma intervenção desligada de qualquer nostalgia ou romantismo, os valores permanentes da Arquitetura do antigo Liceu e cria outros, inéditos e a mercê da mesma sensibilidade no futuro.

Circulação reinventada, especialidade transformada: a fruição moderna do clássico A cultura arquitetônica e a dimensão histórica da profissão dá ao arquiteto a condição de olhar e compreender os aspectos essenciais da Arquitetura de seu tempo, de outros tempos, de qualquer tempo.


Penso que Paulo Mendes da Rocha e sua equipe, ao depararem-se com o problema de adequar um museu contemporâneo a um edifício existente que é reflexo de uma época singular da Arquitetura, buscaram tanto em suas qualidades naturais como no questionamento de seu simbolismo totalitário o fato primordial que conduziu a intervenção no antigo Liceu. Pode parecer paradoxal que o edifício existente tenha muito a transmitir mas que também é marca do colonialismo cultural da burguesia brasileira da época, onde uma arquitetura padrão – copiada de antologias que serviam para ensinar a periferia do mundo a construir como o caput mundi europeu -, era o símbolo do nosso esforço para ser como a metrópole e a origem dos simulacros de cidades rendidas na América. No entanto, podemos presumir pelas declarações do arquiteto a este respeito que o gesto primordial de desestabilizar as hierarquias classicizantes do edifício construído por Ramos de Azevedo através da subversão de seus eixos de composição, mais que uma decisão projetual em busca de funcionalidade ou de melhoria de acessibilidade urbana, é inquisidor, deliberado e representativo de que a Arquitetura pode ser revisitada e conduzida por caminhos mais libertários, onde prevalecem a alma e a inteligência local para solver os problemas contemporâneos. Com a inversão dos eixos de simetria experimenta-se o antigo espaço de uma maneira surpreendentemente nova: entra-se ali como um transgressor, atravessando os pátios anteriormente inacessíveis, descobrindo visuais até então imperceptíveis e deslizando nos espaços como nunca antes fora possível, num


percurso flexível que não impõe uma única, central e restrita apreciação das obras de arte como indicava o antigo edifício, mas que oferece a opção de abordá-las como mais apraz ao espectador. Esta acentuação tátil, perceptiva e visual, entretanto, não deve ser encarada como um desprendimento da base analítica e racional que caracteriza o trabalho do arquiteto, mas como uma intensificação do objeto a partir de uma eloqüente leitura do problema museológico, ou mais adiante, do problema específico da Arquitetura atual. Na intervenção da Pinacoteca, por outro lado, da tensão dialética entre o legado arquitetônico do passado e a Arquitetura do presente resulta a imanência e a inexorabilidade contidas na idéia de museu, onde as expressões humanas de várias circunstâncias – temporais ou locais – convergem, justapõem-se e juntas, formam o todo. Assim a Pinacoteca, até então mais um entre os museus artísticos da capital paulista, apresenta-se com um valor museológico ressaltado ao ser afetado pela atemporalidade da ação essencial da Arquitetura, numa “intervenção mínima com grau de inteligência máximo” (7) onde a luz e os materiais enriquecem a experiência da fruição moderna do objeto clássico e das obras ali expostas. Fruição que surge da experimentação tridimensional do espaço e que, a partir da entronização nada literal dos valores citados, revela a maestria da abstração do arquiteto e seu elevado nível de Arquitetura. A inefabilidade do objeto: de espaço a lugar A inefabilidade do objeto arquitetônico atingida por Paulo Mendes da Rocha e equipe na intervenção da


Pinacoteca é derivada de sua atenta leitura da realidade, nunca literal, sempre abstrata, nunca arbitrária, sempre comprometida, nunca formalista, sempre autêntica e auto-referente. Brutalismo material e contundência estrutural a evidenciar o mito da construção arquitetônica e a dialogar e complementar o preexistente, luz transbordante pelos espaços a proporcionar uma experiência lumínica (um impacto cinético) de apreciação da arte, subversão de eixos de hierarquia classicizante como intensificação da forma para uma moderna experiência de fruição, valor museológico ressaltado pela resolução da dialética entre o velho e o novo em sua incorporação como valores simultâneos. Todos estes fatores evidenciam a atitude do arquiteto em buscar na essência a resolução da Arquitetura, seja ela manifestada direta ou abstratamente, seja ela expressada pela linguagem arquitetônica que for. Na Pinacoteca, todos estes são aspectos interagentes para a concepção de uma obra de extrema qualidade técnica e plástica que, pragmaticamente, interroga e responde a questão da articulação da vida contemporânea na preexistência. E responde porque se afasta da prática restrita dos especialistas, porque não abre mão de fazer uma Arquitetura comprometida com o contexto e com as necessidades e aspirações da vida contemporânea, porque faz Arquitetura com sensibilidade e gênio, porque usa e abusa da técnica e dos materiais com propriedade e porque busca, em última instância, a finalidade básica da Arquitetura que é a construção do lugar, do algo mais que a materialidade. Como nos diz Paulo Mendes da Rocha, “…não simplesmente


restaurar, mas também criar novos desenhos que abriguem, amparem e expressem hábitos urbanos contemporâneos, do tempo que vivemos” (8). Penso que o fato arquitetônico prioritário eludido no projeto da Pinacoteca é exatamente esta construção do lugar. Lugar, é bom que se esclareça, entendido como algo sublime e transcendente que se constrói com o fluir da vida e que é único, exclusivo, e não como sinônimo de espaço, envoltório formal tridimensional ordenado pela geometrização construtiva, desprovido de vida. Em entrevista, Paulo Mendes da Rocha disse que o museu já podia ser imaginado com muita clareza, pelo espaço e pelo público. Creio que ele estava certo, mas só poderia reunir passado, presente e futuro num envoltório que até então era espaço e atribuirlhe a grandeza de lugar um arquiteto que acredita na Arquitetura como concepção mental (como outrora falara Alberti) como saída para a irracionalidade formal instalada e que está preocupado em atingir a dimensão única (universal) da Arquitetura pela atenção a sua essência, em meio à complexidade e à confusão contemporâneas. A Pinacoteca é um exemplo pragmático de intervenção arquitetônica não apenas por dar condições materiais a um edifício degradado (numa espécie de still life), mas por resgatá-lo do limbo que o seu equivocado e anacrônico projeto classicizante colocou-o, fazendo, depois de praticamente um século, sê-lo o que até então não podia ter sido plenamente: um exemplo singular de edifício consagrado às artes e à cultura. 11 —


SESC 24 de Maio Quando Paulo Mendes da Rocha coloca um material espelhado — de aparencia “barata” — como revestimento de um SESC situado em um local espremido entre tanta informação como o da rua 24 de Maio, ele está compreendendo o entorno e sua condição na cidade, e passando para o edifício seus esforços para cumprir sua função como um bom equipamento urbano. O edifício convida e se abre de dentro para fora, replica e desconstrói seu entorno em sua própria fachada, brinca com o percurso, com o estar, e até mesmo com o lúdico, ao colocar uma piscina pública na cobertura.



MuBE Em outra ocasião distinta dessa leitura da condição apresentada pela cidade, o MuBE é um projeto de Paulo Mendes da Rocha que mostra inclusive a participação do cidadão — e sua relação com a cultura — em sua concepção. Inicialmente, foi proposto para o lugar uma instalação comercial, no entanto, os residentes com maior poder financeiro pressionaram para projetarem antes uma praça pública, contratando Mendes da Rocha para desenhar do museu.

A obra, em concreto armado aparente, destaca-se pelo bloco suspenso e perpendicular à rua principal, estando a maior parte do museu enterrado ou semienterrado. A transição entre os espaços verdes e o topo do edifício é também bastante sutil, “as formas curvas da natureza dão lugar gradualmente ao concreto”, surgindo os acessos – rampas e degraus – que conduzem ao interior do museu semienterrado. Ao erguer o volume do solo, o arquiteto liberta e dá um maior protagonismo ao espaço público, criando uma área abrigada, que sutilmente define os espaços dos jardins de esculturas ao ar livre. 12



bibliografia citada: 1 Castells, M., 1990. A Era da Informação 2 Jameson, F., 1991. A lóica cultural do capitalismo tardio 3 O termo Clareira, retirado da filosofia de Martin Heidegger, deriva da palavra alemã Lichtung, cujo significado possível é uma clareira na floresta. Mas cujas raízes em Licht – a palavra alemã para luz - foram reabilitadas por Heidegger e incorporadas no seu pensamento filosófico, onde Lichtung refere-se a um lugar aberto, facultado aos entes para os quais a verdade vem à tona. 4 Mota, J. C., 2016. FAUP 5 Rossi, A., A arquitetura da cidade, 1966 6 Fracalossi, I., 2002. Clássicos da Arquitetura: Centro Georges Pompidou / Renzo Piano + Richard Rogers 7 Zahar, J., 2006 8 Solfa, M., 2018. A cidade como campo ampliado da arte 9 Andreoli, E. e Santos, L. G. dos, 1998. Arte/Cidade — Nelson Brissac 10 Miyoshi, A., 2007. O edifício do Masp como sujeito de estudo 11 Müller, F., 2000. Velha-nova Pinacoteca: de espaço a lugar 12 Landon, R., 2013. Museu Brasileiro de Escultura (MuBE) Paulo Mendes da Rocha


arte como elemento catalisador urbano Arnon Lintz

orientação: Masao Kamita ARQ1109 — PUC-Rio 2018 laboratório II — Ana Luiza Nobre e Masao Kamita




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