Humberto Werneck
O PAI DOS BURROS dicionário de lugares-comuns e frases feitas
Porto Alegre – 2009
© Humberto Werneck, 2009 Capa e projeto gráfico Paola Manica Imagem da capa Cartum de Ivan Bilibin (1876-1942) Imagens internas Reproduzidas do Compendium of illustrations, publicado por The Pepin Press (www.pepinpress.com). Revisão Pedro Gonzaga Rodrigo Breunig 1ª reimpressão Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) W491p Werneck, Humberto
O pai dos burros — Dicionário de lugares-comuns e frases feitas / Humberto Werneck. — Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2009. 208p.; 11,4 x 17,5 cm. ISBN 978-85-60171-08-8 1. Ditos populares – Dicionário. I. Título. CDU 82-84(038)
(Bibliotecária responsável: Paula Pêgas de Lima — CRB 10/1229)
Todos os direitos desta edição reservados a ARQUIPÉLAGO EDITORIAL LTDA. Avenida Getúlio Vargas, 901/506 CEP 90150-003 Porto Alegre — RS Telefone 51 3012-6975 www.arquipelagoeditorial.com.br
Para a Mariangela e o Arildo, que curtem lugares-incomuns
O lugar do lugar-comum Humberto Werneck Não sou — espero — um desses sujeitos ranhetas, cuja alegria é encontrar defeito no que ouve ou lê, mas admito que há muito venho colecionando lugares-comuns e frases feitas. Não tem gente que caça borboletas para espetá-las numa placa de isopor? Pois eu tenho aqui a minha coleção de, vamos dizer, antiborboletas. Não são nada bonitas, mas, de certa forma, voam — e como proliferam! No tempo, fazem percurso inverso ao dos ornamentais lepidópteros: o que foi um dia linda borboleta regride à condição de nada atraente lagarta. No começo, sem saber exatamente por que estava guardando semelhante cacaria, eu fazia anotações em qualquer pedaço de papel, que depois enfiava num envelope, mais tarde num envelopão. O antiborboletário foi crescendo. Em mais de uma ocasião, nessas heroicas faxinas de escritório, por pouco não joguei no lixo aquilo que exatamente como lixo eu havia coletado. •••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••
Se não joguei, foi por ter encontrado ali algum divertimento, cujo vírus chegou a contaminar colegas meus nas redações de jornais e revistas por onde passei. Alguns deles — Claudio Bojunga, Ricardo Setti e Ivan Marsiglia, em especial — entraram na brincadeira e, com entusiasmo comparável ao meu, contribuíram para engordar o envelope. No caso dos verbetes futebolísticos — copiosos e acompanhados da palavra “futebol” entre parênteses quando pudesse haver outro sentido —, a minha espessa, compacta ignorância (sim, os dois lugares-comuns estão consignados) quase sempre se socorreu da sapiência ludopédica de três craques na matéria, meu irmão Otávio, minha sobrinha Letícia Miraglia e meu amigo Jaime Prado Gouvêa. Para entrar no tom: a eles e a muito mais gente, sem cuja colaboração, tão generosa quanto desinteressada (e mesmo, em inumeráveis casos, involuntária...), este modesto trabalho não teria sido possível, os sinceros agradecimentos do autor. Quanto a mim, tive nessas quase quatro décadas uns tantos surtos de colecionador, não raro incendiado por uma febre que, nas circunstâncias mais diversas, por vezes nada convenientes (me lembro de um velório), me levava a rabiscar anotações no papelzinho mais à mão. Convertido em gari da semântica, me via recolhendo detritos verbais como “a escola da vida”, “abraçar uma causa”, “acreditar piamente” ou “o âmago da questão”, para não ir além de quatro amostras pinçadas no território da letra A. Por pouco não me tornei uma espécie de alienista que, como Simão Bacamarte, tendo enveredado por uma espiral alucinada, acabasse por internar não apenas lugares-comuns e frases feitas,
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mas todo o repertório da língua portuguesa, como fez o personagem de Machado de Assis com a população da vila de Itaguaí. Um dia meu filho Paulo me pediu mesada extra e eu achei que seria pedagógico trocá-la por algum serviço, mas qual? Aí me lembrei do envelopão. E quando aquilo veio digitado e em ordem alfabética, bonitinho, descobri uma utilidade para os lugares-comuns, além daquela que apontou a pensadora alemã Hannah Arendt em A vida do espírito e que aqui vai citada, até para dar mais substância a este prefácio — ou, se você quiser, “prefácil”: Clichês, frases feitas, adesão a códigos de expressão e conduta convencionais e padronizados têm a função socialmente reconhecida de proteger-nos da realidade, ou seja, da exigência de atenção do pensamento feita por todos os fatos e acontecimentos em virtude de sua mera exigência. Se respondêssemos todo o tempo a essa exigência, logo estaríamos exaustos. Em outra citação, que já se tornou ela mesma lugarcomum quando se fala de lugares-comuns, o americano H. L. Mencken vai no mesmo rumo e afirma que os clichês têm origem no “medo do desconhecido”, no conforto medíocre de quem, preferindo não arriscar, se basta com fórmulas prontas. Teorias à parte, percebi que tinha nas mãos alguma coisa capaz de interessar a alguém mais que os colecionadores de clichês — grupo de maníacos ao qual acabei pertencendo e que no Brasil reúne, entre outros, •••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••
Fernando Sabino, Décio Valente e Claudio Tognolli, mais ou menos estudiosos do assunto. A partir de então, para usar uma das antipérolas aqui recolhidas, trabalhei com afinco no que aos poucos deixou de ser um maço de folhas para virar livro. Com o risco, bem sei, de que algum engraçadinho, sacando a piada óbvia, venha dizer — e por isso digo antes — que se trata de minha obra mais pessoal. O que me levou a fazê-la, ainda quando não passava de embrião de um livro involuntário, foi a obsessão que sempre tive com a funcionalidade da linguagem. A necessidade de que cada palavra, esse precário instrumento de comunicação, chegue o mais perto possível daquilo que se quer dizer. Se escrever vale a pena, deve ser para enunciar algo que se pretende novo — e me parece um contrassenso, sobretudo no jornalismo, tentar passar o novo com linguagem velha. Usar pilhas gastas — se você me permite este lugar-comum. A culpa talvez seja da justiça, que tantas vezes não apenas tarda como falha, mas não será acrescentando-se o adjetivo “rigoroso” ao substantivo “inquérito” que se fará um brasileiro acreditar que desta vez, sim, a falcatrua vai ser integralmente esclarecida. Não se trata, portanto, de cavalgar O pai dos burros e partir em cruzada contra os inimigos de alguma Ortodoxia Estilística. Ele não pretende ser um index prohibitorum. Nada de polícia. Não se ofenda nem se avexe se encontrar aqui alguma ou muitas de suas expressões prediletas. Há várias que também são minhas. O que se quer com este livro é apenas recomendar desconfiança diante de tudo aquilo que, no ato de escrever, saia pelos dedos com demasiada facilidade. 10
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Porque nada de verdadeiramente bom costuma vir nesse automatismo. João Cabral de Melo Neto disse melhor no poema “O ferrageiro de Carmona”: “Nem deve a voz ter diarreia”. Eu gostaria que O pai dos burros, para além da advertência do poeta, fosse uma incitação à reciclagem criativa de expressões que só se gastaram por terem sido, um dia, luminosos lugares-incomuns, a partir daí repetidos até a exaustão semântica. Desmontar e remontar o clichê. Dizer, por exemplo, que as coisas vão “de vento em popa” quando caminhem bem é lugarcomuníssimo. Mas pode haver inesperada graça em anunciar, quando andem mal, que elas vão “de vento em proa”. Até, naturalmente, que “de vento em proa”, quando as pilhas se gastarem, já não ande tão “de vento em popa”. São Paulo, julho de 2009
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11
A A
De A a Z
Abacaxi
Descascar o abacaxi
Abalado
Profundamente abalado
Abandono
Completo abandono
Abismo
Abrir-se um abismo sob os pés
Abordagem
Uma nova abordagem
Abraçar
Abraçar uma causa Abraçar uma profissão
Abraço
Correr/partir pro abraço (futebol) Forte abraço
Acabar
Acabar-se o que era doce
Acampamento Levantar acampamento Ação
Passar das palavras à ação
Acaso
Mero acaso
Acelerador
Pisar fundo no acelerador
Acertar
Acertar a moldura (futebol) Acertar em cheio
Achado
Não se dar por achado
Achatamento
Achatamento salarial
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Acidente
Acidente de grandes proporções Acidente de percurso Acidente fatal Trágico acidente
Aço
Aço de fina têmpera
Acolher
Acolher de braços abertos
Acontecer
Como sói acontecer
Acontecimento Acontecimento infausto Nessa altura dos acontecimentos Acordo
Costurar um acordo Sacramentar um acordo Selar um acordo
Acreditar
Acreditar piamente
Acusação
Acusação gratuita
Adeus
Dar o último adeus Ser chegada a hora de dizer adeus
Adrenalina
Adrenalina pura
Adversário
Escolher o adversário (futebol) Não se intimidar com o adversário (futebol) Respeitar o adversário (futebol)
Afazeres
Afazeres domésticos
Afinco
Estudar/trabalhar com afinco
Afirmar
Afirmar categoricamente
Aflitos
Consolar os aflitos
Ágape
Concorrido ágape
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— afazeres domésticos —
Agenda
Abrir espaço na sua agenda Agenda carregada Agenda positiva
Agonia
Debater-se na agonia Momentos de agonia Nas vascas da agonia Nos estertores da agonia
Agora
Agora é que são elas
Agradar
Agradar a gregos e troianos
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15
Agressão
Agressão gratuita
Água
Água que passarinho não bebe Águas frescas e cristalinas Águas passadas não movem moinho Até debaixo d’água Carregar água em cesto Dar com os burros n’água De primeira água Desta água não beberei Ir por água abaixo Muita água vai rolar Passar muita água sob a ponte Por que cargas d’água Pôr água na fervura Pôr água no feijão Sombra e água fresca
Aguardar
Aguardar ansiosamente
Agulha
Procurar agulha em palheiro
Ajuda
Ajuda desinteressada Ajuda inestimável
Ala
Jogar como um ala moderno (futebol)
Alavancar
Alavancar as vendas
Alcova
Segredos de alcova
Alegria
Alegria contagiante Não caber em si de alegria Transbordante de alegria
Alento
Ganhar novo alento
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Alguém
Ter um novo/um outro alguém
Aliado
Poderoso aliado
Alicerce
Abalar os alicerces Lançar alicerces Ter sólidos alicerces
Alimentação
Alimentação saudável
Alívio
Alívio imediato Alívio momentâneo Pronto alívio
Alma
Alma caridosa Alma gêmea De alma lavada De alma leve Na bacia das almas Ser uma boa alma Vender sua alma ao diabo
Alto
Falar mais alto (fig.)
Altura
Responder à altura
Aluno
Aluno aplicado
Alvitre
De bom alvitre
Âmago
No âmago do seu ser O âmago da questão
Amanhã
Amanhã será outro dia O amanhã que virá Pensar no dia de amanhã Sem amanhã Viver como se não houvesse amanhã
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17
Amar
Amar perdidamente Amar se aprende amando
Amargar
Amargar uma derrota
Amargura
Cair na rua da amargura
Ambição
Ambição desmedida
Ambiente
Ambiente festivo
Amigo
Amigo de todas as horas Amigo do alheio Amigo do peito Amigo é pra essas coisas Amigo fiel Amigo fraterno Amigo para o que der e vier Amigo pessoal Amigos de longa data Amigos inseparáveis Apenas bons amigos Quem avisa amigo é
Amizade
Amizade fraterna Amizade indestrutível Laços de amizade Sólida amizade Velha amizade
Amor
Amor acendrado Amor com amor se paga Ardentes juras de amor Cair de amores Entre dois amores Juras de amor eterno
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Morrer (ou não) de amores O amor é lindo Ter um amor em cada porto Tórrido caso de amor
Amostra
Amostra eloquente Amostra expressiva Uma pequena amostra
Analfabeto
Analfabeto de pai e mãe
Andança
Em suas andanças pelo mundo
Andar
Andar de déu em déu Andar por ceca e meca
Andor
Devagar com o andor que o santo é de barro
Andorinha
Uma andorinha só não faz verão
Anedota
Anedota picante
Anel
Vão-se os anéis, ficam os dedos
Ânimo
Ânimo renovado Apaziguar os ânimos Injeção de ânimo Isenção de ânimo
Anistia
Anistia ampla, geral e irrestrita
Anjo
Discutir o sexo dos anjos Ser um anjo de candura Um anjo de criatura
Ano
Anos a fio Anos de chumbo Anos dourados Ao longo dos anos
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19
Com o passar dos anos Entra ano, sai ano Entrado em anos Estar a anos-luz de No remoto ano de No verdor dos anos O peso dos anos Os melhores anos de nossas vidas Que os anos não trazem mais
Anonimato
Esconder-se no anonimato
Ânsia
Ânsia incontida
Antro
Antro de jogatina Antro de perdição
Apagar
No apagar das luzes
Apaixonar-se
Apaixonar-se perdidamente
Apelo
Apelo dramático Apelo patético Apelo veemente
Apertado
Apertado como sardinha em lata
Aplaudido
Ser vivamente aplaudido
Aplaudir
Aplaudir delirantemente
Aplauso
Arrancar aplausos Digno de aplausos Merecidos aplausos Não regatear aplausos Prorromper em aplausos
Apoio
Apoio incondicional Apoio irrestrito
20
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Aposento
Recolher-se aos seus aposentos
Apresentação
Dispensar apresentação
Apresentar
Orgulhosamente apresenta
Aprisco
Voltar (uma ovelha) ao aprisco (fig.)
Apuração
A marcha das apurações As apurações se processam em ritmo moroso
Apuro
Trajar-se/vestir-se com apuro
Aquela
Sem mais aquela
Aqui
Já não está mais aqui quem falou
Ar
Ar compungido Dar o ar de sua graça Estar de pernas para o ar Haver qualquer coisa no ar Ir/mandar pelos ares
Aragem
Aragem fresca
Aranha
Estar em palpos de aranha
Arbitragem
A arbitragem prejudicou o espetáculo/nosso time
Arcabouço
Arcabouço constitucional Arcabouço legal
Arcar
Arcar com as consequências Arcar com as despesas Arcar com os custos
Arco
Do arco da velha
Areia
Areias escaldantes
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Areias macias Castelos de areia Entrar areia
Aresta
Aparar as arestas
Argumento
Argumento irrespondível Sólido argumento Um argumento e tanto
Arma
Arma mortífera Com armas e bagagens Pegar em armas Ter uma arma secreta Terçar armas
Armado
Armado até os dentes Fortemente armado
Armário
Sair do armário
Arquitetura
Arquitetura arrojada
Arrancar
Arrancar a fórceps
Arreio
Firme nos arreios
Arrepender-se
Arrepender-se amargamente Arrepender-se pelo resto da vida
Arrostar
Arrostar o perigo
Arte
A sétima arte
Artilheiro
Morrinho artilheiro (futebol)
Árvore
Árvore frondosa
Asa
Arrastar uma asa para alguém Bater asas Dar asas à fantasia/imaginação
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Debaixo da asa de Ter asas nos pés
Ascensão
Ascensão meteórica Em franca ascensão Uma estrela em ascensão
Aspiração
Legítimas aspirações
Assalto
Tomar de assalto
Assassinato
Bárbaro assassinato Brutal assassinato
Assassino
Assassino sanguinário
Assunto
Assunto momentoso
Astro
Astro de primeira grandeza O astro-rei
Atacante
Atacante impetuoso (futebol)
Ataque
À beira de um ataque de nervos Imprimir velocidade ao ataque (futebol)
Atenção
Atenção redobrada Polarizar as atenções Todas as atenções se voltam para
Atender
Atender prontamente
Atentado
Atentado à moral e aos bons costumes Atentado brutal Covarde atentado
Atingir
Atingir em cheio
Atirador
Exímio atirador Ser um franco atirador (fig.)
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Atirar
Atirar a esmo Atirar no que viu e matar o que não viu
Atitude
Atitude desassombrada Atitude digna de encômios Atitude impensada Atitude louvável
Atração
Exercer uma irresistível atração
Atrás
Não ficar atrás
Atuação
Atuação destacada
Atualização
Atualização constante
Aurora
Na aurora da vida
Autômato
Agir como um autômato
Autoridade
Altas autoridades Autoridades competentes O descaso das autoridades
Autorização
Autorização expressa
Avançar
Avançar a passos largos
Ave
Ave de bela plumagem
Aventura
Aventura eletrizante O gosto da aventura
Aviso
Aviso aos navegantes
Azar
Dar chance ao azar
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