Anais ARTE_PESQUISA: INTER-RELAÇÕES - PARTE 2

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ANAIS DO ARTE_PESQUISA: INTER-RELAÇÕES i 9 -11 de Outubro, 2012 São Paulo


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ARTE_PESQUISA: INTER-RELAÇÕES

Rejane Galvão Coutinho, Monica Baptista Sampaio Tavares, Mauricius Martins Farina (Coords.)

9 -11 de Outubro, 2012 São Paulo

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ANAIS DO ARTE_PESQUISA: INTER-RELAÇÕES Editoração e Supervisão Rosângela Aparecida da Conceição Design Gráfico Isabel Carvalho Web Design Mariana Maia Catalogação Sebastiana Freschi - CRB-8/3938

Ficha catalográfica - Serviço Técnico de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes/UNESP Sebastiana Freschi - CRB-8/3938

ARTE_PESQUISA: INTER-RELAÇÕES (2012: São Paulo, SP) A786

Anais [de] ARTE_PESQUISA [recurso eletrônico]: INTER-RELAÇÕES: 9, 10 e 11 de outubro 2012 / coord. Rejane Galvão Coutinho, Monica Baptista Sampaio Tavares e Mauricius Martins Farina. São Paulo: UNESP - Instituto de Artes, 2012. Internet http://arte-pesquisa.blogspot.com.br Evento organizado pelos Programas de Pós-Graduação em: Artes da UNESP, Artes Visuais da USP e Artes Visuais da UNICAMP. ISBN 978-85-62309-06-9

1. Arte. 2. Artes visuais. I. Coutinho, Rejane Galvão. II. Tavares, Monica Baptista Sampaio. III. Farina, Mauricius Martins. IV. Título. CDD: 700

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APRESENTAÇÃO

O ARTE_PESQUISA: INTER-RELAÇÕES é um evento organizado pelo Programa de PósGraduação em Artes da UNESP, Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da USP e Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UNICAMP e tem como objetivo estimular discussões e trocas entre os três programas de pós-graduação em artes e artes visuais no estado de São Paulo, que acontecerá bienalmente, cada vez em uma das instituições. Esta edição teve como foco a qualificação das pesquisas no campo das artes, com a participação de palestrantes nacionais e internacionais que debateram questões ligadas à temática da pesquisa nas dimensões estética, histórica e cultural, além de contemplar mostra de arte, espetáculos de dança, música e cênicas. Seguindo a tendência contemporânea, o evento almejou ser amplo o bastante para abranger diversas áreas, pensadas em sua relação com as políticas públicas e com as diversas instituições culturais nacionais e estrangeiras. Assim, um dos objetivos do encontro foi favorecer um intercâmbio, estreitar trocas e incentivar pesquisas multidisciplinares. Os artigos desta publicação eletrônica foram selecionados pela Comissão Científica, sendo sua publicação vinculada à apresentação, presencial ou por videoconferência, ao longo do evento. Desta forma, temos dez na linha Arte-educação, vinte e quatro na linha História, Teoria e Crítica da Arte, e trinta e dois na linha Poéticas e Linguagens, totalizando em sessenta e seis. Temos muito a agradecer, pois tudo isso não se faz sozinho: o encontro atingiu um patamar de importância que pôde contar com a presença de pesquisadores estrangeiros de renomadas instituições. Além disso, o evento continua a se beneficiar com a participação e o reconhecimento do qualificado corpo docente e discente das três universidades e seus respectivos programas de Pós-graduação. Lembramos também, e agradecemos a participação indispensável dos servidores técnicos do Instituto de Artes da UNESP, bem como o suporte que nos foi dado pelos responsáveis pelo auditório do Instituto de Física Teórica. Registramos os nossos agradecimentos aos grupos de pesquisa GIIP e CAT, a Fundação OSESP, aos editores da Revista ARTE!Brasileiros, do Mapa das Artes, da Revista Digital ART&. Ressaltamos o precioso auxílio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Comissão Organizadora

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ARTE_PESQUISA: INTER-RELAÇÕES 9 -11 de Outubro, 2012 São Paulo

Comissão organizadora Mauricius Martins Farina (coord. programa de pós-graduação em artes visuais - UNICAMP) Monica Baptista Sampaio Tavares (coord. programa de pós-graduação em artes visuais - USP) Rejane Galvão Coutinho (coord. programa de pós-graduação em artes - UNESP) Comissão de produção Gilbertto Prado (USP), José Spaniol (UNESP), Maria de Fátima Morethy Couto (UNICAMP), Marta Luiza Strambi (UNICAMP), Rosangella Leote (UNESP), Sônia Salzstein (USP), Sumaya Mattar (USP) Comissão Científica Afonso Medeiros (UFPA), Bernard Darras (Université Paris I), Francisco Laranjo (Univ. Porto), François Soulages (l'Université Paris VIII), Lucia Gouvêa Pimentel (UFMG), Luis Alberto Freire (UFBA), Luis Sergio de Oliveira (UFF), Milton Sogabe (UNESP), Mirtes Marins de Oliveira (FASM), Sandra Rey (UFRGS), Sheila Cabo Geraldo (UFRJ), Suzete Venturelli (UnB) Comissão de Apoio Rosângela Aparecida da Conceição (mestranda - IA-UNESP), Inês Moura (mestranda - IAUNESP),Soraya Braz (mestranda - IA-UNESP), Leopoldo Tauffenbach (doutorando - IA-UNESP), Myriam Salomão (doutoranda - FAU-USP), Fábio Oliveira Nunes (pós-doutorando - IA-UNESP) Comissão de Seleção Agnus Valente (UNESP), Anna Paula Silva Gouveia (UNICAMP), Dária Gorete Jaremtchuk (USP), Eduardo Braga (SENAC), Fabio de Oliveira Nunes (UNESP), Fernando Fogliano (SENAC), Geraldo de Souza Dias Filho (USP), Gilbertto Prado (USP), Jose Leonardo do Nascimento (UNESP), Liliam Amaral (UNESP), Lucia Helena Reily (UNICAMP), Luise Weiss (UNICAMP), Luiz Cláudio Mubarac (USP), Lygia A. Eluf (UNICAMP), Márcio Périgo (UNICAMP), Marco Antônio Alves do Valle (UNICAMP), Marco Buti (USP), Marco Giannotti (USP), Marcos Solon Kretli da Silva (USP), Maria de Fátima Morethy Couto (UNICAMP), Maria José de Azevedo Marcondes (UNICAMP), Mário Ramiro (USP), Marta L. Strambi (UNICAMP), Mauricius Martina Farina (UNICAMP), Monica Tavares (USP), Omar Khouri (UNESP), Sônia Salzstein Goldeberg (USP), Sumaya Mattar (USP) Produção Executiva e Web Design Rosângela Aparecida da Conceição Design Gráfico Inês Moura

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Captação de imagens e Transmissão Online Lucas Araújo Batista, Lídia Cesaro Penha Ganhito, Felipe Morelatto Monitoria Sidiney Peterson Ferreira de Lima (mestrando - IA-UNESP), Noara Lopes Quintana Garcez Pimentel (mestranda - IA-UNESP), Camila da Costa Lima (mestranda - IA-UNESP), Myriam Salomão Myriam Salomão (doutoranda - FAU-USP)

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AGRADECIMENTOS

REALIZAÇÃO

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Índice Arte-Educação

Daiane Aparecida Isidoro Pettine

AVALIAÇÃO DIAGNÓSTICA NO ENSINO DAS ARTES: uma possibilidade artística e formativa

1-13

Estela Maria Oliveira Bonci, Miriam Celeste

AÇÕES PROPOSITORAS DE EXPERIÊNCIAS ESTÉTICAS COM CRIANÇAS DE 9/10 ANOS: a exposição “COLEÇÃO, CIÊNCIA E ARTE”.

14 - 23

Giuliano Tierno de Siqueira

A ARTE DE CONTAR HISTÓRIAS: da tradição oral à criação de um curso de pósgraduação lato sensu

24 - 33

Hanna Talita Gonçalves Pereira de Araújo

INTERLOCUÇÕES ENTRE ARTISTAS E CRIANÇAS: pesquisa qualitativa em artes visuais

34 - 41

Heloisa Pait

A GUENIZA DE MARÍLIA - um mergulho na memória junto com alunos de graduação

42 - 51

Janaína Quintas Antunes Priscila Zanganatto Mafra

ARTE E TECNOLOGIA: ferramentas a descobrir na aprendizagem

52 - 60

Maria Cristina da R. F. da Silva Judivânia Maria Nunes Rodrigues Giovana Bianca Darolt Hillesheim

A FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE ARTE: lugares acadêmicos e lugares nãoformais

61 - 74

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Renata Pereira Navajas Mancilha Barbosa

TRILHANDO CAMINHOS CONHECIDOS DA CIDADE DE SÃO JOSÉ SOB NOVOS OLHARES DAS CRIANÇAS

75 - 90

Sônia Tramujas Vasconcellos

FORMAÇÃO DO PROFESSOR PESQUISADOR DE ARTES VISUAIS: discursos e contextos

91-98

Yáskara Beiler Dalla Rosa

GT EDUCAÇÃO E ARTE DA ANPED: analisando a produção sobre formação de professores de arte

91 - 104

História, Teoria e Crítica da Arte

Alena Rizi Marmo

APROPRIAÇÃO, TRANSFORMAÇÃO E RESSIGNIFICAÇÃO COMO PRÁTICAS NA PRODUÇÃO DE LUIZ HENRIQUE SCHWANKE

105 - 116

Ananda Carvalho

CURADORIA EXPANDIDA: processos de criação em rede a partir de julio plaza e ricardo basbaum

117 - 126

André Guilles Troysi de Campos Andriani

A ATUAÇÃO DA FUNARTE ATRAVÉS DO INAP NO DESENVOLVIMENTO CULTURAL DA ARTE BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA NAS DÉCADAS DE 70 E 80 E INTERAÇÕES POLÍTICAS COM A ABAPP

127 - 138

Andréa Virginio Diogo Garcia

OS DESAFIOS DA PINTURA FRENTE À ARTE-TECNOLOGIA

139 - 147

Arethusa Almeida de Paula

À SOMBRA DE HÉLIO OITICICA

148 - 158

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Caroline Saut Schroeder

NON À LA BIENNALE: o boicote à X BIENAL DE SÃO PAULO

159 - 172

Clara de Freitas Figueiredo

A “MORTE DA PINTURA” COMO “ENCOMENDA SOCIAL”: do construtivismo de laboratório ao produtivismo

173 - 200

Danielle Manoel dos Santos Pereira

ATRIBUIÇÃO CONFIRMADA: a pintura do forro da nave dos terceiros do Carmo em Mogi das Cruzes (SP)

201 - 214

Eduardo Augusto Alves de Almeida Eliane Dias de Castro

CONCEPÇÕES DE CORPO NA ESTRUTURAÇÃO DO SELF DE LYGIA CLARK

215 - 228

Eduardo Tsutomu Murayama

A PINTURA DE JESUÍNO DO MONTE CARMELO NA IGREJA DO CARMO DE SÃO PAULO: de painel invisível a marco na história da arte paulista

229 - 238

Fabricia Cabral de Lira Jordão

A CRIAÇÃO E ATUAÇÃO DO NAC/UFPB NO PERÍODO DE 1978|1985 EM JOÃO PESSOA.

239 - 247

Josimar José Ferreira

‘AS FIANDEIRAS’: bricolagens, inter-relações e desdobramentos de um mito.

248 - 259

Lúcio Reis Filho Alfredo Suppia

O LABORATÓRIO DE MÍDIAS LOCATIVAS E CINEMA GPS (LALOCA) E A PESQUISA HISTÓRICA: mapeamento anotativo das obras arquitetônicas do estilo art déco em Juiz De Fora, Minas Gerais

260 - 273

Marilia Mendes Machado

OPAVIVARÁ: a arte contemporânea e suas relações com o espaço do público

274 - 281

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Myriam Salomão

A CONTRIBUIÇÃO DO RESTAURO PARA UMA NOVA HISTÓRIA DA PINTURA COLONIAL PAULISTA

282 - 292

Paulo Roberto Monteiro de Araújo

ANSELM KIEFER E O PROBLEMA DA ARTE COMO SOBREVIVENTE DE SUAS RUÍNAS

293 - 300

Priscilla Barranqueiros Ramos Nannini

O ENTRELAÇAR DA PALAVRA E DA IMAGEM NA ARTE, POESIA E DESIGN

301 - 314

Ricardo Coelho

A MATÉRIA COMO EXPRESSÃO DO TEMPO NA ARTE

315 - 331

Sandra Maria de Oliveira

INVESTIGAÇÕES DE UM PROCESSO EM DANÇA: possibilidades entre o moderno e o contemporâneo

332 - 341

Sônia Aparecida Fardin

INTERLOCUÇÕES ENTRE PICTÓRICO E FOTOGRÁFICO EM CAMPINAS – 1950-1980

342 - 352

Teresa Midori Takeuchi

COR, LUZ E FIGURINO NO CINEMA NOVO E NO NOVO CINEMA BRASILEIRO

353 - 368

Thiago Gil de Oliveira Virava

‘UM BOCADO DE LOUCURA, DE DESGRAÇA E MUITO DE SAGRADO’

369 - 384

Thyago Marão Villela

O TERMIDOR ARTÍSTICO SOVIÉTICO: arquitetura construtivista e stalinismo no processo revolucionário

385 - 396

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DO TRADICIONAL AO SUSTENTÁVEL: a utilização das cinzas em vidrados cerâmicos no brasil.

397 - 407

Adriane Hernandez

POÉTICA E FENOMENOLOGIA proposições para pesquisa e ensino da arte

408 - 417

Alessandra Lucia Bochio

EES: intermídia/ tradução intersemiótica

418 - 429

Andréa Tavares

MAPEAMENTO PARA CURSO DE DESENHO POR CORRESPONDÊNCIA

430 - 447

Branca Coutinho de Oliveira Amilcar Zani Netto Heloisa Zani

A DOBRA SCHUMANNIANA: entre-planos

448 - 458

Cladenir Dias de Lima Agnus Valente

CORPO - TERRITÓRIO DE METAMORFOSES E HIBRIDISMO

459 - 469

Claudio Hideki Matsuno

DESENHO INTRUSO

470 - 478

Dora Lilia de Campos Sabor

A FOTOGRAFIA COMO ELEMENTO DIDÁTICO NO ENSINO DA ESCOLA PÚBLICA: a educação do olhar no meio ambiente construído

480 - 492

Vanessa Yoshimi Murakawa

Poéticas e Linguagens

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Fabiana Turci Salman

O SILÊNCIO ESCRITO

493 - 500

Fernanda Albuquerque de Almeida

POR UMA ESTÉTICA DO MACHINIMA

501 - 513

Gabriela Caetano D'amoreira Agnus Valente

PAISAGENS HÍBRIDAS: as multimídias e a construção das obras artísticas

514 - 529

Gina Dinucci

ANIMA: fotografia como amálgama de tempos

530 - 537

Jade Samara Piaia

MATERIALIZAÇÕES FORMAIS E COMPOSITIVAS NO DESIGN GRÁFICO VOLTADO À CULTURA

538 - 548

João Pedro Canola Pereira Agnus Valente

SUJEITO HÍBRIDO: corpo comum e corpo artístico na prática da performance art.

549 - 561

Juliana Harrison Henno

ESTUDOS DE CASO DE PROCESSOS DE CRIAÇÃO ARTÍSTICA BASEADOS NA FABRICAÇÃO E PROTOTIPAGEM DIGITAL

562- 572

Lia Fernanda Ramos de Oliveira

PARÁBOLAS NONSENSES

573- 585

Liene Nunes Saddi

TECNOLOGIA E EXPRESSIVIDADE: reflexões sobre experimentações em videoarte e videoclipes na obra de Zbigniew Rybczyński

586 - 600

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Luiz Carlos Andreghetto

VISUALIDADES PICTÓRICAS: divergências e convergências entre cinema e pintura na poética de Derek Jarman

601 - 610

Lyara Luisa de Oliveira Alvarenga

PASSANTE: Corpo e imagem em experimentação audiovisual

611 - 623

Maíra Cezaretto Camargo

FRED FOREST: o poder da mídia espontânea como elemento de criação artística

624 - 633

Marcelo Salum Ferreira

COMO CONSTRUIR UM DISPOSITIVO DE ESCUTA?

634 - 650

Maria Helena Machado Farina

PORQUE SOMOS HELENAS: uma passagem entre linguagens

651 - 666

Maria Patricia Francisco

ARQUIVOS EM PROCESSO: filme, fotografia e memória

667-681

Matheus Mazini Ramos

NOVAS COMPLEXIDADES: um novo olhar para a fotografia

682-694

Mirla Fernandes Ribeiro

TERRITÓRIOS EXPANDIDOS - práticas contemporâneas de arte-joalheria

695-703

Myrna Coelho

ARTE E LOUCURA: alguns fundamentos clínico-estéticos.

704- 715

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Nardo Germano

POR UMA POÉTICA DA AUTORIA ABERTA: apropriação do sistêmico como programa poético nas artes participativas e interativas.

716 - 732

Natália Godinho Coutinho

DOUTRINA E CONFRONTO - corpo e paisagem nos trabalhos de Absalon e Natália Coutinho

734 - 743

Rachel de Castro Venturini Lucia Fonseca

ARTE NO TERRITÓRIO DO DIÁLOGO

744-761

Roseli Behaker Garcia

A PERCEPÇÃO DE ESCULTURAS POR TRÊS PESSOAS CEGAS

762-775

Sandra Minae Sato

ARDENDO EM CHAMAS

776-783

Viviane de Andrade Sá

ARQUITETURA VIOLADA: hipóteses projetuais através de práticas artísticas

784-802

Wagner Leite Viana

A PAISAGEM NA CONTEMPORANEIDADE: uma revisão do gênero pictórico a partir do belo, do sublime e do pitoresco e a atitude da “caminhada” como constituição para uma poética.

803 - 810

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Poética e fenomenologia Proposições para pesquisa e ensino da arte Adriane Hernandez1 Resumo: A partir de uma produção artística que integre pesquisa plástica e conceitual, propõe -se colocar em evidência um modo de pesquisar e ensinar que traga o máximo de interação possível entre ação/fazer, pensamento e texto. O caminho experimentado pressupõe uma certa delicadeza e muita atenção para o processo dos estudantes e orientandos, uma escuta mais do que um discurso, o que quer dizer, ouvir, mais do que falar. Um percurso que encontra nas abordagens sutis de Roland Barthes o maior exemplo, sendo “Aula”, o pequeno livro que traz a transcrição da aula inaugural de Barthes no Collège de France, o referencial mais agudo. A pesquisa proposta tem como objetivo o desenvolvimento de parâmetros para uma abordagem filosófica dos processos de criação artística que possibilite uma constante renovação de ferramentas discursivas. Palavras-Chave: Artes visuais. Poéticas visuais. Pesquisa em arte. Processo de criação. Grupo Superfície 5.

1. Desarmar o discurso As reflexões que seguem são vinculadas à experiência da pesquisadora no cotidiano do ateliê de pintura, mais especificamente nas disciplinas de Pintura II e Pintura III, que passaram a se chamar Ateliê de Pintura II e Ate liê de Pintura III, respectivamente, com a mudança curricular implantada no Bacharelado em Artes Visuais, da Universidade Federal de Pelotas, em 2011. O recorte temporal está situado entre os anos de 2009 e 2012. Os apontamentos contidos nessa parte da pesquisa estão circunscritos principalmente à turma que iniciou Pintura II, no segundo semestre de 2009. Este recorte se deve ao fato de alguns alunos desta turma terem continuado a desenvolver suas pesquisas na UFPel, possibilitando- me acompanhar, como orientadora, em alguns casos, o desenrolar de suas trajetórias acadêmicas que, até o momento, atingem a pós-graduação lato senso Ensino e Percursos Poéticos, na UFPel. Penso, ainda, ser importante salientar que meu ingresso na UFPel data de 2009. Estas experiências didáticas são, então, inaugurais para mim – nessa Universidade e na cidade de Pelotas – e se deram com a turma em questão, principal foco de minha pesquisa. Minha

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Doutora em Artes Visuais, Poéticas Visuais, pela Universidade Federal do Rio Grande do Su l. Pro fessora do Programa de Pós Graduação da Universidade Federal de Pelotas. Membro do Grupo de Pesquisa Percursos Poéticos (UFPel). 408 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


experiência didática anterior data de 1999 até 2004, na Univerdade Tuiuti do Paraná, em Curitiba, também em um Curso de Artes Visuais e também em uma disciplina de pintura. Sou artista plástica, natural de Porto Alegre, RS, tendo realizado minha formação acadêmica, em nível superior, integralmente no Instituto de Artes da UFRGS. Apesar de conhecer muito pouco a cidade de Pelotas, minha adaptação não poderia ter sido mais rápida. Comecei participando como colaboradora de um curso de extensão em pintura com o colega professor substituto, Roger Coutinho. Quando se iniciou o semestre, duas participantes desse curso, ingressaram no Bacharelado de Artes Visuais, com matrícula especial e posteriormente tornaram-se minhas alunas nas disciplinas de pintura. As disciplinas de Pintura II e Pintura III, como eram relativas ao final do curso, pertenciam ao 6° e 7° semestres. Os alunos que ali chegavam já tinham cumprido em torno de dois terços do currículo. Um dado comum a todos, na turma em questão, é que não tinham estabelecido uma poética, digamos assim. Ainda não tinham um problema de pesquisa que desse impulso ao processo individual ou a um processo coletivo, sendo que, se não reprovassem ou abandonassem o curso, em um ano e meio estariam formados. Após os primeiros contatos com os alunos, tomando conhecimento dos trabalhos que haviam feito até então, tendo ouvidos seus relatos, suas perspectivas e anseios, momento mais delicado no meu ponto de vista, onde se ganha ou se perde a confiança individual e do grupo, percebi que a realidade que se apresentava então poderia ser propícia para algumas experimentações e a debates profícuos. Meu interesse, desde o início, era tentar desenvolver com os alunos uma experiência recente, que tinha conseguido vivenciar em meu doutorado em Poéticas Visuais. Antes disso, quando era docente em Curitiba, sentia que me falta va a prática daquilo que aconselhava, sendo que por esse motivo um de meus objetivos com a pesquisa de doutorado era testar, em mim mesma, se as proposições que dirigia aos estudantes eram, de fato, exequíveis. Foi assim que experienciei realizar uma pesquisa que fosse prazerosa para mim. Eu não deveria ter medo do desconhecido, deveria dar espaço e assumir as incertezas do processo de criação. Buscaria, com o texto, gerar um movimento semelhante ao da criação, nunca no sentido de explicar os trabalhos, subtraindo- lhes as ambiguidades. Minhas fontes bibliográficas pertenceriam aos campos do saber para os quais meu trabalho apontava e para os quais eu nutria interesse e curiosidade. Foi assim que me vi mais próxima da literatura, da filosofia, da 409 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


teoria da história, da psicanálise e de outros campos. Minhas vivências cotidianas não seriam excluídas do texto, assim como não seriam excluídas da produção artística. Experiências didáticas e trabalhos de alunos também teriam lugar no meu texto, porque era o que tinha de mais próximo, acreditando que minha pesquisa não deveria afastar-se de minha vida para que tivesse algum “valor” científico. Uma ideia para um trabalho surge as vezes de algo muito simples e banal, interessei- me por desmistificar a criação, trazendo a tona essas simplicidades. Os artistas citados por mim eram aqueles cujas as obras tinham realmente contaminado meu modo de pensar e produzir o trabalho artístico, não excluindo a contaminação de meu olhar pela fotografia impressa da obra, levando em consideração que as vezes essa experiência é a que mais permanece no imaginário. A “verdade” da significação de uma obra, mesmo que colocada pela fala de seu autor, ou de um crítico tido como autoridade, não me satisfazia. Repetir ou reafirmar esse discurso não fazia mais sentido, mas construir um outro, formulando uma linha que atravessasse meu próprio trabalho. É de meu trabalho e de minha vivência que surge o meu olhar, aquele que lanço para as coisas do mundo. Minha vontade era tentar perceber os meandros sutis da criação procurando manter uma certa delicadeza nessa busca. Desejei ter meus pés fincados na realidade, para melhor perceber os fenômenos que a implicam. Essas procuras todas tinham um fundo didático muito importante para mim. Isso me levou também a desenvolver um senso de alteridade, ele vem principalmente com a atenção ao outro. Surge da atenção. O não julgamento e a não interpretação tem a mesma raiz, para Heidegger consiste em “deixar cada coisa entregue de antemão ao seu vigor de essência” (2001, p. 129), para Merleau-Ponty “retornar as coisas mesmo é retornar a este mundo anterior ao conhecimento do qual o conhecimento sempre fala, e em relação ao qual toda a determinação científica é abstrata, significativa e dependente” (1999, p. 4). Retirar, com delicadeza, a névoa que o conhecimento deposita sobre a experiência. No começo de meus encontros com estes estudantes, em Pintura II, reparei que eles tinham adquirido a prática “teorista” de justificar cada dado do trabalho, com argumentação bastante frágil. O que o sintoma nas falas apontava era a execução de trabalhos onde pudessem encaixar um discurso constituído previamente ou um discurso que explicava o significado de cada forma ou objeto presente no trabalho, não havia espaço para a incerteza ou para o não-sentido. Meu exercício era de tentar desconstruir a partir de perguntas e conscientizá- los na falta de propósito em justificar um trabalho de arte. Eles diziam ser 410 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


cobrados, por outros professores e por outras pessoas, sempre com a pergunta: “O que você quer dizer com isso?”, concluindo, a partir disso, que deveriam sempre explicar os trabalhos. O que me fez compreender melhor o que Roland Barthes colocou em sua Aula: “O que pode ser opressivo num ensino não é finalmente o saber ou a cultura que ele veicula, são as formas discursivas através das quais ele é proposto” (1978, p. 43). Nesse momento de meu relato, faço um salto para o presente, para verificar a atualidade de minha experiência e a presentificação de tais questões. Existe hoje, na cidade de Pelotas, um coletivo de artistas plásticas, chamado Grupo Superfície. Tal grupo tem dois anos de existência e um modo particular de trabalhar. Integram o Grupo Superfície, atualmente, seis artistas: Carla Borin, Carla Thiel, Daniela Meine, Mariza Fernanda, Natália Hax e Paloma de Leon. Em sua formação original eram oito. Dois artistas optaram em não permanecer no grupo, Rogério Franck e Adelina Petiz. As artistas se reúnem semanalmente e realizam ações pictóricas sobre um suporte de algodão. Tais ações, em suporte grande, são construídas por mais de uma artista, ao mesmo tempo, elas vão revezando a atuação. Mas esta não é a parte mais surpreendente de seu processo. Quando começaram a produzir coletivamente, cada artista já tinha uma ou mais ações características de suas poéticas, que eram para Paloma, escorrer a tinta de modo a formar linhas paralelas, para Mariza Fernanda, gravar carimbando, para Carla Thiel, manchar, contornar e vazar, para Carla Borin, manchar e carimbar duplicando. Já Daniela Meine trabalhava com estêncil e repetia um tipo de forma que representava para ela a memória de pedras, sendo que Natália Hax era a única que não fazia pinturas antes da existência do trabalho coletivo no grupo. Teve, no entanto, uma experimentação inicial, com um tipo de ornamentação repetitiva, mais linear do que pictórica. Foi a partir da ação de apropriação da ação de outro integrante do grupo, por parte de Natália, na casualidade da ausência daquele, que um novo modo que fazer se instituiu. As artistas decidiram então, estabelecer trocas de suas ações originais (FIG.1). Uma componente do grupo passou a fazer a ação de outra, ultrapassando a ideia de imitação, porque não foi reproduzido nem o gesto, como modo de fazer, nem o resultado, mas sim a ação. O que difere gesto e ação para Jersy Grotowski é que “o gesto é uma ação periférica do corpo, não nasce do interior do corpo, mas da periferia (...) A ação é algo a mais porque nasce do interior do corpo” (Grotowski, 1988).

411 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Com isso, saliento a diferença que há em tentar reproduzir algo olhando para o modelo, buscando reduzir ao máximo as ambiguidades dos gestos vacilantes e, partir de uma ação, que de certo modo, é geradora de um conceito que se associa mais imediatamente ao modo particular como esta ação é feita. A particularidade conduzida pelo corpo de quem a faz é mais evidente, lembrando ainda a célebre frase de Merleau-Ponty em O olho e o espírito: “O pintor „emprega seu corpo‟, diz Valéry. E, com efeito, não se vê como um espírito pudesse pintar. Emprestando seu corpo ao mundo é que o pintor transforma o mundo em pintura” (1984, p.88). Com esta frase que inicia a segunda parte do texto, Merleau-Ponty, já insere a tônica do que desenvolveria a seguir, o ser humano como um fenômeno. Fenômeno este que só pode ser pensando pela integração e não pela separação de suas partes, uma ingenuidade que o autor percebia na ciência, naquele momento. Nesse sentido, o que move os participantes do Grupo Superfície não é a representação, mas a ação. Ação esta, revelada por uma carga indicial, percebida na marca que o gesto imprime no suporte. Ora, desse modo o processo se torna, então, evidente aos olhos. O Grupo Superfície já realizou inúmeras exposições em Pelotas, Porto Alegre e outras cidades do Rio Grande do Sul, com esta produção realizada coletivamente. Contribui o fato de que os seus integrantes se revezam também no momento de enviar propostas para editais e em outras funções, tais como solicitação de apoio, entrevistas, transporte de obras, encomenda e compra de materiais. Para a exposição realizada em 2011, no Porão do Paço Municipal, em Porto Alegre, produzi um texto de apresentação, onde se lia: Devemos reconhecer que é necessário tal desprendimento das noções de autoria individual em benefício, não somente do resultado coletivo, mas principalmente de um „desvio pelo outro‟ em u ma experiência de deslocamento do eu. Se o outro é aquele que não sou eu, como se fala, quando o outro se parece comigo, ou me imita, fica mais explícito, o que nele difere de mim. Às vezes ao se procurar algo se encontra coisa diversa do que se está procurando, nesse caso, a contrapartida se transforma em empreendimento ético: as concessões da troca geram u ma desidentificação do sujeito que se dilui no outro coletivo. (HERNANDEZ, 2011)

São justamente objeto de meu relato e de minha pesquisa as artistas do Grupo Superfície que foram alunas da turma que começou a cursar Pintura II em 2009, incluindo Adelina Petiz e Carla Borin, que ingressaram depois de realizar o curso de extensão em pintura. Certamente, ninguém me contestaria se me ouvisse dizer que elas eram as participantes mais entusiasmadas da turma. Já formadas, a curiosidade, a vontade de construir algo e o prazer de pesquisar as motivou continuamente e esta motivação contaminou a turma 412 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


inteira. Carla Thiel e Paloma de Leon concluíram a Especialização em 2012, enquanto Carla Borin a iniciou neste mesmo ano. Realizei e realizo a orientação destas artistas. A monografia de Carla Thiel foi inteiramente sobre o Grupo Superfície. Percebo que o estímulo dos estudantes dirigiu-se em vários sentidos, que se pode distinguir como: criação artística, desenvolvimento textual, leitura, debate, pensar filosófico, relações éticas ligadas à alteridade, atuação e o questionamento do circuito da arte, entre outros. Considero também aqui, e somando a esse trabalho, a contribuição de meus colegas professores na formação destas artistas, mas que, no entanto, não desenvolveram uma relação de cumplicidade com a turma, como aconteceu comigo. Olhando para esses tantos sentidos diversos, propiciar estes estímulos pode parecer uma tarefa árdua e difícil ou talvez até impossível. Porém, se seguirmos Merleau-Ponty e pensarmos no fenômeno do conjunto, veremos que tudo advém de uma única fonte, que Roland Barthes, em s ua Aula coloca como sapiência, interligando pela etimologia saber e sabor. Em certo ponto do livro O prazer do texto pode-se ler a seguinte questão: “(...) e se o próprio conhecimento fosse por sua vez delicioso?” Estes dois pequenos livros de Roland Barthes foram fundamentais para minha formação, eles me influenciaram sobremaneira, principalmente em minha atuação como professora. Reside neles uma simplicidade complexa – por paradoxal que isso possa parecer – dada no modo do discurso, por ser possível situar-se nos lugares descritos e ter as sensações destes lugares, na delicadeza sutil das percepções vivenciais que se ligam ao corpo, desde a infância e, até mesmo, no tamanho dessas publicações, fato percebido como intencional quando o autor coloca que um texto sobre o prazer só pode ser curto, porque o prazer se esvai rapidamente. No entanto, tais livros tem uma dimensão irredutível ao número de suas páginas, dimensão esta conquistada pela abertura dada na poeticidade de sua escritura. Barthes, como se sabe, teve uma aceitação muito controversa na França, acusado de escorregar demasiadamente no subjetivismo. Ainda hoje sua produção textual é rechaçada por intelectuais de alguns segmentos acadêmicos. Penso que a polêmica maior aparece no momento que o autor tenta romper com o academicismo, ao vincular o saber com o sabor, apontando, pela etimologia da palavra sapientia, em direção a “nenhum poder, um pouco de sabedoria, e o máximo de sabor possível.” É nesse ápice que termina a aula inaugural que o professor proferiu no Colégio da França, em 07 de janeiro de 1977. 413 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Parece-me que o mais difícil de ser abdicado por um professor é o poder. Para Barthes esse poder se insere no discurso de uma maneira astuciosa, com o que ele chama de libido dominandi. Deste modo é preciso, em seu projeto mais profundo, interrogar-se sobre as maneiras de se desviar da recusa da liberdade pelo desejo de fixar, de prender, “de agarrar”, esta última, conforme a tradução de Leyla Perrone-Moisés. Muitos professores são adeptos da mistificação do conhecimento, como se este fosse algo muito distante do aluno, muito difícil para aquele que inicia a busca pelo saber. Talvez porque esses professores não tenham passado pela experiência de integrar saber e prazer. De um modo semelhante, só que apontando para os efeitos nocivos do teorismo, que se pode definir como a teoria aplicada, Yve-Alain Bois, em “A pintura como modelo” coloca que a primeira lição que se deve aprender, “é que não se aplica uma teoria; os conceitos precisam ser moldados a partir do objeto investigado ou importado de acordo com a exigência específica daquele objeto.” (Bois, 2009, p. xv) Pareceu-me então, em um dado momento de minha formação, principalmente a partir do contato com os textos de Barthes, que qualquer conhecimento sedimentado é um saber morto. Este que exercia sobre mim um efeito contrário, deixando- me mais insegura de minha atuação. Poderia então um professor se colocar como aprendiz, ao lado, do lado dos estudantes? E, sendo possível eliminar a condição de aluno, ainda marcada pela hierarquia de poder, atribuindo em seu lugar a de interlocutor, poderíamos entrever um outro tipo de relação? Buscando a pausa no velho discurso lecionador, exortador, ensaiando a retomada a qualquer momento de novos sentidos, assumo essa postura com a frequência possível, no cotidiano do atelier de pintura e em outras salas de aula. Mas na prática, como estas, até então utópicas relações, apareceram? Em seu trabalho de especialização sob o título “Grupo Superfície: percursos poéticos da criação compartilhada”, Carla Thiel Lautenschlager escreveu sobre as aulas: Criou-se um clima de descobertas, onde o debate das teorias e também a nossa produção artística era discutida o tempo todo, isto fazia-nos mais motivados em u m mo mento em que descobríamos nossos próprios conceitos, o debate acontecia como parte do trabalho. Colocava-se em questão o fazer, dando especial atenção ao processo, ao gesto, aprimorando nossas percepções e discutindo isso abertamente, criando, cada um, u ma identidade própria que não estava exatamente ligada aos princípios da história da pintura, mas a uma variedade de linguagens que cada um foi se identificando e pondo em prát ica. Em u m universo de discursos pictóricos, surgiram trabalhos dos mais variados, desde pinturas espessas com marcas de encobrir e sobrepor, até pinturas aguadas, escorridas, onde o gesto era ampliado pela 414 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


força da gravidade dando direções à pintura. Mas também surgiram trabalhos onde a pintura se estabelecia como conceito, ou como ponto de partida e, neste caso, objetos se faziam presentes, fotografias e muitos desenhos, gerando uma zona híbrida. (Lautenschlager, 2012, p. 12)

Uma das aulas que os estudantes descreveram como marcante foi uma projeção de dezenas de imagens de obras de artistas contemporâneos, momento em que duas questões eram colocadas a eles. A primeira foi: Onde está a pintura? E a segunda: Qual a ação utilizada pelo artista para criar o trabalho? Esta foi uma aula elaborada por mim, com obras sempre ambíguas e enigmáticas. Diante das questões colocadas, os alunos se viram estimulados e um espaço de jogo foi gerado. Inúmeras polêmicas surgiram e a curiosidade se instaurou para nunca mais abandoná- los. Lembro que nos primeiros momentos eles sempre esperavam que eu desse uma resposta única, que extirpasse o debate. Isso perdurou mais em alguns estudantes do que em outros, mas ao final do curso, todos já estavam convencidos e se tornaram adeptos das perguntas, mais do que das respostas. Procurei mostrar como a leitura que estava propondo era bastante acessível, até para leigos, já que a explicação, a análise ou a interpretação das obras não era importante naquele primeiro momento, mas um olhar atento e descritivo, que é a base da fenomenologia. Como aponta Merleau-Ponty é preciso que se perceba que anterior ao cogito existe o mundo, questão que percorre toda a obra do filósofo: “o verdadeiro Cogito não define a existência do sujeito pelo pensamento de existir que ele tem (...) não substitui o próprio mundo pela significação mundo” (1999, p. 9). O que começa a se romper é o automatismo que costuma estar ligado a uma negação do olhar em favor, principalmente, nesse caso, da crença no conceito previamente constituído. A aula teve inúmeros desdobramentos no ateliê. Os alunos, ao listarem as açõ es que haviam identificando nas obras dos artistas, poderiam escolher algumas delas para desenvolver seus trabalhos. Tal exercício, proposto na disciplina de Pintura II, propiciou o início da poética destes novos artistas, que mais tarde formariam o Grupo Superfície e compartilhariam tranquilamente suas ações com seus parceiros de grupo. Isso acabou gerando também um outro tipo de atitude nestas pessoas, em que as temáticas, senso comum nos trabalhos de conclusão do Bacharelado foram abolidas. A investigação dos processos, e a pesquisa de conceitos provenientes do saber substituíram a cansada abordagem historiográfica do tema, e a experiência foi colocada no centro da indagação.

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A narrativa do processo de criação artística surgiu como aliada às ideias que levavam a construção, assim como os sucessos, frustrações e desistências, mas também as contaminações com outros artistas. O estímulo ao debate, a produção de textos também narrativos sobre o percurso individual, sobre textos filosóficos e sobre o trabalho de artistas e colegas, levou-os a perceber o quanto é profícuo desviar-se para o “campo do outro”, proceder a um vai e vem de si mesmo para o outro, formulando um distanciamento crítico, como já apontou Jean Lancri (In: Brites; Tessler, 2002, p. 20). Com três encontros semanais de quatro horas cada, em Pintura III, foi possível reservar uma tarde somente para leitura e discussão de textos complexos: literatura, filosofia e textos de artistas, estavam no foco. Para elaborar seus textos, os alunos eram convidados a entrecruzar os textos lidos com sua experiência de produção artística ou quaisquer outras experiências, por mais incipientes que fossem. Tais textos formulados eram lidos na aula levantando discussões sobre forma, conteúdo, argumentação, coerência e outros aspectos ligados a análise do discurso. Com isso, eram estimulados a exercitar a fala sobre suas produções. De Adelina Petiz, ouvi nas primeiras páginas lidas de O olho e o espírito: “parece que ele faz questão de não ser compreendido!” Algumas aulas depois ouvi da mesma, ao compartilhar com as colegas um texto que havia escrito e que trazia citações dos autores lidos: “Merleau-Ponty é fascinante!”. Finalmente o prazer em conhecer era atingido, uma situação que exerce sobre mim um grande fascínio, e que me move na continuidade de meu trabalho como docente.

FIGURA 1: Interconexões I, Grupo Superfície, 2011, técnica mista, 100 x 100 cm. 416 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


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EES: INTERMÍDIA/ TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA Alessandra Lucia Bochio 1 Felipe Meker Castellani 2 Resumo: Abordaremos no presente artigo a série de performances intituladas “Espaços entre o sonoro” (EES), realizadas a partir de 2011 pelos membros do coletivo EntreMeios. O ponto central desta série é a busca pelo desenvolvimento de relações internas entre os diferentes meios que compõem o trabalho: a música, o vídeo e o corpo, evitando hierarquizações e subordinações de um sobre outro. Neste contexto, retomaremos o conceito de intermídia de Dick Higgins e alguns aspectos da teoria de Julio Plaza, tradução intersemiótica. Ao colocarmos lado a lado a prática artística e a investigação teórica, nossos dois principais eixos, podemos melhor vislumbrar nosso campo problemático, o qual tem como ponto central o surgimento de novas práticas artísticas, auxiliadas, e até mesmo possibilitadas, pelos meios digitais. É a partir desta reunião que objetivamos compreender estas mesmas práticas dentro de suas particularidades, evitando, desta forma, a criação de categorias e classificações que não dêem conta de tais especificidades. Palavras-Chave: intermídia; tradução intersemiótica; performances audiovisuais; Espaços entre o sonoro; EntreMeios.

1. Introdução Um som, uma imagem ou mesmo um aroma podem trazer consigo sensações de uma ordem diferente do sentido ao qual estão individualmente relacionados, assim, uma imagem pode remeter a um som, ou vice- versa; um aroma pode remeter a uma imagem e assim por diante. Quem nunca se pegou descrevendo um som através de atributos originariamente visuais? Sons brilhantes ou opacos, por exemplo. Tais adjetivos dizem respeito a atributos visuais, mais especificamente à características relativas a reflexão da luz e não a atributos sonoros propriamente ditos. Certos adjetivos podem também referir-se tanto ao olhar quanto ao tato, como áspero e liso. Vale igualmente lembrar das memórias involuntárias proustianas, que carregam consigo imagens, sons, e até o sabor das madeleines. Poderíamos ficar aqui exaustivamente descrevendo estas pequenas confusões sensoriais, porém nosso objetivo com esta pequena divagação é apontar que talvez possamos pensar o espaço sensorial como um todo interligado, no qual não se poderia solicitar este ou aquele sentido sem ao menos se resvalar em outro. A 'imagem' poética em questão na série de performances “Espaços entre o 1

Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da Escola de Co municações e Artes – ECA-USP, sob orientação da Profa. Dra. Monica Tavares, co m pro jeto financiado pela CAPES. 2 Doutorando do Programa de Pós-graduação em Música no Instituto de Artes da Unicamp, sob orientação do Prof. Dr. Silv io Ferraz, co m projeto financiado pela FAPESP. 418 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


sonoro” (EES); é de justamente ocupar estes espaços, entre som e imagem, entre imagem e corpo, entre som e corpo. EES consiste em uma série de performances audiovisuais desenvolvidas a partir de 2011 pelos membros do coletivo EntreMeios. Atualmente fazem parte deste a artista visual Alessandra Bochio, os compositores Felipe Merker Castellani e Manuel Pessôa e a bailarina e performer Thiane Nascimento. Participaram ainda de trabalhos da série a bailarina Raquel Pereira, o músico e cientista da computação Fernando Falci de Souza, a artista visual Viviane Vallades, e a bailarina e atriz Nathalia Catharina. Nossa principal busca na série EES é a elaboração de estratégias de criação a partir das relações entre os meios visuais, sonoros e corpóreos, sejam estes resultantes e/ou frutos das possibilidades dos meios digitais ou do encontro entre as diferentes práticas artísticas referentes a estes mesmos meios. Primeiramente, abordaremos o conceito de intermídia de Dick Higgins e certos pontos da teoria de Julio Plaza, tradução intersemiótica. Compreendemos que esta última origina-se como uma prática intermidiática, deste modo, nos é relevante pontuar alguns d e seus aspectos para compreendermos certos mecanismos, operações e relações que encontram no interior de trabalhos artísticos que visam a inter-relação entre meios. Posteriormente realizaremos um relato a respeito da criação das performances da série EES. 2. Sobre os conceitos Dick Higgins, artista e membro do grupo Fluxus, apropriou-se 3 do termo intermídia para descrever a tendência crescente de artistas interessados em buscar novas formas de artísticas através do cruzamento de fronteiras entre meios já consagrados na arte, ou fundindoos com outros que até então não haviam sido considerados arte. De acordo com o próprio artista (1984), intermídia é uma categoria formal para definir uma inter-relação entre diferentes meios que se fundem para se tornar um algo novo. O que chamou a atenção de Higgins para que ele desenvolvesse o conceito de intermídia foram os chamados happenings, produzidos no final dos anos 1950 e início dos 60. O happening tem origem na 'colagem'. Em meados da década de 1950, alguns artistas nos Estados Unidos e na Alemanha iniciaram uma produção artística bastante peculiar: 3

Samuel Taylo r Co leridge já havia utilizado o termo intermíd ia por volta de um século e meio antes. Porém, Coleridge referiu-se ao termo co mo u m adjet ivo, o qual propõe que na utilização de u m meio na arte, pode-se haver dois ou mais sentidos (Cf. Fried man, 2005). 419 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


adicionaram, removeram, substituíram ou alternaram componentes de obras visuais. O autor traz como antecessoras as construções de Robert Rauschenberg, as combines, em uma das quais, como comenta Higgins, o artista colocou um bode de pelúcia respingado de tinta e com um pneu de borracha ao redor de seu pescoço; e os trabalhos de Allan Kaprow, o qual criou colagens que envolviam a imagem do espectador, os chamados “ambientes”. Em 1958, Kaprow originou o happening a partir da inserção de pessoas como parte de suas colagens. Sob a ótica de Higgins, esta prática artística surge como um campo desconhecido: no intermeio da música, da colagem e do teatro (Cf. Higgins, 1984). O artista reconheceu como intermidiáticos diversos trabalhos das décadas de 1950 e 1960: as produções de John Cage, que exploravam o inter-relacionamento entre música e filosofia, os então recentes trabalhos de poesia concreta e de poesia sonora, entrelaçamento entre artes visuais e literatura e literatura e música, dentre muitos outros. Estes trabalhos não pertencem a um meio ou a outro, mas a ambos; Higgins compreende o conceito de intermídia como a fusão conceitual dos meios, operada no nível de seu sentido e criando assim uma síntese qualitativa. De acordo com Plaza: “a combinação de dois ou mais canais a partir de uma matriz de invenção, ou a montagem de vários meios pode fazer surgir um outro, que é a soma qualitativa daqueles que o constituem. Neste caso, a hibridização produz um dado inusitado, que é a criação de um meio novo antes inexistente” (PLAZA, 1987, p. 65). Em seu ensaio “Intermedia” (1984), Higgins sugere o aparecimento de uma arte nova, que pertencente a um território ainda pouco experimentado, que por sua vez, parece estar 'entre', ou seja, nos cruzamentos e nos entrelaçamentos dos meios já tão bem definidos da arte ou nas fronteiras destas com outros meios até desconhecidos pela primeira. e adverte: “there is still a great deal to be done in this direction in the way of opening up aesthetically rewarding possibilites” (HIGGINS, 1984, p. 20). A escolha pelo conceito de intermídia nos pareceu inevitável, pois se estende para além de aplicações técnicas, sugerindo uma produção artística sem regras e delimitações prévias, na qual cada obra determina seu próprio meio e sua própria forma a partir de suas necessidades. O que nos interessa nas ideias apresentadas por Higgins são os processos de interrelacionamento e fusão entre meios; os modus operandi de tais práticas artísticas; e o que delas emerge. Contudo, não podemos deixar de mencionar o que diz Ken Friedman em seu artigo 420 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


“Intermedia: Four Histories, Three Direction, Two Futures” (2005). Para o autor as ideias presentes no conceito de intermídia oferecem um certo equilíbrio entre os meios, deslocando nossa atenção de tendências excessivamente tecnológicas. Friedman justifica seu argumento dizendo que o conceito de intermídia relaciona várias formas e meios, obrigando- nos a considerá- los em termos de seus efeitos, nos questionando sobre o por quê de suas escolhas, seus aspectos materiais e suas transformações 4 , tanto no que concerne a produção artística e cultural, quanto conceitualmente. Tal fato cria um posição desafiadora para o artista e para o teórico, já que o conceito de intermídia põe em foco os meios e sua fusão como fatores determinantes da obra artística. Tendo em vista o exposto, torna-se necessário neste momento compreendermos como a especificidade de cada meio atua internamente em cada um dos trabalhos artísticos como forma de inter-relação. Para tanto, tomemos emprestado alguns aspectos da teoria de Julio Plaza, tradução intersemiótica. Notemos, não pretendemos aqui tratar da tradução intersemiótica propriamente dita, pois apesar de entendermos-a como uma forma de relação intermidiática, não nos parece válido diz que toda forma de relação intermidiática é uma tradução 5 ; EES é uma forma de relação intermidiática, mas não se trata de uma tradução. Vejamos como Plaza contribui para o nosso problema. Como mencionamos inicialmente em nossa introdução, um som, uma imagem ou mesmo um aroma podem trazer consigo sensações de uma ordem diversa daquela ao qual estamos acostumados a relacionar. Com isto, pretendemos dizer que não existem sentidos ou sensações especializados, o que existe é sinestesia: uma inter-relação de todos os sentidos. É através de exemplos próximos a estes que Plaza nos diz que o pensamento é intersemiótico, ou seja, uma 'coisa' ou um 'objeto' pode ser aludido por diversos sentidos ao mesmo tempo e essa mesma 'coisa' ou 'objeto' também poderá ser representado por vários meios ao mesmo tempo. É essa rede de sentidos, sensações e meios que fundamenta e possibilita a tradução intersemiótica. Plaza repensa os termos quente e frio de Marshall McLuhan através do olhar da tradução intersemiótica. Quente e frio indicam as características dos meios, isto significa que 4

Co mpreendemos as transformações dos meios, tanto no que concerne à transformações históricas e contextuais, quanto no âmbito particular de cada trabalho art ístico. 5 Cf. Rajewsky, 2005 e Clüver, 2011. 421 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


o caráter frio,baixa definição, abertura, saturação, hibridez, participação, simultâneo, está em oposição ao caráter quente, alta definição, fechado, puro, autônomo, não participativo e especialista. O termo frio designa a uma situação de participação do receptor, na qual envolve todos os seus sentidos; os meios digitais são frios, enquanto que os mecânicos, especializados ou fragmentados são quentes, como é o caso do rádio. O autor destaca a facilidade com que o caráter frio tem de antecipar os trânsitos sensoriais e as hibridizações entre os meios e os sentidos, já que oferecem a possibilidade de preenchimento dos espaços sensoriais. Citemos Plaza, “para TI [tradução intersemiótica], o caráter frio antecipa as condições tradutoras muito mais do que o caráter quente, assim como a hibridização nos oferece as condições comparativas de seus componentes e propriedades estruturais, o que permite dimensionar os caracteres sensoriais dos meios e veículos” (PLAZA, 1987, 64). A teoria de Plaza, vista por este prisma, se pauta através do uso material dos meios, como um fator determinante da tradução e servindo como interfaces para o receptor. Tal fato nos conduz diretamente ao encaminhamento que pretendemos dar. Eis por que no âmbito da arte os aspectos materiais dos meios são de grande importância; não há como desvinculá- lo do trabalho artístico. Vejamos agora quais de seus os aspectos que podem influenciar na tradução e, consequentemente, nas relações intermidiáticas. Plaza nos diz que eles “emprestam” à tradução suas qualidades – aparência. Por exemplo, nas artes visuais cada meio impõe à tradução qualidades específicas próprias dos modos de produção da imagem. Uma imagem pictórica (tela/pigmento) é qualitativamente diversa da imagem representada na tela do computador (luz/cor). Isto quer dizer que o modo de produção característico da pintura, por exemplo, impõe- nos como serão apresentadas as qualidades da tradução. Citemos Plaza: “os meios artesanais, industriais e eletrônicos e os procedimentos poéticos nos mostram como traduções entre diferentes signos absorvem as qualidades materiais desses mesmos meios e interferem nas aparências, qualificando-as” (PLAZA, 1985, p. 9). Pensemos no exemplo da poesia concreta, que não se encontra no contexto da tradução intersemiótica. O que se delimita neste tipo de produção artística são relações internas, de um meio com o outro, no caso, das artes visuais com a literatura e desta com a primeira. Grosso modo, as escolhas feitas no desenvolvimento de uma produção literária são estranhas as 422 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


escolhas feitas em uma obra visual, haja vista que cada tipo produção artística absorve as qualidades materiais de seus meios empregados, neste caso, a escrita e a imagem. A tradução intersemiótica nos mostra ainda que quando os meios se inter-relacionam tendem a gerar novos sentidos e novas possibilidades, consequência de suas diversas e específicas qualidades; como é o caso da poesia concreta. Tais inter-relações não se desenham figurativa ou linearmente, sugerem novas e inéditas relações, que se estabelecem não pela soma, mas pelas relações fundamentais de seus meios, delimitadas muitas vezes no interior de cada trabalho artístico particularmente. Tal fato produz um efeito particular a cada obra, nos estimula através dos diferentes sentidos específicos e/ou relacionados a cada meio distinto e nos obriga a perceber sutilezas que emergem deste próprio processo entrelaçamento. Contudo, Plaza nos adverte que além de suas qualidades, não possamos nos esquecer que os meios estabelecem relações contextuais específicas. Vejamos o que o autor nos diz, “as transformações, que se processam nos suportes físicos da arte e nos meios de produção artística, constituem as bases materiais da historicidade das formas artísticas e, sobretudo, dos processos sociais de recepção” (PLAZA, 1987, p. 10). O artista se encontra mediante à uma história de diferenças e semelhanças de alternativas de suportes, códigos, formas e convenções. Os processos de criação artística sofrem influências dos suportes e meios eleitos, “pois que neles estão embutidos tanto a história quanto seus procedimentos” (PLAZA, 1987, p. 10). Por exemplo, a pintura, a fotografia e as mídias digitais possuem cada qual uma historicidade particular que não pode ser apagada, pois trazem consigo o pensamento de sua época. A seguir apresentaremos o relato da criação artística da série de performances EES, visando contextualizar e ampliar algumas das questões trabalhadas teoricamente nesta parte de nosso texto.

3. EES O primeiro trabalho da série EES foi desenvolvido e apresentado em 2011, no Encontro Internacional de Música e Arte Sonora (EIMAS 2011) e no Festival de Música e Tecnologia de Campinas, promovido pelo Núcleo Interdisciplinar de Comunicação Sonora (NICS-UNICAMP). O projeto inicial consistia na criação de um ambiente sonoro interativo, que poderia ser tanto apresentado como instalação, solicitando a participação do público, 423 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


quanto no formato de performance. Porém, nunca chegamos a apresentá- lo como uma instalação. Para realização da performance, utilizamos um sistema interativo que consistia em uma câmera de vídeo que mapeava pontos específicos do espaço cênico; através da diferença entre dois quadros subsequentes de filmagem o sistema detectava se a performer atravessava, ou não, tais pontos específicos (Fig. 1).

FIGURA 1: Mapeamento da área de captura da câmera na primeira seção de Espaços entre o Sonoro. FONTE: Colet ivo EntreMeios, 2011.

Ao atravessar os pontos mapeados pela câmera, a performer – neste trabalho, a bailarina Raquel Pereira – disparava fragmentos sonoros, criados através de síntese por modulação de frequência (FM). O controle dos eventos sonoros dentro do fluxo temporal é delegado integralmente à Raquel, o que cria uma tensão entre o que seria interessante para nós musicalmente e enquanto movimento corpóreo. Para lidarmos com esta causalidade entre som e movimento que configurou-se como ponto central do trabalho, a criação performática foi trabalhada de maneira simultânea as modificações e reconfigurações do ambiente interativo, sendo a prática improvisatória e o relacionamento com o ambiente, os principais geradores dos materiais explorados na performance. Posteriormente a este trabalho exploratório inicial, definimos um esquema formal: duas seções contrastantes, as quais explorariam duas diferentes maneiras de interação entre a

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bailarina e o sistema computacional. A primeira, descrita acima, estabelece a causalidade entre som e movimentação no espaço cênico; nesta, temos três diferentes estados sonoros, os quais são caracterizados por dois aspectos principais, (1) o número de eventos disparados de cada vez em cada ponto no espaço e (2) o conteúdo espectral utilizado. O repertório gestual desenvolvido por Raquel Pereira também definiu claramente as mudanças destes estados, sendo a manipulação do material sonoro sujeita ao controle de parâmetros globais da movimentação: fluência, velocidade, deslocamento, nível explorado, etc. A segunda seção é definida pela independência entre a movimentação e o discurso musical: optamos por diminuir os pontos sensíveis no espaço e a bailarina atua apenas modificando a espacialização dos sons através dos auto- falantes dispostos no espaço de projeção sonora. As alternâncias entre os estados sonoros e a passagem da primeira para segunda seção seguem uma sequência pré-estabelecida e são realizadas manualmente durante a performance. Vale ainda mencionarmos, que na apresentação de EES no EIMAS 2011 utilizamos uma visualização construída por Fernando Falci de Souza. Tal visualização busca evidenciar estas mesmas relações entre os sons (e agora também imagens) e a movimentação pelo espaço cênico. Nossa primeira abordagem com relação à EES assemelha-se bastante a de trabalhos como Very nervous system (1986-90) e Dark Matter (2010) criados por David Rokeby, ou Gestation (2003) e Map 1 (1998) e Map 2 (2000) de Garth Paine, os quais se valem da causalidade entre som e movimento, obtida através de estratégias de mapeamento via câmeras de vídeo e/ou câmeras infravermelhas. Em nosso caso, buscamos sobretudo que a presença da bailarina não se tornasse algo acessório ao trabalho, mas que constituísse uma interpenetração entre ela e o ambiente, tornando ambos parte de um mesmo todo audível/visível/corpóreo. A primeira reelaboração que deu origem ao segundo trabalho da série (EES II), apresentado em concerto do projeto NME (Nova Música Eletroacústica) em abril de 2012, teve como ponto de partida repensar a integração entre as diferentes práticas artísticas em questão, até então, a música e a dança. O primeiro passo foi o abandono da relação causal estabelecida anteriormente. Percebemos um aparente didatismo no primeiro trabalho da série, o qual dava a performance um caráter mais de 'demonstração de um sistema reativo', do que de um todo 425 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


audível/visível/corpóreo, como mencionamos anteriormente. Assim, optamos por tornar a relação entre som e movimento subcutânea e restrita a apenas um trecho do trabalho. Neste, a bailarina – Raquel Pereira – 'alimenta' o sistema com dados de deslocamentos de 8 pontos de seu corpo nos eixos x, y, z: braços, pernas, mãos, cabeça, etc. Tais informações são utilizadas para definir os parâmetros de módulos de síntese granular, a saber: o tamanho dos grãos sonoros e suas variações de altura e amplitude. A bailarina atua então jogando com as possibilidades de combinação paramétricas dentro de âmbitos previamente definidos. Neste caso, nosso objetivo foi privilegiar a criação de diferentes possibilidades combinatórias, sem a preocupação de tornar visível e compreensível este processo.

FIGURA 2- EESII. FONTE: Colet ivo EntreMeios, 2012.

Utilizamos, ainda neste trabalho, um vídeo produzido em parceria com a artista visual Viviane Vallades, o qual foi projetado na tela disposta no fundo do palco (Fig. 2). O discurso musical é composto por amostras de sons pré produzidas, a partir da improvisação ao piano de Manuel Pessôa e de seu processamento computacional. Os discursos musical, do vídeo e performático

foram

concebidos

simultaneamente,

desde

suas

etapas

iniciais

de

experimentação dos materiais sonoros, visuais e corpóreos, até a finalização e fechamento da proposta de trabalho, visando, com isto, constituir relações em diversas etapas de suas feituras. Para elaboração do vídeo, partimos de um roteiro central e cinco diretrizes principais. O roteiro elaborado buscou apenas delimitar um ambiente e algumas ações, a saber: em um ambiente totalmente escuro, uma figura humana segura uma fonte luz; suas ações são 426 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


totalmente improvisadas, bem como a captura de sua imagem; a única restrição foi que a captura da imagem deveria ser feita através de um espelho. Tivemos como diretrizes: (1) turvar os limites da moldura do vídeo; (2) acontecimentos fragmentados/ não linearidade; (3) trânsito entre imagens e formas reconhecíveis e suas abstrações; (4) criar uma sensação de dubiedade com o espaço físico da performance, o qual deveria estar totalmente escuro, com apenas um feixe de luz na bailarina; e (5) captura fragmentada da figura humana. Desta forma, optamos como procedimentos para a produção do vídeo: (1) criar um jogo de espelhos para que o campo visual fosse ampliado; (2) trabalhar com fragmentos diversificados de vídeo de até 3 minutos; (3) utilização de processos de sobreposição de camadas; (4) contraste entre luz e sombra. EES III – como o próprio nome já indica, o terceiro trabalho da série – inicia-se com a performer entre cinco telas de projeções móveis, realizando movimentos sutis que modificam o espaço de projeção. Ora escondendo-se, ora revelando-se, ela cria um contraponto com suas próprias imagens incididas sobre as telas (Fig. 3). Paralelamente, o discurso musical improvisatório, composto por sons eletrônicos e instrumentais processados, cria um outro percurso. São os encontros, as separações e os paralelismos entre os eixos sonoros, visuais e corpóreos que configuram este quadro dinâmico e heterogêneo.

FIGURA 3: EES III. FONTE: Colet ivo EntreMeios, 2012.

Em EES III, o discurso musical se vale dos mesmos processos da performance 427 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


anterior, porém para o vídeo foram introduzidos procedimentos bastante diversos daqueles adotados em EESII. Não estabelecemos nenhum roteiro, diretriz ou procedimentos prévios, deixamos que todas as decisões fossem tomadas localmente, tanto no momento de captura das imagens, quanto na edição final do vídeo. Além disso, diferentemente do primeiro, no qual foram capturados os corpos das artistas visuais Viviane Vallades e Alessandra Bochio, o segundo vídeo contou com a presença da própria performer que atua no espaço cênico de EES III, Thiane Nascimento. Tal fato nos abriu novas possibilidades, tanto no que concerne a utilização do corpo no vídeo, quanto na sua atuação no espaço cênico. O vídeo atuou como um componente indispensável e aglutinador, sendo projetado de maneira diversa da habitual – através de um único projetor o vídeo foi incidido em cinco telas móveis de projeção. O que pretendemos com tal estratégia foi fundir a projeção do vídeo ao próprio espaço cênico, além de torná-lo um componente mais flexível e passível de mudanças. Apresentamos EES III no evento ¿Música 4?, parte do IV Seminário Música Ciência Tecnologia: Fronteiras e Rupturas, que ocorreu em julho de 2012 na ECA-USP. 4. Conclusão

O presente artigo teve como base o envolvimento da prática artística com a investigação teórica. Elegemos para as nossas discussões o conceito de intermídia e alguns pontos presentes na teoria de tradução intersemiótica, para nos auxiliar em nossa empreitada. Compreendemos que, tanto o conceito de Higgins, quanto a teoria de Plaza, advêm não apenas de explanações teóricas, mas estão também atrelados a uma prática artística. E é justamente este atrelamento que buscamos em nossas pesquisas. Ao longo do processo de criação das performances da série EES pudemos perceber alguns sentidos que a perpassaram: o deslocamento da interação entre som e movimento em direção à inserção da performer como agente modificador do próprio espaço físico. Através da manipulação das telas móveis de EES III; podemos apontar outros deslocamentos, que são desdobramentos do primeiro. Inicialmente nosso ponto de partida foi dado por uma possibilidade do meio digital, a de tratamentos das informações em um nível abstrato, que permite facilmente transitar entre diferentes tipos dados: os movimentos corpóreos são capturados pela câmera de vídeo e analisadas pelo computador, tornando-se sons. Este ponto de partida inicial gradualmente foi abandonado em prol de outras formas de reunir o corpo e o

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discurso musical, adicionou-se o vídeo, um elemento catalizador, que criou jogos de duplo com a performer, relações com os espaços cênicos e, como mencionado anteriormente, tornou-se matéria-prima para as ações da performer. Neste ponto, percebemos que o campo problemático em questão não estava na ligação entre som e gestualidade, mas no engendramento de uma situação que além de audiovisual é encarnada, conta com a presença de um corpo e de todas as suas potencialidades. Cabe a nós, artistas, descobrirmos quais são estas

potencialidades,

que

não

estão

apenas

no

corpo,

mas

que

atravessam

corpo/música/vídeo/espaço. Talvez seja apenas mero devaneio poético, mas arriscamo-nos a afirma que este seria o meio aqui em questão, os espaços entre o sonoro, o visual e o corpóreo.

Referências Bibliográficas CLÜVER, Claus. Intermi di ali dade. Pós: Belo Horizonte; v. 1; n. 2, p. 8-23; nov. 2011. FRIEDMAN, Ken. Intermedi a: four histories, three directions, two futures . In. BREDER, Hans; BRUSSE, Klauss-Peter (eds.). Intermedia: enacting the liminal. Norderstedt: Dortnunder, Schiften, Zurkunst: 2005, p. 5161. HIGGINS, Dick. Horizons. The Poetics and Theory of the Intermedi a. Carbonadle and Edwardsville: Souther Illions University Press, 1984. ______. Modernism Since Post-modernism. Essay on Intermedi a. San Diego: San Diego State Un iversity Press, 1987. MCLUHAN, Marshall. Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem. São Paulo: Cultrix, 2007. PLAZA, Julio. A arte da tradução intersemiótica. In.: Transcriar (catálogo). São Pau lo: Museu de Arte Contemporânea da USP, 1985. _____________. Tradução Intersemi ótica. São Paulo : Perspectiva, 1987. RAJEWSKY, Irina O. Intermedi ality, Intertextuality, and Remediation: A Literary Pers pecti ve on Intermedi ality. In.: DESPOIX, Philippe; SPIELDMAN, Yvonne (orgs.). Intermédialitité, n. 6 automne, 2005, p. 43-64.

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MAPEAMENTO PARA CURSO DE DESENHO POR CORRESPONDÊNCIA: Relato de processo Andréa Tavares 1 Resumo: Esta comunicação pretende apresentar a estratégia de pesquisa e estudo de uma seleção do levantamento bibliográfico para a tese de doutorado em poéticas vi suais “Curso de desenho por correspondência” um estudo sobre os caminhos trilhados pela prática desenho na arte ocidental tomando como ponto de partida minha produção poética. O presente texto relata este processo em andamento, examina as estratégias de pesquisa desenvolvidas na sua composição. Palavras-chave: desenho. Arte contemporânea. Mapeamento. Bibliografia.

Curso É preciso traçar um curso, um caminho. E não se sabendo o destino é preciso atentar para o ponto de partida. O ponto de partida de “Curso de Desenho por Correspondência” é minha produção poética. Utilizando- me de diversos meios constitui na última década uma produção que lida com imagens apropriadas da história da arte, do cinema, da mídia de massa, justapostas a imagens mais pessoais, relacionadas mais com a memória pessoal e afetiva do que com a coletiva. Nesta justaposição surge a tensão entre o individual e o coletivo, a fronteira se torna visivelmente porosa. Para realizar este diálogo entre diferentes fontes de referência uma das estratégias é o desenho, seja sobre o papel ou sobre a chapa de cobre envernizada na produção de águas-fortes. Desenhar imagens que já existem, é uma forma de apropriação, de tornar, por meio do gesto que copia, a imagem que é da cultura, do consciência coletiva, uma memória pessoal. Minhas memórias ao se tornarem públicas, são coletivizadas e seus “vazios” completados, seus significados primeiros esvaziados e/ou reificados. Este caminho percorrido leva a outro curso, o que indaga sobre como as imagens chegam a nós. E chegam através de reproduções, traduções, interpretações entre meios e linguagens. Uma pintura é fotografada, transformada em informação digital, daí pode se tornar um fotolito que gera uma imagem impressa, ou uma imagem luminosa na tela do comput ador, do tablet ou do celular. Em “Prints and Visual Communication” William Ivins conta que Ephraim 1

Doutorando em poéticas visuais pela Escola de Co municação e A rtes da Universidade de São Paulo. 430 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Lessing escreveu sua teoria estética, “Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia”, sem nunca ter visto a obra cuja a análise das figuras esculpidas no conjunto Laocoonte é fundamental para seu raciocínio contava em sua época com a possibilidade acessar cerca de 9 reproduções, em gravura em metal e xilo, não muito maiores do que uma folha A4, em branco e preto, da escultura de mármore. (IVINS, 1969. pp, 90, 174) Lessing com a imagem gráfica que a tecnologia de seu tempo colocava a sua disposição e nós hoje com o que temos a mão olhamos as imagens como transparências. Dominamos um vocabulário que nos permite ver direto a coisa representada antes do que a representação, ignoramos o processo de tradução e interpretação. Não é apenas no ato de traduzir uma imagem de um meio para outro que existe a interpretação, isto acontece no próprio ato de desenhar a partir da observação. O historiador Ernst Gombrich defendeu em muitos de seus textos, contrários a idéia romântica de gênio criador ou de criatividade autêntica e original, que sempre desenhamos com o desenho de alguém. “Não há naturalis mo neutro. O artista, não menos que o escritor, precisa ter umvo cabulário antes de poder aventurar-se a uma “cópia” da realidade. (...) O estilo, como veículo, cria u ma atitude mental que leva o artista a procurar napaisagem que o cerca elementos que seja capaz de reproduzir. A pintura é umaatividade, e o artista tende, conseqüentemente, a ver o que pinta ao invés de pintar oque vê” (GOMBRICH,1995. pp. 91,92)

A produção de “Curso de Desenho por Correspondência” quer tornar visível caminhos, cursos. Alumbrar correspondências entre tempos e espaços. Antes de desvelar uma linha unindo dois pontos, o projeto desvela um emaranhado de linhas. Identifica-se um conjunto de nós na rede, para em seguida perde-los. Estes nós da rede que compõem a concepção e as práticas de desenho na arte ocidental são sublinhados tanto pelas ima gens contidas no projeto, como na análise bibliográfica e nos textos (como este). Um processo contínuo de produção, a ação do artista que se utiliza de diversas estratégias de trabalho, da pesquisa acadêmica, da organização biblioteconômica, do desenho, da fotografia, do design gráfico, se apresentará como pesquisa de pós graduação, em diversas formas, um série de 7 álbuns de gravura, ou fascículos, um livro de ensaios sobre a origem da idéia de desenho na arte ocidental, e uma exposição. A exposição tornará publico os álbuns em um espaço construído como ateliê, onde 431 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


acontecerão atividades como aulas, palestras e performances que digam respeito as práticas do desenho na arte contemporânea. Ainda em fase de pré-projeto a exposição recebe o nome de “Sala de Exercícios”. A proposta deverá ser apresentada no momento da qualificação. O local e a programação das atividades serão definidos na sequência. Os sete álbuns de gravura, por sua vez, simulam fascículos, cada um se constituindo numa aula sobre um determinado aspecto do desenho que é ensinado através das imagens, ou da cópia delas. Assim no fascículo “Desenho de modelo vivo” podemos encontrar uma reprodução da “Origem do Mundo” de Gustave Courbet (fig.1), uma foto de um rapaz qualquer na grama (fig. 2) e uma imagem fotográfica de um tubarão (fig.3). Todas estas imagens tendo sido impressas com matrizes de cobre. Todas as imagens gravadas partem de imagens pré-existentes. Estes fascículos serão finalizados antes da banca de qualificação.

Fig.2: Alê na grama , 2010. Estampa de gravura em metal. 10 X 15 cm.

Fig.2: tubarão, 2010. Estampa de gravura em metal. 9 X 15 cm.

Fig.1: Courbet, 2010. Estampa de gravura em metal. 42 X 42 cm.

O livro de ensaios é uma forma de discutir e refletir sobre todo o processo, apontando além das referências plásticas as teóricas. Este repertório de imagens acompanha, produz e é produzido com escolhas, me interessa mapear estas escolhas. Como parte da estratégia de trabalho o projeto conta com uma pesquisa bibliográfica, assim como em qualquer outro projeto de pesquisa de doutorado. No entanto a pesquisa bibliográfica aqui será também texto e imagem no sentido que sua estrutura, ou parte dela, será incluída no “Livro do Curso”, exposta como mais um dos nós da rede sobre o conceito e as práticas de desenho na arte

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ocidental. O que pretendo examinar a seguir é o processo de levantamento e análise bibliográfica que antecede o momento da banca de qualificação do projeto. UM CURSO “Um caminho é uma interpretação a priori da melhor maneira de se atravessar uma paisagem, e esguir uma rota é aceitar a interpretação, ou perseguir seu predecessor nele como eruditos, rastreadores e peergrinos fazem.” 2 – (SOLNIT, 2000. p.68)

Rebecca Solnit, em “Wanderlust”, escreve sobre como seguir uma trilha de peregrinação é uma maneira de acessar a estrutura que compôs o trajeto que o peregrino está trilhando, o que ela diz sobre percorrer um caminho antes trilhado se aplica a leitura de qualquer mapa, ao planejamento de um curso para uma viagem. O “Livro do Curso” quer traçar uma rota, mapear um caminho. Indicar e tornar visível um caminho muitas vezes trilhado. Seguindo os conselhos de Umberto Eco pode-se comecei a pesquisa a partir de informações e dados, previamente conhecidos, daquilo que está acessível (ECO.1993). Parti de dois autores que me interessam, Ernst Gombrich, e Nicolas Bourriaud, que entendi defenderem duas hipóteses complementares, sendo que a minha hipótese é a relação complementar entre eles. Gombrich defende principalmente em “Arte e Ilusão” a idéia de que desenhamos com um “desenho” que pré-existe, um repertório de soluções como citado acima. Bourriaud explora a necessidade de trabalhar com o pré-existente, tomando consciência do que se tem a mão, resignificando imagens, formas e conceitos, criando novos modelos de ação no mundo, ele afirma que “a arte é um estado de encontro”(2006.p.17) e que “produzir uma forma é inventar encontros possíveis, é criar condições de um intercâmbio, algo assim como devolver a bola a uma partida de tênis.” (2006.p.24). Em “Estética Relacional” o autor se apropria da idéia de Michel de Certau compactuando com ele ao entender que o artista contemporâneo é um inquilino da cultura. Um inquilino não coloca a casa a baixo, pinta as paredes, troca o piso, redefine o lugar dos móveis, talvez até quebre uma parede,... lida com o que já existe sem a pretensão de fazer tabula rasa. No glossário do livro há o verbete semionauta onde se lê que todo o artista contemporâneo inventa trajetos entre os signos (BOURRIAUD, 2006.p.141). E 2

Tradução da autora. No original: “A path is a prior interpretation of the best way to traverse a land scape, and to follow a route is to accept an interpretation, or to stalk your predecessors on its as scholars and trackers and pilgrims do.” 433 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


se procurarmos o verbete artista encontraremos: “o artista de hoje se apresenta como um operador de signos, que modela as estruturas de produção com o fim de alcançar duplos significados”.(2006.p.136)”. Em “Pós-Produção”, Bourriaud analisa justamente as formas de apropriação de linguagens e signos inerentes as práticas artísticas contemporâneas, e a respeito de Pierre Huyghe oferece o que para mim é a hipótese complementar a de Go mbrich, a idéia de que em nosso cotidiano dispomos de um número restrito de imagens- forma que se repetem a exaustão e que portanto caberia ao artista esvaziar, e re-significar essas formas causando mesmo o surgimento de outras neste processo. “(...)contrariamente a idéia co mu m, não estamos saturados de imagens, mas, sim, submetidos a miséria de u mas poucas imagens, portanto trata-se de produzir contra a censura.” (Bourriaud, 2009.p.63)

O autor enfatiza a necessidade do artista trabalhar para dar consciência desta censura, usando os signos e também as dinâmicas que as produzem, acredita ser necessária a adoção de “uma concepção de arte como produção de modelos re-atualizáveis infinitamente, como cenários possíveis para a ação cotidiana.”(2009.p.65). Uma opinião que pode se aliar com facilidade a teoria exposta por Gombrich:

Toda a arte tem origem na mente humana, em nossas ao mundo mais que no mundo visível em si, e é exatamente por ser toda arte “conceitual” que todas as representações são reconhecíveis pelo seu estilo. Sem algu m ponto de partida, sem algu m esquema in icial, nunca poderíamos captar o flu xo da experiência. Sem categorias, não poderíamos classificar nossas impressões. Verificou-se que, paradoxalmente, pouco importa que categorias sejam essas.Podemos sempre ajustá-las às nossas necessidades. Na verdade se o esquema mantém-se elástico e flexível, essa imprecisão inicial pode vir a ser não u m obstáculo, mas u m trunfo.” – (1995. P.93)

Modelos flexíveis que nos servem conforme a nossa necessidad e, estão a serviço do artista, e não o contrário. Sendo a ação dele crítica e libertadora, quando retira as formas de seu fluxo habitual, corriqueiro. O artista também é um produtor de tempo (BOURRIAUD, 2006. p.137). Utilizar os modelos é torná- los visíveis, utilizar as imagens preexistentes é uma forma de interpretação. “Se toda arte é conceitual, então a questão é simp les. Porque os conceitos, como as pinturas,não podem ser verdadeiros ou falsos. Podem ser apenas mais ou menos úteis à formação de descrições.” (GOM BRICH,1995)

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A este dois autores somou-se outro, Plínio, autor romano do século III que é identificado na história da arte como quem narrou o nascimento do desenho, da pintura e da escultura, em um único gesto, o de uma mulher, conhecida apenas como a filha de Butades.

O Suficiente já foi dito aqui sobre a arte da pintura. Agora é hora de dizer algo sobre modelagem. Tirando partido da própria terra, Butades, um oleiro de Sicyon, foi o primeiro a introduzir a modelagem de retratos em arg ila em Cor into. Isto foi graças a sua filha. Ela estava apaixonada por um rapaz, e quando ele estava indo para o exterior, ela desenhou uma silhueta na parede ao redor da sombra da face dele produzida pela lamparina. Seu pai prensou o barro sobre a marca para fazer um relevo e o queimou com o restante da cerâmica. Dizem que este foi preservado no Santuário das Ninfas até Mummius saquear Corinto.3 (PLINY, 2004.p.336)

A experiência vivida por eles, principalmente por ela, a saudade, se constitui em um objeto, que presentifica a ausência. O objeto, o retrato modelado em argila, não ficou circunscrito àquele pequeno círculo familiar, Plínio termina relatando que a pequena escultura havia sido preservada no Santuário das Ninfas. O que seria valorado apenas num pequeno círculo, passa para um domínio maior, o da coletividade. Segundo John Dewey (2005), as obras de arte são constituídas a partir e com a experiência, a partir de um indivíduo ou grupo para as experiências de outros indivíduos e grupos. O que faz com que a arte inclua em si a comunicação, mas não só isso, pois não se trata apenas de comunicar uma experiência, se trata de constituir experiências. Aqui posso voltar a Gombrich para terminar de identificar meu campo de partida para a constituição da pesquisa: “...aquilo que a linguagem faz não é dar nome a coisas ou conceitos preexistentes, mas articular o mundo da nossa experiência. As imagens da arte, suspeitamos, fazem a mes ma coisa.” – pp96 (GOMBRICH 1995)

Caberia então seguir um curso que buscasse os antecedentes da idéia de desenho, de seu ensino e aprendizagem, dentro do campo da arte contemporânea, ou da arte ocidental. Traçar correspondências, buscar os diálogos da tradição. Levantar uma bibliografia. Ainda seguindo 3

Tradução da autora. No Original: “Quite enough has been said here about the art of painting. It is now time to say something about modeling. By taking advantage of earth itself, Butades, a potter from Sicyon, was the first to introduce modeling of portraits in clay at Corinth. These was thanks to his daughter. She was in love with a young man, and when he was going abroad she drew a silhouette on the wall round the shadow of his face cast by the lamp. Her father pressed clay on this to make a relief and fired it with the rest of the pottery. This is said to have been preserved in the Shrine of the Nymphs until Mummius sacked Corinth.”

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os conselhos de Eco, delimitar meu foco, buscar uma bibliografia recente sobre o desenho na arte contemporânea. Um grande número de textos foi se avolumando em minha biblioteca, e a pesquisa começava a identificar textos, autores, artistas, locais, instituições coleções citados de forma recorrente. Como identificar e dar visibilidade para estas recorrências? Visualmente gráficos e mapas poderiam fazer isso. Selecionei 6 fontes recentes, tomadas como fontes primarias dentro da pesquisa, publicadas nos últimos 13 anos. Elas são: “On Line”(2010), de Catherine De Zegher e Cornelia Butler; “The Primacy of Drawing”(2009), de Deanna, Petherbridge; “Disegno. Desenho. Desígnio” (2007), de Derdyk, Edith; "Vitamin D. New perspectives in drawing.”(2005), de Emma Dexter; “The Stage of Drawing: Gesture and Act (2003)” de Catherine de Zegher; "Afterimage: Drawing through Process.”(1999) de Cornelia Butler. Cada uma ao seu modo busca entender como a tradição do desenho na arte ocidental se manifesta na produção artística hoje. Como estratégia de investigação desta bibliografia uso os fundamentais fichamentos e mais além investigo a estrutura dos textos, e da composição da seleção de artistas e de imagens na bibliografia de cada uma, primeiro listando as bibliografias de cada volume, que nem sempre estão disponíveis como apêndices ou anexos, e depois transformando isso em listas, gráficos ou mapas. A análise desta bibliografia cria campos de referências teóricas, geográficas, históricas. O mapeamento responde a questões simples, como a nacionalidade e local de trabalho dos autores e artistas incluídos em cada volume, o período em que se concentra a bibliografia utilizada. Este é um princípio para um mapeamento uma vez que cada mapa poderia levar a outro, cada gráfico levanta outro. Assim se crio um mapa sobre a nacionalidade e local de trabalho dos artistas (fig.4), me interesso em fazer outro com a nacionalidade e o local de trabalho dos curadores, e ainda um terceiro sobrepondo ambos (fig.5). A pesquisa atualmente se encontra neste processo de levantamento e cruzamento de informações constituindo-se mapa e território ao mesmo tempo. Uma bibliografia leva a outra, um gráfico leva a outro em uma proporção aritmética. O mapa não cria uma rota para algum lugar, mas um labirinto.

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Fig.3: mapa da nacionalidade e do local de trabalho dos artistas presentes na publicação VItamin D.

Fig.4: mapa da nacionalidade e do local de trabalho dos artistas e dos curadores presentes na publicação VItamin D.

Dar forma visual a este mapa-território é desafiador. A princípio optei por utilizar materiais de papelaria para compor os gráficos e mapas como colagens. Utilizei um painel de feltro e cortiça, um atlas velho, alfinetes, tachinhas, linhas e lãs, papéis coloridos, post- it, canetinhas para me distanciar de gráficos limpos e higiênicos, parecidos com os utilizados por revistas como Veja ou Época. As colagens são então fotografadas (fig.6). São estas fotos que farão parte do trabalho. Ampliadas em tamanho real ou na escala do livro, decisão que ainda não está tomada. Um relato de processo é um relato sobre as incertezas e insucessos. Fica a 437 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


idéia de criar um pequeno livro com inúmeros gráfico, absolutamente obsessivos, na forma daqueles utilizados pela impressa. As colagens e as fotos são um nó da rede em “Curso”.

Nós da Rede: seleção bibliográfica Prosseguindo com o relato do processo apresento a bibliografia selecionada em ordem da data de publicação.

DE ZEGHER, Catherine e Cornelia Butler. On Line. A century under the sign of line. New York, MOMA, 2010; Catálogo de Exposição. A autora, Catherine de Zegher é atualmente diretora do The Drawing Center em Nova Iorque. Nesta curadoria para o MOMA ela conta com a ajuda de Cornelia Butler é a chefe do departamento de desenho do mesmo museu. Juntas elas elegem a linha, elemento essencial do desenho para alinhavar as suas práticas no século XX (e inicio do XXI), a exposição apresenta obras feitas entre 1910 e 2010, de 107 artistas de 23 países. As obras estão reunidas porque utilizam a linha como elemento autônomo, ou que adquire autonomia nas práticas destes artistas selecionados. Fig.5: linha do tempo indicando a relação entre a quantidade de artistas nascidos no período, para a publicação Vitamin D. “Justapondo mais de 300 obras, On Line examina diferentes estágios da explo ração estética 438 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


da linha no plano (tensao de superficie); da linha libertada do espaço ilusionista para o espaço real (linha extendida); e finalmente seu aparente retorno para o espaço relacional do real e do imag inário, mas com cada u m deles transformado no processo. Ao seguir a dilatação dos significados da linha, nós também a traçamos no movimento, entre disciplinas, e sua conectividade e continuidade ao ser desalinhada a realinhada no tempo e no espaço..” 4 (2010. p.24)

O percurso da montagem da mostra era quase cronológico, descrevendo um certo desenvolvimento da autonomia da linha e do desenho, em meios diversos, como desenho sobre papel, pintura, escultura, instalação, fotografia e vídeo. Um primeiro levantamento da publicação lista: Referente aos artistas na exposição: Total: 107 artistas Nascidos entre: 1866 (Paul Klee) – 1979 (Nina Canell) Origem: 23 países Distribuição: País USA França Itália Bélgica Russia Inglaterra Índia Brasil Canada Alemanha Argentina Suécia Venezuela República Tcheca Espanha Chile Japão Uruguai Lituânia Austrália Polônia

Quant.arts 31 10 9 6 6 5 4 4 4 4 3 2 2 2 2 2 2 1 1 1 1

4

Tradução da autora: No original: Justaposing over 300 works, On Line examines different stages of the aesthetic exploration of line in the plane (surface tension); the line broken free from that illusory surface into real space (line extension); and finally its apparent return to the relational space of the real and the imaginary, but with each now transformed in the process. In following the dilation of line’s meaning, we also trace it in movement, across disciplines, and in its connectivity and continuity as it is drawn out and rewoven in time and space. 439 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Holanda Suiça

1 1

Referente a bibliografia: publicações:138 textos citados: 149 autores citados: 114 Quantidade de citações Autor(ES)

5

4

3

2

KRAUSS, Rosalind; KANDINSKY, Vasily

BUCHLOH, Benjamin; DE ZEGHER, Catherine

ETTINGER, Bracha; RODCHENKO, Alexander; CLA RK, Lygia: MATISSE, Pierre

LIPPA RD, Lucy; TUTTLE,Richar d; UM LAND, Anne; KLEE, Paul; BRETT, Guy

Período em que foram publicadas: 1918-2010 Década

1910

1920

1930

1940

1950

1960

1970

1980

1990

2000

Quantidad

1

3

0

4

3

3

10

17

34

54

e de textos

Local de publicação: Total de Países: 13 LOCA USA ING FR L QUAN 69 18 11 T

ES AL BR AUSTRL AR 5

3

3

2

1

BEL

HOL

IT

1

1

1

REP. SUI TCH. 1 1

DERDYK, Edith. Disegno. Desenho. Desígnio. São Paulo, SENAC, 2007; A autora, pesquisadora do ensino e aprendizagem do desenho e artista, tem publicados outros títulos especificamente sobre o desenvolvimento cognitivo da criança e sua relação com o desenho. Em “Disegno. Desenho. Desígnio” a autora reúne textos e ensaios visuais pré existentes e/ou encomendados de outros 31 autores oriundos de diversas áreas do conhecimento além das artes plásticas, sendo que todos trabalham no Brasil.

440 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


“(..) em cada texto as reflexões e conceitos sobre o desenho são apresentados da maneira como são vividos e formalizados de acordo com as necessidades e os desejos que cada área de atuação demanda. (...) A convivência dessas faces e interfaces se soma, configurando contornos mais fluidos para a compreensão de experiências tão distintas, porem co mpartilháveis.”(p.24)

É a experiência, o desenho vivido que guia o relato destes profissionais, que falam do seu próprio ponto de vista, da sua prática cotidiana, não confinando a idéia de desenho, ou tentando defini- la de forma universalizante, se a definem o fazem em sua prática dentro de um determinado campo que é poroso sujeito a influências de todo o tipo. Assim temos textos os seguintes autores nesta coletânea:

1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. 21. 22. 23. 24. 25. 26. 27. 28. 29. 30. 31.

Autor Evandro C. Jardim Alberto A. Martins Waltercio Caldas Cecilia de A. Salles Alexandre Wollner José Resende Antonio Lizárraga Paulo Pasta Sergio Fingermann Flávia Ribeiro Ester Grispum Arnaldo Battaglin i Lu iz Tatit João Bandeira Cristina Freire Tadeu Chiarelli Geógia Ky riakakis Regina Silveira Gal Oppido Osvaldo Gabrieli Helena Katz Tadeu Jungle Ary Perez Marcelo Ferraz Laerte Sodré Jr. Tom Marar David Sperling Guto Lacaz Mirian C. Mart ins Peter P. Pelbart Miriam Chnaidermann

Profissão Artista Plástico, Pro fessor Artista Plástico, Escritor, Ed itor Artista Plástico Professora (Semiótica) Designer Artista Plástico, arquiteto Artista Plástico Artista Plástico, professor Artista Plástico, professor Artista Plástico, professor Artista Plástico, arquiteto Artista Plástico, designer Músico, professor Artista Plástico, poeta Curador, pro fessor Curador, pro fessor Artista Plástico, professor Artista Plástico, professor Artista Plástico, fotografo Artista Plástico, dramaturgo, diretor de teatro Filosofa, crít ica de teatro, professora Artista Plástico, video maker Engenheiro, Art ista Plástico, cenógrafo Arquiteto, professor Físico, astrônomo Matemático e pro fessor Arquiteto, professor Artista plástico, arquiteto Educadora Filósofo, professor Psicóloga, documentarista

A autora cita como referência para a empreitada os textos reunidos e publicados pelo Grêmio 441 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


FAU-USP em 1975, um pequeno volume que reúne textos de Mário de Andrade, Vilanova Artigas e Flávio Mota. Estas três referências por sua vez se utilizam de conceitos tradicionais da historia da arte no Ocidente, como a idéia de linha como estrutura “óssea” de todo o pensamento plástico. Um primeiro levantamento da publicação lista: Referente aos artistas com imagens reproduzidas: Total: 27 Paises de origem e trabalho: 5 país

BR

AR

FR

AL

USA

artista

25

2

1

1

1

Período compreendido entre o nascimento do artista mais velho e do mais jovem: 1882-1961 Referente a bibliografia: autores: 114 publicações: 112 Quantidade de publicações por autor Quantidade citações Autor(ES)

de

Déc. quantida de

40 2

5

4

3

2

MARTINS, M irian Celeste

DELEUZE, Giles

ARNHEIM , Rudolf; GARDNER, Howard, ANDRADE, M ário

ARTIGAS, Vilanova; BARBOSA, Ana M ae; BOURGEOIS, Louise; KLEE, Paul; DAWKINS, Richard; GUATTARI, Felix; DERDYK, Edith; FREIRE, Cristina, PILLAR, Annalice

Período da publicações: 1949 – 2006 50 2

60 6

70 11

80 18

90 6

2000 26

DEXTER, Emma. Vitamin D. New perspectives in drawing. Phaidon Press, 2005; Esta publicação faz parte de uma série da editora Phaidon que tem por objetivo mapear um panorama atualíssimo das práticas artísticas divididas por meios, assim há um volume sobre pintura, escultura e desenho. Foram chamados 77 autores de 20 países para indicar artistas 442 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


cujo meio principal de produção fosse o desenho, sendo selecionados 109 artistas. A curadora Inglesa Emma Dexter organiza a publicação e escreve o texto de introdução. A autora enfatiza a essencialidade do ato de desenhar como inerente ao processo do pensamento e da comunicação, que nos fazem humanos, assim o desenho está presente em todo o lugar. Em vista do crescente interesse do mercado, do circuito de arte e dos artistas pela prática do desenho, Dexter escreve: “A escrita teórica recente sobre o desenho tende a concentrar-se sobre a natureza conceitual e orientada para o processo da linguagem, portanto, ignorando uma tendência subjetiva, associativa e prevalescentemente liderada pela narrativa no desenho contemporâneo. Se faz necessário, no entanto, explorar além das características primariamente ontológicas do desenho para investigar as razões para a crescente ascendência do desenho. Descrevendo cruamente: os pós-conceitualismos e o pós-romant ismo. Crucialmente, é dentro do campo do desenho que as tensões e contradições inerentes são encenadas” 5 (p.6)

A autora termina sua introdução enfatizando a característica autográfica do desenho como meio essencial de comunicação, o ato de desenhar como um ato cotidiano banal e por isso um campo de liberdade para a produção artística. A partir do levantamento dos dados bibliográficos deste volume cheguei a formular dois mapas e três gráficos (figuras 4-6) como pode ser visto nas ilustrações. Sua forma, a maneira de organizar visualmente os dados servirá de modelo para os outros que serão montados.

Um primeiro levantamento da publicação lista: Referente aos artistas: Total: 109 Período: 1944 (Roland Flexner) – 1981(Devendra Banhart) Provenientes de: 34 países Quantidade de artistas nascidos ou que trabalham por país País 1) USA 2) Inglaterra

Quant. Art 48 18

5

Tradução da autora. No original: Recent theoretical writing about drawing tends to concentrate on the conceptual and process-oriented nature of the medium and hence ignores a very prevalent narrative-led, associative, and subjective tendency in contemporary drawing. It is necessary, however, to explore beyond the primal ontological qualities of drawing in order to look at other reason´s for drawings recent ascendancy. Described crudely: the post-Conceptual and the neo-Romantic. Crucially, it is within the field of drawing that the inherent tensions and contradictions are intriguingly played out” 443 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


3) 4) 5) 6) 7) 8) 9) 10) 11) 12) 13) 14) 15) 16) 17) 18) 19) 20) 21) 22) 23) 24) 25) 26) 27) 28) 29) 30) 31) 32) 33) 34)

Alemanha Japão Canada França África do Su l Bélgica México Suiça Brasil China Cuba Espanha Itália Peru Suécia Uruguai Venezuela Austrália Austria Bulgária Colo mb ia Eslovenia Et iopia Holanda Islandia Lituânia Noruega Paquistão Quênia Ro mênia Rússia Turquia

16 5 4 4 3 3 3 3 2 2 2 2 2 2 2 2 2 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1

Referente a bibliografia: autores: 13 publicações: 10 Período da publicações: 1925 - 2003 Déc. quantidade

1920 1

1960 1

1980 1

1990 6

2000 4

DE ZEGHER, Catherine. The Stage of Drawing: Gesture and Act. TATE, 2003. De Zegher organiza uma mostra de desenhos a partir do acervo da TATE com a ajuda da artista Avis Newman que é a real responsável pela seleção das obras, 120 desenhos e 30 estampas, cobrindo um período que vai do século XVIII a década de 80 do século XX. A 444 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


organizadora reúne na publicação textos dos seguintes autores: Norman Bryson, Jean Fischer, Michael Newman e Yves Bonnefoy além da transcrição de um longo diálogo entre ela e Avis. Esta última entende o desenho como um “espaço geracional de pensamento” assim a seleção pretende dar visibilidade às obras como evidencias de um processo mental do qual o desenho é índice. “Em última análise, The Stage of Drawing é também uma tentativa de discutir o que Newman acredita ser uma crise na arte, como os artistas se relacionam de uma forma não-literal com o sentido de humanidade, o que para ela é parte da essência do projeto artístico” 6 (p.278)

A exposição segundo De Zegher se interessa pela característica quase obssessiva do desenho como ferramenta de investigação do mundo, uma atividade sem fim, sempre um processo. As obras estão concentradas, na exposição e na publicação, em três módulos, “The mirrored self”, “Coded Imprints” e “Invented Bodies”. Estes subtítulos enfatizam as características autográficas e subjetivas do ato de desenhar bem como a identificação entre um processo interno de pensamento, constituição da imagem, com um processo de exteriorização, o ato de marcar uma superfície. Um primeiro levantamento da publicação lista: Referente aos artistas: Total: 69 artistas Provenientes de 11 países. Nascidos entre 1665 (Albert Seba) e 1947 (Giuseppe Penone) Total de Obras: 150

Referente a bibliografia: Total de autores: 72 Total de publicações: 76 Publicadas entre: 1934-2001 Autores mais citados: Agambem, Artaud, Baudelaire, Benajmin, Derrida, Didi6

Tradução da autora. No orig inal:“Ultimately, The Stage of Drawing is also an attempt to discuss what Newman believes to be a crisis in art as to how artist deals in a non -literal way with the sense of humanity, which for her is part of the essence of the artistic project”. 445 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Huberman, Freud, Nietzsche, Kristeva, Krauss

BUTLER, Cornelia H. Afterimage: Drawing through Process. The MIT Press, 1999. A exposição da qual a publicação é catálogo, aconteceu no Museu de Arte Contemporânea de Los Angeles, organizada por Cornelia Butler e Pamela Lee reúne obras de artistas americanos cujas as poéticas estão relacionadas ao que podemos chamar de arte processual e as manifestações artísticas originadas nos anos 60 e 70, a arte conceitual e ao minimalismo. Lee inicia seu texto com uma frase de Richard Serra como epígrafe: “não há maneira de se fazer um desenho – existe somente o desenhar. A ênfase então recai no processo ou no verbo e não no substantivo, no objeto. A autora examina historicamente as acepções e funções do desenho e do ato de desenhar para alcançar as estratégias dos artistas que utilizam a prática com suas características entrópicas, transitivas e contingentes, como processo aberto cujo resultado, se é que podemos chamar assim é indicial. Butler por sua vez propõe em seu texto uma atenção maior a materialidade das obras destes artistas que configuraram a desmaterialização do objeto de arte, sua epígrafe é uma frase de Smithson onde ele diz que sua obra é “uma catástrofe entre mente e matéria”. Ela enfatiza justamente esta aparente contradição temporal, no mesmo momento em que a arte conceitual surge, e praticamente no mesmo lugar, desmaterializando os objetos de arte, surgem também “trabalhos de terra” como os de Smithson, noções de anti forma se materializam em obras gigantescas. Butler analisa as obras e os textos dos artistas de maneira minuciosa, entendendo que os desenhos são o lugar onde essas complexas diferenças aparecem.

PETHERBRIDGE, Deanna. The Primacy of Drawing. Yale University Press, 2009. Ou por uma conclusão.

Petherbridge é a artista e pesquisadora do desenho. Seu livro, de 523 páginas de 30 X 25 centímetros é o resultado de duas décadas de pesquisa e está baseado no princípio de que o desenho é a base de toda a arte e pensamentos visuais (2009.p.2). Aqui meu relato de processo chega ao fim, um pequeno fracasso. A listagem dos 6 volumes selecionados da bibliografia para serem examinados em sua estrutura está em processo, não 446 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


está pronta. O livro Petherbridge está em processo de leitura, não pode ndo ter seus dados revelados aqui, porque ainda são desconhecidos. Outras falhas podem ser vistas nos levantamentos e listagens publicados aqui, ainda não encontrei um padrão para o levantamento por exemplo e os mapas e estatísticas ainda não estão todos prontos. Um processo que leva a outro e outro e que não termina, mas é parado por virtude do tempo, das responsabilidades frente as datas de entrega, deste texto mesmo, da qualificação ou do depósito da tese. Até aqui 29.326 caracteres com espaço, sem caixas de texto, notas de rodapé, bibliografia e resumo.

Referências Bibliográficas BOURRIA UD, Nico las. Estética Relacional. Buenos Aires, Adriana Hidalgo Ed itora, 2006. ______. Postproducción. Buenos Aires, Adriana Hidalgo Editora, 2009. BUTLER, Co rnelia H; LEE, Pamela. Afterimage: Drawing through Process. The MIT Press, 1999. GOM BRICH, E. H. Arte e Ilusão. São Paulo, Martins Fontes, 1995. DE ZEGHER, Catherine; BUTLER, Cornelia e. On Line. A century under the sign of line. New York, MOMA, 2010. DE ZEGHER, Catherine; NEWMAN, Avis. The Stage of Drawi ng: Gesture and Act. TATE, 2003. DERDYK, Ed ith. Disegno. Desenho. Desígnio. São Paulo, SENAC, 2007. DEXTER, Emma. Vi tamin D. New perspecti ves in drawi ng. Phaidon Press, 2005. IVINS, W illiam, Jr. Prints and Visual Communication. Cambridge, Londres, The MIT Press, 1969. PETHERBRIDGE, Deanna. The Pri macy of Drawi ng. Yale University Press, 2009. PLINY (the Elder). Natural History a selection. Londres, Penguin Books, 1991. SOLNIT, Rebecca. Wanderlust. A history of walking. Londres, Penguin Books,2000.

447 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


A Dobra Schumanniana entre-planos Amilcar Zani, Branca de Oliveira e Heloisa Zani 1 Resumo: “A Dobra Schumanniana” é um Concerto-Instalação que consiste em performances videográfica e pianística desenvolvidas em ambiente especialmente produzido. A composição videográfica é projetada simultaneamente tanto nas paredes do ambiente, quanto em tela especial envolvendo completamente um palco central, circular e elevado, onde está localizado o piano. Através de processamento digital em tempo real, as imagens da performance pianística são mescladas à projeção mapeada de um vídeo pré-editado. Este composto videográfico não só busca traduzir a consonância da multiplicidade que atravessa a obra schumanniana com o paradigma estético processual que caracteriza o mundo contemporâneo, como também alia a expressão artística da performance pianística e da videoinstalação à prática da pesquisa organizada e do estudo crítico continuamente renovado, ressaltando a atualidade das proposições arquitetadas pelos gênios da cultura, Robert e Clara Schumann, e Johannes Brahms. Desse modo, o foco de “A Dobra Schumanniana” corrobora a coetaneidade de obras poéticas distantes no tempo. Palavras-Chave: Arte-Pesquisa 1. Interdisciplinaridade 2. Multiplicidade 3. Música/ Vídeo 4. Interatividade 5. Abstract: "The Schumannian Warp" is a Concert-Installation consisting of video and piano performances on a specific environment. The video compositions are simultaneously projected on the sidewalls, as well on a special screen, which involves a circular stage where the piano is placed. Through digital processing in real time, the images of the musical performance are merged to a pre-edited video mapped projection. Not only to render the consonance of multiplicities of Schumann’s work with the procedural esthetic paradigm that characterizes the contemporary world, this video composite combines the artistic expression of piano and video performances with the practice of organized research and critic studies continuously renewed, enhancing the contemporaneity of propositions created by the culture geniuses Robert and Clara Schumann, and Johannes Brahms. Thereby, "The Schumannian Warp" confirms the modernity of poetic works distant in time. Key-Words: Art-Research 1. Interdisciplinarity 2. Multiplicity 3. Music/ Video 4. Interactivity 5.

1. O Intermédio Utilizar-se da lógica para refletir por escrito sobre uma obra artística audiovisual desencadeia uma série de estudos e análises que pretende antes circunscrever o problema ao invés de experimentá-lo. De saída, esta operação delimitadora se opõe ao movimento do espírito artístico – pois este, ao contrário, não se atrasa em calcular o precipício que é de sua natureza transpor. A dificuldade aparece quando se coloca em conexão uma espécie de 1

Amilcar Zani, Profo Titular do Dep. de Música da ECA/USP; Branca de Oliveira, Profa Dra do Dep. de Artes Plásticas da ECA/ USP; Heloisa Zani, Profa Dra do Dep. de Música da ECA/USP. 448 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


simetria entre dois campos de produção de conhecimento que visam resultados muito diversos: o poético e o reflexivo. Enquanto o primeiro provoca-nos com seus meios e estilos; interroga-nos com seus experimentos estéticos; transporta-nos para territórios insólitos em viagens imprevistas, colocando nossos sentidos cristalizados em circulação ou estado de suspensão; o reflexivo, por seu lado, procura as circunstâncias externamente atestadas em que as obras poéticas são compostas, manifestam-se e produzem seus efeitos, excursionando asseguradamente pelos caminhos de um raciocínio demonstrativo. Contudo, a especificidade desta conexão incita a considerar, no mesmo grau de severidade, tanto a “ação que faz” – a metodologia –, quanto a obra feita; atentando, todavia, para o fato de que no plano reflexivo, crítico, analítico ou interpretativo, pode-se apenas traçar conjecturas sobre o que de fato se passa no centro subjetivo do processo criativo autoral, mesmo e, sobretudo, se este for coletivo. A Dobra Schumanniana é um Concerto-Instalação resultante de processos criativos operados em pelo menos dois domínios de conhecimento no campo da Arte: Música e Vídeo. No entanto, é no terreno da Pesquisa da Sensação que o encontro entre estes modos de expressão está agenciado, uma vez que pode-se considerar o acontecimento estético audiovisual produzido nessa zona de entorno tanto sob a perspectiva de uma operação poética que força o pensamento a se experimentar como um ser de sensação, cujo ato criador atualiza, por meio de procedimentos técnicos musicais e videográficos, um agregado indissolúvel de sensações mutante; quanto à luz de um plano reflexivo em que o pensamento expresso esteticamente desdobra-se às ressonâncias conceituais, traçando territórios diversos. O Concerto-Instalação é formado por um composto de imagens, sonoras e visuais, caracterizadas pela fabulação de viagens visionárias, em busca de estéticas existenciais sobrehumanas – e o sobre-humano não é mais do que a proliferação de devires de toda espécie, arrastados por vozes misteriosas em maquinações delirantes. As matérias videográficas e musicais possuem algo que lhes é comum, que está como que entranhado em seus meios; é o espaço-tempo. Elas são por isto invocadas a entrar num empreendimento de cooperação que só é possível por haver certo procedimento em Música que faz eco àquilo que o Vídeo apresenta como procedimento em Vídeo - há um assunto, um problema em comum. No processo criativo de A Dobra Schumanniana, Música e Vídeo são convocados para a invenção de um espaço-tempo em que multiplicidades intensivas, instáveis e fragmentárias 449 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


possam se introduzir, metamorfosear e convergir. Tudo parece se apresentar como séries de fragmentos cuja conexão não está predeterminada. Pedaços de espaços-tempo aparentemente desconexos são interligados por meio da repetição, sobreposição e justaposição de compostos sonoros e visuais – os quais não param de sobrevir, arrastados por transversalidades que se desprendem dos estratos musicais e videográficos. Desterritorializados, estes compostos tornam-se bem mais livres e desenquadrados, quase agregados incompletos ou sobrecarregados, em desequilíbrio permanente. Motivos e contrapontos, componentes flutuantes interdisciplinares, fazem germinar bifurcações e “linhas de errância", com volteios, nós, velocidades, movimentos, gestos e sonoridades diferentes. Relações aberrantes são desenvolvidas, interpostas e tramadas nas bordas diagonais que irrompem, por seus próprios meios, para fora das coordenadas verticais e horizontais, harmônicas e melódicas, respectivamente, desencadeando disjunções entre o visual e o sonoro. Estas, por sua vez, desarmam a moldura das percepções ordinárias que enquadra a sensibilidade e, finalmente, libera-a à potência de afectos e devires insondáveis. No romantismo alemão, o gênio de Schumann arquiteta uma forma que não é desenvolvida senão para as relações, no presente, de velocidade e lentidão pelas quais ela é afetada material e emocionalmente. O corpo schumanniano não pára no lugar. (...) O intermezzo [é] consubstancial a toda obra. (...) No limite, só há intermezzi. (...) O corpo schumanniano só conhece bifurcações: ele não se constrói, ele diverge, perpetuamente, ao sabor de uma acumulação de intermédios. (DELEUZE; GUATTARI, 2007, p.97).

Para além das dicotomias e polaridades está o conceito de trânsito, cuja forma é a mesma dessa experiência Schumanniana de simultaneidade, de disponibilidade e dilatação do presente. Esse estado, que caracteriza a vida contemporânea, parece manter-nos frequentemente em condições de provisoriedade e de indefinições, no qual a estaticidade e o dinamismo da existência tendem paradoxalmente a coincidir. Essencialmente itinerante, o trânsito ou o intermédio, assim como na música, implica um deslizamento para a dimensão espaço-temporal, para a experiência do deslocamento, da transferência, da descentralização. Desse afrouxamento dos laços com o lugar de origem decorre a ausência de um enraizamento, entretanto, a falta de uma identidade neste caso não é sentida como um vácuo a ser preenchido: ser estrangeiro em sua própria terra e, vice-versa, sentir-se em casa em qualquer 450 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


lugar. Se por um lado o trânsito, como intermédio, evidencia a movência que prossegue, conservando e abolindo simultaneamente as suas determinações precedentes, por outro, rompe os vínculos com o passado e é animado por uma irreprimível vontade de ir além, destacando, nesse duplo movimento, o tempo presente e a presença. Assim sendo, A Dobra Schumanniana não faz um trânsito entre o passado e o presente, não comemora um tempo convocando remotas percepções, nem a memória de alguma coisa que possa acrescentar a reminiscência como elemento intensificante atual; antes, ela conecta partes diferentes de horizontes distantes. Fazendo eco a Nietzsche: Schumann lança uma flecha que é apanhada em pleno vôo e reenviada noutra direção, já sustentada por outras correntes de ar. O Vídeo acrescenta uma percepção não-musical da música, soma seus afectos e perceptos ao bloco de sensações musicais compondo, no presente atual, uma obra inteiramente nova que só deve a si mesma sua própria conservação, dando ao acontecimento o composto que o celebra, com a ressalva de que este ato celebrado não é reinterpretação, nem releitura, ou tradução, mas, sim, fabulação. Para tanto, foi preciso não memória, mas um material complexo que se encontra na criação das luzes, cores, espaços, volumes, tanto quanto nas composições sonoras. Colocado por Schumann já no século 19, o problema da multiplicidade2, que designa uma organização própria do múltiplo enquanto tal, sem necessidade alguma de unidade, continua, com certas transformações, válido ainda hoje. Misturar Schumann com o século 21 faz vibrar o conjunto das suas questões, colocando-as em relação com as da atualidade. E, se os métodos videográficos e musicais são muito diferentes, não somente segundo as especificidades artísticas, mas segundo cada autor, o problema comum da multiplicidade os reúne. Faz ressoar, um no outro, os modos de expressão. Embora produzam sensações de natureza muito diversa, a multiplicidade que opera nos dois planos de expressão cria uma extrema contiguidade entre as sensações não semelhantes produzidas por cada um. Os compostos de sensação, concernentes tanto à Música quanto ao Vídeo, são enlaçados no

2

De origem bergsoniana, esse conceito opera um duplo deslocamento: de um lado, a oposição do um e do múltiplo cessa de ser pertinente; de outro, o problema torna-se o da distinção de dois tipos de multiplicidade (atual-extensiva, que se divide em partes exteriores umas às outras, como a matéria ou a extensão; e virtualintensiva, que não se divide senão em dimensões englobadas umas nas outras, como a memória ou a duração). Mais ainda, a antiga oposição aparece em relação com um dos dois tipos - o tipo atual-extensivo, que deriva por "atualização" do tipo virtual-lintensivo. (ZOURABICHVILI, 2004, p.37) 451 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


distanciamento de uma luz que capta os dois num mesmo reflexo. Quando por simpatia parcial as sensações se acoplam, um corpo puramente energético surge. As ideias vão e voltam, se afastam, tomam formas diversas e, através destas formas variadas, liberam o pensamento, colocando-o numa espécie de devir, de evolução que impede a colocação dos problemas do mesmo modo, fazendo apelo, pelos modos sucessivos em que os problemas passam a ser postos, a uma grande corrente de ar que leva à necessidade contínua de criação. Em A Dobra Schumanniana, estes problemas propõem uma espécie de dimensão imanente à questão da multiplicidade. Isso coloca o mundo na perspectiva de um conjunto de coisas dobradas umas nas outras - tudo só existe dobrado, dobra de dobra – delírio de Leibniz. A matéria é feita de redobras sobre si mesma, as percepções e os sentimentos são dobrados na alma, o mundo inteiro se encontra dobrado. As múltiplas dobras desterritorializam blocos de espaço-tempo e abrem esses agenciamentos a uma força cósmica. As dobras luminosas e sonoras fazem o Vídeo e a Música transpor limiares de desterritorialização em relações ora de afrontamento, ora de complementaridade, ora de separação, ora de troca. Mas esse puro movimento coloca ambos num mesmo plano de consistência, de composição, de imanência. 2. A Obra A Dobra Schumanniana é uma obra de caráter multimidiático e interativo que alia Linguagem Eletrônica e Música Clássica, por meio de performances pianística e videográfica. Enquanto Branca de Oliveira trabalha com multiprojeções de vídeos tanto sobre o espaço, quanto sobre os pianistas, o Duo Heloisa e Amilcar Zani interpreta ao piano Robert Schumann - Quinteto para Piano op. 41 em Mib Maior, arranjo de Clara Schumann para Piano a Quatro Mãos, e Johannes Brahms - Quarteto op.51 nº 1 em dó menor, arranjo do compositor para Piano a Quatro Mãos. Esse tipo de arranjo para piano a quatro mãos de obras musicais dos mais variados gêneros foi amplamente utilizado no século 19, como meio de divulgação de obras que requeriam vários músicos para sua execução. Muitos deles, devido à grande experiência musical de quem os realizou, puderam se afirmar como verdadeiras obras originais para piano, uma vez que se tornaram mais do que simples acomodações ao instrumento das notas de uma obra musical escrita para conjuntos de formação específica. Transformaram-se em 452 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


traduções de um meio de realização musical para outro, como podem comprovar as obras escolhidas para compor este concerto-instalação que tem em Robert Schumann seu eixo central. O espaço onde o Concerto-Instalação acontece, em formato de arena, é composto por um palco central, redondo e elevado, em cujo centro está o piano para a performance dos músicos. Envolve o palco uma tela especial transparente e circular, em que são realizados experimentos em live image, cujas projeções mesclam imagens da performance pianística a vídeos previamente editados, através de processamento digital em tempo real. O vídeo, por sua vez, contempla a atmosfera schumanniana das filmagens captadas na Alemanha em locais onde está conservada e mantida a maior parte dos registros documentais da vida e obra de Robert e Clara Schumann. A coordenação das múltiplas projeções simultâneas sobre a tela em 360 graus, que circunda o palco e as paredes internas que circunscrevem todo o espaço da apresentação, é realizada em videomapping, como num jogo vivo de reflexões em que som e imagem se rebatem e se multiplicam em inúmeras camadas. Consonante com o paradigma estético processual que vem caracterizando a produção artística contemporânea – e de sentido predominantemente trágico –, a organização espaço-temporal das diversas categorias de imagens áudio-visuais tem como fundamento a reverberação do conceito criado por Bergson e trabalhado por Deleuze – a Multiplicidade –, que atravessa a obra schumanniana. A seguir, apresenta-se uma sequência ilustrativa do projeto arquitetônico para montagem em espaço retangular (FIG.1, FIG.2, FIG.3).

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FIGURA 1 – Planta baixa

FIGURA 2 – Detalhes 454 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


FIGURA 3 – Vistas diversas

3. Registro Fotográfico da Estreia de A Dobra Schumanniana Na sequência apresenta-se o registro parcial de imagens captadas durante o ConcertoInstalação. As imagens foram realizadas com várias câmeras posicionadas em diferentes ângulos de visão (FIG.4, FIG.5, FIG.6)

FIGURA 4 – Vista Frontal Anterior de A Dobra Schumanniana Fotografia: João Caldas 455 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


FIGURA 5 – Vista Aproximada lateral Esquerda de A Dobra Schumanniana Fotografia: João Caldas

FIGURA 6 –Vista Lateral Direita 1 de A Dobra Schumanniana Fotografia: João Caldas 456 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


4. Porquê Schumann Novos aspectos e reflexões a respeito de Robert Schumann vêm ganhando notoriedade. Estudos acerca da atualidade de sua obra vêm sendo ininterruptamente salientados. A dedicação simultânea de Schumann tanto à música, quanto à literatura, singularizaram sua criação pianística e tornaram fabulosa a conexão entre o processo de criação e sua produção crítico-literária. Isso fez com que ele inaugurasse, à sua época, novas formas em música – as expressões musicais românticas. Robert Schumann espelha a característica do duplo, conceito introduzido pela literatura e filosofia do movimento romântico alemão, trazendo para a música, através de um processo objetivo de estudo e de criação poética, a essência daquele movimento. O Romantismo é uma revolução, um revolução total. Subverteu ao mesmo tempo a sensibilidade e a ética de um período, suas formas de arte, seu pensamento literário, filosófico e religioso; para aqueles que então se consagraram, significou uma conversão. (BOUCOURECHLIEV, 1956, p.9)

O dualismo e a contradição, inerentes à multiplicidade que caracteriza o contexto artístico de hoje, sempre fizeram parte do procedimento schumanniano. A coexistência de múltiplas tendências em sua personalidade, que nunca deixaram de se sobrepor, trazem, principalmente, implicações consideráveis sobre questões de interdisciplinaridade que caracterizam a produção estética contemporânea. Este significativo conflito, ao mesmo tempo em que manifesta positivamente sua força criativa e o mantém em um equilíbrio extremamente precário diante da sucessão dos acontecimentos de sua vida, tornou possível a convivência entre a realidade e a fantasia, a vida e a morte, a afetividade e o rancor, a sanidade e a loucura, marcando, distintivamente, sua potência e atualidade. (ZANI NETTO,1990, p.31-44) Clara Wieck, mais tarde Clara Schumann, pode ser considerada, ao lado de Franz Liszt, a maior pianista do Século 19. Ela foi a fonte inspiradora da obra de Robert Schumann e sua grande paixão. Johannes Brahms, ao procurar Schumann com a finalidade específica de tornar-se seu aluno, transforma-se no terceiro elemento da configuração de um triângulo afetivo que estabelece os desígnios e o caminho percorrido pela Música naquele século. O estudo, enquanto processo de aquisição, ampliação e produção do conhecimento é considerado por Schumann a única via de acesso à criação de uma grande obra. Isto confere 457 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


ao crítico e compositor um papel capaz de inflectir o curso da História da Música. A historiografia musical do movimento romântico alemão, e toda a produção de música subsequente, até os nossos dias, não teria sido viável sem o vigor da obra schumanniana.

Referências Bibliográficas BOUCOURECHLIEV, A.. Schumann. Paris: Seuil, 1956. DELEUZE, G.;GUATTARI, F.. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. vol. 4. São Paulo: Editora 34, 2007. PERNIOLA, M.. Pensando o Ritual. Sexualidade, Morte, Mundo. São Paulo: Studio Nobel, 2000. VALÉRY, P.. Variedades. São Paulo: Iluminuras, 1999. ZANI NETTO, A.. Schumann e seus duplos: uma leitura da Sonata op. 11 em fá sustenido menor. São Paulo: Atravéz, n.2, Cadernos de Estudo: Análise musical p.31-44, 1990.

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CORPO Território de metamorfoses e hibridismo Cladenir Dias Lima 1 Agnus Valente 2 Resumo: As obras da série Metamorfoses do Desejo fase I e II são resultados do intercâmbio entre as diversas linguagens da arte, como fotografia, artes plásticas e apropriação de imagens da internet, configurando uma hibridação de sistemas artísticos (VALENTE, 2008). Estas linguagens e imagens utilizadas foram o ponto de partida para a produção das obras. Fotografadas ou scaneadas e transmitidas ao computador, as imagens foram projetadas sobre partes do corpo, sofrendo assim um processo de fragmentação e recombinação. Nessa série podemos identificar elementos que apresentam um corpo fragmentado no qual podemos reconhecer apenas algumas partes - pêlos, olho, silhueta. O fragmento faz com que esse corpo apresentado ao espectador seja um corpo não identificável, pois não há apenas uma interpretação possível, podendo ser qualquer parte do corpo e ao mesmo tempo quando reconhecido como corpo revela-se seu aspecto humano, tornando-se representação de toda pessoa e remetendo a um discurso sobre o desejo, o imaginário, o voyeurismo e demais temas que envolvem a complexidade humana. Palavras-Chave: Hibridismo. Autoria. Vivências coletivas. Multimídia. Arte Digital.

1. Influência:

FIG. 1 – Metamorfoses do desejo – fase I DENIDIAS Fotografia dig ital 2m x 1m (apro x.) 2010/2011 Pág. 1

As obras da série Metamorfoses do desejo – fase1 (FIG. 1) têm como influência a série Body Buiders (Modeladores de Corpos) de 1996 a 2001 do Artista Plástico Alex 1

Cladenir Dias - mestrando em Artes no Instituto de Artes/UNESP, co m orientação do Prof. Dr. Agnus Valente e part icipa do Grupo de Pesquisa Poéticas Hibridas, coordenado por Prof.º Dr. Agnus Valente e Prof.º Dr. Wagner Cintra. Contato: deny.jaba@bol.co m.br 2 Agnus Valente - Artista híbrido, Professor Assistente Doutor em Artes Visuais no IA/UNESP. Doutor e Mestre em Artes pela ECA/USP, Contato: agnusvalente@uol.com.br

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Flemming (brasileiro, contemporâneo com trabalhos multimídia, instalações, apropr iações de objetos e projeções nos corpos). Flemming utiliza na série Boldy Builders, corpos seminus e atléticos sem faces, estampando neles mapas de regiões em conflitos, tais como: México, Índia x Paquistão, Georgia (FIG.2), e ainda, palavras que muitas vezes são retiradas da bíblia mais especificamente do velho testamento.

Tanto os corpos quanto os mapas e palavras

desses painéis são manipulados digitalmente e impressos em PVC.

FIG. 2 - Geo rgien (“série Body Builders”) Alex Flemming Acrílica s/fotografia s/ PVC 154 x 202cm 2001 Pág.2

Esses conflitos mundiais retratados na obra de Flemming demonstram a busca de uma identidade coletiva e individual que podemos identificar nas diversas culturas. As demonstrações de tais conflitos internos e externos do sujeito são expressas, devolvendo de modo poético uma interpretação do mundo em que vivemos. O ponto em comum entre estes trabalhos de Flemming e a série Metamorfoses do desejo é a questão da projeção de imagens utilizando o corpo como suporte. A ut ilização do projetor na produção de trabalhos artísticos remete a uma técnica contemporânea dos novos meios. Porém desde o séc. XV os artistas já faziam uso desse recurso (HOCKNEY, 2002). Através de espelhos e lentes, as imagens eram projetadas sobre seus suportes (telas ou papéis) obtendo assim representações fieis dos objetos desenhados. Outro aspecto encontrado na obra de Flemming que se relaciona com a série aqui apresentada é a relação do corpo com o conceito de alegoria. Para Owens, alegoria seria um elemento estético que permite que um texto seja “lido através de um outro texto”, operando uma “rescritura de um texto primário em termos de seu significado figural ” (OWENS, 1992: p.205). Segundo Barbosa, “a figura humana, em Alex Flemming, não é represe ntação do corpo, mas representação por meio do corpo” (BARBOSA, 2002, p. 19) – essa característica de corpo como suporte e mediação na criação da obra também ocorre na série Metamorfoses do desejo. 460 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


1.2. Referências As obras da série Metamorfoses do desejo têm como base a utilização: do computador, da máquina fotográfica, do projetor, de imagens virtuais e do corpo como suporte.

A contemporização de mú ltip los meios promove cruzamentos da imagem tecnológica co m as imagens de caráter artesanal (desenho, pintura) e industrial (artes gráficas, fotografia e cinema). Neste contexto, intervém mais especificadamente a modalidade da linguagem que, através dos códigos visuais, verbais e sonoros, daqueles sentidos mencionados, introduz os correspondentes sistemas de signos. Assim, fundadas naqueles “efeitos do tratamento numérico da informação que se infiltra no cerne das operações” em amb iente digital, e que recodifica os demais meios e códigos, a hibridação de meios configura, a meu ver, um campo propicio para subsequentes misturas – e envolve, extensivamente, elementos de hibridações de sistemas artísticos. (VALENTE, 2008, p. 29)

As imagens virtuais utilizadas pelo artista-pesquisador na produção das obras da série foi o ponto de partida para a sua produção. Sendo esta imagem captada da internet e projetada sobre partes do corpo, utilizando - o como interface de uma comunicação visual e posteriormente fotografada e retransmitida ao computador, promovendo uma hibr idação de meios e sistemas (VALENTE, 2008); nessa práxis, a imagem sofre um constante processo de fragmentação e recombinação. A fragmentação e a recombinação são uma constante nas obras da série Metamorfoses do desejo, tanto no processo de produção quanto nas questões conceituais que envolvem o corpo. Como o corpo, através de suas sensações, foi o canal para se chegar às obras da série, sua utilização na totalidade pode abranger também sua característica de suporte, visto que durante toda a nossa história de vida vamos adquirindo informações que marcam nosso corpo, informações essas que nos tornam um território de impressões resultado de processos naturais ou acidentais (cicatrizes, marcas de nascença etc) ou de intervenções (cirurgias plást icas, perfurações, tatuagens etc) que retardam, adiam ou redesenham o território do corpo, ainda que tais intervenções sejam permanentes ou efêmeras. Segundo Domingues, o corpo foi introduzido pela primeira vez, com força, na filosofia e na cultura ocidental por Schopenhauer. Para ele o corpo não era colocado mais como um 461 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


“mero „concreto sensível que pode tornar manifesto o espírito...‟, nem tinha mais „o fim de existir somente para o nosso ânimo e para o nosso espírito...‟; era, ao contrário, uma realidade última, disponível para nós e por nós penetrável(...)” (1997, p.303). Consumado o rompimento da arte com a representação tradicional, o corpo passa a ser compreendido como linguagem das diferentes vanguardas. Os artistas se apropriam do corpo não mais como tema, mas sim como território, local a ser ocupado, territorializado.

Território construído por liberdades e interdições, e revelador de sociedades inteiras, o corpo é a primeira forma de visibilidade humana. O sentido agudo de sua presença invade lugares, exige compreensão, determina funcionamentos sociais, cria disciplinamentos e desperta inúmeros interesses de diversas áreas do conhecimento. (SOA RES, 2006, p.65)

Quando os artistas visuais se conscientizam de que o corpo pode ocupar outros campos estéticos abrangendo diversas linguagens (além do teatro, cinema etc...) e demonstrar em si a sua própria singularidade poética, este objeto até então inerte e pouco explorado nas Artes Visuais, surge como território possível de exploração. A singularidade do corpo permeia o fazer e o pensar artístico, torna-se suporte da tatuagem, do implante e das novas tecnologias. O homem quer se desvincular e se apresentar ao mundo como ser único, singular. Na década de 50 e 60, surge a Body Art (arte do corpo ou corporal) e algumas de suas correntes artísticas utilizam o corpo como expressão plástica, associada às novas tecnologias ou a modificação do corpo.

Na “Body Art”, são individualizáveis duas tendências fundamentais que dão, respectivamente, lugar a a lgu mas práticas de tipo hard e de tipo soft: alguns “bodystas” põem em cena os cerimoniais sustentados pelas pulsões destrutivas ou auto-agressivas (...), outros “bodystas” adotam, ao contrário, comportamentos mais mórb idos e inócuos: (...) Joan Jonas diss olve a “body-art” às performances mu ltimid iáticas (...), Jonas, Urs Lüthi, Vito Acconci, Bruce Nauman (...) deslocam inteiramente para o vídeo e para os seus videoteipes, as suas operações corporais, e dão início àquela que pode ser considerada a tendência maior e mais praticada pelo vídeo arte dos anos 70: nesta exploração tecnológica do corpo, nesta composição de corpo e vídeo, a “body-art” tira a máscara e aparece a u m tempo como lamento fúnebre sobre a carne que morre e como anúncio de toda uma nova ép oca do corpo: o fim últ imo da “body”, a sua meta inconsciente, é a espetacularização do corpo, a sua transferência para novas mídias, a sua transformação em u ma mera memória de máquina. (DOM INGUES, 1997, p.307 e 308).

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A utilização do corpo como suporte surgiu após a ideia modernista de fragmentação do corpo humano. Os movimentos Modernos exploraram e desestruturam os padrões estéticos e tradicionais da figura humana (MATESCO, 2009 p. 36) Pablo Picasso apresenta em 1907 o quadro Demoiselles d‟ Avignon (FIG.3), ícone dessa fragmentação representada por meio de uma geometrização da imagem, recusa do realismo e busca de uma relação com a arte primitiva.

FIG. 3 - Les demoiselles d’ Avignon Pablo Picasso 243,9 x 233,7 cm Óleo sobre tela Museu de Arte Moderna de Nova York (EUA) 1907 Pág.5

Esse tipo de representação se relaciona com a atmosfera do pós- guerra, refletindo a destruição e a dilaceração por meio da violência pela qual os indivíduos passaram nesse período. Matesco nos diz que o homem moderno “é um homem mutilado, resultado de uma relação que é externa. Ele está fragmentado, pois suas impressões são fragmentadas”. (2009, pag.35). A fragmentação ou a decomposição do corpo aparecerá de diferentes maneiras nos movimentos modernistas, como na geometrização do cubismo, na desproporção do fauvismo, na repetição dos elementos no futurismo, mas é no surrealismo que esse conceito ficará mais explicito. São exemplos Salvador Dali, Hans Bellmer e Man Ray. Em Dalí o corpo é carne que se desfaz nas pinturas de cenas oníricas. Ele próprio, referindo-se à obra “Construção mole com feijões cozidos” (FIG.4) em resposta ao questionamento sobre a presença dos feijões na composição da tela, disse: “Embelezei essa estrutura macia da grande massa de carne em guerra civil com feijões cozidos, pois era inimaginável engolir toda aquela carne inconsciente sem a presença (por pouco atraente que fosse) de algum farináceo e melancólico vegetal”. A fruição do corpo fragmentado na obra de Dalí requer uma sensação tátil, alcançando com esse efeito o nível da agressividade, embora se perceba ironicamente que esse corpo permanece ao mesmo tempo esquartejado e vivo.

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FIG.4 - Construção mole co m feijões cozidos (Premon ição da Guerra Civil) Salvador Dalí 101,3 x 100cm Philadelfhia Museum o f Art, EUA 1936 Pág. 5

Diferentemente do aspecto mórbido da representação do corpo em Dalí, na obra Anatomias, de Man Ray (FIG.5), o aspecto surreal do corpo surge quase que abstrato, utilizando um simples, porém original, recurso possível da fotografia: a mudança sutil de posicionamento do corpo ou da objetiva, desorientando o espectador e enfatizando o aspecto poético da metáfora. Segundo Rosalind Krauss, as fotografias de Man Ray “desmontam o aspecto

familiar

do

corpo

humano

e

redesenham

o

mapa

acreditávamos ser o mais familiar dos terrenos” (2010, p173).

FIG. 5- Anatomia Man Ray fotografia 1930 Pág.5

FIG. 6 - The Dol - La poupée Hans Bellmer escultura 1936 Pág. 6

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daquilo

que


Já na obra La poupée, de Hans Bellmer (FIG.6), o corpo é apresentado sob a lógica da manipulação e reorganização das posições de um corpo impossível, reunindo em uma só figura o resultado da percepção imediata do olhar e as reinvenções da imaginação (MORAES, 2002, p. 68). Nessa obra, ...tudo está arranjado para produzir a experiência de espaço imag inário do sonho, da fantasia, da projeção. Não é só a reinvenção obsessiva de uma criatura sempre dinâmica, continuamente reart iculada, ocupando compulsivamente diferentes lugares no espaço horrivelmente banal da cozinha, da escada, da sala de estar que nos traz u ma percepção narrativa da fantasia, co m suas cores flamejantes “tecnicolor” pintadas à mão e o sentimento de que, embora a encenação esteja perfeita, nunca se pode enxergá-la nitidamente, tudo isto se combina para criar ao mes mo tempo a aura e a frustração que fazem parte da dimensão visual do imaginário. (KRA USS, 2010, p. 196)

O destaque das obras desses artistas se justifica pelo fato de iluminarem questões que estão presentes nas obras da série Metamorfoses do Desejo, principalmente por evocarem a estranheza e a sexualidade por meio da fragmentação do corpo, ressaltando uma afinidade de procedimentos e conceitos referentes ao movimento artístico do Surrealismo. 1.3 Leitura da Obra As obras da série Metamorfoses do desejo tiveram como influência a série Boldy Builders (Modeladores de Corpos) do artista Alex Flemming, contudo as séries se diferem. Em Metamorfoses do desejo, as obras contêm elementos mais intimistas, insinuando um corpo que está presente através dos fragmentos, transferindo ao espectador o completamento desse corpo através da busca, em seu imaginário, de referências que o componham. Além disso, os corpos na obra de Flemming são apresentados de modo mais objetivo, figural, enquanto que na série Metamorfoses do desejo a sobreposição de imagens, técnicas e linguagens artísticas torna a leitura do corpo mais abrangente e subjetiva, seus limites são os limites do imaginário ou, fazendo um paralelo com Bataille, nesse caso a metamorfose gerada pelo excesso de técnicas, imagens e linguagens torna-se “transcendência”. Na série Metamorfoses do desejo, as questões do corpo como “carne” e sua relação com a morte estão colocadas, no sentido erótico, como em Bataille. Para este escritor francês:

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“o sentido do erotismo é a fusão, a supressão dos limites” (...) A união dos corpos corresponde à violação das identidades : nesse processo as formas individuais se fundem e se confundem até o ponto de se tornarem indistintas umas das outras, dissolvendo-se na caótica imensidão dos cosmos. (MORA ES 1999, p. 20)

A alegoria dos corpos representados na série Metamorfoses do desejo remete a um discurso sobre o erotismo, o imaginário, o voyeurismo e demais temas que envolvem a complexidade humana. Esses conceitos foram levados em conta na escolha da imagem que foi projetada no corpo (FIG.7). A imagem utilizada para a projeção sobre o corpo foi uma apropriação de uma imagem virtual. Vê-se nela um olho por através de uma fechadura, sugerindo o olho do voyer.

FIG. 7 - Imagem apropriada da internet para projeção da série Metamo rfoses do desejo 2010/2011 Pág. 7

Na obra Etant Donnés (FIG.8), do artista Marcel Duchamp, a questão do voyerismo também é abordada. Segundo Zappa, a obra consiste em:

... u ma porta de madeira antiga que apresenta dois orifícios pelo qual o espectador pode ver um cenário construído. Os orifícios deixam ver u m mu ro arruinado com u m buraco que, por sua vez, deixa ver u m corpo femin ino nu reclinado num leito de gravetos e folhas secas. Este corpo é fragmentado, não é possível ver o rosto, apenas suas pernas que estão escancaradas e sua mão estendida que segura uma lamparina a gás acesa. A região pubiana é desprovida de pêlos. Há indícios de cabelos loiros, mas a cabeça está oculta. Ao fundo há uma cascata inserida numa paisagem campestre. (ZAPPA, 2007: p.52 e 53)

FIG. 8 - Etant Donnés (detalhe) Marcel Duchamp Philadelphia Museum of Art 1946-1966 Pág. 8

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A questão do voyeurismo na obra Etant Donnés é abordada do ponto de vista de quem vê; já na série Metamorfoses do desejo a imagem mostra o ângulo da perspectiva de quem é visto ao mesmo tempo em que flagra a expressão do olhar voyeur. O próprio processo de poder ver desvelados diante de si aspectos do mundo, não o “meu mundo”, mas os “mundos de outros”, por meio das novas tecnologias (o mundo virtual internet), é também um ato de voyerismo, quando se trata de olhar imagens eróticas sem ser visto. Nas artes visuais, o olho também é um ícone de sensações, o meio pelo qual se faz a experiência estética, sendo também um dos órgãos-símbolo do desejo – é pela visão que se faz a primeira apropriação do objeto desejado. Sua forma oblíqua também será encontrada em outras partes das obras da série Metamorfoses do desejo, possível pela intersecção entre partes do corpo (junção dos pés, por exemplo) sugerindo a forma genital feminina, enquanto a fechadura remete, ao contrário, à genitália masculina. (FIG. 9)

FIG. 9 - Detalhe do corpo para projeção de imagem da série Metamorfoses do desejo 2010/2011 Pág. 9

A referência a órgãos sexuais é reforçada pelo aparecimento de pêlos, neste caso da perna. No entanto, quando a imagem é manipulada, a manipulação cria silhuetas e não há como identificar a parte do corpo que está retratada, incitando o imaginário a buscar outras referências corporais, possibilitando a associação com órgãos sexuais. Em um segundo momento, depois de impressas, as obras foram recortadas e reorganizadas, dando origem a novas imagens. Como as composições iniciais tinham como conceito a utilização do corpo imaginário, o seu desdobramento seguiu o mesmo conceito, dando origem a imagens de um corpo ou partes de um corpo imaginado, reconstruído e surreal. 467 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Segundo Pareyson,

O artista é mais espectador do que ator, mais receptáculo e veiculo do que autor e criador: a obra quase que se faz por isso mesma, organizando-se na sua atividade e tornando-a como que o instrumento de seu próprio nascimento. No fundo, o artista é passivo e inconsciente e segue ou, quando muito, secunda uma criação que se faz por si (PAREYSON, 1997: p.99).

Esse pensamento de Pareyson fundamenta a ação do desdobramento das obras da série Metamorfoses do desejo - fase II (FIG.10), pois estas foram nada mais do que uma possibilidade plástica que se originou e se fez presente por sua pulsante necessidade. A impressão das imagens fez com que surgissem novas possibilidades compositivas, sugeridas pelas formas, cores e figuras criadas pela manipulação gráfica e pelas combinações que surgiram a partir das projeções sobre o corpo. Ao recompor a imagem, através de recortes e de incisões, o artista-pesquisador ressignifica a imagem dando a ela um novo sentido e posicionamento. Essa constante necessidade de expressar algum conceito, ideia ou intenção, através de uma linguagem artística, imprimindo o seu gesto na obra, faz com que o artista transmita em suas operações plásticas a sua singularidade, não ficando restrito à automatização e mecanização dos meios eletrônicos, mas sim, criando novos gestos para as novas técnicas e tecnologias. Transitando entre os processos tecnológicos, mecânicos e manuais, a obra ganha um caráter original e híbrido.

FIG. 10 – Metamorfoses do desejo – fase II DENIDIAS Fotografia dig ital 2m x 1m (apro x.) 2010/2011 Pág.10

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DESENHO INTRUSO Claudio Hideki Matsuno 1 Resumo: O presente artigo "Desenho Intruso" estabelece um diálogo no âmbito das poéticas visuais, através de pesquisas sobre minha produção em desenho, que tem ênfase na improvisação, no acaso e no mutável, questionando o lugar das coisas. Essas ideias adotadas na criação geram variantes de desdobramentos como, por exemplo, o campo expandido, em trânsito de modalidades, conceitos abalizados por Robert Morris e Rosalind Kraus. A discussão a ser explicitada contextualiza fundamentos levantados por alguns dos principais artistas que influenciaram minha produção como Ben Vautier, Artur Barrio e Nedko Solakov. Com ênfase nas referências da arte Povera e arte Conceitual projeto as formas de construção, através de apropriações de objetos banais e materiais recuperados, criando possibilidades poéticas. O foco central de elaboração processual dos desenhos consiste em grupos específicos de pensamentos, assimilados e expandidos pelas questões do precário, do acúmulo, da repetição e da contaminação, que protagoniza uma série de ruídos provocando instalações. Em meio a estes processos coexistem dúvidas e incertezas e os diálogos entre os objetos da instalação trazem uma nostalgia como renovação do passado, ou de um futuro a surgir, consistindo “[...] em atribuir ao que foi desvelado do passado um significado a partir do presente, ou em proporcionar ao presente um significado a partir do que foi desvelado no passado”, como apresentado por Calabrese. Quando me refiro a valores e modelos, que me parecem faltar na atualidade, recorro então, ao tempo passado numa atualização. Palavras-Chave: artes visuais, poéticas, instalação, desenho Abstract: The article "Drawing Intruder" establish a dialogue in the visual poetics, through my research on production drawing, which has an emphasis on improvisation, on chance and the changeable, questioning the place of things. These ideas taken in creating unfolding generate variants as, for example, the expanded field, in transit embodiments, concepts authoritative by Robert Morris and Rosalind Kraus. The discussion contextualizes be spelled pleas raised by some major artists who influenced my production as Ben Vautier, Artur Barrio e Nedko Solakov. With emphasis on art references Povera and Conceptual art forms construction project through appropriations of banal objects and reclaimed materials, creating poetic possibilities. The central focus of procedural preparation of drawings consists of specific groups of thoughts, assimilated and expanded by the precarious issues of accumulation, repetition and contamination, which carries a lot of noise provoking installations. In the midlle of these processes coexist doubts and uncertainties and dialogues between objects of nostalgia as installation bring a rene wal of past or future to emerge, consisting of "[...] to assign to that unveiled the significance of the past from the present, or to provide a meaning to this from what has been unveiled in the past, "as presented by Calabrese. When I refer to value and models, which seem to miss me today, I turn then to the time spent in an update. Keywords: Visual Art; Poetic; Installation; Drawing.

Ação do improviso "Desenho Intruso" discorre sobre meus ”desenhos”, com foco no modo de criação 1

Claudio Matsuno é artista e mestrando da Pós-Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas. 470 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


sob forma de improvisação, do acaso e do mutável, onde questiono o lugar das coisas. A discussão explicitada contextualiza fundamentos levantados por alguns dos principais artistas que influenciaram meus trabalhos como Ben Vaultier, Artur Barrio e Nedko Solakov e também identifico na construção das obras referências da arte Povera e arte Conceitual, a projeção das formas se dão através de apropriações de objetos banais e materiais recuperados, criando assim possibilidades poéticas. O foco de elaboração processual dos trabalhos e m desenho consiste em grupos específicos de pensamentos, assimilados e expandidos pelas questões do precário, do acúmulo, da repetição, da contaminação que, juntos compostos protagonizam uma série de ruídos entre estes materiais, provocando a composição da instalação. A exemplo do artista Ben Vautier, onde ele se apropria de materiais pré fabricados, insere em suas intervenções determinadas frases e palavras provocativas aos

objetos,

reinterpretando, contrariando assim a forma de percepção da arte “imposta” naquele período, ampliando o repertório nas artes visuais, na mesma linha de pensamento, o artista brasileiro Artur Barrio traz para dentro do espaço expositivo restos de objetos recolhidos de terrenos baldios, galpão de lixos, se apropriando dos mesmos e criando, na maioria das vezes, obras de caráter efêmeros e temporários, dando um valor nas ações criativas e imediatas, inibindo assim o intelecto do artista. Num trabalho mais discreto o artista Nedko Solakov desenha e escreve minúsculos elementos em áreas e objetos já existentes no espaço como tomada elétrica, ralos de banheiro e cantoneiras do espaço, levando o espectador a perceber onde e como a arte pode ser explorada e exibida. A maneira como essas composições são posicionada s, através da improvisação, caracterizam os elementos principais se opondo a qualquer tipo de equilíbrio simétrico. No Dadaísmo o uso da improvisação nasce com força, cuja intenção era a libertação das vinculações racionalistas, consistindo somente da decorrência do automatismo psíquico, combinando elementos na casualidade. Esta negação da cultura em sua totalidade, a incoerência, o absurdo, a desordem e o caos são defendidos no Dadaísmo, gerando, assim, protestos, opondo-se a uma civilização que nao conseguira evitar a guerra. Consistira numa ironia, de pessimismo com uma radical ingenuidade.

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Em “Um outro lugar de onde estou“, instalação realizada em 2012, a improvisação tem ênfase na série de objetos que a compõem como, por exemplo, os desenhos grampeados, que foram presos nas ripas de madeira (adquiridos em caçambas e madeireiras), papéis coletados das cestas de lixo, retrabalhados e reinterpretados sobre algumas imagens já existentes, foram exibidos de modo que as ripas estão apoiadas sobre a parede enfileirada, de maneira onde o conjunto da instalação foi constituído no formato de um estandarte, expondo os desenhos de forma mais crua e nua possível, como mostro abaixo na figura 1.

FIGURA 1: Claudio Matsuno, Série - Um outro lugar de onde estou, 2012, materiais diversos, dimensão variável.

Nesta individual realizada na Galeria Virgílio em São Paulo prevalece a união das

[...] frações de acontecimentos, de entendimentos ou raciocínios, como se fôssemos definindo as razões da forma; coisas que foram deixadas ali, aclamando um “outro lugar”. Digo isso no sentido da nomenclatura de situações adversas que nos 472 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


dominam, assim este “outro lugar” é variante, isento de adereços desnecessários. (STRAMBI, 2012).

Existe uma forte apropriação de materiais desde uma simples madeira recolhida da rua, plásticos de lixo preto, restos de papéis encontrados e esquecidos nas gavetas do ateliê e até recipientes de vidro que servem de tampa de garrafa, mas que aqui insinua uma outra interpretação, a de um passado que ainda retém uma validade em seu conteúdo.

FIGURA 2: Claudio Matsuno, Série Um outro lugar de onde estou (detalhe), 2012, v idro, água e lápis, dimensão variável.

Na obra “Ex- gelo” (fig. 2) também exibida nessa exposição da Galeria Virgílio, o gelo mutante já prevê no que se transformar, ironizando uma questão do “ex”, atribuindo “[...] ao que foi desvelado do passado um significado a partir do presente, ou em proporcionar ao 473 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


presente um significado a partir do que foi desvelado no passado” (CALABRESE, 1987), aplicado no que já se foi, no que já não nos pertence. O dizer “ex-gelo” é explicitado na forma mais precária possível, estabelecendo um diálogo com o “desenho mutável”. Imaginamos que ali existira realmente um gelo, uma alusão à metáfora, onde o um objeto imaginário nega uma realidade física. Esta negação se atribui às associações analógicas dos surrealistas, criando atalhos para um “desentendimento” entre campos do real e do irreal. Necessito estar atento a todos estes aparatos e uso dessas “ferramentas” para criar as obras, a tudo que me rodeia nos percursos onde caminho, desde os primeiros passos no corredor do prédio onde resido às movimentadas ruas e avenidas de São Paulo e também de outras cidades. Numa dessas andanças me deparei com duas abelhas mortas em diferentes períodos da semana, levei para o ateliê onde realizei um pequeno objeto de acrílico, formando um desenho com uma frase “Eu odeio os humanos”, escrito em inglês como mostra a figura 3.

FIGURA 3. Claudio Matsuno, Série Um outro lugar de onde estou (detalhe), 2012, abelhas mortas.

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Esse trabalho terminou

integrando a exposição “Um outro lugar de onde

estou” com texto de apresentação da artista Marta Strambi: […] por refinada escolha, a materialidade da obra de Claudio Matsuno [..] se relaciona em associações por similaridades. Abelhas numa caixinha d iminuta com o dizer “I Hate Humans” [...] fazem parte da significação da obra. Um malfeito inventado, uma palavra criada, advindos de pormenores retirados do resto urbano, acabam estabelecendo esse universo singular e objetual, considerando o lugar ocupado por uma ação onde “o artista se torna um manipulador de signos mais do que um produtor de objetos de arte¹.

Em uma outra exposição, apresentada no primeiro semestre de 2012, a ideia do deslocamento flerta com o campo espacial. Essa produção se apresenta saindo do plano para a tridimensionalidade, invadindo o desenho e a pintura. Podemos observar ainda os desdobramentos que toda produção, intitulada também de "Desenho Intruso ”, provoca ao se estabelecer no espaço, tomando para si todo ambiente, contaminando os diferentes suportes e imagens neles gerados, ou ainda, formam com eles instalações. O conceito de instalação foi inventado por Robert Morris e mais tarde fundamentado por Rosalind Krauss:

[...] em 1979, a crítica americana Rosalind Krauss propôs uma fundamentação lógica para entender a subsequente proliferação das formas de arte que, por falta de uma palavra melhor, continuavam sendo agrupadas sob o título geral de “escultura”. Tomando a ideia de Morris do “campo expandido”, Krauss argumentava que a Land Art, por exemp lo, poderia ser mais bem defin ida em termos de u m duplo negativo: ela não era nem arquitetura nem paisagem. Além diss o, sugeria Krauss, outros trabalhos podiam ser mais bem colocados em u ma de três outras categorias relacionadas: paisagem e arquitetura, arquitetura e não -arquitetura, e paisagem e não-paisagem².

A questão da escultura na arte contemporânea hoje já não se resume ao domínio técnico tradicional e nem ao espaço delimitado para a exibição deste, o escultórico pode ser definido de muitas maneiras, emergindo do campo do desenho, da pintura, do objeto, da fotografia em diversas mídias e mesmo da instalação, assim como cita Rosalind Krauss ao escrever sobre a escultura no campo am pliado. Aqui, nesse “Um outro lugar de onde estou” o tridimensional não mais é estático, mas transita a partir dos elementos oriundos da presença

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física do mesmo para aspectos conceituais, indagando o esculpir, gerando dúvidas e estranhezas, que ao depararmos com estes trabalhos ofuscamos o sistema imposto, indo além do “previsto” na arte.

FIGURA 4: Claudio Matsuno, Série Um outro lugar de onde estou, instalação, 2012, técnica mista, dimensão variável.

Há uma grande importância na escolha das imagens a serem engendradas de forma mais próxima do real ou onírica. Ao negar o desenho, como mera ilustração, a pesquisa não aspira a ideia da representação tradicional, mas a direciona ao estado presente, 476 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


explicitando significados de uma ação concisa da imagem. São reuniões de conjuntos de criações, presentes na mesma configuração espacial, que além do improviso evidencia a questão do “erro”, trabalhado como matéria da instalação. Os desenhos são realizados em rolos de papéis de qualidade inferior, normalmente usados para proteger outros suportes de “alto valor” e estes passam de “figurantes” à protagonistas na composição instalativa da exposição “Um outro lugar de onde estou” (fig. 4). Aqui ela não mais representa uma imagem mas se torna íntima do óbvio, ainda que contida, ela ocupa já um espaço tridimensional no percurso do papel até o chão, presos por uma pedra embrulhada neste mesmo papel respingado, com tintas pretas, com frases provocativas ao observador - como por exemplo “Se você acha que até seu filho pequeno faz isso, então parabéns, você já tem um artista pronto em sua casa” - denotando uma declaração “anárquica” da arte de desenhar. Ao lado das ripas de madeira, um acento de cadeira feita de napa num formato circular é pendurado acima da parede representando um eclipse com dizeres “quase eclipse”, combinando entre si um afeto nada ocioso. Em meio a esta produção os desenhos “mal acabados” são fixados de maneira irregular, garranchos, frases incompletas, muitas vezes incompreensíveis, são como escapes que invadem agora o piso do espaço expositivo. O domínio de novos suportes, como por exemplo as colunas existentes da galeria funciona como uma nova contaminação, o que me possibilita ir decodificando o que é codificado para desconstruir o que está pré- fabricado, reinventando o que está inventado, recompondo o que já está decomposto.

[…] as ligações das condições do modernismo sofreram u ma ruptura logicamente determinada. Co m relação à prát ica individual, é fácil perceber que muitos dos artistas em questão se viram ocupando, sucessivamente, d iferentes lugares dentro do campo amp liado. Apesar de a experiência desse campo sugerir que a recolocação contínua de energia é totalmente lógica, a crít ica de arte, ainda servil ao sistema modernista, tem duvidado desse movimento chamando -o de eclético. A suspeita de uma trajetória artística que se move contínua e desordenadamente além da área da escultura deriva obviamente da demanda modernista de pureza e separação dos vários meios de expressão (e portanto a especialização necessária de um artista dentro de um determinado meio). Entretanto, o que parece ser eclét ico sob um ponto de vista, pode ser concebido como rigorosamente lógico de outro. Isto porque, no pós-modernismo, a práxis não é defin ida em relação a u m determinado meio de expressão - escultura - mas sim em relação a operações lógicas dentro de u m

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conjunto de termos culturais para o qual vários meios – fotografia, livros, linhas de parede, espelhos ou escultura propriamente dita – possam ser usados³.

Os propósitos destas variantes corrompem a ideia moderna da escultura que até então subjetivava o seu conceito, sendo hoje, essa noção de campo ampliado, um repertório recorrente, presente também no desenho e na pintura, como parte integrante dos procedimentos contemporâneos, provocando um “atrito”, dialogando com a história da arte e todo seu pensamento, objetivando, assim, um desenvolvimento, na abertura de novas possibilidades que manifestam uma série de produções. ________________________ ¹Texto da art ista Marta Strambi para a exposição individual “Um outro lugar de onde estou” de Claudio Matsuno, exibido entre 08 de agosto à 06 de setemb ro de 2012 na Galeria Virgílio em Sã o Paulo. ² A RC H E R, Mic h ael. Arte Co nt em po râ nea: Um a h ist ória con cis a . Sã o P aulo: M a rtins Fo ntes, 2 00 1, p . 1 00 -1 02. ³ KRAUSS, Rosalind. A escultura no campo ampli ado. Rio de Janeiro: Revista Gávea, n.1, 1985. P. 136.

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A FOTOGRAFIA COMO ELEMENTO DIDÁTICO NO ENSINO DA ESCOLA PÚBLICA: A educação do olhar no meio ambiente construído Dora Lilia de Campos Sabor 1 Resumo: Este artigo descreve os processos de criação, projeto e desenvolvimento do uso de novas tecnologias dentro do ambiente escolar, partindo do referencial de que hoje em dia, o ato de registro fotográfico é um recurso utilizado no cotidiano do educando; sendo que esta proposta vem a desenvolver a sensibilidade do olhar, proporcionando a cada um, a descoberta d e uma poética pessoal. O próprio registro fotográfico, que acontece dentro do ambiente escolar e de onde parte e começa a busca desta poética é que vai propiciar ao educando elementos do cotidiano para resignificá-los através de recursos tecnológicos, partindo da fotografia digital. Palavras-chave: tecnologia; fotografia; poética. Abstract: This article describes the creation process, project and developing of uses of new technologies inside school environment getting as reference that nowadays the fact of photography is a device used in the education everyday life of pupils;this proposal is developing seeing sensibility, providing everyone, the discovery of a personal poetry. The own photograph, wich happens inside the school environment, is where it comes from and where the searching of this poetry stars and is what provides pupils the elements of everyday life to give a new meaning throw technical resources starting from digital photography. Keywords: technology; fotography, poetic.

O Projeto Fotografia na Escola -“Olhar Poético” é uma pesquisa que tem por objetivo promover uma maior interação poética e crítica do aluno com o ambiente escolar, através de elementos auxiliando no processo de ensino-aprendizagem, com isso promovendo a busca de um olhar mais atento ao meio ambiente construído no qual está inserido, possibilitando o uso da tecnologia, através da fotografia digital e em seguida, a manipulação destas imagens através de elementos projetuais de sua construção. “Graças aos programas de criação de imagens e de sons, tornaram-se disponíveis a qualquer usuário de computador, recursos esses que permitem a qualquer pessoa realizar experimentos com cores, luzes, linhas, formas, figuras, sons e texturas, dando vazão a suas habilidades criativas.” (Santaella, 2007, p.256).

Com o ato do registro fotográfico e em seguida com a editoração destas imagens, através de uma poética pessoal, que pode levar desde uma nova forma de olhar até um 1

UNIVERS IDADE ANHEMB I MORUMB I - dorasabor@yahoo.com.br

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mergulho na ficção. O aluno tem a possibilidade de experimentações e resignificações que a tecnologia hoje possibilita. Como certifica Santaella: “A estética tecnológica, está voltada para o potencial que os dispositivos tecnológicos apresentam para a criação de efeitos estéticos, capazes de acionar a rede de percepções sensíveis do receptor, regenerando e tornando mais sutil seu poder de apreensão das qualidades daquilo que se apresenta aos sentidos.” (Santaella, 2007: 255).

Atualmente, a fotografia digital é uma ferramenta utilizada no cotidiano, seja através de uma máquina digital ou de um aparelho celular, o que torna possível, levar os alunos a projetos individuais de experimentações da imagem dentro do âmbito educacional. Segundo Claudia Giannetti (2006) o processo de interação e o tempo de reação sujeito-máquina redundam na potencialização da visualização e da percepção, a partir de outros sentidos humanos, da informação existente e manejada no computador. A partir dessas considerações o presente projeto foi realizado em uma escola pública da Rede Municipal de São Paulo, capital, com alunos do último ano do ensino fundamental. Eileen Adams (1993) nos fala que o lugar da escola pode ser usado como espaço ou assunto de estudo. Um meio ambiente fora da sala de aula promove a aprendizagem e o ensino, o desenvolvimento físico, social e intelectual dos alunos dentro do contexto da educação formal. Os alunos também pesquisaram sobre as fotos antigas do álbum de família com objetivo de perceber a importância do registro no percurso de sua história pessoal. Segundo SANTAELLA: “A cada nova emergência tecnológica são gerados novos recursos e procedimentos de criação e consequentemente novas formas de sensibilidade estética que configuram o presente à med ida que resignificam o passado.” (SANTA ELLA, p. 254).

O registro fotográfico aconteceu dentro do ambiente escolar, em áreas externas às salas de aulas, onde foram trabalhados aspectos da natureza e do design do meio ambiente construído como os elementos concretos da arquitetura.

Segundo ADAMS (1993, pg.122):

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É importante que a escola considere o estudo do seu entorno como currícu lo informal. O meio ambiente escolar, como edifício, entorno, transmitem mensagens e significados. É u ma extensão do currículo escondido. Que mensagens a cerca das relações entre pessoas e lugares o jovem recebe a partir do meio ambiente de sua escola?

Transpassaram os muros da escola, levando a fotografia para a comunidade onde cada um está inserido, trazendo para escola o resultado desta leitura crítica da fotográfica, já com um conhecimento estético e com uma resposta sensível ao lugar. Os resultados foram novas leituras, nova interação de contextos e novas narrativas.

Metodologia Com a finalidade de colocar o aluno em contato com a imagem, a proposta foi trabalhar a partir de três palavras-chaves, são elas: abertura, conexão e poética. Estas palavras tiveram como objetivo, levar o educando a começar a relacionar o tema de composição com o objeto de estudo. O projeto consistiu em uma pesquisa bibliográfica e imagética, que resultou em um estudo de imagens e temas através da internet que foram organizadas esteticamente através do programa Power Point e relacionadas às palavras supracitadas em questão, para apresentação coletiva. O trabalho fotográfico foi realizado após pesquisas de diferentes fotógrafos como Henri-Cartier Bresson, Dorothea Lange, Cristiano Mascaro, Anne Gudes, entre outros. E a partir da exposição de fotos de Sebastião Salgado tendo como tema a Escola: ao ar livre, em campos de refugiados, entre outros (fig.1, 2, 3, 4 e 5):

FIGURA 1: Escola Indígena http://oldmanphotos.wordpress.com/2009/ 08/ 31/ sebastiao-salgado-parte-quatro/

FIGURA 2: Escola para crianças do Movimento Sem-Terra no acampamento de Santa Clara Sergipe, Brasil, 1996 http://www.diversitas.fflch.usp.br/node/976 482

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FIGURA 3: Berço da desigualdade http://alunasleituranabibliodiversidade.blogspot.com.br/ 2011/01/poema.ht ml

FIGURA 4: Escola para jovens que escaparam do recrutamento forçado no sul do Sudão, no campo de refugiados em Kaku ma - Norte do Quênia, 1993. http://www.diversitas.fflch.usp.br/node/976

FIGURA 5: Escola no campo de refugiados de Nahr el-Bared - Região de Trípoli, Norte do Líbano, 1998. http://www.diversitas.fflch.usp.br/node/976

Paralelamente foi feita uma relação de nomes de fotógrafos de diferentes estilos e épocas, para que fosse possível observar como se dá o tratamento da imagem e a identificação das possibilidades do “olhar” e de suas poéticas. Foi proposta para os alunos a escolha de um tema de composição no trabalho fotográfico do fotógrafo em questão, para que posteriormente, com o uso de recursos tecnológicos fosse confeccionado um vídeo com música e texto, para apresentação de sua pesquisa. Gerando dessa forma uma conclusão do trabalho por meio de uma contextualização

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de todo o processo, conectando dessa forma as fotografias tiradas com a música, a temática e o artista que serviu de inspiração para cada aluno. O registro fotográfico aconteceu dentro do ambiente escolar, em áreas externas às salas de aulas, com máquinas digitais e alguns celulares (com permissão da Diretora da escola em questão), sendo tema gerador para realização do trabalho. Foram abordados nas fotografias diversas questões, entre elas as técnicas de composição das imagens fotográficas, demonstrando que a utilização de ângulos diferenciados, traz à composição a explicitação de sua poética, ampliando a dimensão e dando um significado ao seu olhar. O que se pode entender ao que Barthes afirma sobre o punctum: “O punctum de u ma foto é esse acaso que, nela, me punge (mas também me mort ifica, me fere).” (Barthes, 1984 p. 46).

Concluído o trabalho fotográfico, este foi submetido tecnologicamente, ao tratamento de imagens, para a manipulação das mesmas. Com o intuito de aliar a fotografia à tecnologia mas também com o objetivo de gerar novas imagens através de um novo olhar, o “olhar digital”. “O objetivo amb icioso é mostrar o valor cognoscitivo do design”. (Bonsiepe, 2001,p.3)

Da fotografia autoral à remixabilidade Sara Diamond (2003) segundo Santaella (2007, p. 266) afirmou que a cultura remix empresta seus procedimentos de muitos movimentos próprios do modernismo tardio e do pósmodernismo: apropriação, colagem, grafite, mail art, objetos manipulados, fotomontagem, arte pop, arte processual, rascunho de vídeo. E que o remix é uma forma de colagem. Foi neste contexto, que os alunos trabalharam a imagem, c aptada por eles no ambiente escolar. Com a utilização de um software, através da internet, foi possível a manipulação da imagem, como cita (Santaella, apud. p.268) “Na remixabilidade, são os softwares, as interfaces de usuários, o fluxo do design que permitem combinar múltiplos níveis de imagens 484 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


com vários graus de transparência.” Surge então, uma nova forma de olhar. Não existe mais o instante decisivo e podemos discutir a questão de autoria. Com o avanço da tecnologia, os recursos para a produção de image ns, interferências, manipulações de registros documentais, resgate de arquivos esquecidos, tornaram-se disponíveis a qualquer usuário de computador. Essa nova imagem, passa da realidade à ficção, trazendo novas leituras, novos contextos e novas narrativas. (fig. 5 e fig. 6).

FIGURA 5: Fotografia de Sofia Cespedes no âmbito escolar. 2011

FIGURA 6: Sofia Cespedes - Fotografia man ipulada através de software.2011

FIGURA 7: Bruno Nonaka- Foto do âmb ito escolar.2011

FIGURA 8: Bruno Nonaka- Foto manipulada através de recursos de software.2011

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FIGURA 9: Bruno Nonaka – Fotografia de sua autoria dentro do âmbito escolar.2011

FIGURA 10: Bruno Nonaka – Foto manipulada com utilização de software. 2011

Considerações Finais Este projeto concluiu-se, a partir do momento em que saiu dos muros da escola, ou seja, teve uma devolutiva através das fotografias realizadas na comunidade na qual o aluno está inserido, onde ele pôde utilizar os conhecimentos adquiridos nas experiências vivenciadas no ambiente escolar. “Imagens são superfícies que pretendem representar algo. Na maioria dos casos, algo que se encontra lá fora no espaço e no tempo” ( Vilem Flusser, 1985 p. 07).

Após a efetiva elaboração do trabalho, eles apresentaram um portfólio, relacionando as imagens a poesias e também um relatório, com seu depoimento pessoal, relatando o desenvolvimento desta pesquisa e de como esta proposta modificou sua maneira de olhar e registrar fotograficamente. “O poder mág ico, inerente à estruturação plana da imagem, dominaa dialética interna da imagem” (Vilem Fusser,1985 p.8)

Enquanto educadora, pude participar das descobertas, dos acasos que se transformaram em temas, como a interferência de um “pé” de outro colega diante da câmera, aparecendo ao fundo se sua composição, imagem esta que a princípio seria deletada, mas que se tornou uma bela composição. Ou, o dia programado para sair da sala de aula para 486 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


fotografar dentro do ambiente escolar, e o local passa a ser lavado, molhando os espaços que seriam objetos de estudo dos alunos, mas que se transformaram em material de estudos para os mesmos onde uma espuma de sabão cria um efeito abstrato à imagem fotográfica entre outras descobertas. Das inquietações, das buscas por ângulos diferenciados em um espaço físico tão recorrido por seus olhares, que durante muitos anos, fizeram parte do seu cotidiano, pois muitos destes alunos estudaram nesta escola deste as séries iniciais, mas que com a criatividade, cada um deles, transformou em imagens que nos propiciaram novas leituras.

São os signos, as linguagens que abrem as portas de acesso ao que chamamos de realidade. É justamente a linguagem, camada processual mediadora, que nos revela, vela, desvela para nós o mundo, é o que nos constitui como hu manos. ( SANTA ELLA, 2007, p.8).

Como cita LUPTON e PHILLIPS (2008, p.13):

(...) que há várias maneiras de experimentar co m os elementos básicos do design bidimensional co m base em ponto, linha, plano, forma e volu me, mas também cor, transparência e outras características; observando o entorno, diagramando com ferramentas reais e digitais, usando algum programa para criar e manipular imagens (...).

E foi sob esse olhar que estes alunos experimentaram através do registro fotográfico no espaço escolar uma nova maneira de ver e também de expressar sua poética. Ao realizar o ato de projetar, o indivíduo que o faz não somente projeta uma forma ou um objeto mas, necessariamente, também se projeta naquela forma ou naquele objeto.(CARDOSO,1998, p.37). A COR

FIGURA 11: Cyntia Carla Silva M iranda - 2011

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FIGURA 12: Rafaela Rainho Pontes -201

FIGURA 13: Rafaela Rainho Pontes -201

FIGURA 14: Barbara Caffaro

FIGURA 15: M ichelle Almeida dos Santos -2011 488 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


FIGURA 16: Pedro Demarqui- 2011

FIGURA 17: Pedro Demarqui- 2011

A FORMA

FIGURA 18: Sofia Cespedes- 2011

A LINHA

FIGURA 19: Taissa Santos Barbosa - 2011 489 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


FIGURA 20: Yasmin Carvalho Macedo – 2011

A LUZ

FIGURA 21: Daniel Pereira – 2011

A FIGURA

FIGURA 22: Luan Barros de Oliveira -2011 490 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


A TEXTURA

FIGURA 23: Luca Juan Souza da Silva -2011

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O SILÊNCIO ESCRITO Fabiana Turci 1 Resumo: O artigo a ser apresentado pretende tensionar o conceito de silêncio na linguagem, apresentando obras visuais em que a palavra está inscrita, não apenas fora de seu suporte tradicional mas, sobretudo, deslocada de sua função comunicativa. Através desse percurso, tentaremos pensar sobre a necessidade de escrever, de escrever e apagar a escrita, e de deixar os rastros, os vestígios do desastre. Tentaremos construir o cenário de uma linguagem feita de sua própria destruição. Palavras-Chave: Crise de linguagem. Artes Visuais. Escritura. Silêncio. Incomunicabilidade.

Quando tudo está dito, o que resta para dizer é o desastre. Maurice Blanchot

Detenho- me sobre esta ausência, que é toda a página em branco, e também toda a linguagem. Não há vestígios, aqui, de uma crise criativa, uma crise pela primeira palavra – já que há, sobretudo, intenção neste gesto de fixar a ausência mesma. Entre a página em branco e as palavras que estão sendo escritas, há uma diferença fundante: a página é a imagem daquilo que é só possibilidade, enquanto busco a palavra que seja a ausência da imagem, o silêncio escrito. Detenho- me sobre esta ausência. Calar, nas circunstâncias do papel, seria dizer que tudo cabe. É, portanto, contra a página em branco que se ergue este dizer, como uma fissura. Uma fissura, uma fenda separa – e, aqui, talvez marque a divisão da linguagem, entre um uso comum e uma dimensão incomunicável – mas também inventa a abertura mesma, um espaço: um entre- lugar. Debruço-me nele, entro. Se numa margem a fala útil, a página em branco, e, noutra, o incomunicável, o que se cala, o entre- lugar, a fissura, dissolve a contradição. Inventa uma linguagem que pode dizer sobre as escrituras que marcam, que sobrecarregam o silêncio. Este dizer se ergue, então, como uma tomada de partido em direção à escrita que concebe sua própria ausência, a ausência de que é feita. E, como se invertesse o próprio lugar, um corte que vai pensar essa escrita fora do suporte do papel. Magritte, um começo. Com sucesso, ele livrou o objeto de sua presença 2 . Mas o livrou através da escrita. Uma figura, portanto, que responde a uma ausência suficiente, enquanto a 1

Mestranda em Educação, Arte e História da Cultura pela Un iversidade Presbiteriana Macken zie. Isto não é um cachimbo (1926), é u ma pintura de René Magritte onde se vê a figura de um cachimbo, seguido dos dizeres “Ceci n’est pas une pipe”. 2

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palavra ainda encontra-se presa à significação. Palavra, chave de leitura. A palavra migra para dentro do quadro para questionar o estatuto da imagem, e não o da escrita – que permanece em sua função informativa, alertando- nos sobre nosso próprio olhar, com a função de dirigirnos uma intenção. Não fosse a escrita, a representação do cachimbo de Magritte estaria colada ao próprio cachimbo; nada mais do que uma imagem sem profundidade, então. É o enunciado que trai a imagem, conferindo- lhe a espessura dessa ausência. As palavras são, no entanto, enunciado: dizem apenas aquilo que dizem. À superfície do quadro. Mas uma palavra que migra já não está, assim, fora de lugar? Ainda que um enunciado seja normativo, não há certa precisão em deslocar esta função? A operação que se realiza em Isto não é um cachimbo é uma espécie de deslize interpretativo. Com ele, abre-se espaço para permutas. Interessa, então, pensar sobre aquilo que, antes de devolver um significado, retira-o por completo. A palavra que migra, de suporte e de função. Em Interiores (1880), quadro de Gustave Caillebotte, vemos, em primeiro plano e na margem direita da tela, um homem recostado em sua poltrona, em posição de leitura, empunhando o que parece ser um jornal. Logo atrás, quase no centro da tela, uma mulher olha, através de uma janela, o que está lá fora. Acima de sua cabeça, um letreiro aparece, entrecortado pela moldura da janela e parcialmente coberto pelas cortinas. A permuta, aqui, é que precisamente aquilo que olhamos no quadro não pode ser visto. Toda a atenção da cena está voltada para o exterior, de onde não podemos captar sequer um vestígio de sentido. A figura cujo olhar nos ultrapassa se mostra de costas para nós: nem sua expressão podemos apreender. Do fora, só se vê este letreiro ilegível; mínima decomposição de uma escrita, fragmentos impossíveis de reconstruir. As letras, como são apresentadas, não chegam a sugerir possibilidades de significâncias – pelo contrário, impedem a leitura, tal como o jornal nas mãos do homem; sugerem apenas o limite da nossa impossibilidade. Nem dentro, nem fora: nos encontramos exatamente no centro de um enigma. Sem poder completar o sentido, sabemos, porém, que ele existe – somente não para nós. Enquanto Magritte subverte a imagem, utilizando a escrita como chave de leitura, Caillebotte parece guardar a chave, talvez em um dos bolsos do negro vestido da mulher: permanecemos, então, devorados. O que está anunciado, no entanto, é uma presença quase insistente da escritura que, mais do que apontar para uma crise da representação imagética, encontra justamente na 494 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


escrita sua solução. Mas entre o enunciado e o ilegível, poderia, ainda, haver outra chave? Em 2002, a artista plástica Elida Tessler realiza uma instalação composta por nove claviculários de metal fixados à parede, que contêm chaves onde estão inscritas palavras retiradas de obras literárias 3 . Cada claviculário leva um título, tornando-se uma espécie de gramática expositiva, de rastro de leitura. Se palavras-chave servem para trazer o essencial de um texto, aqui elas funcionam como o texto mesmo, só que quase em branco: retirados todos os excessos, cada palavra-chave é um signo inteiro. Há uma manobra, em Palavras Chaves, de despir o texto de tudo o que é supérfluo. O que sobra, então, não mais envolve relações de conteúdo, estando, assim, como que fora da linguagem. Pode uma palavra-chave ser o objeto de seu próprio silêncio? As chaves contêm, em si, seu próprio segredo. O segredo promete abrir portas, leituras; induz compreensões. Em uma grande sala, sob o nome Claviculário 4 , estão penduradas cerca de três mil chaves. Ao invés do fo rmato de seu segredo, palavras inscritas. Sob o cunho do segredo, as palavras, retiradas de um extenso inventário de objetos que compunham uma casa e de duas cartas endereçadas à artista, são agora palavras-chave que não remetem a nada, os objetos mesmos substituídos. Que segredo as palavras abrem? Para Derrida (1994), um segredo existe quando se alcança o limite entre a impossibilidade de resposta e o seu dever, sua necessidade. Este segredo não concerne a um conteúdo secreto, nem a uma técnica ou criação artística, não se relaciona com as dissimulações subjetivas, nem mesmo diz respeito à subjetividade absoluta ou a uma interioridade privada, segredo que não é místico, que não pertence às categorias da verdade. Nesse lugar, onde a fala ainda não cessou5 e já não responde a nada, diz Derrida, acontece alguma coisa com a linguagem. Para ele, este segredo permanece inviolável, porque ele se cala; não pode ser rompido, porque é estranho à palavra. Em Claviculário, o segredo é a própria palavra estranha à palavra.

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Palavras Chaves (2002), instalação de Elida Tessler. Informações disponíveis no site da autora: http://elidatessler.com/pag_nova_obras.htm, acesso em 23 de outubro de 2011, às 21h 50. 4 Claviculário (2002), instalação da Elida Tessler concebida para o Centro Universitário Mariantônia (USP -SP). Informações disponíveis no site da autora: http://elidatessler.com/pag_nova_obras.htm, acesso em 24 de outubro de 2011, às 18h10. 5 A este respeito, há um trabalho de Elida chamado Você me dá sua palavra?, que tem in ício em 1994 – e fim não previsto – em que ela solicita às mais diversas pessoas que escrevam a sua palavra em u m pregador de roupas de madeira. A cada exposição, a coleção de palavras é reorganizada. Semp re montada sobre um mes mo fio de varal – uma linha – a instalação constitui-se em u ma escrita contínua e permanente. Note-se, ainda, que a dimensão subjetiva do pedido (a sua palavra seria o que te define, ou o que te contém) anula -se comp letamente 495 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


As chaves, nesta imagem, não se prestam a ser leitura – seu segredo, contido todo dentro de si, é propriamente o que marca a impossibilidade, porque não há nada, enfim, a ser desvendado. Se não há correspondente para um segredo, a existência da chave sinaliza que, na linguagem, há ainda algo que se propõe a incomunicar.

A palavra só tem sentido se nos livra do objeto que ela nomeia: ela deve nos poupar de sua presença ou do “concreto lembrete”. Na linguagem autêntica, a palavra tem u ma função, não apenas representativa, mas também destrutiva. Ela faz desaparecer, torna o objeto ausente, anula-o. (Blanchot, 1997, p. 36)

Assim, não apenas a chave desaparece – com ela, também a linguagem, mas sobretudo suas funções, aquilo que a circunda: chave e palavra não podem mais significar possibilidades de leitura. Assim, Claviculário poderia representar uma dobra em que objeto e linguagem anulam-se mutuamente, configurando-se como “a formação de uma fala inicial com a qual serão afastadas as palavras que dizem alguma coisa” (Blanchot, 2005, p. 77). Mas não basta que digamos isso. Se a formação dessa linguagem repele a mensagem, a palavra útil, comunicável, o que, enfim, ela diz? O que traz para perto de si, ou o que nomeia, que não esta negação inicial?

(...) longe de aparecer co mo o oposto das palavras, ele [o silêncio] é, ao contrário, suposto por elas e como que seu parti pris, sua intenção secreta; mais ainda, a condição da palavra, se falar é substituir u ma presença por uma ausência e, através das presenças cada vez mais frágeis, perseguir uma ausência cada vez mais suficiente. O silêncio só tem tanta dignidade porque é o mais alto grau dessa ausência que é toda a virtude de falar (que por sua vez é o nosso poder de dar um sentido, de nos separar das cois as para significá -las). (Blanchot, 1997, p. 41)

Escrever o silêncio, portanto, ultrapassa o encerramento da incomunicabilidade em um enunciado, já encerrado em si; antes, talvez seja dar a ver essa outra palavra, perseguir a sua suficiência, sua insubordinação. Como se esquadrinhasse essa possibilidade, duas séries de León Ferrari, Escrituras Deformadas (1963) e Brailes (1997), vêm mostrar diferentes desdobramentos do silêncio, da escrita feita de silêncio. Diferentemente dos Desenhos Escritos, série que inicia em 1962 6 e

na obra coletiva, constituindo uma espécie de escrita neutra (retornaremos a este ponto). Infor mações disponíveis no site da autora: http://elidatessler.com/pag_nova_obras.htm, acesso em 24 de outubro de 2011, às 20h 34. 6 São parte desta série os trabalhos “Música” (2/5/ 1962 e 6/5/ 1962) e “ Livro de artista” (1962), por exemp lo. 496 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


que consiste em desenhos abstratos dispostos em pautas “que imitam a escritura tradicional, mas que não podem conter palavra alguma” (Giunta, 2006, p. 20), as Escrituras Deformadas são trabalhos em que León atormenta as palavras, retorcendo os textos até o limite do inteligível. Em algumas destas obras, a escrita superposta e deformada transmuta a palavra em forma, em outras, pode-se captar alguns vestígios de uma escrita tradicional; em todas elas, no entanto, mantém-se ainda uma referência ao texto efetivamente escrito ali. Esta manobra se dá, por exemplo, através da própria nomeação, como é o caso de Carta a um general (18/6/1963), em que a alusão textual se concebe no título, carregando, assim, para dentro da obra – de uma escrita desfigurada, emaranhada e convulsa – as possibilidades de significação desta expressividade. Eu senti, na realidade, que queria fazer uma arqueologia do signo, porque suas grafias remexiam na letra constituída e reconhecível para ir atrás, sempre aquém, co mo querendo chegar ao ponto e ao momento em que o signo poderia ter se constituído, esse signo que damos por feito e com o qual nos arranjamos, ganho do sentido em toda a sua plenitude; esse aquém se distancia no instante em que se quer apreendê-lo, e se o modo de seu ser tantático é fonte de angústia, também é o despertar de uma paixão pictórica, perseguir a origem do signo é pintar, é passar à matéria e nela entrar. (Jitrik apud Giunta, 2006, p. 107)

As Escrituras Deformadas seriam como a tensão exposta entre a impossibilidade de deter o significado e a atenção à composição do signo, reconhecendo, justamente na figura da impossibilidade, o que a torna possível. Aqui, o silêncio ganha contornos materiais, complexos, precisos. Brailes talvez seja o ponto em que o silêncio se torne mais tátil. Foi entre março e abril de 1997, na galeria Arcimboldo, em Buenos Aires, durante a exposição Torme ntosamores, que León começa essa série, composta por reproduções de fotografias, estampas e pinturas com inscrições de textos em Braile. Os textos, retirados da Bíblia, de Borges, de Breton, combinados com nus de Man Ray, pinturas de Giotto, estampas de Utamaro ou gravuras de Doré, produzem uma intrincada teia de significações, em que imagem e texto se aproximam, por afirmações e tensões, construindo uma espécie de discurso que está quase indisponível ao espectador. Não importa se se trata de uma foto de Hitler aos dez anos, onde está inscrito “E criou Deus o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou” (Imagem, 1998) ou se são sete versos de Uma Despedida, de Jorge Luis Borges, escritos sobre a fotografia de uma mulher nua, de Ferdinando Scianna (Tudo o que enterrou o nosso adeus, 2003). O que é requerido do público é que ele toque as obras, realize um ato de leitura por um 497 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


toque que, no entanto, o coloca tão somente em contato direto com a própria imagem, com seu conteúdo como que revelado pelos contornos desta escrita ausente. O procedimento realizado por León (...) obriga o espectador a um parado xo: deve-se tocar – mais precisamente manusear – uma imagem de alta voltagem diante do eventual olhar dos outros. Esse contato, no entanto, não dará ao visitante a informação que procura. Tudo o que pode ver está compelido a u m ato cego. (Leb lenglik apud Giunta, 2006, p. 229)

Há uma absoluta precisão neste procedimento. Em União Livre (2004), por exemplo, o texto de André Breton é impresso sobre uma fotografia de Tatiano Maiore. Em preto e branco, um nu feminino se estende por toda a margem inferior da foto. Exatamente no centro, as nádegas conduzem a dois caminhos: em primeiríssimo plano, as pernas ligeiramente dobradas sobrepõem-se ao torso, em segundo plano, que está deitado de lado sobre a cama. Em último plano, um espelho ainda reflete o verso da imagem, abrigando uma imensa faixa negra que oculta todo o resto. Os versos de Breton se inscrevem sobre o contorno deste corpo; para lê-los, somos obrigados a acariciar o improvável relevo, de carne e de palavra. E é como se, acariciando a imagem e seu conteúdo secreto, lêssemos exatame nte “Minha mulher com seios de crisol de rubis/ Com seios de espectro da rosa sob o orvalho/ Minha mulher com ventre de desdobra de leque dos dias/ Com ventre de garra gigante/ Minha mulher com dorso de pássaro que foge vertical/ Com dorso de mercúrio/ Com dorso de luz” 7 . Há certamente uma dimensão política (e polêmica) que circunda a obra de Ferrari. Mas já não importa se há, como é o caso em União Livre, uma coincidência entre a nudez que imagem e texto propõem, ou se, por outro lado, há um embate “profa natório”, sugerido pelo texto oculto. Não importa porque aqui se realiza um ato, em que o que se efetiva é a criação de um discurso que lança a possibilidade de a linguagem responder ao neutro:

A fala neutra não revela nem esconde. Isso não quer dizer que ela nada signifique (...), isso quer dizer que não significa do modo como significa o visívelinvisível, mas que abre na linguagem um poder outro, estranho ao poder de aclaração (ou de obscurecimento), de compreensão (ou de mal-entendido). Ela não significa à maneira ótica; ela se mantém fora da referência luz-sombra que parece

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União Livre, de André Breton. Tradução de Priscila Manhães e Carlos Eduardo Ortolan, disponível em http://www.revistazunai.co m/traducoes/andre_breton.htm, acesso em 18 de novembro de 2011, às 20h. 498 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


ser a referência última de todo o conhecimento e comunicação (...). (Blanchot, 2010, p. 150)

Sobre um deslocamento de suporte, pelo qual iniciamos esta trajetória, vemos que não se trata apenas de escorregar por materialidades, subverter formas tradicionais em que artes visuais e escrituras exerciam os seus discursos; antes, trata-se de abrir veredas na linguagem sob a qual todo o nosso entendimento se baseia. É, por fim, remeter-se ao próprio fim que toda a linguagem encerra, remontada a seu início, tornada possível pelo que a faz impossível. Escrever o silêncio para tatear o conhecer. Talvez haja, exatamente na distância entre o livro-objeto Entre 8 , de Elida Tessler, e a videoinstalação abc 9 de Ann Hamilton, uma trilha que nos permita continuar, daqui para frente. Entre, composto de intervenções de Elida sobre poemas de Régis Bonvicino, se trata de um desvanecimento. Aplicando pigmento branco sobre as letras que compõem o título (“e”, “n”, “t”, “r”, “e”), ao longo de todo o livro, Entre parece querer compor o silêncio, sobre toda taxonomia, abrindo na própria imagem da letra um espaço para a escuta, “como se quisesse deixar fugir infinitamente a própria cavidade que ela encerra, uma espécie de pequena cova do vazio” (Blanchot, 1997, p. 76). E abc refere-se a um apagamento, a uma escrita feita do apagar. As letras do alfabeto, que compõem todas as nossas possibilidades de construção, aparecem invertidas sobre a superfície de um vidro. Aos poucos, um dedo indicador umedecido apaga a escritura, deixando uma espessa camada de tinta, disforme, por sobre a tela. É necessário escrever, escrever e apagar, e deixar os rastros, os vestígios do desastre. E uma linguagem feita de sua própria destruição. Não mais folhas em branco. O silêncio escrito. Escrever sem “escrita”, levar a literatura ao ponto de ausência em que ela desaparece, em que não precisamos mais temer seus segredos que são mentiras (...) (Blanchot, 2005, p. 303)

Referências bibliográficas BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. Trad. Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro : Rocco, 1997. 8

Entre (2010) constitui-se de 12 exemp lares numerados e assinados, tanto pela artista quanto pelo autor. Informações disponíveis no site da autora: http://elidatessler.com/pag_nova_obras.htm, acesso em 24 de outubro de 2011, às 21h38. 9 Um excerto deste trabalho está disponível em http://www.youtube.com/watch?v=D2gT5_ZcBe0, acesso em 19 de novembro de 2011, às 24h17. Ao final, o filme passa a ser invertido, e a camada de tinta, que apagara as letras, agora reconstrói o alfabeto, de Z a A. 499 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


______. O li vro por vir . Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005. ______. A conversa infini ta 3: a ausência do li vro, o neutro, o fragmentário. Trad. João Moura Jr. São Paulo: Escuta, 2010. DERRIDA, Jacques. Paixões. Trad. Lóris Z. Machado. Camp inas: Papirus, 1995. GIUNTA, Andrea (ed.). León Ferrari: Restrospecti va. Obras 1954 – 2006. São Paulo: Cosac Naify/Imprensa Oficial, 2006.

Lista de sites consultados http://elidatessler.com/pag_nova_obras.htm http://www.revistazunai.co m/traducoes/andre_breton.htm http://www.youtube.com/watch?v=D2gT5_ZcBe0

500 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


POR UMA ESTÉTICA DO MACHINIMA Fernanda Albuquerque de Almeida 1 Resumo: Desde 2000, o termo machinima refere -se ao processo de apropriação do ambiente do jogo eletrônico para produção cinematográfica. A técnica ganhou projeção devido às facilidades para criação de narrativas fílmicas, mas produções experimentais como "Ab stract Livecoded Machinima (Missile Command)" de Dave Griffiths e "Order of Chaos" de Claus-Dieter Schulz distanciam-se da narrativa ao explorarem a interferência no código de programação do jogo e a apropriação de eventos artísticos realizados dentro desses mundos. Tais filmes abrem espaço para a investigação sobre uma possível estética do machinima, entendida como o conjunto de características formais e técnicas que agem na geração das imagens que o constituem, diferindo-o das demais formas de produção audiovisual. O objetivo deste artigo é propor uma investigação acerca dos componentes particulares do machinima e na possibilidade deles constituírem uma estética diferenciada da cinematográfica ou da videográfica, tais como delimitadas por Philippe Dubois em "Por uma estética da imagem do vídeo". Palavras-Chave: machinima, jogos eletrônicos, linguagem cinematográfica, estética videográfica

Este artigo objetiva investigar a construção de uma possível estética do machinima, entendida como o conjunto de características formais e técnicas que agem na geração das imagens que o constituem e que demonstram usos específicos da matriz do jogo eletrônico para criação audiovisual. De maneira simplificada, o machinima pode ser entendido como uma nova forma de produção em vídeo que tem como base mundos virtuais interativos em tempo real, ou seja, ele configura o processo (e a técnica) de apropriação do ambiente do jogo eletrônico e todos os itens que fazem parte dele (como cenários, avatares, figurinos etc.) para criação audiovisual. A investigação se inspira na abordagem de Philippe Dubois acerca da estética videográfica em seu artigo "Por uma estética da imagem do vídeo", na qual ele analisa os itens que caracterizam a produção em vídeo em relação a dois pilares da linguagem cinematográfica: o plano e a montagem; mantendo-se à distância, entretanto, da transposição indiscriminada das características dessa linguagem para determinar os potenciais do vídeo. Da mesma forma, busca-se traçar uma análise comparativa entre as características indicadas pelo autor como próprias do cinema e do vídeo e as exploradas nos machinimas "Abstract Livecoded Machinima (Missile Command)" de Dave Griffiths e "Order of Chaos" de Claus-

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Mestranda do Programa de Pós -graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Un iversidade de São Paulo e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. 501 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Dieter Schulz, que demonstram aproveitamentos próprios dessa técnica, como a interferência no código de programação do jogo e a apropriação de eventos artísticos realizados dentro desses mundos, em detrimento de incorporações de possibilidades já previstas na videoarte ou no cinema tradicional (narrativo). No percurso proposto, serão revisitados alguns acontecimentos históricos importantes para a legitimação do machinima, tendo as seguintes questões como guia: a. O machinima estaria limitado à incorporação dos elementos constitutivos do cinema ou das experimentações em vídeo? b. Por estar associado indiscutivelmente ao jogo eletrônico, ele estaria limitado às possibilidades técnicas desse jogo? c. De que forma a matriz do jogo, um ambiente virtual interativo em tempo real, possibilitaria uma inovação no nível estético além de constituir um novo leque de opções técnicas para criadores interessados em realizar propostas audiovisuais?

Considerações históricas acerca do machinima Assim como Dubois inicia sua reflexão com a interrogação acerca do nome vídeo em seu artigo, o ponto de análise inicial desta investigação é a formulação do termo machinima. Em 1999, Anthony Bailey, jogador e criador da série "Quake Done Quick "2 , sugeriu à lista de discussão q2demos que nomeassem os filmes que estavam sendo feitos em jogos eletrônicos desde 1996 pela combinação dos conceitos machine (máquina) e cinema. Entre os jogadores presentes na lista, Hugh Hancock se tornou um entusiasta da ideia, divulgando-a nas demais redes sociais da época e promovendo também um erro ortográfico que seria posteriormente incorporado ao termo: a palavra machinema havia sido difundida como machinima. Tal fato não configurou um problema, pois assim a palavra conteria também o conceito anima, do latim que se refere à alma como sopro da vida, considerado por Bailey o que faltava ao conceito original. (HANCOCK, et al., 2007, p. 12-13) Estando então intrínseca ao seu nome, a referência ao cinema sempre se manteve marcante na história do machinima, estendendo-se aos dias atuais. Essa referência diz respeito, principalmente, ao seu modo discursivo dominante que contém a instauração de uma 2

Co mo o próprio nome sugere, a série apresenta o registro das fases do jogo Quake sendo realizadas no menor tempo possível. 502 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


narrativa (ficção com personagens, ações, organização do tempo, desenvolvimento de acontecimentos, crença do espectador etc.) 3 como componente fundamental. Não à toa, o filme considerado o primeiro machinima tem como uma das suas características inovadoras (dentre os filmes feitos em jogos eletrônicos que haviam até então) o desenvolvimento de uma narrativa. Além da proposição do termo ter sido formulada por jogadores de Quake, da Id Sotware, o primeiro machinima remonta ao lançamento desse jogo, em 1996, que continha uma ferramenta de gravação e replay das ações realizadas. Essa funcionalidade foi extensivamente utilizada pelos jogadores para demonstrar habilidades e investigar a performance de competidores, ou seja, embora estivessem produzindo vídeos, não havia uma consciência cinematográfica, apenas a preocupação com a competição. Conhecidos como Quake movies, esses registros eram sempre gravados sob a perspectiva típica do jogo de tiro em primeira pessoa (fps ou first person shooter) e um dado interessante é que eles não compunham de fato arquivos de vídeos, mas sequências de códigos, em formato .dem 4 , que quando acionadas eram executadas pelo jogo em tempo real na forma de um filme, ou seja, elas eram reproduzíveis apenas em softwares com configurações idênticas daqueles em que tinham sido produzidas. Isso significa, por exemplo, que se um filme fosse gravado com um mod5 instalado, seria reproduzido apenas em uma outra cópia do mesmo jogo contendo o mesmo mod. Em termos práticos, pode-se imaginar a seguinte situação: o jogo x possui o personagem 1; o mod implementa o personagem 2; um arquivo .dem é gerado pelo registro das ações do personagem 2; logo, sua reprodução dependerá do mod que implementa o personagem 2 estar instalado no jogo, pois sem ele este personagem não existe. Ainda em 1996, um clã conhecido como the Rangers (ou United Ranger Films) utilizou tal ferramenta para registrar o desenrolar de uma breve história que foi captada em uma perspectiva diferente da típica do fps, ou seja, foi registrada uma sequência de ações com a preocupação da composição cinematográfica. Para os padrões de Hollywood, não foi algo inovador, mas o trabalho marcou a transição de registros de jogabilidade do jogo Quake para

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Emprestamos a definição de narrat iva co mo modo discursivo predo minante do cinema de Dubois, 2004, p. 77. O formato .dem não é compatível co m players de vídeos convencionais, apenas com o software (jogo) em que foi criado. 4

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a criação de propostas audiovisuais e "Diary of a Camper" foi considerado, então, o primeiro machinima. Ainda assim, foi apenas no ano 2000 que o machinima se desligaria da sua matriz para ser reproduzido. Nesse ano, Joe e Jeff Gross, da Tritin Films, tiveram a ideia de registrar as ações do jogo Quake com uma câmera externa à primeira tela, gerando assim um arquivo de vídeo editável e executável em players e plataformas de reprodução de vídeos convencionais (videocassete, dvd player etc.). Tal fato contribuiria com a expansão da técnica e o filme "Quad God" seria distribuído inclusive em revistas, ultrapassando os limites das listas de discussão de jogadores e atingindo a mídia maintream. Ele também geraria polêmica entre os jogadores que sentiam que o machinima estava se distanciando da cena demo (.dem) original. (KELLAND, et al., 2005, p. 30) Embora o jogo Quake tenha tido papel fundamental no desenvolvimento do machinima, outros também contribuíram para a sua popularização. Jogos como The Sims II e The Movies, com propostas diferentes das de Quake (ou dos jogos de fps em geral que exploram a temática da guerra e do combate), ampliaram de forma substancial tanto o público quanto os criadores de machinima. The Sims II, da Electronic Arts, não continha apenas uma ferramenta de gravação das cenas, mas facilitava a criação de narrativas personalizadas no estilo de novelas ao permitir a customização de avatares, figurinos e cenários a qualquer usuário, estando essas ações incluídas no próprio funcionamento do jogo. The Movies, da Lionhead Studios, disponibilizava ao usuário um estúdio de Hollywood e seu objetivo era a produção de um filme. Ambos jogos, assim como o filme "Quad God", também geraram polêmica, pois “muitos veteranos sentiam que a essência do machinima era demonstrar proeza em estender o motor do jogo além dos limites intencionados por seus desenvolvedores e jogos como The Sims II e The Movies simplesmente simplificavam demais isso.” (KELLAND, 2011, p. 28) Tais polêmicas podem ser consideradas indícios das incoerências acerca do machinima. Ao aproximar-se demais do cinema, incorporando funcionalidades ligadas à criação de filmes nos jogos, estaria o machinima se afastando das suas raízes que remontam aos jogos de fps e à cultura entorno deles? Em caso afirmativo, esse afastamento seria prejudicial ao desenvolvimento de suas potencialidades?

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Um mod é uma modificação feita para um determinado jogo que deve ser instalada com se fosse u ma nova funcionalidade do seu jogo matriz. Mods são desenvolvidos normalmente pelos próprios jogadores e podem atribuir ao jogo novos personagens, comandos, mapas etc. 504 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


O machinima e os modos discursivos da criação audiovisual O machinima está intrinsecamente ligado aos jogos eletrônicos que compõem a sua base e, dessa forma, está ligado também à sua cultura, ou seja, aos costumes e crenças relacionadas a esses jogos e seus jogadores. Parte dela diz respeito às modificações que os jo gadores, e também criadores, produzem a partir dessas bases com ou sem o apoio (e a permissão) de seus desenvolvedores. Esse fenômeno de apropriação para criação funciona como um ciclo sem fim que é inerente ao funcionamento do mundo digital em sua forma básica, ou seja, o computador e as redes online. Dessa forma, relaciona-se à ética hacker teorizada por Steven Levy em "Hackers: Heroes of the Computer Revolution" . A ética hacker nasceu nos primórdios do computador nos laboratórios de universidades dos EUA, tendo permeado seu desenvolvimento e elencado como princípios básicos alguns itens que descreviam o potencial dessa máquina. Entre eles, os hackers apoiam o uso do computador para a livre troca de informações, a interferência na sua estrutura e em sistemas no geral como processo de entendimento do funcionamento do mundo e a sua utilização para se criar arte. Segundo seus princípios, a desmontagem de sistemas contribui para o entendimento de como funcionam, permitindo assim maior autonomia dos demais hackers (ou usuários) na criação de coisas mais interessantes. Nesse sentido, a interferência nas estruturas das máquinas constitui, então, a ação fundamental para ampliação do potencial artístico e comunicacional desse meio. O mesmo fenômeno, de apropriação para criação, é também inerente ao momento histórico atual, onde a remixagem é presença constante em todas as áreas de criação. Não é por acaso que um dos assuntos mais polêmicos da atualidade seja a discussão acerca dos direitos de propriedade intelectual e como a disseminação da informação e de conteúdo na internet tem afetado a indústria do entretenimento. Questões acerca da autoria sempre acompanharam o machinima, pois, como se sabe, ele surge da apropriação de outra mídia para criação de conteúdo em formato audiovisual e, embora não haja um consenso sobre esse assunto, algumas empresas desenvolvedoras de jogos enxergam com clareza os pontos positivos da abertura de seus produtos para que outros criem a partir deles. O produtor Jeff Morris declara que a sua empresa Epic Games "está muito interessada em ver uma comunidade próspera de mod, pois ela não apenas estende a vida do produto de base, mantendo-o instalado e movendo novas unidades, como também é uma grande fonte de 505 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


recrutamento para a nossa própria companhia...". (KELLAND, et al., 2005, p. 16) A declaração de Morris dialoga com os princípios de livre utilização do computador formulados na ética hacker e, portanto, incentiva que seus softwares sejam utilizados para criação. Entre as produções da Epic Games, está o jogo Unreal Tournament 2004, que serviu de base para muitas modificações e também para um dos precursores mais inventivos do machinima, o alemão Friedrich Kirschner. Kirschner é responsável por algumas das primeiras e mais desafiadoras criações da vertente experimental do machinima, pois interfere na visualidade do jogo de modo a não deixar pistas da técnica empregada. Seu trabalho "The Journey" (FIG. 1), feito no jogo Unreal Tournament 2004, é uma peça única e "seus personagens parecem desenhados à mão, flutuando em um fundo pintado, não havendo nenhuma dica de 3D, fotorrealismo ou ação de jogo." (idem, p. 54) O trabalho é menos uma narrativa do que uma experimentação visual de linhas e cores em movimento que remete às animações em 2D com incrus tações de imagens típicas da videoarte. Segundo Matt Kelland, talvez este seja o uso mais impressionante do machinima: quando não se consegue identificar a ligação do trabalho com a sua base.

FIGURA 1: Friedrich Kirschner, The Journey, 2004

O caso de Kirschner, porém, não representa a maioria dos trabalhos realizados, mas faz parte de um pequeno grupo inventivo que estende os aproveitamentos do machinima através de suas experimentações. No artigo de Dubois, a formulação da estética videográfica é desenvolvida a partir do questionamento de qual seria o modo discursivo do vídeo. O autor indica a narrativa como modo majoritário do cinema e "a mixagem de imagens mais do que a montagem de planos" (DUBOIS, 2004, p. 78) como principal parâmetro estético da criação 506 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


em vídeo. Na busca por uma possível estética do machinima tendo como base os questionamentos de Dubois, a mesma pergunta pode ser transferida: haveria, então, um modo discursivo do machinima? Como afirmado anteriormente, até mesmo em seu nome, o machinima carrega uma referência muito intensa provinda do cinema. Além disso, importantes instituições voltadas ao machinima, como a Academy of Machinima Arts and Sciences (AMAS), reforçam essa ligação acabando por ofuscar outros aproveitamentos. A AMAS é uma organização sem fins lucrativos, fundada em março de 2002, em Nova York, por vários produtores de machinima e seu objetivo é conscientizar as indústrias atuais da existência da técnica, assim como apoiar e dar credibilidade a essas produções. Atualmente, a organização não tem promovido eventos e, desde 2007, não são aceitas novas filiações, porém, há alguns anos, seus concursos eram organizados em categorias similares às do Oscar (The Academy of Motion Picture Arts and Sciences) como Melhor Fotografia, Melhor Direção, Melhor Edição e, embora também houvesse uma categoria voltada aos filmes independentes, a ênfase no modelo de Hollywood era perceptível. No site da AMAS e creditada a Paul Marino, seu diretor executivo, precursor do machinima e também autor da primeira publicação voltada a esse objeto, está descrita a seguinte definição de machinima, considerada oficial: "Machinima é filmagem em tempo real, ambiente virtual em 3D, muitas vezes usando tecnologias de videogames em 3D. Em u ma definição expandida, é a convergência de filmagem, animação e desenvolvimento de jogos. Machinima são as técnicas de filmagem do mundo real aplicadas em u m espaço virtual interativo onde personagens e eventos podem ser controlados por humanos, scripts ou inteligência artificial. Co mbinando as técnicas de filmagem, produção de animação e tecnologia de engines de jogos em 3D em tempo real, machinima é uma ótima forma em custobenefício de produzir filmes com g rande controle criat ivo." (MARINO, 2005)

O último parágrafo da definição diz respeito à principal abordagem das reflexões acerca do machinima: a vantagem em termos de custo e benefício de se optar por utilizar o machinima para produção fílmica em relação aos custos exacerbados de uma grande produção cinematográfica, ou seja, o machinima sempre foi considerado uma alternativa para produção fílmica pela acessibilidade da sua técnica e não com relação as suas possibilidades estéticas. Tal fato pode ser demonstrado também na introdução de "Machinima: Making Animated Movies in 3D Virtual Environments": 507 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


"Muitos de nós sonham em fazer filmes. Infelizmente, poucos realizarão esse sonho. O custo total de fazer u m filme é tanto que apenas os mais talentosos, dedicados e afortunados serão confiados à tarefa de criar a mais excitante das formas modernas de arte. O restante de nós deve assistir e continuar sonhando. O machinima promete mudar isso. Pegando carona no ritmo vertiginoso do desenvolvimento da tecnologia de jogos, ele coloca os recursos necessários para fazer filmes excitantes nas mãos de literalmente milhões de pessoas ao redor do mundo. Co m potencial de longe maior que uma simp les câmera de v ídeo, ele pode trazer u m estúdio de filmagem inteiro à sua casa, completo com cenários, atores e efeitos especiais. Para cineastas aspirantes do mundo inteiro, machinima é nada menos que um sonho se tornando realidade." (KELLAND, et al., 2005, p. 06)

Pode-se afirmar, então, que o modo discursivo do cinema foi incorporado ao machinima. Porém, este artigo caminha em direção oposta, concentrando-se na tentativa de afirmar e demonstrar os motivos e a importância de se desvincular o machinima desse modo para descobrir seus próprios potenciais. Nesse sentido, Dubois corrobora com a ideia de que a associação ilimitada com determinada linguagem o u estética pode ser problemática:

"Todo vocabulário forjado para se falar da imagem cinematográfica acaba sendo transposto, tal e qual, sem maiores cautelas, como se esta transposição não apresentasse problema. Co mo se pudéssemos apenas pensar a imagem eletrônica por meio dos conceitos (e do filtro, e da linguagem) do cinema. Co mo se não houvesse diferença entre ambos. (...) Ora, as imagens em movimento funcionam todas do mes mo modo? A operação de montar planos no cinema é a mes ma de editar imagens em vídeo? As questões em jogo são as mesmas em ambos casos?" (DUBOIS, 2004, p.75)

Em seu artigo, o autor elenca como modos principais de representação em vídeo o plástico (a "videoarte" em suas formas e tendências múltiplas) e o documentário (o "real" bruto ou não - em todas as suas estratégias de representação), "ambos com um senso constante de ensaio, da experimentação, da pesquisa, da inovação." (DUBOIS, 2004, p.77) Essa consideração é particularmente interessante, pois dialoga com a produção experimental de machinima que explora as possibilidades que a base do mundo virtual interativo apresenta. No modo plástico, são encontradas propostas não narrativas que priorizam a exploração das imagens geradas no jogo. Assim como na videoarte "TV-Magnet", de Nam June Paik, que produziu interferências na transmissão dos sinais elétricos da imagem da televisão utilizando ímãs, entre os machinimas desse grupo há os que resultam do registro de interferências sobre os códigos de programação que geram as imagens do jogo. Um dos trabalhos mais intrigantes 508 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


que exploram essa abordagem chama-se "Abstract Livecoded Machinima (Missile Command)" (FIG. 2).

FIGURA 2: Dave Griffiths, Abstract Livecoded Machinima (Missile Command) , 2008 FONTE: Griffiths, 2008, flickr do artista. Disponível em: <http://www.flickr.co m/photos/dave-griffiths/2832078262/>. Acesso em: 10 agos. 2012

O trabalho consiste basicamente no registro audiovisual de uma sequência de interferências feita em tempo real no código de programação do engine 6 de jogo em 3D desenvolvido pelo artista chamado Fluxus 7 . Nesse ambiente virtual interativo, Griffiths simula ações que lembram o jogo homenageado, Missile Command, mas, desta vez, com uma variação ainda maior de cores e sons por ser composto em uma tecnologia mais recente que a do jogo da década de 1980. Um aspecto interessante deste vídeo é que o artista traz para frente da imagem do jogo o código de programação que a constitui, tornando visível a estrutura que gera as imagens. Como na mixagem de imagens feita nas experimentações em vídeo, há aqui a sobreposição das imagens que constituem o machinima: a imagem do jogo e a do código de programação que a gera. Entretanto, não há transparências, nem janelas, nem incrustações indicadas por Dubois como as principais características que compõem a estética videográfica. Por ser o código de programação composto por letras e números, ou seja, imagens vazadas, mesmo que colocado sobre a imagem do jogo sem demais edições, ambos elementos podem ser vistos. Esse trabalho destaca uma forma bastante particular de explorar 6

"O engine do jogo é o coração do software que faz o jogo rodar. (...) A primeira coisa que ele faz é criar o mundo virtual do jogo na sua tela. (...) Sempre que ele ou o jogador decide que um personagem irá fazer algo, o engine do jogo executa a animação apropriada com o ambiente ou os outros personagens." (KELLAND et al., 2005, p. 14) 509 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


os potenciais de criação audiovisual a partir de ambientes virtuais interativos em três aspectos: primeiro, ao criar interferências no código deste ambiente; segundo, ao fazer isso em tempo real (técnica chamada livecoding); e, terceiro, ao tornar visível o código que constitui a imagem do ambiente. Ele se apropria do mundo do jogo não para criar uma narrativa inspirada no modo cinematográfico nem para replicar as formas de mixagem da imagem indicadas por Dubois como características da estética do vídeo, mas para explorar visualidades que surgem apenas nas apropriação de um jogo digital. Quanto ao segundo grupo, chamado documentário na produção e m vídeo, no caso do machinima, ele não se vincula ao real até mesmo porque a sua matriz não é a realidade na qual se vive, mas em realidades virtuais, tampouco replica o formato do documentário jornalístico que contém o desenvolvimento de narrativas. Sendo assim, opta-se por chamá-los de documentais para marcar a diferença entre o formato documentário jornalístico que também existe no machinima. Os machinimas documentais são registros audiovisuais de ações realizadas normalmente no contexto artístico dentro dos seus jogos de base. Muitos são fruto de participações criativas no Second Life (SL), da Linden Research Inc., um mundo interativo em tempo real no qual pode-se replicar ou reinventar a vida real. Nesse mundo, há círculos artísticos ativos com apresentações de performance, espetáculos de dança e exposições e eventos de arte contemporânea regulares. Dentre estes artistas, o alemão ClausDieter Schulz, conhecido no SL como Rohan Fermi, produziu o machinima abstrato intitulado "Order of Chaos" (FIG. 3), que se baseia na instalação homônima do artista Igor Ballyhoo. O trabalho é basicamente o registro de diferentes tomadas da mesma instalação que são dispostas em uma tela única marcada ora por divisões retas horizontais, ora por até duas diagonais que se cruzam, formando quatro quadros cada qual com uma sequência. O registro de várias partes do mesmo objeto sob ângulos diferentes dialoga com a videoarte "TVCubisme" (1985), de Wolf Vostell, e, consequentemente, com sua herança cubista. Entretanto, desta vez, não é feito o registro de ações do mundo real, mas de eventos e objetos apenas acessíveis no mundo virtual em que foram realizados e que, graças ao machinima, podem ser transpostos para o mundo real através do registro fílmico.

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Mais informações disponíveis online em: <http://www.pawfal.o rg/flu xus/>. Acesso em: 29 julh. 2012. 510 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


FIGURA 3: Claus-Dieter Schulz, Order of Chaos, 2009

Considerações finais Diante do que foi abordado nas considerações históricas acerca do machinima, percebese a referência bastante intensa ao modo discursivo do cinema tanto na formulação do termo quanto nos eventos criados para a sua disseminação; todavia, na análise comparativa entre as características da videoarte, teorizadas por Dubois, e dos machinimas escolhidos para esta análise, entende-se que a vertente experimental do machinima se relaciona mais à criação em vídeo do que ao modelo cinematográfico. Essas considerações, entretanto, ainda escondem as respostas dos questionamentos propostos inicialmente como guia desta reflexão. Como foi demonstrado na análise comparativa tecida na segunda parte da investigação, os machinimas "Abstract Livecoded Machinima (Missile Command)" e "Order of Chaos" dialogam com as experimentações em vídeo, mas desenvolvem sua própria maneira de explorar as imagens geradas pelo software do jogo, que difere da base eletrônica da videoarte. Com relação ao cinema, embora o machinima carregue uma referência intensa em função da sua consideração como alternativa em termos de custo e benefício para criação cinematográfica, a sua força expressiva emerge justamente quando a narrativa do modo discursivo predominante do cinema é colocada de lado, fornecendo espaço para a experimentação das possibilidades que a matriz do machinima disponibiliza. Constata-se, dessa forma, que embora o machinima não extrapole as composições videográficas e cinematográficas em termos de plano e montagem, ele não se limita à incorporação dos seus elementos para criação de visualidades, explorando o universo que lhe é próprio.

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Esse universo, os softwares de jogos, é composto de uma série de funcionalidades previstas pelos seus desenvolvedores e possui histórias e temáticas específicas, além das propostas de interação do usuário com o produto. Apesar disso, através da interação inventiva de jogadores com maior domínio técnico sobre o funcionamento do jogo e também conhecimentos de programação, os jogos são ampliados e a eles são incorporadas demais funções, elementos e possibilidades. É na cultura da modificação que reside o potencial maior do machinima na produção de novas estéticas. Na interferência dos ambientes dos jogos, a visualidade deles pode ser completamente transformada: não apenas os criadores podem esconder a sua matriz como podem abri- la, descobrir como funcionam e, então, reconfigurála. Esse processo de apropriação para criação permeia toda produção de conteúdo nos mundo s digitais interativos e é base da ética hacker, conforme exposto anteriormente. Em poucas palavras, os jogos eletrônicos compõem uma base bastante flexível que pode trabalhar à serviço dos criadores de machinima sem limites de interação dependendo apenas do conhecimento que tiverem. Mesmo que o machinima não constitua uma força expressiva com o alcance das técnicas já consolidadas em níveis estéticos ou talvez comunicativos, pois dificilmente ele se tornará predominante nos discursos televisivos ou no cine ma, ele se institui uma força estética expressiva relacionada à internet, ao computador e aos jogos eletrônicos, que exigem a manipulação do usuário para que completem a sua missão. Referências Bibliográficas DUBOIS, Philippe. Cinema, Ví deo, Godard. Tradução de Mateus Araújo Silva. São Pau lo: Cosac Naify, 2004. HANCOCK, Hugh; INGRAM, Johnnie. Machini ma for Dummies. Wiley Publishing, Inc, 2007. LEVY, Steven. Hackers: Heroes of the Computer Revolution. London: Penguin Books, 2001. KELLAND, Matt; MORRIS, Dave; LLOYD, Dave. Machini ma: Making Ani mated Movies in 3D Virtual Environments. Florence: Course Technology PTR, 2005. KELLAND, Matt. Fro m Game Mod to Low-Budget Fil m: The Evoluti on of Machini ma. In : LOWOOD, Henry; NITSCHE, M ichael. (Org.). The Machinima Reader. London: The MIT Press, 2011, p. 23-35. MARINO, Pau l. FAQ: So, what is machinima. In: Academy of Machini ma Arts and Sciences , 2005. Disponível em: <http://www.machin ima.o rg/mach inima -faq.ht ml#what>. Acesso em: 09 julh. 2012.

Filmes

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Abstract Li vecoded Machi nima (Missile Command). Direção: Dave Griffiths. 11 min. 34, 2008. Disponível em: <http://www.pawfal.org/dave/index.cgi?Projects/Missile%20Co mmand>. Acesso em: 09 julh. 2012. Diary of a Camper. Direção: United Rangers Films. 01 min . 21, 1996. Disponível em: <http://archive.org/details/DiaryOfA Camper>. Acesso em: 09 julh . 2012. Order of Chaos. Direção : Claus-Dieter Schulz. 03 min. 58, 2009. Disponível em: <http://vimeo.co m/15096478>. Acesso em: 23 julh. 2012. Quad God. Direção: Tritin Films. 33 min, 2000. Disponível em: <http://www.youtube.com/user/DirectorGoss/videos?query=quad+god+classic+part >. Acesso em: 23 julh. 2012. The Journey. Direção: Friedrich Kirschner. 08 min. 38, 2004. Disponível em: http://vimeo.co m/1110082. Acesso em: 09 julh. 2012.

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PAISAGENS HÍBRIDAS As multimídias e a construção das obras artísticas Gabriela Caetano 1 aGNuS VaLeNTe 2 Resumo: Este artigo propõe abordar um dos aspectos referentes ao meu projeto de pesquisa de Mestrado em Artes Visuais, que trata da questão dos meios de reprodução artísticos contemporâneos, além de conceitos práticos e teóricos nas produções artísticas em desenvolvimento. Para compreender este aspecto da pesquisa e os desdobramentos conceituais, o artigo expõe e propõe uma reflexão acerca de alguns pon tos importantes que são aparentes no trabalho prático da artista-pesquisadora, intitulado “Paisagens Híbridas”. São eles: o conceito de sobrevivência da forma, em relação às imagens que se repetem e são reproduzidas nas produções de muitos artistas contemporâneos; a ideia da paisagem enquanto temática na arte e elaboração híbrida de sistemas artísticos, bem como sua diferenciação do conceito de natureza; e a questão da reprodutibilidade da imagem nas obras de arte contemporâneas, no sentido de compreender a utilização de imagens do passado em produções atuais. Para isso, o texto discorre sobre diversos autores que estabelecem paralelos com as questões propostas, além de eleger algumas posições teóricas determinantes para a construção dessa reflexão conceitua l: Para apresentar a questão da sobrevivência da forma, recorre ao teórico Roland Barthes e suas considerações acerca da fotografia; para tratar da questão da paisagem enquanto temática na arte, o ponto de partida situa-se nas considerações de Anne Cauquelin e de Rosalind Krauss, refletindo sobre suas abordagens a respeito do assunto; e para discutir sobre a reprodutibilidade da imagem, propõe uma reflexão ao traçar paralelos com o discurso de Gilles Deleuze e sua teoria sobre a questão da diferença e repetição. Este texto se justifica pelo entendimento de que, ao se construir um raciocínio sobre as inovações tecnológicas e sobre como sua inserção na Arte alterou os modos de reprodutibilidade e multiplicidade das imagens contemporâneas (trazendo novas questões sobre esses procedimentos artísticos), torna-se necessário investigar como essa transformação e adaptação processual interferiu na própria difusão e recepção de uma imagem artística. Palavras-Chave: Sobrevivência das formas, Repetição e Diferença, Paisa gem, Hibridismo na arte, Reprodutibilidade da imagem

1. Meios de reprodução de imagem

Todas as imagens sobrevivem para um além. Possuem sentidos distintos em meio a diferentes formas de execução, ou mesmo ao contexto em que estão expostas. Nesta questão, cabe explicitar aqui o papel fundamental que as novas tecnologias inseriram na arte contemporânea, principalmente após a introdução da fotografia na criação artística, papel esse que foi decisivo na automatização da reprodução da imagem pós- guttembergiana com a invenção da fotografia. 1 2

Mestranda do Programa de Pós Graduação do Instituto de Artes da UNESP. Professor Doutor do Instituto de Artes da UNESP 514 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Até então, o trabalho de composição e criação da imagem era designado apenas ao artista, que o fazia com uso de seus meios manuais (desenho, pintura, gravura, entre outros), mas a partir da popularização das técnicas fotográficas na produção artística, seu processo de criação foi modificado, sendo otimizado pela utilização da lentes da câmera fotográfica. Não podemos deixar de apontar aqui, que a câmara escura já era empregada para a realização de desenho, e era bastante utilizado pelos artistas desde o Renascimento. Porém, uma mudança de raciocínio criativo viria a ocorrer na arte com a invenção das técnicas fotográficas, transformação que, para alguns teóricos, possibilitou a todos os artistas uma liberdade de renovar e reinventar sua posição artística. Porém essa liberdade de criação não seria aceita ou mesmo entendida logo nos anos iniciais da popularização da nova técnica. Nos primeiros anos da fotografia enquanto possibilidade artística, ela contou com adeptos que enxergavam nessa técnica um auxiliar para seu trabalho, mas uma grande maioria de artistas entendiam que o novo invento representava um prenúncio da atividade artística enquanto representação da realidade. Segundo Annatereza Fabris (2008), "a maioria dos artistas, percebe no novo invento uma ameaça, não apenas em termos de criação, mas de domínio de mercado 3 ". Ainda que desde seu início a fotografia tenha dado uma impressão de ser verdadeira ou mesmo a própria realidade, aos artistas coube a oportunidade de fazer desse novo meio de produção uma outra possibilidade de criação artística, o que de maneira alguma descartou a realidade, mas sim, a propôs em uma nova relação de reapresentação do mundo, e de acordo com Edmond Couchot (2003),

à automatização da representação, a fotografia acresce ainda a automatização da reprodução. Ainda que o pintor tenha tido à sua disposição os meios de reprodução que autorizam u ma certa mecanização, como a gravura, estes meios não eram comparáveis àqueles oferecidos pela fotografia. A automatização da reprodução deveria mudar co mpletamente o status social da imagem, sua difusão e sua conservação4 .

Ao construirmos um raciocínio sobre as inovações tecnológicas (especialmente da fotografia, inseridas nos meios de produção artística) e sobre como sua inserção na Arte alterou os modos de reprodutibilidade e multiplicidade das imagens, trazendo novas questões 3 4

FABRIS, 2008, p. 178 COUCHOT, 2003, p. 33 515 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


sobre esses procedimentos artísticos, torna-se necessário investigar como essa transformação e adaptação processual interferiu na própria difusão e aceitação de uma imagem artística. Ainda de acordo com Couchot (2003), "a possibilidade de reprodução de uma imagem fotográfica aumentou consideravelmente a dependência da indústria sobre ela, tornando-a uma verdadeira mercadoria de consumo". Porém, não cabe aqui entrar em questões mercadológicas, ou outras ainda questionadoras da legitimação da arte. O que interessa de fato é percebermos como os artistas se enquadraram às novas possibilidades de produção de arte contemporânea, e ainda mais, como o fator da reprodução da imagem acabou sendo somada a própria poética artística. Podemos entender essa nova relação criada com o surgimento da fotografia, e como isso vai reverberar nas práticas artísticas, a partir do entendimento de Rosalind Krauss (2002). Segundo ela, isso de deu através do

imenso impacto da fotografia, a maneira como imp regnou nossas sensibilidades sem que o percebêssemos realmente, além da utilização de estratégias profundamente estruturadas pela fotografia no conjunto das artes visuais. São inúmeros os sintomas de percepção deste fato por nossa cultura, espelhados na repentina multip licação de exposições, colecionadores, trabalhos universitários e o sentimento cada vez mais forte de frustração no terreno da crítica quanto à verdadeira natureza da fotografia 5 .

A recorrência de determinadas imagens nos trabalhos de arte contemporânea são aqui observadas e questionadas do ponto de vista da sua criação. Contudo, embora não seja possível identificar exatamente quando os artistas iniciaram uma produção que contemplasse a reprodutibilidade das imagens por mídias tecnológicas (entenda-se aqui por mídias tecnológicas as possibilidades de criação que surgiram e foram incorporadas na produção artística após a invenção da fotografia), ou mesmo saber que ferramentas foram inicialmente utilizadas nessas produções, é possível, no entanto, entender o contexto em que isto aconteceu. De acordo com Michael Rush (2006), "uma das características mais marcantes da arte do século XX, foi a persistência com que os artistas questionaram as tradições já estabelecidas na arte e a alta velocidade com que as ferramentas tecnológicas foram sendo incorporadas nas criações artísticas durante as décadas 6 ". De acordo com ele, a história da arte produzida junto 5 6

KRAUSS, 2002, p.22 Cf, RUSH, 2006. 516 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


aos meios de comunicação em massa está relacionada consistentemente ao próprio desenvolvimento dessas tecnologias, principalmente a fotografia e o vídeo. Rush (2006) trata o percurso da criação artística ligada às produções com novas mídias diretamente relacionada à percepção da possibilidade de reprodução das imagens artísticas, sendo elas através de fotografia, vídeo, multimídias, performances ou mesmo uma criação artística envolvendo ações computadorizadas e digitais. Esta noção dada aos artistas, de que suas produções podem ser concebidas de maneira atrelada às mídias tecnológicas (que acrescentam ao conteúdo artístico, novos conceitos plásticos e teóricos, e que possibilitam uma enorme variedade de criação), resulta, sobretudo, de uma sucessão de acontecimentos ocorridos durante todo o século XX e que, graças à incorporação realizada por outros artistas, tornou-se um real campo de estudos e pesquisas em arte contemporânea. Ricardo Resende (2000), aborda esta questão, ao tratar dos desdobramentos da gravura contemporânea 7 , exemplificando como as mais variadas possibilidades de reprodução da gravura aumentaram consideravelmente a repercussão desse conceito na produção poética dos artistas. Segundo ele, "todos os novos meios agentes da reprodução, como as novas mídias de impressão, ou até mesmo o próprio processo da reprodução xerográfica contribuíram para se repensar a reprodutibilidade das imagens dentro dos processos artísticos atuais". Se a memória visual do artista e de sua época guarda resquícios passados e se isso contribui na apresentação de novas criações artísticas, e mais ainda, se é análoga a uma convergência de tempos diferentes sob um único olhar, seria prudente então considerar que talvez a reprodução e multiplicidade de imagens contemporâneas possam se constituir de revisitações a outras obras e, por extensão, a outras temporalidades.

2. A sobrevivência das formas

Podemos imaginar que seja comum que os olhos gravem certas imagens na memória, principalmente se a frequência com que elas são vistas for grande. Acredito ser possível guardar detalhes sutis das coisas que vemos. Porém, nem todas as imagens vistas no dia-a-dia, são de fato tão interessantes ou instigantes para se fixarem na retina.

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Essa predisposição de aceitar esta ou aquela imagem, não é de fato uma questão que encontra respostas rápidas e bem delimitadas nos pensamentos. Alguns teóricos já tentaram elaborar teses sobre essa questão. Roland Barthes (1984) escreve sobre esse assunto, e discorre sobre como acontece o interesse do observador por uma determinada imagem. Barthes diz: não tenho necessidade de interrogar minha comoção para enumerar as diferentes razões que temos para nos interessarmos por uma foto; podemos: seja desejar o objeto, a paisagem, o corpo que ela representa; seja amar ou ter amado o ser que ela nos dá a reconhecer; seja espantarmo-nos com o que vemos; seja admirar ou discutir o desempenho do fotógrafo, etc.; mas esses interesses são frouxos, heterogêneos; tal foto pode satisfazer a u m deles e me interessar pouco; e s e tal outra me interessa mu ito, eu gostaria de saber o que, nessa foto, me dá o estalo 8 .

O estalo causado por certa imagem; a perturbação constante a qual nos colocamos incessantemente até que nos convençamos da necessidade de sentir, dizer e criar algo. Ao se fechar os olhos um segundo e tentar contar em palavras cada detalhe tudo aquilo que povoa a visão, é provável que a precisão escape. É diferente quando o artista recorre a criação visual para transmitir esse mesmo universo plural que envolve o olhar. Barthes (1984) fala do isso foi 9 , daquela imagem na foto que não apresenta, mas presentifica algo acabado. Daquilo que só existe por ter sido realidade e, ao contrário da pintura não simula, não nega sua existência. A fotografia apresenta uma verdade passada. Ao artista que caminha diante de seu mundo cabe encontrar a melhor forma de projetar essas coisas, esses objetos. Mas, faz isso de tal maneira a ponto de tornar sensíveis as indigências cotidianas do homem e explorar o mundo ordinário, materializando as sensibilidades e percepções sobre as coisas mundanas. E ao tornar algo suspenso e encará- lo plasticamente, consegue abordar através de imagens cotidianas aquilo que de fato lhes é próprio. Para Barthes (1984) toda fotografia apresenta dois elementos, punctun e studiun, cuja presença proporciona o interesse posterior que alguém possa ter por ela. O punctun seria aquilo que punge, que fere, que marca o olhar, a diferença em meio a todas as coisas, aquilo que não é visível primeiro, mas que só com esforço se pode alcançar. Consiste numa espécie de marca permanente, uma cintilação que atrai, a obsessão que se enge ndra em certos momentos da vida: 7

Cf. KOSSOVICH, L., LA UDANNA, M.; RESENDE, R., 2000. BARTHES, 1984 p. 35 9 BARTHES, 1984, p. 115 8

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Pois punctum é também p icada, pequeno buraco, pequena mancha, pequeno corte – e também lance de dados. O punctun de uma foto é esse acaso que, nela, me punge (mas também me mo rtifica, me fere) 10 .

Punctum é uma parte - não se trata do todo. Indica uma única ponta que desvia sua concentração e arrebata. Diferente do seu conceito de studium, que traria então a explicação referente a um interesse peculiar, uma apreciação cultural, a partir da qual se tem acessos aos gostos gerais: studium, que não quer dizer, pelo menos de imediato, “estudo”, mas a aplicação a uma coisa, o gosto por alguém, u ma espécie de investimento geral, ardoroso, é verdade, mas sem acuidade particular 11 .

O studium não trata da especificidade, mais daquilo que fica em torno, na borda, a deriva na imagem. Algo que apenas parece estar preenchendo o espaço. Trata-se de informação comum, não apresenta nada único, não significa algo em especial. É um dado qualquer, que apenas localiza e presentifica. Embora Barthes (1984) só trate da fotografia, talvez em todas as obras de arte haja um punctum esperando a ser descoberto. Complemento esta ideia com o conto de José Saramago (1978), intitulado “Cadeira”, onde no qual o autor escreve sobre o momento em que uma cadeira cai e se propõe a descrever e relacionar esse acontecimento com tantos outros devaneios. O escritor consegue fazer com que um acontecimento de segundos dure tempo suficiente e argumento bastante para discorrer por mais de vinte páginas. Mostra que o tempo é relativo quando se trata daquilo para o qual estamos dedicando nosso olhar criador. Desse modo, o artista se torna aquele que é capaz de materializar o alongamento ou fazer a concisão do tempo. Porém mudam-se os tempos, mudam-se vontades e qualidades, o que foi perfeito deixou de o ser, por razões em que as vontades não podem, mas que não seriam razões sem que os tempos as trouxessem. Ou o tempo 12 .

O fato é que ao ficarmos concentrados sobre um único foco, poderiam horas se passar até que se pudesse dar conta da existência do tempo que transcorreu. Seriam segundos-hora. Nesse caso, o tempo age sob os pensamentos e nos conduz à aproximação do dito objeto com a própria realidade. E se de fato ao nos aproximarmos de algo a ponto de vê- lo e o sentirmos tão próximo, o que pode ser comum nas produções artísticas contemporâneas ou não, então

10 11

BA RTHES, 1984, p.46 BA RTHES, 1984, p. 45 519 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


seria possível ao artista enxergar além da própria imagem presente e transfigurá- la. Em outras palavras, o gesto artístico consegue produzir no espectador o estiramento ou a redução temporal, porque o artista é movido por sensibilidades e percepções que atingem e reverberam através de sua criação. Aquilo que incomoda ao artista serve de matéria ao seu processo de criação.

3. A temática da paisagem na história da arte

A paisagem enquanto gênero nas artes tem sua relevância dada e afirmada ao longo da história. Muitos foram os artistas que exploraram esse tema em suas composições e trataram de apresentar a paisagem como matéria própria de investigação artística e poética. Como em meu trabalho apresento obras que tratam dessa temática, considero pertinente dedicar aqui um espaço para analisá- la e confirmar sua importância enquanto gênero largamente discutido perante teóricos da arte e usualmente visto hoje. Mas me interessa aqui, não mostrar seu uso nos anos passados, mas sim tentar apreender o inicio do seu fascínio sobre os artistas, e a sua própria conceitualização enq uanto temática artística. Vejo a paisagem enquanto temática usada na arte e principalmente nas minhas próprias produções enquanto artista, como parte fundamental para o entendimento da própria obra. Para a compreensão da importância desse gênero enquanto parte efetiva da obra de arte, buscarei refletir sobre qual o lugar que ela ocupa hoje na contemporaneidade. A escolha da paisagem, da árvore, como tema principal nos meus trabalhos, é algo recorrente desde o início da minha produção artística, porém não busco somente a forma, cor ou uma simples composição; busco nessas imagens uma ligação artística, conceitual e poética de maior densidade. Pensar uma imagem que se repete, a variação de uma temática tão explorada como a paisagem, e entendê- la como elemento crucial na composição final da obra, seja talvez discutir sobre os problemas da poética na arte contemporânea. Não procuro pensar a paisagem como gênero pictórico apenas, mas ampliar seu entendimento e a colocar num tempo-espaço contemporâneo, onde se extrapola seu sentido e até podemos imaginar novos significados. Desse modo, penso a criação de novos trabalhos que abordam uma mesma temática, como uma maneira de completar as imagens que produzo, 12

SARAMA GO, 1978, p. 14 520 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


de forma a trabalharem como fio temporal da narrativa que teço, não sendo, porém, uma necessidade primária de começo, meio e fim, mas sim, agindo como retornos possíveis ao universo que pretendo apresentar dentro da arte. A paisagem como temática escolhida vem ampliar o sentido da própria obra de arte, onde o público pode adentrar em um mundo paralelo, buscando aprofundar suas possibilidades de reflexão, abertas por esse pequeno movimento contrário criado pela obra. Há então, certa suspensão temporal, criada e mediada através de uma obra de arte. Acredito que minhas investigações levam o expectador a acessar as possibilidade de criação e projetar, dentro do espaço expositivo, seus próprios conceitos nesse espaço-tempo. Para entender essa questão da paisagem enquanto temática na arte, recorro as teorias da autora Anne Cauquelin (2007), nas quais discorre sobre o entendimento do conceito de paisagem nas produções artísticas, bem como a diferenciação de natureza e paisagem. Para Cauquelin (2007), "as paisagens em sua diversidade pareciam uma justa e poética representação do mundo 13 ". Nesse sentido, podemos compreender que a paisagem em seu princípio é representação, composição agrupada, montagem ficcional, enquanto a natureza seria aquilo que se dá a ser percebido e copiado. Ainda segundo a autora, de fato, "parece que a paisagem é continuamente confrontada com um existencialismo que a transforma em um dado natural14 ". Mas não passa de confusão, mero engano: os conceitos já estão tão ligados e entrelaçados que já não se consegue mais distinguir um do outro. Parece, então, que a proposição segundo a qual a noção de paisagem e sua realidade percebida são justamente uma invenção, um objeto cultural patenteado, cuja função própria é reassegurar permanentemente que os quadros da percepção do tempo e do espaço, é, na atualidade, fortemente evocada e preside a todas as tentativas de „ repensar‟ o planeta como eco-sócio-sistema15 .

A autora relata ainda a descrição de uma paisagem16 que ela teve quando criança. Ela nunca esteve naquele lugar, mas podia sentir como se estivesse estado lá. Sua primeira formação de uma imagem, de uma paisagem. A noção primeira foi- lhe dada através de um relato. A partir da descrição de uma paisagem, forma-se uma imagem tão perfeita e detalhista que acaba por se tornar a própria paisagem. Há a construção de uma ideia de paisagem sem 13

CAUQUELIN, 2007, p. 7 CAUQUELIN, 2007, p. 8 15 CAUQUELIN, 2007, p. 12 14

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personagem. Todos poderíamos ter uma noção de paisagem inicial, primeira. Uma imagem previa sem personagem. Um lugar, uma paisagem. Podemos estender essa reflexão e pensar sobre o entendimento de paisagem na contemporaneidade, os sentidos e conceitos que são largamente explorados nas produções atuais. Se hoje as linguagens ultrapassam as técnicas e maneiras do passado, indo muito além da pintura, do desenho ou da escultura, talvez seja pelo excesso de meios que a temática da paisagem possa ser reinventada e retomada nas obras de arte. Ainda segundo Cauquelin (2007), "a imagem da paisagem pode ter tido talvez um mesmo entendimento coletivo durante muito tempo, mas as novas tecnologias audiovisuais propõem versões perceptuais inéditas de paisagens „outras‟ 17 ". Pinturas, esculturas, fotografia, vídeo e trilhas sonoras compõem paisagens mestiças, híbridas, nas quais o espectador se sente imerso. Imagens e sons digitais nos filmes e videogames, em consoles ou em play stations, os CD-ROM co m filmadoras ou webcams, a educação da visão e da audição, da comp reensão das coisas e dos vínculos que elas mantêm entre si, tudo isso é atualmente bem diferente do que era típico das gerações anteriores18 .

A construção da imagem de paisagem é feita pelo nosso próprio repertório cultural. Nossas referencias moldam as imagens que criamos e aquilo tudo que nomeamos paisagem. São nossas próprias construções intelectuais que formam nosso acervo imagético. Nesse sentido, podemos pensar a construção da paisagem como "um processo de hibridação de diferentes sistemas artísticos em relações intertextuais e intersemióticas 19 ". Para Cauquelin (2007), são nossos modos de ver o mundo que formam as paisagens e as visões que criamos delas 20 . E em meio a essa noções pré-estabelecidas que temos, é que podemos compreender os diferentes tipos de paisagens e sua representação através das obras de arte contemporânea. Nesse raciocínio, podemos entender que "o que chamamos paisagem então, parece traduzir para nós uma relação estreita e privilegiada com o mundo, representa como que uma harmonia preestabelecida, inquestionável, impossível de criticar sem se cometer sacrilégio 21 ". Segundo Rosalind Krauss (2002),

16

CAUQUELIN, 2007, p. 21 CAUQUELIN, 2007, p. 8 18 CAUQUELIN, 2007, p.15 19 Cf. VA LENTE, 2008 20 CAUQUELIN, 2007, p. 27 21 CAUQUELIN, 2007, p. 28 17

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a relação da paisagem na arte será alterada depois da segunda metade do séc ulo, pois a pintura - principalmente a de paisagem - reage com seu próprio sistema de representações. Ela começou a interiorizar o espaço de exposição (a parede) e a representá-lo 22 .

Dessa maneira, há aqui uma modificação do entendimento e do próprio uso das pinturas de paisagens nesse momento, e uma nova percepção dessa temática enquanto campo artístico. Aponto duas questões a se refletir quando tratamos de paisagem no âmbito da arte. A primeira é a impressão que possuímos de que o conceito de paisagem p reexista a nossa própria consciência, ou seja, que inconscientemente saibamos definir o que de fato pode ser entendido como tal. Mas pensar assim, é ignorar que exista então um momento anterior ao sentido que hoje damos a paisagem. É sugerir que aquilo que conhecemos e nomeamos hoje como paisagem tenha sido assim desde sempre, negando um momento de origem; e persistir nesse raciocínio talvez seria "confundi- la com aquilo que ela manifesta a seu modo, a Natureza 23 ". Para Cauquelin (2007), a Natureza é „u ma ideia que só aparece vestida‟, isto é, em perfis perspectivistas, camb iantes. Ela parece sob a forma de „coisas‟ paisagísticas, por meio da linguagem e da constituição de formas específicas, elas próprias historicamente constituídas 24 .

A segunda então seria a separação da ideia de natureza do conceito de paisagem, e de certa forma, compreender que o que se mostra em produções artísticas não é a natureza real, mas uma noção camuflada, vestida com o conceito do artista, que explora e apresenta uma questão ímpar. O que vemos nas obras de arte então, são paisagens desenhadas e escolhidas por olhos que conseguiram enxergar no todo - a natureza - aquela parte que ele pode colocar em evidência, ou seja, a paisagem. Estabelecendo um contraponto, lembremos Nietzsche, que observa que "só por uma grosseria dos sentidos, podemos dizer que conhecemos uma árvore, pois ela é sempre muito diversa e muito mais complexa do que aquilo que podemos dizer ou pensar sobre ela 25 ". Pensar o inicio da paisagem, a „invenção‟ desse termo, é tentar encontrar uma gênese da forma. Porém, ainda que não se tenha dados precisos quanto a isso, há autores que indicam 22

KRAUSS, 2012, p. 42 CAUQUELIN, 2007, p. 29 24 CAUQUELIN, 2007, p. 29 25 BA RTHES, 2004, p. 281 23

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seu nascimento por volta de 1415 26 . Segundo Cauquelin (2007), "a paisagem teria vindo da Holanda, passado pela Itália até se espalhar definitivamente como conceito e se tornar por si só uma vertente da forma 27 ". Para ela,

esse originário é, a meus olhos, composto de milhares e milhares de dobras, de milhares e milhares de memórias, e, se é possível que elas se tenham constituído porque eram convocadas pelo „fundo‟, nós, contudo, não teríamos por testemunho nada além da mult iplicidade dessas mesmas formas, suas „variações‟28 .

Há de se entender no entanto, que a utilização da paisagem nas artes, teve seu início e disseminação, através da pintura. Ainda que seu uso inicialmente não fosse como gênero predominante, e muitas vezes usada apenas para completar a figura, um fundo, uma forma de preencher a tela, é verdade também que foi a partir dai que a paisagem se desenhou como campo artístico. Para Krauss (2002),

assim que foi aceita esta compressão, que permitia rep resentar todo o espaço de exposição no interior de uma única tela, outras técnicas foram utilizadas coma mes ma finalidade. Trata-se por exemplo das paisagens seriais, penduradas umas ao lados das outras, imitando a extensão horizontal da parede, como os quadros de Monet da catedral de Rouen; ou então das paisagens comprimidas e sem horizonte, que se estendiam até ocupar todo o comprimento de u ma parede 29 .

A partir do momento que a paisagem se torna uma temática própria na pintura, ela ganha também a possibilidade de representação como foco, objeto principal da composição. Os artistas passaram a explorar enquanto linguagem e possibilidade artística, e podemos perceber essa tendência crescente inclusive através de diversos movimentos artísticos consolidados historicamente. Nesse sentido,

o interesse não é constatar isso de um modo qualquer, mas reconhecer que se os conteúdos mudaram, a experiência do mundo passa sempre pelos mesmos caminhos: as paisagens digitais nas quais personagens heróicos evoluem, o amb iente virtual no qual você adentra munido de capacete e luvas não são apenas elementos reais do mundo em que vivemos, mas, ainda por cima, desempenham sua função de aprendizado, assim co mo outrora a arte pictórica, determinando então um conjunto de valores ordenados em u ma visão, ou seja: u ma paisagem 30 .

26

Cf CAUQUELIN, 2007 CAUQUELIN, 2007, p. 35 28 CAUQUELIN, 2007, p. 31 29 KRAUSS, 2002, p. 42 30 CAUQUELIN, 2007, p. 16 27

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Se hoje, os artistas podem tratar da paisagem enquanto tema principal em seus trabalhos de arte sabemos que nem sempre foi assim. Antes que a temática da paisagem pudesse passar a ser pensada para além do quadro, ou seja, "que ela pudesse ter uma realidade autônoma, durante muito tempo sabe-se que ela foi apenas uma parte, um ornamento da pintura 31 ". Podemos compreender essa questão, deslocando nosso pensamento para a utilização desse tema na produção pictórica. Temos na pintura uma variedade de temas sobre a natureza, devido a própria variedade dela mesma. Nesse contexto, a paisagem era reduzida "a uma representação figurada destinada a seduzir o olhar do espectador por meio da ilusão de perspectiva 32 ". E se na contemporaneidade ela encontra espaço para ser objeto principal na obra de arte, isto se deve muito a uma revisitação dos gêneros consagrados que os artistas hoje buscam para traçar novas relações e paralelos, inclusive problematizando de formas diferentes as mesmas questões já vistas e apresentadas em toda a história da arte. Essa revisitação à paisagem enquanto temática de produção artística é entendida por Cauquelin (2007) da seguinte maneira: as „formas‟ evoluem, mas a partir de u m dado existente desde toda a eternidade. Nada a ver, diz-se, com u ma construção mental. A paisagem participa da eternidade da natureza, u m constante existir, antes do homem e, sem dúvida, depois dele. Em suma, a paisagem é u ma substância 33 .

Sendo assim, é possível compreender que a temática da paisagem apresentada nas obras de arte contemporâneas nos leva a discussões acerca de conceitos a serem revisitados e reflexões possíveis de serem feitas acerca da arte e de outros campos do conhecimento.

4. Diferença e repetição - novas possibilidades contemporâneas

Pensar a questão da reprodutibilidade das imagens na produção artística, é de certa maneira, tentar levantar questões sobre as similitudes encontradas nas obras que possuem alguma repetição, sejam elas temáticas, de procedimentos, técnicas ou mesmo conceituais. De

31

CAUQUELIN, 2007, p. 37 CAUQUELIN, 2007, p 37 33 CAUQUELIN, 2007, p. 39 32

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qualquer maneira, parece- me bastante difícil tratar da semelhança, sem procurar compreender a diferença. A repetição transforma a especulação em proposta, pois o ato repetitivo parece oferecer a prova de alguma coisa. Geralmente somos solicitados a comparar semelhanças e diferenças 34 .

Penso que alguns conceitos podem ser importantes para uma compreensão das obras que produzo. Questões como a montagem, a repetição e a perda da origem, são trabalhadas nas minhas obras desde os meus primeiros estudos ainda durante meu curso de graduação em artes plásticas. A busca pela composição agregada, "das possibilidades do conjunto, da diferença na série que só é possível na repetição 35 "; é dessa repetição metódica para qual levo meus processos e pesquisas plásticas, além da maneira sutil como elas se diferenciam entre si, são pontos importantes que vejo também nas obras dos artistas com os quais busco aproximação. De acordo com Gilles Deleuze (1988):

semelhanças são desfeitas para se descobrir u ma igualdade que permita identificar um fenô meno nas condições particulares da experimentação. A repetição só aparece, aqui, na passagem de uma ordem de generalidade a outra, aflorando por ocasião desta passagem e graças a ela 36 .

Creio que nenhuma obra nasce de um ponto zero, onde pode ser considerada uma criação absolutamente nova ou sem precedente, podendo assim, dispensar outras referências histórico-artísticas. Parece- me bastante plausível que, apesar de viver num tempo específico, todo artista pode alcançar outras temporalidades, outros pensamentos e sensibilidades, materializando na obra estes seus recuos e avanços, em relação ao seu presente. Vivemos nosso tempo e produzimos sempre retornando a algo pré-existente ou que já existiu de alguma maneira em outras temporalidades. Assim a potência da obra não resulta na sua originalidade absoluta, mas naquilo que insiste e persiste que faz retornar questões irresolutas por meio de des-tempos. Entenda-se por des-tempo não a ausência, mas a heterogeneidade e impureza do tempo, imaginando-as como um feixe ou turbilhão. Como ponto principal, busco analisar a composição que reproduz a mesma imagem em diferentes situações. É essa busca pela diferença em meio à repetição que vejo nas obras de alguns artistas contemporâneos e para a qual também levo meus processos e pesquisas 34

COTTON, 2010, p. 42 Cf. DELEUZE, 1988 36 DELEUZE, 1988, p. 24-25 35

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plásticas, bem como defino e delimito minhas pesquisas teóricas. Ainda sobre a questão da repetição com diferença, ou seja, das imagens que retornam na produção artística, ainda que apresentadas por novas mídias ou suportes, encontramos na teoria de Deleuze (1988) a seguinte afirmação: se a repetição existe, ela exprime, ao mes mo tempo, u ma singularidade co ntra o geral, u ma universalidade contra o particular, u m relevante contra o ordinário, u ma instantaneidade contra a variação, u ma eternidade contra a permanência. Sob todos os aspectos, a repetição é a transgressão37 .

Se aos artistas contemporâneos a repetição pode ser entendida como forma de transgressão, é, portanto, nessa fenda conceitual que entraremos para observar suas produções. Seus repertórios abarcam diversas imagens oriundas das mais variadas áreas de investigação. E como nos mostra Henri Focillo n (2001), a memória visual acompanha todas as pessoas e isso resulta na formação de seu próprio repertório. Na arte, podemos relacionar isto com a própria produção dos artistas, seu processo criador e sua construção poética.

Todos nós sonhamos. Inventamos nos nossos sonhos não apenas uma série de circunstâncias encadeadas, uma dialética do acontecimento, mas também seres, uma natureza, um espaço, de uma autenticidade obsessiva e ilusória. So mos os pintores e os dramaturgos involuntários de uma série de batalhas, de paisagens, de cenas de caça e de rapto, e compomos todo um museu noturno de obras -primas repentinas, cuja inverossimilhança é sustentada pelo enredo, mas não pela solidez das massas ou pela precisão dos tons. A cada memó ria, põe, igualmente, à disposição de cada um de nós um rico repertório 38 .

Por sua vez, esse tempo existe no passado, que não é paralelo ao tempo que se mostra na criação, mas que chega através de uma distância, e a isso chamamos de memória. É ela que configura o tempo criador, entrelaçando suas fendas e aproximando-as de modo perturbador. Tendo como pressuposto os pensamentos de Georges Didi-Huberman (2006), é coerente dizer que “a memória é aquilo que convocamos e interrogamos para realizar as aproximações temporais entre diferentes repertórios e não somente o passado de algo já feito 39 ". Para dizer de outro modo, podemos reconhecer como parte de um pensamento plástico que as imagens estão sempre sujeitas a um jogo infinito de montagens, submetidas à repetidas e sucessivas reordenações, pois,

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DELEUZE, 1988, p.24 FOCILLON, 2001, p.74 527 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


ante uma imagen – tan reciente, tan contemporânea como sea -, el pasado no cesa nunca de reconfigurarse, dado que esta imagen solo deviene pensable em uma construcción de la memória, cuando no de la obsesión. Em fin, ante uma imagen, tenemos humildemente que reconocer lo seguiente: que probablemente ella nos sobrevivirá, que ante ella somos el elemento frág il, el elemento de paso, y que ante nosotros ella es el elemento del futuro, el elemento de la duración. La imagen a menudo tiene más de memória y más de porvenir que el ser que la mira 40 .

Sendo assim, é possível compreender que são nossos repertórios que nos proporcionam um varal de imagens, e enquanto artista, é desse modo que posso problematizar novas questões em meus trabalhos artísticos, e podendo sempre retornar às mesmas questões e imagens. Frente as imagens da arte que vejo ou mesmo as que produzo, entendo existir um elemento duradouro que faz com que ela possa ser levada para outros olhos futuros, e possa se vista e entendida sem a necessidade da presença constante do artista. Referências Bibliográfica BARTHES, Ro land. A Câmara Cl ara. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984. ______. Texto (teoria do). In: Barthes, Roland. Inéditos. São Paulo: Martins Fontes, 2004. ______. O Prazer do Texto. São Paulo: Perspectiva, 2010. CAUQUELIN, Anne. Arte Contemporânea: uma i ntrodução. São Paulo : Mart ins Fontes, 2005. ______. A Invenção da Paisagem. São Paulo: Martins Fontes, 2007. COUCHOT, Ed mond. A Tecnologia na arte: da fotografia à reali dade virtual. UFRGS, 2003.

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DIDI-HUBERMAN, 2006, p 40 DIDI-HUBERMAN. 2006, p.12 528 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


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ANIMA

Fotografia como amálgama de tempos Gina Dinucci 1 Resumo: O presente artigo tem o intuito de perscrutar o processo criativo da fotoinstalação “Anima” estabelecendo um diálogo com as camadas de passado, futuro e presente que as fotografias provenientes de apropriação possuem. Trata-se uma instalação exposta no Prêmio Diário Contemporâneo de Fotografia em Belém – PA, contemplada com uma menção honrosa em 2010 que utiliza fotografias resgatadas de um álbum esquecido. Palavras-Chave: Anima, Tempo, Fotografia, Fotoinstalação . Abstract: This article has the purpose of peering into the creative process of the photo installation “Anima” establishing a dialogue with the layers of the past, future and present that the photographs proceeding from the appropriation contain. The installation has been exhibited at the Contemporary Daily Photography Award in Belém-PA, Brazil, awarded with an honorable mention in 2010 wich uses photographs rescued from a forgotten album. Key words: Anima, Ti me, Photograph, Photo installation

Introdução Essas mulheres captadas em tão clássico e tradicional retrato nos olham agora de modo mais enigmát ico, indireto, apagadas em sua função primeira, mas ilu minadas (…) parado xalmente por um negro quase absoluto . (KLAUTAU, 2010, p. 15)

Anima é uma instalação que utiliza fotografias resgatadas de um álbum esquecido. Exposta no Prêmio Diário Contemporâneo de Fotografia em Belém – PA, foi ganhadora de uma menção honrosa em 2010. O percurso da obra se deu em três etapas: primeira - encontro com o álbum segunda - tempo em que o álbum ficou arquivado em meu poder terceira – elaboração e produção da fotointalação “Anima” O presente artigo tem o objetivo de relatar o processo criativo do trabalho identificando a intersecção dos tempos passado, futuro e presente. Para fundamentar tal busca empresto do autor 1

Instituto de Artes - UNESP 530 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Maurício Lissovsky (2010), a noção de que a fotografia contemporânea é um campo de lutas e um amálgama de tempos, que incorpora não só reflexões sobre a imagem pronta, mas também sobre o fazer fotográfico e o objeto fotografado. Quando tiramos uma imagem de seu lugar, quando reanimamos a sua presença, estaremos mergulhados em um amálgama de tempos? Este trabalho nasce da vontade de compreender essas massas de temporalidade e não pretende esgotar as várias opiniões relevantes, contrárias ou favoráveis a respeito do mesmo assunto, nem tampouco levantar importantes obras já produzidas utilizando a apropriação de imagens fotográficas em desuso. Trata-se do relato de uma história inacabada que precisa ser relida para poder reviver. É somente a presença de signos em movimentos contínuos, mais uma obra do tempo. 1. Um relato sobre o processo criativo de Anima 2 A fêmea é portadora de vida, ela anima. No nível místico, o espírito é considerado masculino; a alma que anima a carne, feminina. (CHEVA LIER e GHEERBRA NT, 2009, p. 598)

Um álbum de formatura, de 1942, de um colégio católico feminino, com uma série de 111 fotografias de mulheres, é encontrado em uma das prateleiras empoeiradas de um sebo. A vontade de refazer as suas histórias, imaginar seus sonhos me levou a pesquisar as alunas. A descoberta de que a grande maioria já estava morta ou na fase dos 90 anos fez com que eu me questionasse sobre o significado daquelas imagens. Será que elas já não tinham mais importância para ninguém? Havia ali o rompimento com a vida, o anúncio da ausência e a iminência da morte. As fotos, ao serem desprezadas, estavam deixando de cumprir seu papel primordial: o de eternizar o efêmero. Resolvi, então, re- fotografar todo o álbum em baixa luz, buscando novos sentidos para as imagens. Assim nasce a série “Anima”, para reanimar a alma das fotografias, dar-lhes um novo movimento e recuperar a sua primeira função: a de ser observadas. A

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Texto ret irado do Dossiê enviado ao Prêmio Diário Contemporâneo de Fotografia – Belém – PA. 531 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


fotoinstalação contém 30 fotografias das alunas de tamanho 25 cm x 20 cm, e uma da madre superiora, de 78 cm x 62 cm. A disposição das imagens da instalação segue a hierarquia do álbum e formam retângulos alinhados simetricamente.

FIGURA I - Fotoinstalação ANIMA em exposição no MUFPA – FOTO: Irene Almeida FONTE: Prêmio Diário Contemporâneo de Fotografia, 2010 - http://www.diariocontemporaneo.co m.br/

2. Amálgama de Tempos A fotografia sempre foi considerada uma maneira eficaz de se conhecer as coisas do mundo e, de alguma forma, eternizá- las. Mas desde os experimentos com as fotomontagens dos surrealistas e a total ruptura com a arte retiana dos ready-mades de Marcel Duchamp, as imagens fotográficas subvertem a função de lápis da realidade. Apesar de ser técnica inseparável do ato de registro, nas vanguardas do século XX, ela desprende-se do compromisso com a verdade, é reconhecida como portadora de signos artísticos e, portanto, tem seu potencial de subjetividade aprofundado. Entre a duração, como uma forma de perpetuar a morte, até o instante do ato 532 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


fotográfico, visto como o congelamento do tempo, a temporalidade sempre foi a principal e mais problemática discussão dentro da fotografia. A busca pelo instantâneo em sua historiografia afastou gradativamente as imagens fotográficas da experiênc ia temporal. A percepção da duração do tempo, antes observada nos fantasmas e espectros causados pela longa exposição, escapou das imagens as transformando em registros objetivos, dotados de inegável nitidez. Mas, é possível que fotografias sejam deslocadas de sua função instantânea para impregnar-se de duração? Segundo Lissovsky (2010, p. 61), que empresta de Dubois o conceito de imagem-ato, se observarmos a fotografia como um agora-passado seria impossível lhe restituir a duração, porém vista como um agora- futuro, a sua duração provavelmente lhe seria devolvida e tal restituição só poderia ser uma doação daquele que a observa. Deste modo, ele propõe então, que a fotografia seja vista pelo avesso, ou seja, para além do corte temporal que lhe é inerente. A apropriação de imagens de arquivos esquecidos, ou em desuso, e sua ressignificação são práticas que se iniciam num contexto modernista e parecem não se esgotar nas produções da arte contemporânea do século XXI. Quando utilizo tal procedimento busco mais do que garimpar imagens, ou restituir histórias e arquivos, anseio escavar sentidos a partir de mudanças do campo da percepção do tempo. Para causar esse deslocamento, as imagens foram re-fotografas tornandose paradoxalmente esvanecidas, apagadas de sua nitidez e transformadas em sutis massas de luz.

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FIGURA II: Detalhe da Fotoinstalação “Anima”

Com esse processo buquei torná- las incompletas, imagens propulsoras de uma nova experiência temporal. Soulages (2010, p. 279), influenciado pela psicanálise, cha mou de transferência o ato de deslocar fotografias de uma função do sem-arte para um segundo espaço, no qual a sua característica se modifica para a de um objeto de arte. A transferência pode ser apenas uma utilização da foto como simples material, ou ent ão, ao contrário, chegar, através da própria fotografia, a u m questionamento radical de u ma prática artística. Esse questionamento não deixa de evocar a ativ idade reflexiva em arte e em filosofia, assim co mo o trabalho sobre a transferência, que é o essenc ial da problemát ica da cura analít ica. (SOULA GES, 2010, p. 279)

Esse processo assemelha-se ao ready-made, mas com um importante diferencial: ter como principal objetivo alguns critérios estéticos, além de conceituais na escolha das imagens. Soulages (2010) afirma que precisará existir a essência da fotograficidade na obra para ela escapar de ser considerada apenas um documento. A fotograficidade é, pois, a especificidade fotográfica e sua relação paradoxal com o irreversível e o inacabável, que se articulam principalmente dentro de sua temporalidade. Já Sontag (2004, p. 32) afirma que no fim, o tempo termina por situar a maioria das fotos no nível da arte, desta maneira, o que pode transferir

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conteúdo artístico a uma imagem originalmente documental é a exper iência estética dada no futuro, que tende a afastar seu corpo de um sentido puramente social. As fotos, quando ficam escrofulosas, embaçadas, manchadas, rachadas, empalidecidas, ainda têm u m bo m aspecto; muitas vezes, u m aspecto até melhor. Nisso, como em outros pontos, a arte com quea fotografia mais se parece é a arquitetura, cujas obras estão sujeitas à mes mainexo rável ascensão por efeito da passagem do tempo; muitos prédios, e não só o Pathernon, provavelmente têm um aspecto melhor como ruínas). (SONTA G, 2004, p. 94).

As marcas físicas do tempo gravadas nas imagem as transformam em ruínas interessantes ao campo da arte e, nesse aspecto, quanto mais traços de passado a imagem contém, mais ela pode ser retomada sob um olhar poético. Juntando, portanto, o s dois conceitos, o de Soulages e Sontag, pode-se dizer que “Anima” é uma espécie de ruína em estado de transferência, pois os retratos tradicionais que são retirados de sua função documentária e de seu tempo, quando ressignificados, são imediatamente reconhecidos como portadores de um passado carregado de afeto e também de projeções para um futuro. Essa discussão que já é em partes interna a sua própria técnica, forma uma tessitura entre o que é, o que já foi e o que será. O processo de produção de “Anima” envolveu um tempo longo e gradual. Entre o álbum ser encontrado, refotografado e finalizado como uma instalação, houve um percurso muitas vezes dado em um tempo que poderíamos chamar de suspenso, emerso, como um buraco na memória. O mergulho temporal dá-se, ou renova-se de fato quando as imagens reencontraram o seu observador e ocupam um espaço específico para elas. As apropriações das fotografias, nesse sentido, movimentaram dramaticamente o seu tempo e transmutaram-se num instante, o presente no passado, a vida na morte 3 . A obra propõe então, um desvendar das camadas desses tempos que se fundem nas imagens, camadas que se agrupam entre memórias e intuições, que não se mostram em apenas um golpe de olhar, pois a experiência temporal da duração é requisitada ao observador. Quanto mais tempo for doado às imagens, mais elas se farão existentes. Portadora de um movimento contínuo, “Anima” será sempre uma obra inacabada e passível de recuperação. O

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SONTA G, op. cit. pg. 86. 535 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


seu tempo não é demonstrado objetivamente, mas sua massa é percebida pela duração que, não significa uma linha reta e horizontal, mas um fenômeno de transformação instável. Conforme a visão da semiótica, “Anima” poderia ser considerada uma operação tradutora interlinguagens, ou intersemiótica visto que os nítidos retratos analógicos são refeitos digitalmente, e que de um álbum tátil nascem fotografias em grande formato, proibidas ao toque. Desta maneira, “Anima” cumpriu a função de reanimar o passado, porém problematizando-o e atribuindo- lhe novos sentidos. O passado como ícone, como possibilidade, co mo orig inal a ser traduzido, o presente como índice, co mo tensão criativo-tradutora, como mo mento operacional e o futuro como símbolo, quer dizer, a criação à procura de u m leitor. (PLAZA, 2008, p. 8).

As fotografias que compõe Anima no seu processo de semiose (ação do signo) são portanto, o índice em movimento, uma cadeia de signos que se renovam sucessivamente - a representação da representação - o tempo sobre o tempo. A ressignificação das fotografias do álbum assumiu a função semelhante a de um aparelho desfibrilador, transformando o instante do ato fotográfico em experiência da duração e da morte, mas também do nascimento. A morte das imagens nada mais é do que um vir-a-ser: “Toda alma é uma melodia que convém renovar”4 e só 4

MALLA RM É apud BA CHELA RD, Gastón. A Intuição do Instante. Campinas-SP: Verus Editora, 2010, p. 57.

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é possível renovar uma alma na morte, mas mesmo o que está morto deixou rastros de sua existência, palimpsestos. Então, o que por sua natureza é índice, transmuta-se em objeto e transforma-se novamente em índice. A obra - organismo vivo – sofre a ação de movimentos circulares que transformam o seu corpo em fusão de tempo, em massa viscosa.

Referências BACHELA RD, Gaston. A Intuição do Instante . Trad. Antônio de Pádua Danesi. Campinas -SP: Verus Editora, 2010. CHEVA LIER, Jean, GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Sí mbolos. São Paulo: Editora José Oly mpio, 2009. DUBOIS, Philippe. O Ato Fotográfico. Trad. Marina Appenzeller. Camp inas -SP: Papirus, 2006. ENTLER, Ronaldo. Entrevista de Mauricio Lissovsky ao Forum Latino Americano de Fotografia de São Paul o. Disponível em: http://www.foru mfoto.org.br/pt/2010/07/ mauricio-lissovsky/ Acesso em: 20/03/2010. KLAUTAU, Mariano. Catál ogo Prêmi o Diário Contemporâneo de Fotografia – Brasil Brasis. Belém: Diário do Pará, 2010 LISSOVSKY, Mauricio . A Máquina de Es perar: Origem e Estética da Fotografia Moderna. Rio de Janeiro: Mauad X, 2008. SONTA G, Susan. Sobre Fotografia. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo : Co mpanhia das Letras, 2004. SOULA GES, François. Es tética da Fotografia: Perda e Permanência. Trad. Iraci D. Polet i e Regina Salgado Campos. São Paulo : Ed itora Senac, 2010. PLAZA, Julio. Tradução Intersemi ótica. São Paulo : Perspectiva, 2008

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MATERIALIZAÇÕES FORMAIS E COMPOSITIVAS NO DESIGN GRÁFICO VOLTADO À CULTURA Jade Samara Piaia 1 Resumo: Este artigo apresenta parte dos estudos da pesquisa de mestrado defendida em agosto/2012, orientada pelo Prof. Dr. Edson do Prado Pfutzenreuter, na qua l estuda-se os elementos gráficos que compõe a materialidade das mensagens visuais de três estudos de caso distintos. A investigação, voltada ao design gráfico que veicula um conteúdo cultural, visa desvendar uma suposta aproximação entre as diferentes exp ressões culturais como a música, a dança, a literatura e as teorias das artes visuais e do design. Os projetos observados veiculam um conteúdo cultural artístico e condensam materializações, através da composição gráfica, que representam visualmente alguns aspectos significantes das manifestações culturais em questão. Três estudos de caso fora m aprofundados, correspondentes aos designers Kiko Farkas – doze cartazes para a OSESP, Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo–; Rico Lins – livros coleção Ponta-de-lança, Editora Língua Geral– ; e Vicente Gil –identidade visual para a SPCD, São Paulo Companhia de Dança. Ressaltando a questão das formas como elementos de materialização visual, a análise dos aspectos formais procede, em sua maior parte, através do sistema de técnicas visuais proposto por DONDIS (2003). Assim, foi possível isolar algumas características visuais que se sobrepõem, interagem e se reforçam em uma análise da composição formal. Os cartazes para a OSESP são representações visuais que se referem a apresentações, concertos, peças, turnês e mensagens institucionais. Neste artigo serão exemplificados os estudos das formas através de cinco dos cartazes analisados de Farkas para a OSESP. Palavras-chave: Design gráfico. Cultura. Arte.

Abstract: This article presents part of the research studies in Masters defended 2012, August, oriented by Prof. Dr. Edson do Prado Pfützenreuter, in which one studies the graphics elements that compose the materiality of visual case studies of three distinct. The rese arch focused on graphic design that conveys a cultural content, aims to unveil a supposed approach between the different cultural expressions such as music, dance, literature and theories of visual arts and design. The projects observed convey cultural content artistic and condense materializations by the graphic composition, which visually represent some significant aspects of cultural manifestations in question. Three case studies were detailed, corresponding to the designers Kiko Farkas -twelve posters for OSESP, State Symphony Orchestra of São Paulo -; Rico Lins -books collection Ponta-de-lança, Língua Geral Editor, and Vicente Gil -branding for SPCD, São Paulo Dance Company. Emphasizing the question of forms as elements o f visual materialization, the analysis proceeds formal aspects, for the most part, through a system of visual techniques proposed by DON DIS (2003). Was therefore possible to isolate some visual characteristics that overlap, interact and reinforce in a formal composition analysis. The post ers for OSESP are visual representations that refer to performances, concerts, plays, tours and institutional messages. This article will be exemplified studies of the forms through five posters of Farkas for OSESP analyzed. Key words: Graphic Design. Culture. Art.

Em sua configuração exterior, “a forma, no sentido estrito da palavra, não é nada mais que a delimitação de uma superfície por outra superfície” (KANDINSKY, 1996, p. 76), sendo 1 Universidade Estadual de Camp inas – UNICAMP.

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a forma uma manifestação exterior do conteúdo de seu interior. A configuração exterior de uma forma pode pertencer a duas classes distintas: a das formas figurativas, que representam objetos reconhecíveis de alguma maneira, seja esta bem próxima do real, idealizada ou estilizada, e a das formas abstratas, que não representam objetos reconhecíveis, como, por exemplo, as formas geométricas e as formas básicas como o ponto e a linha. As imagens figurativas são construídas com os mesmos elementos visuais das imagens abstratas, o que as diferencia é uma intenção figurativa. A imagem abstrata tem cor, textura, forma, composição, diferenças de claro e escuro, e o mesmo acontece com as figurativas; nesse sentido, são os mesmos elementos visuais. O conceito de abstração pode ser entendido, segundo DONDIS (2003), como a redução de tudo aquilo que vemos aos elementos visuais básicos e mais profundos, onde a subestrutura abstrata é a composição, o design. Para que haja compreensão, “o abstrato transmite o significado essencial ao longo de uma trajetória que vai do consciente ao inconsciente, da experiência da substância no campo sensório diretamente ao sistema nervoso, do fato à percepção” (DONDIS, 2003, p. 102). Sobre a aproximação das diferentes artes e da tendência para o abstrato, na visão de Kandinsky, é “naturalmente, que os elementos de uma arte vêem-se confrontados com os de uma arte diferente” (KANDINSKY, 1996, p. 57) e as mais ricas de ensinamentos são as aproximações das artes visuais com a música. A análise dos aspectos formais dos estudos de caso procede, em sua maior parte, do sistema de técnicas visuais proposto por DONDIS (2003), a partir das quais foi possível isolar algumas características visuais que se sobrepõem, interagem e se reforçam em uma análise da composição formal. DONDIS (2003, p. 139-160) define cada técnica e seu oposto, em termos de polaridades, antagônicas, mas que não precisam necessariamente serem excludentes, podem ser combináveis e interatuantes entre si, mas deve atentar-se para o cuidado com ambiguidades. As peças gráficas foram analisadas uma a uma, em um extenso estudo sobre o qual cabe neste breve artigo exemplificar e aprofundar através de um recorte de cinco cartazes criados por Farkas para a OSESP 2 , por apresentarem uma estrutura compositiva similar. Inicialmente foi criado uma tabela na qual os aspectos visuais que mais se enquadravam nas 2 Farkas trabalhou para a OSESP entre os anos de 2003 e 2007, período no qual criou apro ximadamente 300

cartazes. O tamanho original em que os cartazes foram imp ressos é de 0,84 x 1,26 metros. A numeração dos cartazes neste artigo foi mantida corresponde às do recorte de cinco dentre os doze cartazes analisados no total. 539 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


relações de sintaxe propostas por DONDIS (2003) foram relacionados às respectivas peças gráficas. A seguir, a relação da sintaxe gráfica é auxiliada pela observação da composição formal através de grids geométricos, baseados nos estudos de ELAM (2001). TAB ELA 1: Análise de sintaxe gráfica - DONDIS (2003) - cartazes da OS ESP – designer Kiko Farkas

Cartaz 4

Cartaz 5

Cartaz 6

Cartaz 7

Cartaz 8

equilíbrio

equilíbrio

equilíbrio

equilíbrio

equilíbrio

simetria

simetria

assimetria

simetria

simetria

irregularidade

irregularidade

regularidade

regularidade

regularidade

complexidade

complexidade

complexidade

complexidade

complexidade

frag mentação

frag mentação

frag mentação

frag mentação

frag mentação

profusão

profusão

profusão

profusão

profusão

exagero

exagero

exagero

exagero

exagero

espontaneidade

espontaneidade

espontaneidade

espontaneidade

espontaneidade

atividade

atividade

atividade

atividade

atividade

ousadia

ousadia

ousadia

ousadia

ousadia

opacidade

opacidade

opacidade

transparência

opacidade

ênfase

-

-

-

-

variação

estabilidade

estabilidade

variação

estabilidade

planura

profundidade

profundidade

profundidade

profundidade

sobreposição

sobreposição

sobreposição

sobreposição

sobreposição

sequencialidade

sequencialidade

sequencialidade

sequencialidade

sequencialidade

episodicidade

episodicidade

episodicidade

episodicidade

episodicidade

agudeza

agudeza

agudeza

agudeza

agudeza

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A análise se inicia pelos cartazes 4, 5, 7 e 8, isolados no detalhe a seguir, por apresentarem um equilíbrio simétrico com relação às formas que os estruturam, nas quais de ambos os lados da composição existe a presença de um equivalente formal 3 .

FIGURA 1: Cartazes 4, 5, 7 e 8 co m demarcação de equivalentes formais simétricos através das linhas vermelhas horizontais e verticais

Nestes exemplos, o equilíbrio simétrico nem sempre fica tão evidente, como em um caso de simetria clássica no qual geralmente a composição consiste em um conjunto de formas baseada em um eixo central, com igual equilíbrio de elementos de ambos os lados (HURLBURT, 2002). Nestes casos, o equilíbrio se apresenta de uma maneira dinâmica, expresso por variações dos elementos formais, tonais e tipográficos. É possível considerar a existência desse equivalente formal que confere a simetria, mesmo que, em alguns casos, a visualização desse elemento esteja obscurecida pela semelhança cromática da figura com o fundo, mas, verificando através de uma lógica de repetição e estruturação guiada pelas linhas vermelhas nas imagens acima, pode-se considerar que o equivalente formal está presente.

3

A fim de isolar a observação da estrutura formal e co mpositiva, as imagens dos estudos de caso foram obtidas através de impressos, escaneados, e foram convertidas para tons de cinza. Ao utilizar a v isualização das imagens sem cor, neutras, em tons de branco, preto e cinza, enfatiza-se a fo rma em detrimento da cor. 541 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


A observação fica evidente ao se traçar um grid vermelho sobre a imagem do cartaz 4, identificando e posicionando os círculos e os quadrados presentes, em dois exemplos separados. A mesma grade foi usada nestes dois exemplos, mas foi necessário um deslocamento da mesma para um dos lados e para cima ou para baixo, de uma medida equivalente a meio

FIGURA 2: Cartaz 4 co m grade estruturando os quadrados da composição.

FIGURA 3: Cartaz 4 co m grade estruturando os círculos da composição.

quadrado (estipulado na grade) em cada direção. Na sequência, foi observado que os cartazes 5 e 8 apresentam a mesma estrutura compositiva, utilizando o elemento circular, disposto em um grid de proporções idênticas ao mostrado anteriormente no cartaz 4.

FIGURA 4: Cartaz 5 co m grid estruturando a composição

FIGURA 5: Cartaz 8 co m grid estruturando a composição

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No cartaz 7, coexistem ambos os grids, que sustentam os círculos e os quadrados. Porém, nesta composição todos os quadrados

e

círculos

apresentam

alguma variação tonal, o que permite a identificação e a diferenciação de um quadrado para o outro, dos quadrados que estão deslocados e posicionados sobre os círculos, e os quadrados que aparecem exatamente abaixo de alguns círculos,

diferenciando

tonalmente

também o plano de fundo.

FIGURA 6: Cartaz 7 co m grid estruturando os círculos e quadrados na composição.

FIGURA 7: Cartaz 6 co m grid estruturando os círculos na composição.

O cartaz 6 é mostrado com o mesmo grid quadriculado sobreposto em vermelho. É possível identificar as unidades circulares, na mesma quantidade e no mesmo posicionamento dos cartazes 4, 5, 7 e 8, mas, neste caso, as formas circulares seguem outro padrão visual e estão unidas através da semelhança do preenchimento de um grupo de formas circulares e também de outras unidades existentes no fundo, posicionadas entre os círculos. Esses grupos formais não apresentam transparência e se repetem matematicamente, como um padrão, uma estampa. Uma estrutura musical é composta de elementos que, dentro de uma grade rítmica, são combinados e alterados; o cartaz na sua estrutura de grids e variações configura-se como uma metáfora da música em termos de organização. Um grid consiste num conjunto específico de relações de alinhamento que funcionam co mo guias para a distribuição dos elementos num formato. Todo grid possui as mesmas partes básicas, por mais co mplexo que seja. Cada parte desempenha uma função específica; as partes podem ser comb inadas segundo a necessidade, ou omitidas da estrutura geral a critério do designer, conforme elas atendam ou não às exigências informat ivas de conteúdo (SAMARA, 2007, p. 24).

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O grid ou diagrama que orienta estes cartazes possibilita ao designer organizar o conteúdo em relação ao espaço a ocupar, permite inúmeros leiautes com a variação dos elementos sem fugir da estrutura; o diagrama confere a possibilidade de explorar uma sequência mesmo com variações no conteúdo de cada cartaz, distinguindo o todo através da padronização (HURLBURT, 2002). Cabe dizer que o grid linear amarra a estrutura da composição como um todo, permitindo variações dos elementos gráficos sobre uma mesma base, função similar à de um metrônomo, instrumento que mede o andamento do tempo, do

FIGURA 8: Grid utilizado nos cartazes.

compasso musical, constituindo uma base, um ritmo para que as variações das notas musicais aconteçam. Nós estamos familiarizados com o rit mo graças ao mundo do som. Em música, a base rítmica muda no tempo. Camadas de repetição ocorrem simu ltaneamente na música, sustentando-se e conferindo contraste acústico. Na mixagem sonora, os sons são amplificados ou diminuídos para criar u m rit mo que varia e evolui no decorrer de u ma obra. Designers gráficos empregam, visualmente, estruturas similares. A repetição dos elementos, tais como círculos, linhas e grids, cria rit mo , enquanto a variação de seu tamanho ou intensidade gera surpresa (KLEE, 2001, p. 45).

Relacionando

composições

formais

às

musicais,

KANDINSKY (1996) chama de composição 'sinfônica' uma composição complexa, onde se combinam diversas formas, enquanto que uma composição simples e clara, ele denomina como 'melódica'. Sobre o aumento quantitativo de formas repetidas, pontua, em outro estudo sobre o mesmo tema, que “a multiplicação é um fator poderoso para aumentar a emoção interior e, ao mesmo tempo, cria um ritmo primitivo que é, de novo, um meio para obter uma harmonia primitiva, em qualquer arte” (KANDINSKY, 1997, p. 30). Estas técnicas de composição foram amplamente exploradas por Farkas em diversos cartazes

FIGURA 9: Cartaz 6 co m linha vermelha na vertical mostra u ma div isão do espaço em u m eixo central.

da série, inclusive nos exemplos que são mostrados neste estudo.

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Entre os exemplos mostrados, o cartaz 6 apresenta um equilíbrio assimétrico, no qual a sensação de equilíbrio é mais difícil de se atingir. Um eixo na vertical foi destacado em linha vermelha para facilitar a visualização da divisão assimétrica do espaço compositivo. “No design assimétrico as múltiplas opções e tensões provocadas pela inexistência de um centro definido requerem considerável habilidade” (HURLBURT, 2002, p. 62), porém o

FIGURA 10: Cartazes 6, 7, e 8 que apresentam regularidade formal.

resultado, quando acertado, adquire característica intrigante, tornando-se visualmente interessante. A regularidade formal dos elementos é visível nos cartazes 6, 7 e 8, nos quais a recorrência ou a continuidade da repetição formal pode ser prevista, configurando um padrão, uma textura. A técnica de profusão, que representa um enriquecimento visual através de elementos e detalhes, é muito utilizada por Farkas na grande maioria dos cartazes. Embora apareçam os exemplos de economia formal, através de quantidades reduzidas de elementos, a minimização, que poderia se mostrar pelo tamanho reduzido de tais elementos, não ocorre. Em contrapartida, seu inverso, o exagero, pode ser observado e m toda a série de cartazes analisados. A técnica de estabilidade, embasada pelos grids de repetições com uma ordenação uniforme e coerente, está presente nos cartazes, mas é perturbada pelas variações tonais recorrentes. As características previsíveis e estáveis presentes na série são diminuídas pela diversidade tonal existente, que realça as características de espontaneidade e variação. Os cartazes 4 e 7, mesmo sustentados pelo grid, apresentam a característica de variação devido a evidenciação de dois tipos de formas geométricas, os círculos e os quadrados. 545 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


A sequencialidade é sugerida nos cartazes através dos mesmos artifícios de grid e repetições formais explicados anteriormente. A técnica denominada por Dondis como atividade pode representar ou sugerir o movimento em uma composição. Farkas a utiliza em toda a série de cartazes analisados; movimento e energia estão presentes, enriquecem os leiautes e deixam de lado qualquer evocação de estase ou repouso. A presença de características como a atividade, var iação, repetição e sequencialidade pode conferir ritmo às composições visuais. O rit mo é um padrão forte, constante e repetido […] Um d iscurso, uma música, uma dança, todos empregam o rit mo para exp ressar uma forma no tempo. Designers gráficos usam o rit mo na construção de imagens estáticas, bem como em livros, rev istas e imagens animadas que possuam u ma duração e u ma sequência. Embo ra o design de padronagens empregue, habitualmente, u ma repetição contínua, a maioria das formas no design gráfico buscam rit mos que são pontuados por mudanças e variações (LUPTON; PHILLIPS, 2008, p. 29).

A composição ousada através dos arranjos formais pode conferir boa visibilidade à distância e foi utilizada nestes exemplos de cartazes. Segundo DONDIS (2003), alguns estímulos visuais podem ser conseguidos através do êxito e da audácia, aguçando a estrutura da mensagem. A técnica de neutralidade, com relação às formas, parece ter sido deixada de lado por Farkas. No cartaz 4, a composição dá ênfase a um agrupamento de elementos comuns, diferenciando-os e destacando-os, formal e tonalmente, com relação ao plano de fundo liso. O contraste pode ser expresso através das tonalidades de preenchimento, uma vez que “há dois fatores de percepção visual que intensificam a efetividade do contraste: a ilusão de que um objeto escuro nos parece mais próximo do que um objeto claro; e o modo pelo qual um objeto escuro parece ainda mais escuro numa superfície clara, e um objeto

claro

ainda

mais claro

numa superfície escura”

(HURLBURT, 2002, p. 64-65). Em outros exemplos, observam-se alguns detalhes que induzem à percepção da transparência das formas, como no cartaz 7, com a transparência das formas quadradas e circulares modificando a tonalidade de preenchimento de cada parte sobreposta, criando desníveis, camadas de formas umas sobre as

FIGURA 11: Cartaz 7, detalhe.

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outras. Quando um círculo é transparente, ou é cortado por outra forma como os quadrados também transparentes, deixando aparente a imagem de outros círculos e/ ou quadrados ao fundo,

revela camadas sobrepostas de elementos

formais, o

que pode remeter

metaforicamente aos múltiplos sons emitidos pelos instrumentos musicais, pois em alguns tipos de composições musicais quase sempre tem-se um instrumento de fundo, um outro fazendo solo por exemplo. Poderiam ser então interpretados como uma analogia formal da sobreposição de diversos sons que ocorrem ao mesmo tempo, cada qual em sua escala e força vibracionais. Os demais cartazes apresentam a característica de opacidade, que resulta no ocultamento de partes dos elementos que são sobrepostos por outros também opacos. A dimensão, sugerida pelos elementos sobrepostos uns aos outros, confere características visuais de profundidade às composições. Farkas comenta sobre seu modo de atuação na criação dos cartazes musicais e tra z um exemplo interessante de estrutura musical relacionado ao jazz que cabe citar: No jazz, por exemp lo, você tem os standards, que são músicas que todo mundo conhece, populares. Você apresenta essas músicas e depois destrói aquilo que elas têm. Mantém os elementos básicos e, a partir daí, você começa a propor novidades, imp rovisa, muda andamento, faz novas orquestrações, uma série de coisas. Depois você volta, e isso faz co m que a percepção do ouvinte se amplie, porque ele pensa que está ouvindo o conhecido e, na verdade, já está ouvindo um pouco do conhecido e do desconhecido. Você usa aquilo que você tem de memória e fica o tempo todo comparando, às vezes conscientemente, às vezes não, com aquilo que você não conhece. Esse é o campo no qual eu procuro at uar. Eu não sou um cara de ro mper, de quebrar, de chutar, de ficar introduzindo coisas novas. Mas se fizer isso consistentemente, a gente eleva um pouco o padrão, altera a percepção (MALERONKA; COHN. Entrevista, 2010).

Estes exemplos dos cartazes de Farkas compreendem mensagens visuais abstratas no uso de formas geométricas básicas, não relacionadas a uma representação direta de algo. O designer padroniza os elementos obrigatórios em todos os cartazes, como os logos da OSESP, de patrocinadores, apoiadores, da Sala São Paulo e da Fundação OSESP, deixando o máximo de área livre para compor. Busca o ritmo através da construção abstrata, utilizando-se de grids geométricos e repetições formais. As características em comum entre os cartazes deste recorte são o que confere visibilidade e unidade, o que os caracteriza como uma série e não como cartazes soltos no tempo e no espaço, estes possuem uma ligação fortemente estabelecida através das técnicas visuais. Utiliza os recursos disponíveis ao design para atingir uma gama 547 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


diversificada de composições visuais norteadas por um elemento comum, um fio condutor da mensagem imagética, que se transforma de um cartaz para o outro. Contudo, os cartazes criados por Farkas fazem referência à orquestra. Muito indiretamente eles parecem a OSESP e, de uma maneira abstrata, eles parecem-se mais com a música propriamente, devido às qualidades e associações exploradas. A organização da estrutura visual lembra algum tipo de organização musical.

Referências Bibliográfica DONDIS, Donis A. Sintaxe da linguagem visual. São Paulo : Mart ins Fontes, 2003. ELAM, Kimberly. Geometry of design: studies in proportion and composition. New Yo rk: Princeton Architectural Press, 2001. HURLBURT, Allen. Layout: o design da página impressa. São Paulo: Nobel, 2002. KANDINSKY, Wassily. Curso da B auhaus. Tradução Eduardo Brandão. São Pau lo: Martins Fontes, 1996. _____. Ponto e linha sobre o plano. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo : Mart ins Fontes, 1997.

KLEE, Paul. Sobre a arte moderna e outros ensaios. Tradução: Pedro Sutssekind. Rio de Janiero: Zahar, 2001 LUPTON, Ellen; PHILLIPS, Jennifer Co le. Novos fundamentos do design. Tradução Cristian Borges. São Paulo: Cosac Naify, 2008. MALERONKA, Fab io; COHN, Sergio. Entrevista: Kiko Farkas, Designer Gráfico. Taddei, Roberto; Milani, Aloisio, coordenação. Produção Cultural no Brasil, vol. 3. São Paulo, 14 de junho de 2010. Disponível em: <http://www.producaocultural.org.br/wp-content/uploads/livroremix/ kikofarkas.pdf>. Acesso em 31, mar. 2012. SAMARA, Timothy. Gri d: construção e desconstrução. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

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SUJEITO HÍBRIDO: Corpo Comum e Corpo Artístico na Prática da Performance Art Pedro Canola1 aGNuS VaLeNTe2 Resumo: Este artigo apresenta uma reflexão sobre a Performance Art Contemporânea tendo como pressuposto a sua origem como uma Linguagem que se inst aura a partir de um movimento de troca e mistura de informações e outras linguagens, cuja permeabilidade entre diferentes sistemas imersos no cotidiano constitui um fator fundamental para pensá -la como uma ação híbrida e investigar como o Corpo é abordado nesse complexo de linguagens, focando a reflexão no conceito de Corpomídia (Katz & Greiner). Mais objetivamente, busca -se, através da pesquisa e leitura crítica de experiências e propostas de artistas ligados a esse segmento das artes desde a modernidade até a contemporaneidade (neste artigo representados por Joseph Beuys, Yoko Ono e Rodrigo Braga), bem como de registros de performances, memoriais descritivos de trabalhos e até mesmo ações Performáticas, compreender as relações entre o que este performer-pesquisador considera, em sua pesquisa teórica e artística, como Corpo Artístico e Corpo Comum, compreendendo ‘corpo artístico’ como aquele que nos é apresentado nas obras e ‘corpo comum’ entendido como corpo cotidiano. Quais as proximidades e distanciamento s entre eles? Quais as possibilidades de expressão e sentido do Corpo Comum no processo artístico? Como que a ação cotidiana do corpo no mundo pode ser traduzida em matriz criativa para o fazer artístico? E, ainda, numa ampliação dessa questão do âmbito da estética para o da política, seria possível reiterar um processo de democratização da arte (tema recorrente nos dias de hoje) através destas práticas: expor o Corpo Comum para constituir discursos artísticos? Diante de tais questionamentos, esta pesquisa busca compreender melhor alguns aspectos fecundos para a criatividade e para a criação inscrita nessa linguagem contemporânea, discutindo -a enquanto aproximação possível entre público/artista e, sobretudo pelo viés do corpo, produzir conhecimento e arte. Palavras-Chave: Arte Contemporânea. Corpomídia. Hibridismo. Instalação Multimídia. Performance Art. Abstract: This article focuses on Contemporary Performance Art fro m the assumption its origins as a language that is established from a mixture of trade a nd movement of information and other languages, whose permeability between different systems immersed in daily is a key factor think of it as a hybrid action and investigate how the body is covered in complex languages, focusing on the concept of reflection Corpomídia (Katz & Greiner). More objectively, looking up through research and critical reading experiences and proposals from artists connected to this segment of the arts from modernity through the contemporary (this article represented by Joseph Beuys, Yoko Ono and Rodrigo Braga) and as records of performances, memorials descriptive work and even Performing actions, understand the relationship between this performer-researcher believes in his theoretical and artistic, as Joint Body Art and Body, compri sing 'body art' as that is presented in the works and 'common body' understood as body everyday. What are the near and distance between them? What are the possibilities and meaning of the Common Body in the artistic 1

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Artista-pesquisador, mestrando em Artes no Instituto de Artes/UNESP, co m orientação do Prof. Dr. Agnus Valente. Part icipa do Grupo de Pesquisa Poéticas Hibridas, coordenado pelos Pro f. Dr. Wagner Cintra e Prof. Dr. Agnus Valente - IA/UNESP. Contato: jp.canola@yahoo.com.br Artista híbrido, Doutor e Mestre em Artes -ECA/USP. Professor Assistente Doutor em Artes Visuais e líder do Grupo de Pesquisa Poéticas Híbridas em pareceria co m o Prof. Dr. Wagner Cintra -IA/UNESP; e pesquisador no Grupo Arte-Mídia e Videoclip e Grupo cAt, IA/UNESP; e do Grupo Poéticas Digitais, ECA/USP. Contato: agnusvalente@uol.com.br 549 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


process? As the daily action of the body in the world can be translated into creative matrix for the artistic? And yet, a broadening of the scope of this issue for the aesthetics of politics, it would be possible to repeat a process of democratization of art (recurring theme these days) through these practices: exposing the Common Body to constitute artistic discourses? Faced with these questions, this research seeks to better understand some aspects fruitful for creativity and for creating entered this contemporary language, while discussing the possible approach between public / artist and especially from the perspective of the body, produce knowledge and art. Key-Words: Contemporary Art. Corpomídia. Hybridity. Multimedia Installation. Performance Art

Introdução Este artigo investirá numa vertente teórico-crítica através de leituras de obras de artistas que tratam da Performance utilizando-se de uma espécie de cotidianidade como matriz criativa de seus trabalhos, configurando um campo de estudo a partir de teóricos como RoseLee Goldber, Helena Katz e Christine Greiner, Eleonora Fabião, Renato Cohen e artistas como Joseph Beuys, Yoko Ono, Rodrigo Braga dentre outros. Se considerarmos, de um lado, que a Performance como Linguagem esteja, há muito tempo, estabelecida, por outro lado podemos observar que sua produção, debate, crítica e fomento ainda caminham a passos miúdos, se a compararmos com as demais linguagens. Assim sendo, com esta pesquisa, intencionamos explicitar alguns laços e afinidades entre a produção atual da linguagem da Performance Art com o contexto da pesquisa artístico-científica e, sobretudo, enfatizar sua dissociação em relação à imagem histórica do artista – aquele perfil de artista que, no Modernismo, se configurou como um criador afastado do contexto da realidade e da vida e que, por desejo e, à época, por necessidade, se colocava no papel de Avant Garde, como anunciador de paradigmas e criador de novos procedimentos. Como bem explicita Edmond Couchot ao tratar do papel do artista contemporâneo (no âmbito da tecnologia), não acreditamos mais na imagem romântica da arte e do artista como “um relógio que adianta” (COUCHOT in DOMINGUES, 1997, p.135-143) e que enxergaria a realidade à frente de seu tempo. Nesse sentido, acreditamos que optar pelo corpo comum como objeto fecundo de pesquisas sobre arte e performance pode, até certo ponto, demonstrar esse novo posicionamento do artista. Trata-se de um colocar-se no mundo de maneira urgente. Não de maneira prenunciativa, anunciativa, mas um colocar-se como um sujeito comum. Não aquela figura 550 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


mística ou mediúnica provida de habilidades que não se sabe de onde surgiram, mas alguém que assumiu o seu ser comum e o seu estar no mundo e, percebendo sua realidade, decidiu comentá- la artisticamente com outras pessoas. A fundamentação teórica do projeto envolve, basicamente, uma compreensão de corpo com o qual o performer e artista-propositor Pedro Canola formou-se e com o qual identificou-se – confirmando sua autenticidade na necessidade desta pesquisa. Se pensarmos a Performance como um dos territórios de possibilidades do corpo no habitat das artes e entendermos esse corpo como Mídia

(GREINER e KATZ, 2008), onde as

informações o atravessam numa constante ressignificação, do corpo e do meio, admitiremos que as ações hiper-cotidianas do corpo carregam informações caras a tal linguagem. Buscaremos então organizar as experimentações artísticas deste performer-pesquisador tendo como impulso criativo a utilização do comum e cotidiano de seu corpo e do corpo daqueles com quem se comunica, partindo do trivial, valendo-se de processos e procedimentos já existentes, para assim propor novas compreensões para essa linguagem e corpo. Assim, se observado que tal Programa 3 constitutivo de linguagem se mostre potente, criativo e, acima de tudo, comunicativo, identificar possibilidades de democratização do fazer artístico e se, na linguagem da Performance, um corpo qualquer, ou melhor dizendo, qualquer corpo, se dominados os pormenores da Linguagem, gramática e sintaxe, seria apto a exercer o ofício.

O Cotidiano Como Questão e Leitura de Obras Visando a constituir um referencial atual da prática da performance, estudo de casos se fazem necessários. A observação de artistas que lidam com corpo e, consequentemente, com a performance, será de grande valia não apenas para a tradução imagética dos conceitos tratados, mas também para um mapeamento da produção em Performance Art hoje em dia.

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Eleonora Fabião, em Performance e Teatro: poéticas e políticas da cena contemp orânea, contextualiza a utilização da palavra/conceito „Programa‟ na Teoria da Performance.

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A performance surge nesse efervescer do contemporâneo de maneira a sustentá- lo junto a outras linguagens e essa contribuição é essencial para responder a pergunta que esse projeto se faz, já que no contemporâneo não há mais o distanciamento temporal fictício que coloca os artistas no direcionamento e anunciação. Com isso, é de primeira necessidade questionar o modo de estar no mundo desses corpos aos quais concentramos nosso olhar neste projeto. Questionar onde estão tais corpos é consequentemente questioná- los e saber que tudo isso é constituinte do processo artístico e nos provê de instrumentos para um aprofundamento crítico. Por fim, seria leviano supor, depois de tais considerações, que não se faz necessário discutir esses critérios e conceitos no corpo. Para uma pesquisa sobre a produção contemporânea da performance que pretende concordar que “Não há nenhum conhecimento formulado na linguagem que não tenha estado pelo corpo” (Greiner, Katz, 2004), é questão de suma importância para o performer-propositor uma elaboração e materialização de obras de sua autoria nas quais o corpo articule e discuta tais conceitos.

Corpomídia Este tópico foi apresentado à #11.ART em artigo sobre a relação do corpo na performance. Entendendo a Performance como uma das alternativas encontradas por artistas no período que atualmente entendemos como a virada do moderno para o contemporâneo e percebermos que essa alternativa surgiu justamente no caráter indisciplinar, será então necessário recorrermos a entendimentos do conceito de corpo contemporâneo, que nos ajudariam a problematizar a produção artística atual. Cristine Greiner, em seu livro O Corpo: Pistas para assuntos indisciplinares, mapeia e contextualiza as teorias sobre o corpo. Ela recorre à história, filosofia, ciências cognitivas, psicologia e teorias evolucionistas para tentar identificar como os discursos sobre o corpo foram se moldando no contemporâneo. Trata da mudança, a partir de Nietzsche e Artaud, do conceito do corpo cartesiano e dualista (no qual a alma, o espirito tem um poder e um domínio sobre a carne) para um pensamento monista, para o qual se admite que não há um agente ao corpo. Nessa passagem, o conceito de Corpo como uma coisa que se tem 552 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


transforma-se para aquilo que se é. Tal mudança implica em encontrar uma nova forma de se contextualizar o corpo. Assim, Helena Katz em conjunto a Christine Greiner desenvolve o que vem chamar de teoria Corpomidia. Aqui o corpo se constitui em relação ao ambiente em que está imerso, com o qual se comunica. O corpo não é um receptáculo, previamente determinado no qual as informações são depositadas. O corpo não é u m meio por onde a informação simp lesmente passa, pois toda informação que chega entra em negociação com as que já estão. O corpo é o resultado desses cruzamentos, e não um lugar onde as informações são apenas abrigadas. É com esta noção de mídia de si mesmo que o corpomídia lida, e não com a ideia de míd ia pensada como veículo de transmissão. A míd ia à qual o corpomíd ia se refere diz respeito ao processo evolutivo de selecionar informações que vão constituindo o corpo. A informação se transfere em processo de contaminação. (KATZ e GREINER, 2008: p. 136).

Assim chegamos a uma compreensão que se forma a partir da relação, do processo. Diferentemente da modernidade, na qual os conceitos de obra acabada e de Vanguarda eram valorizados; na contemporaneidade, o processo e os meios utilizados para se chegar a um resultado muitas vezes parcial e inacabado são os fatores que comensuram a dimensão dos trabalhos. E, assim como nas artes, o corpo no contemporâneo se faz no entre corpos e na relação desse corpo com o ambiente.

Algumas práticas significativas de Performance Art A grande contribuição da performance nas artes, a nosso ver, foi justamente assumir a importância que o corpo tem em todos os processos de conhecimento e que tais criações diminuem incalculavelmente a distância que separava o artista do espectador – uma distância que impedia um diálogo mais profundo sobre as visões de mundo que são, ou deveriam ser, compartilhadas numa obra artística. Tal proximidade do artista e do espectador se deu não só na possibilidade de diálogo e protagonismo de ambos, mas numa aproximação corpórea entre eles. O artista que anteriormente era responsável por retratar o belo e, em seguida, questionar os conceitos de

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beleza, agora traz à tona aquilo que se partilha entre as pessoas. Questionamentos, maneiras de estar no mundo, posicionamentos – tudo passou a ser da ordem artística. A Performance Art tem um modus operandi que é difícil de se territorializar. Sua característica hibrida e indisciplinar impede que tracemos linhas- guia que contemplem toda a sua produção. É possível dizer que cada artista e cada obra constituem em si uma maneira de se fazer presente no mundo, e esse processo e procedimento na constituição do trabalho é que vai criar caminhos de significação. O critério das leituras de obras a seguir funda-se justamente na proximidade (conceitual e/ou física) do corpo do artista com o corpo comum, de maneira mais óbvia e objetiva ou de maneira mais metafórica. Nosso esforço não visa a unificá- los como proposta inerente da linguagem, mas mostrar que essa possibilidade de aproximação tem na contemporaneidade uma potência de discurso.

Yoko Ono No ano de 1965, Yoko Ono apresenta a Performance Cut Piece em Nova Iorque. Nessa performance, Ono esta solitária no palco do Carnegie Hall ao lado de uma teso ura. As pessoas que chegam são instruídas para que subam no palco e “cortem pedaços” de suas vestes até que a artista fique nua. Em Yoko temos o exemplo claro e objetivo do que discorremos anteriormente. O corpo do artista está não somente no mesmo ambiente do espectador, dividindo o mesmo palco, mas está chamando-o para interferir diretamente no trabalho. Olhando mais atentamente percebemos que o trabalho passa a existir somente da relação desses corpos. Não há trabalho sem haver relação. Numa segunda camada, a proximidade dos corpos é colocada em jogo quando percebemos que o objeto que está sendo utilizado para a ação é capaz de ferir não somente a roupa e toda uma questão cultural do vestir-se e mostrar-se nu: o potencial cortante do objeto poderia também ser empregado para “transformar” o corpo que veste a roupa. Esse limiar que coloca em risco o corpo do artista pode ser interpretado pelo corpo do espectador e traduzido em agonia, apreensão e sadismo, citando apenas o trivial.

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O cotidiano entra aqui de maneira decisiva nessa tradução do trabalho. Cada um a sua maneira já passou por alguma experiência com objetos cortantes sobre o corpo. Essa informação que atinge a cada espectador de maneira diferente recorre à experiência de cotidiano das pessoas para se fazer potente. O corpo do artista está em representação de situações já vividas pelo espectador. Isso os aproxima. O corpo do artista compartilha a experiência de se cortar.

Rodrigo Braga Já no trabalho Sal e Prata, de Rodrigo Braga, o fator principal que aproxima o artista do ambiente em que vive e das pessoas com que têm contato com sua obra é a ação exercida: Cavar. Durante 15 dias ele dedica seu tempo e esforço numa mesma ação. Ação essa que lhe foi sugerida por um sonho registrado em manuscrito que acompanha o vídeo. Aqui não há o rebuscamento técnico, nem a espetacularização da persona. Há simplesmente um homem “agindo”. Essa ação provoca reverberações e camadas de significação, mas se observado pelo prisma que nos guia neste texto, o artista é aquele que, simplesmente “cava com uma colher de prata achada na gaveta de sua mãe”. Informação essa que nos é dada no manuscrito junto a uma questão: “Aquela colher, já secular, passara pelas mãos e panelas de muitas mulheres... Teria eu o direito de interromper tal fadado destino de gerações? Poderia contar outra história?” (BRAGA, 2009) A aproximação relevante aqui gira sobre a técnica. O artista deixou de ser aquele ser com habilidades especiais e especificas. É agora um agente no mundo. A sua contribuição nas artes e no cotidiano geral das pessoas é fazer das suas ações metáforas artísticas. Seria justo mencionar, a essa altura, que é justamente nesse aspecto da técnica que surgem algumas das dificuldades que tais trabalhos e linguagem têm em se comunicar com o público. Mais adiante entraremos com mais profundidade neste tema, mas desde já fica exposto que por vezes a disponibilidade da aproximação se dá por parte dos artistas, contudo o público ainda demanda aquele artista de outrora, técnico, especifico e com habilidades extraordinárias.

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Joseph Beuys Voltando a ação,

Action era justamente a palavra que Joseph Beuys gostava de

empregar para designar seus trabalhos em Performance. Este artista alemão, indispensável de citar quando o assunto é performance, já que o artista foi grande divulgador dessa prática. Suas performances, além de conterem esse caráter ativo e acionário, eram permeados por sua história pessoal. A presença de materiais específicos em grande parte de seu trabalho, como o feltro e a gordura, são carregadas de significação de sua história. Conta-se que, durante a segunda grande guerra, o avião em que estava foi alvejado e caiu no deserto russo. Nômades Tártaros o encontraram ferido depois de dias e o trataram com ervas, gordura animal, mel e usaram feltro para mantê- lo aquecido. De volta à Alemanha, Beuys se matricula na escola de arte de Düsseldorf e passa a década de 1950 se dedicando à pintura e escultura. Na década seguinte descobre o Happening e o grupo Fluxus, idealizado por Maciunas e, em 1963, promove a exposição do grupo na escola onde anteriormente havia estudado e na qual era professor. A partir do novo procedimento descoberto junto aos artistas do Fluxus, Beuys resgata todos os materiais que estavam presentes em seu incidente. Toda a sua obra então passa a utilizar desses elementos como metáfora da vida cotidiana. Nunca se soube, ao certo, se houve realmente o acidente com o avião do artista. O que de maneira alguma altera a singularidade e representatividade de sua obra que, a partir desse momento, passa a se confundir com sua própria história. Não bastasse a indivisibilidade entre sua obra e sua história, seu trabalho ainda investe na desmistificação do artista que se tinha à época. Seja por dedicar seu tempo no vernissage de sua exposição para explicar suas obras a uma lebre morta, seja por dividir o jornal, a comida e o espaço da galeria de um país estrangeiro com um coiote selvagem. Tudo isso feito às caras com o público. Artista e Público sem intermediários. Ambos presentes na “ação obra de arte”.

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Pedro Canola, por ele mesmo Uma mesma ação, diferentes lugares, diferentes personas. Relação entre Registro e Performance. O trabalho Lenhador trata das ações cotidianas. Tenta, através da repetição, do refazer e do reagir, criar argumentos. Tal como quando, e sem saber direito o porquê, uma ação comum e cotidiana torna-se estranha! Ou quando, antagonicamente, uma relação estranha e incomum passa a normalidade com o tempo e as repetições! Lenhador trata do “RE”, daquilo que, sem saber, sem querer ou sem imaginar, se multiplica no tempo em ações! Para tanto, o artista se propõe a executar uma ação repetidas vezes, em lugares, e com personalidades diferentes (FIG 1. a 3.) criando, assim, camadas de interpretação.

FIGURA 1: Lenhador - Ação #1, 2011 Fonte: ACERVO – Canola, 2011.

A Performance, como linguagem artística, me encanta pela sutileza e pela simplicidade que desloca o fazer artístico para próximo do corpo. Esse corpo que é sensível ao mundo, atravessado por experiências numa constante ressignificação, tanto do corpo como do ambiente em que ele está imerso. E mais do que isso, a performance traz, para a construção do conhecimento, o cotidiano, o comum, o ordinário, aquilo com que costumeiramente convivemos, mesmo que pela negação. Ou seja, “Esta é a potência da performance: deshabituar, des- mecanizar, escovar à contra-pêlo.”(FABIAO, 2008: p. 239).

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FIGURA 1: Lenhador - Ação #3, 2011 Fonte: ACERVO – Canola, 2011.

A obra em progresso Lenhador busca relacionar o corpo artístico e o corpo cotidiano. Proximidades e distanciamentos de um mesmo corpo, que é tão comum quanto artístico. Para tanto, o trabalho se vale de estéticas e mecanismos que constituem a genealogia da performance: O vídeo: constante no processo de aprisionamento dessa arte efêmera no papel de registro e, por vezes, mídia constituidora de sentido para muitos artistas. Neste caso, o vídeo atua de ambas as formas, sendo pensado como registro das ações que se sucedem num tempo mais alargado, e como processo artístico e estético, trazendo uma elaboração mais refinada do que o simples registro. Live-art. - Predominante no processo da Performance, (...) é a arte ao vivo e também a arte viva (COHEN, 2007: p. 38) que, nesta performance, comparecerá como encerramento do processo de aproximação dos corpos comum e artístico.

FIGURA 1: Lenhador - Ação #2, 2011 Fonte: ACERVO – Canola, 2011. 558 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Sendo assim, podemos dizer da obra: A Performance acontece no salão da galeria, durante o Vernissage. O Performer adentra o espaço trazendo primeiramente um cubo branco maltrapilho, em seguida entra com um aparelho televisor no qual começa a exibir um vídeo desse mesmo performer executando, em diferentes ocasiões, com paramentos diferentes, a ação típica de um lenhador cortando lenha. Observa-se que o mesmo cubo branco maltrapilho em exposição ficou nessa condição por conta das ações mostradas no vídeo. Por fim, o performer entra mais uma vez no espaço expositivo e realiza pela última vez aquela ação que perseguiu durante a realização de toda a obra: Lenhar – porém, desta vez a lenha, o combustível, é a própria televisão. Com a leitura dessas performances, percebemos que, como dito anteriormente, na Performance Art e na arte contemporânea em geral, é impossível estabelecer fronteiras sólidas e imóveis. O dinamismo e a necessidade de se mover caminham junto com o indeterminismo do cotidiano. Cotidiano não como rotina. Esta pode estar presente no cotidiano, sem configurá- lo como tal. Percebemos também que as fábulas de vida que cada vez mais artistas buscam colocar no mundo dependem da aproximação e, consequentemente, fricção dos corpos. E esse calor gerado é que constitui a energia da obra contemporânea. Obra que vive enquanto houver atrito. Que consegue atribuir significações enquanto compartilham experiências de corpo. Que só se faz potente tendo outro corpo para significar.

Considerações Finais: Do Ininteligivel ao Corpo Vale ressaltar aqui a dificuldade de se organizar em palavras essa linguagem artística tão recente e escorregadia. A leitura das obras foi realizada através do calor que delas emanou em contato com o corpo deste artista-pesquisador. Essa energia única vivenciada é que partilhamos aqui, e não os trabalhos em si. O que foi descrito não encerra as discussões acerca da linguagem da Performance, nem a obra de cada artista retratado. Mas acreditamos que é dessas relações, reverberações e tangências promovidas pelo corpo e sua imagem no contemporâneo que se potencializa a Performance. Durante o percurso deste texto, apontamos brevemente q ue trataríamos da dificuldade crônica que as obras contemporâneas têm de se fazerem presentes na vida das pessoas. Apesar de 559 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


muito valorizada, a arte sempre teve um contato especifico com a sociedade em geral, o que de certa maneira contribuiu para o surgimento da modernidade artística e suas características. A arte de então, diferentemente de agora, era o lugar da Avant Garde, da anunciação: esperava que o espectador buscasse na arte aquilo que faria parte de sua vida. Era uma busca. Como vimos anteriormente, nas leituras de obras, na contemporaneidade não há mais espaço para esse lugar adiante, no qual o artista moderno se colocava. As obras de relevância artística buscam justamente criticar e olhar atentamente o agora e necessitam primordialmente da postura do espectador. Sua maneira de existir enquanto arte encontra-se no aspecto relacional obra/público. Essa nova formação da arte modificou todas as suas esferas de estruturação, difusão e mercado, como muito bem aponta Anne Cauquelin ao investir numa introdução à Arte Contemporânea. Cauquelin sugere também a dificuldade de comunicação entre a obra e um público mais amplo, exemplificando que, de uma maneira geral, ainda identificamos os novos trabalhos artísticos como Modernos: Sem duvida, é essa arte moderna que nos impede de ver a arte contemporânea tal como é. Pró xima demais, ela desempenha o papel do “novo”, e nós temos a propensão de querer nela incluir à fo rça as man ifestações atuais. (CA UQUELIN, 2005: p. 19)

A performance como linguagem artística predominantemente contemporânea tem o agravante de não ter a possibilidade de ser considerada como moderna, portanto paradoxalmente passa também a não existir como arte. Esse contrassenso de precisar do público como constituinte do trabalho e, ao mesmo tempo, sentir uma dificuldade de aproximação deste, faz com que a questão do corpo aqui abordada ganhe potencialidades além da obra. A inintegibilidade da obra artística na qual há a aproximação do corpo do artista com o corpo do público fica comprometida, mesmo para aqueles que a interpretam como moderna. A relação sensorial que há nesses trabalhos mina a não interpretação da obra. Possivelmente, esse contato com a obra não passará pelos mesmos processos de interpretação corriqueiros e que vão fazer com que o público fique satisfeito com o que viu. Essa insatisfação não o impede de se relacionar efetivamente com o trabalho. Ou seja, a agonia ou sadismo que 560 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


sentimos ao ver Yoko Ono sendo possivelmente cortada, a fadiga e, quem sabe, o gosto da comida de mãe servida em colher de prata que brotam do trabalho de Rodrigo Braga, e as comoções que as histórias vividas por Joseph Beuys causam – todos esses sentimentos nos atravessam independentemente das condições de apreensão de todo um contexto da arte contemporânea. Por fim, não estamos afirmando aqui que isso basta para apreciarmos um trabalho, mas essa não hierarquização do saber que o corpo proporciona nestes casos democratiza o acesso, as interpretações e significações das obras e, principalmente, desmistifica o fazer artístico.

Referências Bibliográficas CAUQUELIN, Anne. “ Arte Contemporânea: uma i ntrodução.” 1ª ed. São Paulo : Mart ins Fontes, 2005. COHEN, Renato. “Performance Como Linguagem”. 2ª ed. São Pau lo: Perspectiva, 2007. _______. “Work in Progress na Cena Contemporânea: cri ação, encenação e recepção”. 1ª ed. São Pau lo: Perspectiva, 2008. COUCHOT, Ed mond. “ A Arte pode ainda ser um rel ógio que adi anta? O autor, a obra e o espectador na hora do tempo real” in: DOM INGUES, Diana (org). “A Arte do Sécu lo XXI: a human ização das tecnologias”. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997. FABIÃ O, Eleonora. “Performance e teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea”. In: “Sala Preta, Revista de Artes Cênicas”, nº 8, p. 235 a 246. São Paulo : Departamento de Artes Cênicas, ECA/USP, 2008. GOLDBERG, RoseLee. “A Arte da Performance : Do futurismo ao Presente”. 1ª ed. São Paulo : Mart ins Fontes, 2006. GREINER, Christine. “O corpo: pistas para estudos indisciplinares ”. 3ª ed. São Paulo : Annablume, 2008. KATZ, Helena. GREINER, Christine. “ O meio é a Mensagem: porque o corpo é objeto da comunicação” in: NORA, Singd. Hu mus 1. 1ª ed. Caxias do Sul, 2004. p. 11-19. MEDRIROS, M. BEATRIZ, M ONTEIRO, Mariana F.M. e MATSUM OTO, Roberta K.(org). “ Tempo e performance”. Brasília: Editora da Pós-graduação em Arte da Un iversidade de Brasília, 2007.

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ESTUDOS DE CASO DE PROCESSOS DE CRIAÇÃO ARTÍSTICA BASEADOS NA FABRICAÇÃO E PROTOTIPAGEM DIGITAL Juliana Harrison Henno

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Resumo: De modo a melhor compreender como os processos contemporâneos de fabricação digital têm interferido no modus operandi do artista visual, o presente artigo pretende analisar dois estudos de caso que destacam as mudanças de paradigmas causadas pela introdução dos métodos automatizados aditivo (sobreposição de camadas) e subtrativo (desbaste de material) no contexto das Artes Visuais. O primeiro caso refere-se à obra Unidades Fugidias (2003), de Laurita Salles, que utilizou o método automatizado aditivo. Já o segundo caso, a obra Windcuts (2007), de Miska Knapek, utiliza o método subtrativo como técnica de produção. Pretende -se examinar de que forma o artista se apropria desses meios de representação, explorando -os como uma nova linguagem criativa e inovadora, o que por sua vez amplia e potencializa sua forma de expressão, servindo como instrumento para o desenvolvimento e a represe ntação de novas poéticas em sua obra. A abordagem a ser utilizada identificará as etapas dos processos criativos e os métodos heurísticos adotados, considerados como trajetórias criativas para o equacionamento e a concretização das obras. Nos estudos de caso apresentados, as análises destacarão, ainda, como se desenvolve a dialética entre imaterial e material, determinantes das novas formas de criar. O fundamento teórico desta pesquisa se baseia no estudo da introdução do numérico no campo artístico, seguindo principalmente os conceitos difundidos por Couchot (2003), Moles (1990), Plaza & Tavares (1998) e Machado (2004 – 2008). Intenta-se avaliar de que maneira as técnicas de produção automatizada podem interferir nos modos de fazer do artista visual com vistas a promover novas possibilidades expressivas e, dessa forma, explorar potenciais até então pouco usuais no campo das artes. Dessa forma, parte-se da hipótese de que o artista, tendo domínio sobre as tecnologias CAD/CAM e de prototipagem rápida, possui a cesso a um ferramental que lhe permite superar restrições em suas proposições artísticas e poéticas. O estudo dessas tecnologias é pertinente para a disseminação de uma nova linguagem com potencial inovador no âmbito da criação artística. Palavras-Chave: Produção automatizada. Arte. Mídias digitais. Dialética entre imaterial e material. Métodos heurísticos. Abstract: In order to better understand how contemporary digital fabrication processes have interfered with the visual artist´s modus operandi, this a rticle aims at examining two case studies that highlight the paradigm shifts caused by the introduction of additive (overlapping layers) and subtractive (thinning of the material) automated methods of fabrication in the context of Visual Arts. The first case study refers to Laurita Salles´s artwork called Unidades Fugidias (2003), in which she used the additive automated method of fabrication. The second case study approaches the artwork Windcuts (2007), by Miska Knapek, who used the subtractive method as a production technique. We intend to examine how the artist appropriates these media of representation, and how he explores them as a new creative and innovative language, which in turn amplifies and potentiates his form of expression, and serves as a tool to develop and represent new poetics in his artwork. The approach we used is supposed to identify the steps of the creative processes and heuristic methods adopted, which were both considered creative paths to solve and implement the artworks. In the case studies presented, the analyses will also highlight how the dialectic between immaterial and material was developed, which is a determinant of the new ways of creation. The theoretical foundation of this research is based on the study of the introduction o f the numerical in the artistic field, mainly following the concepts disseminated by Couchot (2003), Moles (1990), 1

Doutoranda em Artes Visuais pelo PPG-A V da ECA-USP 562 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Plaza & Tavares (1998) and Machado (2004 - 2008). We aim at evaluating how the techniques of automated production may interfere with the ways of doing of the visual artist in order to promote new expressive possibilities, and thus explore the potential previously unusual in art. Thus, we start from the assumption that the artist, having domain over the CAD / CAM and rapid prototyping technologies, will have access to instruments that allow him to overcome restrictions in his artistic and poetic propositions. The study of these technologies is relevant to the spread of a new language with innovative potential in the context of artistic creation. Keywords: Automated production. Art. Digital media. Dialectic between material and immaterial. Heuristic methods.

1. Introdução Já faz mais de duas décadas que o numérico vem ocupando um importante espaço no campo das Artes. Conforme Couchot (2003, p.17), o automatismo aparece nas técnicas figurativas desde a fotografia, e a partir daí tende a, cada vez mais, ter seu uso difundido, ganhando forte autonomia. Esse momento delicado na arte, marcado pela introdução cada vez mais acentuada do tecnicismo, foi motivo de transtornos e de sucessivas crises na tentativa da arte de “redefinir sua própria identidade” (Couchot, p.18). “A cada avanço tecnológico, a transmissão elétrica da imagem fixa, o cinema, o rádio, o videotelevisão, mas também outras técnicas que, sem relação direta com a imagem, não deixam de ter efeitos tecnestésicos consideráveis , modificam a percepção do mundo, das coisas e da sociedade. Até o momento em que o numérico, contaminando toda a esfera das técnicas de figuração e seu modo de socialização, coloca o sujeito doravante aparelhado para esta nova máquina – o computador – intimidando-o a se redefinir u ma vez mais, e a arte, a se repensar.” (COUCHOT, 2003, p.18)

Esse sucessivo avanço das técnicas de figuração se deu paulatinamente, provocando reações por parte dos artistas. E essa movimentação ocorrida no campo artístico a partir da iminente automatização, desde a segunda metade do século XX até os dias atuais 2 , é, de acordo com Couchot (2003, p.18), “prova de que o desenvolvimento das técnicas e a complexidade crescente da automatização constituíram o mais decisivo fator na evolução da arte há um século e meio“. Essa mudança de comportamento causada pela progressiva inserção do numérico na arte foi e até hoje continua a ser responsável por mudanças de hábitos dos artistas. Com a aparição de novas técnicas, renovam-se as ferramentas, os materiais e as formas de execução de uma 2

- Ao me referir aos dias atuais arrisco supor que os constantes avanços tecnológicos até o presente, por muitos outros autores investigados, dão conta do sentido de progresso ao qual Couchot se referiu em sua publicação de 2003 na versão em portuguës.

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obra. Conforme Couchot (2003, p.19), o real cede espaço para o que não é matéria, para a simulação. A arte passa a ser, a partir de tais mudanças, um ambiente complexo em que o artista necessita dominar as especificidades desse meio digital de modo a acompanhá-la. Neste novo ambiente, nos deparamos com a imagem digital, construída a partir de uma organização numérica e que se baseia, de acordo com Plaza & Tavares (1998, p.27), em leis constitutivas dos fenômenos a serem simulados. Dessa forma, o número assume importante papel de lei estruturante na formação da imagem, afetando sua configuração e „refletindo‟ no interior de seu sistema”. “Na construção de uma imagem sintética, o número exerce várias funções: de transdução, de paramorfis mo e de otimização.” (PLAZA & TA VA RES, 1998, p.27)

Os vários papéis exercidos pelo número na construção da imagem reforçam seu caráter estruturador, reversível e normativo. A imagem, por se tratar de uma configuração inteligível do numérico, implica, ainda de acordo com Plaza & Tavares (1998, p.28), “a emergência da previsibilidade, da continuidade, da infinitude e da regularidade”. Este artigo se propõe, com base nesse cenário, a estudar a manifestação das tecnologias sob o viés da inovação na arte. Mais especificamente pretende-se, no estudo das relações entre arte e tecnologia, aprofundar o que for da ordem da “arte como tecnologia” que, conforme nos esclarece Plaza & Tavares (1998, p.29), possui “caráter qualitativo e inovador”, enfatizandose o “caráter produtor e criativo, ou seja, como modificação do aparelho produtor”. Estabelecido este recorte é possível introduzir o conceito de simulação 3 , premissa indissociável da criação de modelos digitais. Conforme Plaza & Tavares (1998, p.38), “simulação é uma técnica baseada sobre um modelo matemático que permite experimentar hipóteses representando-as em situações reais, onde a execução – em verdadeira grandeza – seria excessivamente onerosa, perigosa ou mesmo impossível”. Tal pensamento nos leva a entender o interesse dos artistas em trabalhar com códigos de representação e ferramentais cuja linguagem se baseia na matemática. Obtém-se com esta parceria a possibilidade de modelar estruturas altamente complexas cuja execução manual seria impraticável. 3

- Ao se falar de simulação, parte-se do princípio, levantado por Peirce e discutido pelos autores SANTAELLA & NÖTH (2008), de que uma simu lação é sempre representação. De acordo com os autores, a idéia que Peirce sustenta é de que “o objeto de uma representação pode ser qualquer coisa existente, perceptível, apenas imaginável ou mesmo não suscetível de ser imag inada”. 564 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Partindo dessa asserção, de que é possível simular qualquer estrutura com o auxílio do computador – seja ele um modelo sem referentes reais, seja ele uma imagem realista –, estabelecemos um recorte investigativo no que tange a forma de execução desse mesmo modelo virtual para o físico, a fabricação e a prototipagem digital. Apesar de ser uma tecnologia desenvolvida visando as áreas de engenharia mecânica e desenho industrial, cujo ferramental auxilia na produção de modelos, protótipos e peças finais, outras áreas aos poucos passaram a adotar tal processo como nova forma de linguagem. Na arquitetura, tal procedimento é ocasionalmente utilizado por escritórios e no ensino da profissão, e seu uso se deve exclusivamente à impressão de componentes em escala reduzida para representação em maquetes ou na fabricação direta de elementos construtivos. Já no campo das artes visuais, seu uso ainda é incipiente, por ser uma tecnologia bastante dispendiosa a que apenas algumas universidades e ateliês têm acesso. Quando utilizada pelo artista, este costuma explorar o processo de fabricação e prototipagem digital como formas de linguagem na representação física de modelos digitalmente simulados. Cabe aqui salientar que o uso da fabricação e prototipagem digital no Brasil ocorreu tardiamente em comparação com outras regiões do mundo 4 . De acordo com Celani & Pupo (2008, p.37), apenas no ínicio dos anos noventa é que passou a existir no departamento de Engenharia Mecânica da UFSC para a fabricação de componentes de plástico injetado. 2. Métodos de Produção Automatizada Entende-se que a produção automatizada pode se dividir em dois grupos principais: o da produção de protótipos e o da produção de produtos finais. Em ambos os casos parte-se de modelos geométricos digitais para se obter o modelo físico, tendo como base um método de produção que deixa de ser mecânico para ser controlado pelo computador. No caso da produção de protótipos, estão incluidos os “modelos de avaliação”, como sugere Celani & Pupo (2008, p.32) ao se referir à produção automatizada no âmbito da arquitetura. Seriam considerados modelos de avaliação para as áreas da arquitetura, desenho industrial e engenharia devido à fragilidade e às dimensões do modelo resultante. Pelo fato das impressoras apenas suportarem tamanhos reduzidos, esses modelos, que na realidade seriam

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- A fabricação e prototipagem digital, além de exigir u m alto investimento em equipamentos, insumos e manutenção, depende de mão-de-obra especializada.

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muito grandes, acabam sendo reduzidos em escalas menores, para assim serem avaliados antes da produção em escala industrial. Por sua vez a produção de produtos finais, referidos de acordo com Celani como “sistemas de fabricação ou de manufatura”, resultam em artefatos físicos ou “elementos construtivos para serem empregados diretamente na obra”. São produzidos com uma matéria-prima que lhes garante resistência, podendo, de acordo com o método, possuir diferentes características. No âmbito da arte, os limites entre estes grupos é sútil e às vezes não existem, eximindo a obra de classificações tão restritas e balizadoras como seria comum nas áreas de exatas. Nos métodos de produção automatizada, é possível subdividir as maneiras de produção por tipo: subtrativo, formativo e aditivo. Neste artigo nos deteremos apenas nos tipos subtrativo e aditivo. O sistema subtrativo utiliza a técnica do desbaste, que de acordo com Celani (2008, p.32), “desbasta seletivamente [um bloco de material] por fresas que se movem automaticamente em diversas direções (tipicamente em três eixos)”. Neste caso pode haver um eixo rotatório que auxilia a movimentação do bloco “[diminuindo] a necessidade de deslocamento da fresa”. Nas áreas de engenharia, esse processo aplicado à usinagem de ferramentas e peças é bastante comum, partindo-se de blocos de metal como matéria-prima. O sistema mais comum de produção de um objeto é o sistema aditivo, que permite sobrepor camadas de um material obedecendo um controle numérico formando o objeto em três dimensões. Os modelos geométricos digitais que formam a imagem original são “fatiadas [horizontalmente]” por um software e cada uma dessas lâminas, cuja quantidade varia de acordo com a resolução pré-definida do objeto, será impressa e sobreposta recriando aquele objeto virtual no plano físico. Desta forma, as lâminas geradas pelo software podem se tornar físicas por meio de material sólido, como quando “impressas”, por impressão 3D, e “solidificadas” por sinterização seletiva a laser (estereolitografia), e quando cortadas e coladas umas sobre as outras por meio de lâminas (laminated object manufacturing). Uma vez introduzidos os métodos de fabricação aditivo e subtrativo, pretende-se examinar uma obra artística referente a cada uma das técnicas, de modo a compreender como os artistas se apropriaram de tal técnica em suas proposições poéticas. 3. Estudos de Caso No intuito de melhor compreender a criação e a simulação de modelos digitais no âmbito das 566 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Artes Visuais, tomaremos como base o exame de duas obras que destacam as mudanças de paradigmas causadas pela introdução dos métodos automatizados aditivo e subtrativo no contexto das Artes Visuais. O primeiro caso refere-se à obra Unidades Fugidias (2003), de Laurita Salles, que utilizou o método automatizado aditivo, e o segundo caso, a obra Windcuts (2007), de Miska Knapek, que utilizou o método subtrativo como técnica de produção.

FIGURA 1 – Unidades Fugídias, 2003. FONTE – www.canalcontemporaneo.art.br e www.cimject.ufsc.br

Em Unidades Fugidias (FIG.1), a artista Laurita Salles utilizou o computador para gerar as esculturas, mais precisamente um software CAD (Computer Aided Design – Computador Auxiliando o Design). De acordo com Salles (2003, p.14), a artista procurou transparecer nas obras uma sensação de “vertigem das coisas dentro de si e a natureza fugidia das coisas que hoje nos rodeiam. Primeiramente por sua concepção numérica, o que lhes confere, de saída, desrealização introjetada e construída a partir de uma forma nascida de uma intelegibilidade numérica”. As obras foram produzidas segundo o método aditivo de fabricação e, a partir dessa forma, foram manualmente esculpidas até alcançarem o formato final. Nesta obra a deposição de matéria como processo formativo dos modelos físicos é marcada pela exatidão em relação ao modelo virtual original gerado pela artista. Para a autora da obra, o processo de criação não se limita apenas ao espaço virtual da peça, mas a todo o processo desde a concepção da idéia, sua modelagem em ambiente numérico, a posterior impressão utilizando o método aditivo de fabricação, e finalmente o acabamento final dedicado a cada uma das peças. “Tratam da perda da espessura da vida contemporânea, da progressiva ausência da 567 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


experiência, ou melhor, da experiência contraditória da vida vivida também co mo experiência realizada e vivida na v irtualidade. Essa perda da espessura da vida – vivida ainda, sim, e contraditoriamente – talvez seja o motivo dessas esculturas. Estas existem, têm existência real, mas buscam a matéria fina, a experiência contraditória e amb ígua e, não por acaso, são feitas de matéria que tende a se ausentar, embora p resente.” (SALLES, 2003. p. 7)

O sentido poético das peças parte da matéria-prima utilizada na produção, pois transfere à obra um sentido frágil, fino e evanescente. A artista trata da “perda de espessura da vida contemporânea”, da “progressiva ausência de experiência” pela introdução da virtualidade. Neste sentido, os “objetos complexos” gerados a partir de programas de simulação numérica trazem um “senso de realidade e desrealização intrínsecos, dado o índice de constituição virtual” que possuem e denotam no elemento físico (SALLES, 2003, p.14). Na presente obra, a artista consegue transpor o que o computador impõe, concretizando a proposta poética e vencendo os limites impostos pelo meio. No desenvolvimento da forma a artista optou por utilizar ferramentas CAD e de fabricação digital, sistemas estes possuidores de uma complexidade e ordem tecnológica que foram subvertidas de modo a se “descobrir as qualidades e as virtualidades deste instrumental” Plaza & Tavares (1998, p.98). Tais características sugerem a predominância dos “limites” como método heurístico de criação.

FIGURA 2 – Windcut, 2010. FONTE – http://knapek.org/

A obra Windcuts (FIG.2), de Miska Knapek, realizada na Finlândia em parceria com o Media Lab Helsinki, procura reproduzir dados de um sensor climático em representações físicas por meio de uma máquina CNC (Computer Numerical Control). Os dados de medição relativos ao movimento do vento, assim como a direção do vento, sua velocidade e 568 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


temperatura, ocorridos na cidade de Helsinki, foram utilizados como base para gerar formas tridimensionais, convertidos a partir de norma programada pelo autor da obra. Tais estruturas tridimensionais foram, então, desbastadas em uma placa de madeira MDF através de método subtrativo. As representações impressas representam 5 dias de monitaramento constante do vento. A direção da linha corresponde à direção do vento ; a largura, à velocidade do vento, e a altura, a sua temperatura. A simulação nesses casos em que há uma completa concordância com situações reais possui uma grande vantagem ao se associar com métodos de fabricação e prototipagem digital devido à acurácia na representação. Não somente é possível modelar elementos complexos, cuja construção manual seria impraticável, como também se torna concebível a sua exata representação física. Conforme Pupo (2009, p.5), essa complexidade alcançada pelos modelos digitais se deve aos “softwares tridimensionais baseados em Non-Uniform Rational B-Splines (NURBS), que oferecem curvas e superfícies paramétricas” necessárias no desenvolvimento de formas difíceis. Percebe-se que a situação simulada, das condições climáticas ocorridas em um devido espaço-tempo, assumem um comportamento moldado pela intenção do criador, mas que ao mesmo tempo estão ligadas à lógica programativa do computador. Este comportamento da máquina de analisar o mundo cultural extraindo “modelos analógicos” e tornando-os “operatórios” se configura como “cibernético” sendo este um método heurístico de criação que de acordo com Plaza & Tavares (1998, p.93) pauta-se na “sinergia de funções entre [homem e máquina]”. No que concerne à dialética material x imaterial, são as interfaces utilizadas pelos artistas que se estabelecem como operadoras de contato e de tradução, viabilizando as possibilidades de articulação entre os universos do analógico e do digital. Ao resultar da tradução entre códigos, o modelo físico impresso enfatiza o caráter expressivo e sinestésico embutido nas propostas dos artistas. Como se sabe, com base em Tavares (2001, p. 129-130), é a transformação entre imaterial e material, realizada entre os dispositivos transdutores, que garante que a imagem se atualize sob diferentes configurações, a partir do trânsito entre softcopy e hardcopy. No que se refere às obras Unidades Fugidias e Windcuts, o modelo final impresso resulta de um processo em que um sólido modelado virtualmente passa para o plano 569 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


físico com o auxílio de equipamentos de fabricação digital que reproduzem fielmente o digital para a matéria. Em termos de processo de fabricação, ambas as obras se diferem no método escolhido (aditivo ou subtrativo) para sua execução física, mas se assemelham na forma como foram desenvolvidos, utilizando um software CAD que permite simular um modelo em um espaço virtual. 4. Considerações Finais As formas de produção que utilizam os sistemas CAD/CAM 5 , como destaca Pupo (2009, p.3), são atualmente utilizadas em arquitetura justamente em razão de aplicações como: “visualização – capacidade de apresentar informações gráficas tridimensionais altamente realísticas, além de produzir modelos físicos que auxiliam na compreensão espacial; computação – capacidade de executar operações numéricas ou textuais em alta velocidade e com extrema precisão; manipulação geométrica – capacidade de controlar formas de grande complexidade ou relativamente simples, planejando, copiando, modificando e medindo novamente, com extrema rapidez e precisão”, entre outras. Tais aplicações são pertinentes se olhadas pelo ponto de vista das Artes Visuais, pois atendem as necessidades dos artistas que procuram novas formas de expressão com vistas ao desenvolvimento de sua poética. Dessa maneira, é possível compreender a mudança de hábitos na realização de desenhos bidimensionais para a representação tridimensional. Conforme Pupo (2009, p.1), as representações em duas dimensões “não são mais consideradas como soluções que possam garantir uma compreensão espacial, tanto na fase conceitual quanto na de representação”. Para a autora, a representação em três dimensões e o modelo físico permitem uma melhor compreensão, “estabelecendo proporcionalidades, perspectivas e funcionalidades inerentes ao projeto que talvez não pudessem ser evidenciadas em uma representação bidimensional”. Tendo o domínio de tais tecnologias, é possível para o artista executar sua obra inteiramente em uma plataforma digital. Em um primeiro momento de desenvolvimento da forma, a utilização de sólidos geométricos digitais passa a servir de instrumento ao artista, que 5

- CAD (Computer Aided Design – Co mputador au xiliando o Design). CAM (Co mputer Aided Manufacturing –

Co mputador Auxiliando a Manufatura)

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troca a solidez da matéria pelo imaterial pixel como forma de representação. Essa mudança de paradigma, usual nas mídias digitais, permite que seja oferecido ao artista um ambiente virtual em que o mesmo elemento que poderia ser moldado pelas suas mãos, como uma escultura, pode ser feito a partir de coordenadas cartesianas em um ambiente digital. Em um segundo momento, de concretização da obra, além de obter o domínio na modelagem do sólido por meio de softwares CAD, o artista pode ter acesso ao mesmo elemento virtual “impresso” em máquinas de fabricação digital, cuja linguagem compreende os inputs numéricos dados pelo artista através de seu modelo digital, transformando esses valores em um sofisticado processo de impressão, que pode ser executado em diversos materiais e de diversos modos. Tais tecnologias, ao serem introduzidas na arte, abrem espaço a possibilidades criativas. Conforme Machado (2004, p.2), “a arte sempre foi produzida com os meios de seu tempo”. Aplicando esse pensamento no âmbito da representação física de informações digitais, o artista que se aventura nos processos de fabricação e prototipagem digital e explora esse meio como potencial de linguagem acaba por reinventá- lo. A automatização proporcionada pelas máquinas de fabricação digital é ve ncida pelo artista quando este procura, de maneira inovadora, explorar maneiras de subverter o processo tradicional da impressão e alterá- lo, estudando assim seus limites em favor da concepção desses objetos complexos.

Referências Bibliográficas CELANI, Gabriela; PUPO, Regiane. Prototi pagem rápi da e fabricação digital para arquitetura e construção: Definições e estado da arte no Brasil. Cadernos de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanis mo (Mackenzie. On line), Vo l. 8, pp.1-3, São Paulo, SP, BRASIL, 2008. COUCHOT, Ed mond. A tecnol ogia na Arte: da Fotografia à Reali dade Virtual. Porto Alegre: UFRGS Ed itora, 2003. MACHADO, Arlindo. Arte e Mí dia. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed., 2008. MACHADO, Arlindo. Arte e Mí dia: Aproxi mações e Distinções . Revista Eletrônica e-co mpós, pp. 1-15, 2004. MOLES, Abraham. Arte e computador . Po rto: Afrontamento, 1990. PLAZA, Julio; TA VARES, Monica. Processos Criati vos Com os Meios Eletrônicos: Poéticas Digitais . São Paulo: Ed itora Hucitec, 1998. 571 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


PUPO, Reg iane. Inserção da Prototi pagem e Fabricação Digitais no processo de projeto: um novo desafi o para o ensino da arquitetura. Campinas: FEC - Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo, 2009. Tese (Doutorado em Engenharia Civil), FEC-UNICAMP. SALLES, Laurita. Uni dades Fugi dias. São Paulo: ECA – Escol a de Comunicações e Artes , 2003. Tese (Doutorado em A rtes Visuais), ECA-USP. SANTA ELLA, Lucia; NÖTH, Winfried. Imagem, cognição, semiótica, mí dia.São Pau lo: Ilu minuras, 2008. TAVARES, Mônica. A Recepção no Contexto das Poéticas Interativas. ECA – Escola de Comunicações e Artes, 2001. Tese (Doutorado em Artes Visuais), ECA-USP.

Outras fontes: Unidades Fugidias, Laurita Salles Disponível em: <http://www.canalcontemporaneo.art.br>. Acesso em: outubro 2011. Disponível em: <http://www.cimject.u fsc.br>. Acesso em: outubro 2011. Windcuts (2007), Miska Knapek Disponível em: <http://knapek.org/>. Acesso em: outubro 2011.

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PARÁBOLAS NONSENSES Lia Fernanda Ramos de Oliveira 1 Resumo: “P ará bolas No nse ns es” prop õ e um a articula ção e ntre a arte Lo wbr ow e min ha re c ente prod u çã o visual e m des en ho, qu estõ es dess a isotopia a sere m trab alha das qu e abor da , ao m es mo te mp o, u m uni ver so lírico nons ens e. R o m pe nd o co m os pa drõ es e valor es hu ma nos e brinc and o co m te mas co ntro v ersos essa arte pro põ e m ud an ç as na estrutura po ética das obr as, estab el ec e n do rela çõ es co m a c ontr ac ultura e a cultura p op ular , be m co m o c o m a arte figur ativa. Pro v enie nte da arte urba na e dos te mas liga dos à ilustraç ão e ao univ ers o infanto -j uv e nil m uitas v eze s bizarro e de vido à va riaç ão d e seus pe rson ag e ns a arte Lo wbr ow pr o mo v e u ma refle xã o sobr e a arte und er gro un d de cu nh o “ P op ”. A ilustra çã o, o des en ho ani mad o e o grafite p er m eia m a prod u çã o de “P ará bolas N ons ens es” - hibrid a çõ es de ling ua ge ns qu e a arte c ont e m por ân ea to m a pra si, incor por an do ta m b é m ess e uni vers o un der gro un d co m o a art e L ow bro w. Palavras-chave: artes visuais, arte underground, arte Lowbrow, hibridismo. Abstract "Para bles Nonsens es" sugg ests a mix betw een art and Lowbrow my re ce nt produ ction visual design, this isotopy issues to be worked that addresses, at the sam e tim e, a lyrical univers e nons ense. Bre aking with standar ds and hu man valu es and playing with controv ersial topics that art proposes ch ang es in the structure of the poetic works, establishing relations with the co unterc ulture and popular cul ture, as well as figurative art. Fro m the urban art and illustration and issues related to the univers e juv enile bizarre and often du e to the variation of their chara cters Lowbrow art promotes a reflection on the undergr ound art of stamp "Pop. " Suc h as illustration, cartoon and graffiti per me ate the produ ction of "Parabl es Nonse nses" - crosses languag es of conte mporar y art that tak es to itself, also inc orporating this universe under ground as the L owbro w art. Keywords: visual arts, underground art, Lowbrow art, hybridism.

Este artigo pretende elucidar a origem de um processo criativo em artes visuais, a partir de desdobramentos narrativos relacionados à hibridismos pictóricos. A palavra

parábola

tem sua origem etimológica no

grego

parabolé

(comparação), união dos radicais para (ao lado) com ballein (lançar, atirar); formando certa noção de comparação que alude a uma narrativa alegórica, envolvendo algum preceito de moral ou verdade importante, sendo utilizada largamente na contação de histórias, ou ainda, na ilustração metafórica das artes e da literatura por evocar outras realidades, tanto fantásticas, quando reais, tornando-se um campo fértil para os disparates, aparentemente sem sentido da literatura e arte Nonsense. 1

Lia Fernanda Ramos de Oliveira é art ista e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas. 573 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Segundo Elizabeth Sewell, o “nonsense é um jogo no qual as forças da ordem, na mente, disputam com as forças da desordem, de modo que elas possam ficar em suspenso”1 . Já para Susan Stewart, o nonsense é “uma língua negativa, a língua de uma experiência que não é considerada no discurso do bom senso” [...] “Ele nos passa uma rasteira. Ele confunde a direção. Desordena as coisas”2 . Desta forma a estranheza relativa ao nonsense se instaura perante a recodificação dos signos normais do cotidiano, diante da “esquizofrenia” instável, irônica e cômica que beira a ardilosidade, proposta pelo Dadaísmo em Zurique, por volta de 1915, derivado de uma postura claramente contrária à primeira guerra mundial e aos padrões artísticos da época, marcando a inserção do conceito de nonsense na arte, precursionando uma espécie de humor perturbado, irônico e ilusório que abolia de vez a lógica e a organização frente a postura racional, priorizando as características de espontaneidade. O Dadaísmo surgiu como uma manifestação anacrônica à sociedade do entre guerras, buscando questionar a podridão desta mesma sociedade, perante uma paradoxal ironia, subversiva e controversa. A utilização do ilógico e do absurdo, apesar da aparente falta de sentido, era direcionada contra a loucura da guerra que se vivia. Assim, sua principal estratégia era denunciar e escandalizar, ao passo que a vida tornava-se seu tema central, uma vida plena, não plana, cheia de contradições, absurdos, surpresas, em toda sua complexidade, potencializada em hibridismos artísticos e temáticos que voltavam-se para duas direções, o ataque violento e niilista à arte e o piadismo, a pose, a palhaçada 3 .

A a nul a çã o d as di stin çõ es tradi cio nais e ntre D ad á as art es de v e ser visto co m o u m ata qu e às co n ve n çõ es da cultur a a ntiga . Da d á n ão foi ap e nas u m m o vim e nto n a pintur a, n a p oe sia ou te atr o, foi u m a ativid a de col etiva im bui do ra d e tod os os as p e ctos de e xp ress ã o criativ a. Su a prátic a inc entiv ou a ex pr ess ã o de u ma v arie d ad e de m eios , qu alq ue r ativid ad e cri ativa n o D a d á tinh a o m es m o val or. ( Co nd e: 2 00 0, p 13 5).

Desta forma, o ideário dadaísta serviu-se como intenso referencial a outro movimento artístico de vanguarda, o Surrealismo, com forte carga de “irrealidade”, que nos trás outra lógica, uma representação guiada pelo real, mas totalmente ilusória, não real.

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Do mesmo modo que o Dadaísmo propõe uma constante quebra com os preceitos da lógica, perante uma sociedade deturpada pelo caos da guerra, o surrealismo surge em 1924, como um movimento artístico que busca a liberdade acima das criações individuais, apoiado na psicanalítica de Freud e na libertação social de Marx e propondo uma narrativa retórica de libertação espiritual e inconsciente do ser. Segundo Arnold Hauser, tanto o Dadaísmo como o surrealismo coexistem como continuação da auto ilusão, no entanto, o Surrealismo não busca um retorno ao caos representado pelo Dadaísmo, como fenômeno típico do entre guerras, mas acredita em uma nova arte que emerge do caos, do inconsciente, do irracional e dos sonhos, embasando-se para tal na filosofia e na psicologia. A narrativa surrealista discursa um humor metafórico e subversivo, de jogos e brincadeiras hibridizados em conceitos deturpados e enlouquecidos para a criação de um mundo de objetos reconhecíveis, porém sem uma justificação real, plausível ou ainda usual, que fazem do estilo algo disparatado e sem nexo, como sonhos, em um universo em constante expansão onírica e nonsense. Assim, a união de tais conceitos converge para uma narrativa fantástica, que propõe discursos retóricos e intrigantes, ao passo que hibridiza ideais clássicos e contemporâneos à singularidade cognitiva e técnica própria dos surrealistas. O Dadaísmo com sua adoção niilista a uma estética antiarte, que protestava contra a sociedade e a guerra, e o Surrealismo com seus desejos de revolucionar a consciência humana reconhecendo a realidade fundamental dos impulsos do inconsciente, chegaram a partir dos anos 50, por meio do trabalho de Jasper Johns e Robert Rauschenberg, a uma outra verte nte artís tica que se inicia va na América e na Ingla terra, a P op arte. (M CC ART HY, 2002). Conse quê ncia do pe ríodo pós guerra, e d o domínio dos me ios de com unicaçã o de massa, be m c om o do dese nvolvime nto publicitário, um vasto dese jo de cons um o e produçã o de be ns ma teriais, se aposs o u da população m ode rna a partir dos anos 50. Os sedutores anúncios public itários proporc iona ra m o aume nto significa tivo d o consum is m o popular, que mos trou-se um terre no fértil para o desenvolvime nto irônic o e retóric o da narrativa poética, a arte Pop, que propunha assim com o o Da dá e o Surrealis m o ques tões inere ntes à soc ieda de m oderna, poré m agora, relaciona dos e m uma realida de pós gue rra, ou se ja, de pros perida de ec onôm ica e política. 575 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


A arte Pop apropriou-se de praticamente tudo que se encontrava a disposição popular. A mudança do estilo e do mercado pós guerra eram cuidadosamente projetados para o povo, através da propaganda, assim a arte projetou-se para o “mercado”, onde suas relações sígnicas recorriam também aos meios de comunicação e publicidade, ficando marcado seu início com a obra “O que exatamente torna os lares de hoje tão diferentes, tão atraentes?”, de Richard Hamilton, no qual o artista utilizou-se basicamente de recortes de anúncios de revistas populares, formatando um ambiente retórico e narrativo, perante os novos ideais da sociedade que se montava principalmente nos Estados Unidos e Inglaterra. Desta forma os meios de comunicação também proporcionaram à arte Pop algo que ia além do subsídio temático e enveredava para os meios de produção artísticas, gerando obras produzidas em série, impressões rápidas como as tipografias e se utiliza va de maquinaria industrial, a fim de manter uma narrativa hibrida e retórica de equivalência mercadológica, próxima da linha de montagem, além de substanciar o kitsch, pela utilização de objetos vulgares, baratos e de “mau gosto”, que se destinavam ao consumo de massa. Através destes meios a arte Pop valorizava questões cotidianas banais, potencializadas em escalas agigantadas, ou ainda com base na repetição serial, oferecendo e disponibilizando duas décadas depois material e inspirações à Lowbrow arte. Hibridiza ndo conceitos tra balha dos no Da daís m o e no Surrealis m o, retoma dos pela arte Pop, be m com o pela pote ncia lizaçã o de idea is conte m porâ ne os a partir de uma imagé tica onírica e nonse nse, em mea dos da década de 70, nos Esta dos Unidos, mais precisa m ente entre Los Ange les e Califórnia, dá-se o surgime nto da Lowbr ow 4 arte, conc om ita nte com o Surrealis m o P op. Essa produçã o artís tica enraiza da na cultura Pop america na e no subm undo artístico, ou seja, na arte Underground, o Surrea lis m o Pop e a arte Lowbrow na sce m che ios de contra diç ões, pera nte uma socie da de conforma da e tom ada pe lo kitsch, insta ura do na Pop arte gera ndo um lé xic o cultural, com re tom adas te má ticas e desc obe rtas cognitivas de turpadas pelas hibridizaç ões narrativas das obras artís ticas m ultic oloridas de artis tas com o E d Roth, caricaturis ta do clássico Mic ke y e Mark Ryde n com suas perturba doras projeç ões do inc onscie nte c ole tivo, dia nte das “esquizofre nias” c onte m porâ neas.

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Os hibridismos empregados pela arte Lowbrow, posicionam- se nas instabilidades, nos deslizamentos e reorganizações de cenários plurais, vão desde a miscigenação de gêneros narrativos às questões de materialidade plásticas empregadas nas obras. Envolve em seu discurso narrativo as dicotomias contemporâneas entre razão e sensibilidade, arte e ciência, entre outros paradigmas que se apresentam no campo epistemológico do mundo atual numa realidade onírica que permite a expansão dos valores humanos, imbuindo-se de cognições ilógicas como no Dadaísmo e Surrealismo, pretendendo substituir o absurdo lógico dos homens de hoje pelo irracional, destituído do sentido da loucura, compactuada pela “esquizofrenia” coletiva e consumista da Pop arte.

No ca mpo da cultura e sociedade, o term o “híbrido” notabilizou -se desde que Néstor Gar cía Canclini (1989) empr egou-o par a dar título à sua obra Culturas Híbridas. Estratégias para entrar e sair da modernidad e”. De fato, não poderia haver um adjetivo mais ajustado do que “híbrido” para car acterizar as instabilidades, interstícios, deslizam entos e reorg anizaç ões constantes dos cen ários culturais, as interaçõ es e reintegr açõ es dos níveis, gêner os e formas de cultura, o cruz am ento de suas identidad es, a transna cionalizaçã o da cultura, o crescim ento aceler ado das tecnologias e das mídias comunic acionais, a exp ansão dos mer cados culturais e a em erg ência d e novos h ábitos de consum o. (SA N T AE LL A, 200 8).

Assim a arte Lowbrow resulta em retóricas ambíguas, conflitantes e fragmentadas mediante uma composição não-linear de caminhos poéticos distintos e inimagináveis. Rompendo com os padrões e valores humanos e brincando com temas controversos, essa arte propõe mudanças na estrutura poética das obras, ou seja, estabelece relações com a contracultura e a cultura popular, bem como com a arte figurativa, numa apurada linguagem técnica dos assuntos abordados. Uma estrada rumo ao infinito das possibilidades, criando e recriando a poesia dentro do universo da arte, carregando em si a magia de estar sempre em transformação, como Wonderland de Lewis Carroll. O universo nonsense e surrealista permeia boa parte de minha obra artística, sendo trabalhado a partir da nostalgia da infância vivida no interior paulista, onde um circo acampava próximo à minha casa. Havia uma magia muito grande no ar, as figuras míticas do circo se apresentavam ali, desmistificadas e abertas à apreciação, meu sonho era fazer parte de toda aquela luminosidade dourada e pouco confortável de arquibancadas rústicas e mal 577 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


montadas, que para mim se erguiam como um palacete encantado repleto de aromas e sons peculiares, desta forma e à luz deste ambiente lúdico, onde tudo é possível, comecei a transitar por diversos caminhos, que vão da ilustração ao Grafite, buscando suporte na justaposição de temas afastados por uma moralidade controversa. Joguetes infantis e fantasias que moldam minha produção artística colocam-na no âmbito Lowbrow, também chamados por alguns como Outsider Art e Urban folk. Abaixo apresento alguns desses trabalhos.

FIGURA 1: Lia Fen ix, Rabbit, 2012, técnica mista s/ lona, 40 x 40 cm.

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FIGURA 02: Lia Fenix Rabbitea, 2012, técnica mista s/lona, 40 x 40 cm.

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FIGURA 03: Lia Fenix, Ossada I, 2012, acrílica s/ madeira, 20 x 24 cm.

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FIGURA 4: Lia Fenix, A imperatriz, 2012, acrílica s/ papel, 21 x 29,7 cm.

Pode-se notar fortes influências da ilustração, do mangá e do grafite nas obras acima, que potencializa a narrativa destas obras e transita na hibridização de linguagens de artistas do Grafite contemporâneo como os Gêmeos e Nina Pandolfo, que mesclam em seus trabalhos artísticos questões isotópicas da arte Lowbrow, à luz do lirismo mambembe nordestino conflitando com a realidade urbana das grandes metrópoles, bem como a eroticidade singela de Audrey Kawasaki que caminha na tênue linha entre sensualidade e erotismo, diante da contradição inocente e libidinosa. O artista Keith Haring5 e Jean Michel Basquiat foram importantes grafiteiros do metrô nova- iorquino. Nos anos 80 levaram o Grafite, que antes era exclusivamente das ruas, becos e guetos, para o convívio de galerias, museus e bienais. 581 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Do Grafite mundial os grafiteiros brasileiros que se destacaram são: Alex Vallauri (1949-1987) nos anos 80 e Os Gêmeos (1974) atualmente. Vallauri trabalhava com máscaras vazadas e foi o principal precursor do Grafite no Brasil.

Dur ante os anos 70, utilizou o Gr afite par a faz er surgir primeir am ente u ma intrigante botinh a preta, de can o alto e salto agulha, à qual posteriorm ente foi sendo acr esc entad a um a luva pr eta, depois óculos escuros dos anos 50, na sequê ncia u m biquíni de bolinhas e, finalme nte, o ap are cim ento de um a bela mulher latina. Este grafiteiro foi de extre m a importân cia par a o G rafite brasileiro, tanto que o dia 26 de m arço tornou -se o dia na cional do Gra fite, e m ho m en age m à su a m orte, q ue oc orre u e m 1987 . (C R UZ, 200 8, p. 108).

Os Gêmeos (Otávio e Gustavo Pandolfo) apresentam um trabalho mais lúdico e lírico, na temática dos irmãos é a poética nordestina e brasileira que estabelece relações afetivas, imaginárias e estéticas com o meio, seja ele uma galeria ou nas ruas das cidades, mesclando folclore e cultura popular, ao concreto metropolitano de suas obras, bem como a obra da artista Nina Pandolfo, que também pinta com os irmãos, porém Nina apresenta nos grandes olhos de seus personagens a poesia nostálgica da infância feminina, mesclada ao amadurecer do universo lúdico da artista. Provenie nte da arte urba na e dos te mas liga dos à ilus traçã o e ao universo infa nto juve nil m uitas vezes bizarro e de vido à variação de seus pers ona ge ns a arte Lowbr ow prom ove uma refle xã o sobre a arte underground de cunho “P op”. Ela é influe ncia da por dese nhos anima dos clássic os, com o Mike y, caricatura do por Ed “ Big Daddy” Roth, em seu anti -herói Rat Flink, e, ainda, pela publicida de, animes ja poneses, circ o, grafite, arte urbana, Surrea lis m o, cultura P op, arte psic odélica, ilustraç ões “re trôs”, com o as pinups, ta tuage ns e fe tic hes adultos. Em um universo fetichista e brincando com a tênue linha entre a vulgaridade e sensualidade, hibridizando narrativas e esbanjando sensualidade indutiva e nunca vulgaridade, em sua inocência subvertida, as clássicas e nostálgicas garotas de calendário, ou seja, as famosas pin-ups, aparecem na arte Lowbrow e em meu trabalho como coeficientes retóricos de amadurecimento versus infantilidade. O termo apareceu oficialmente documentado por volta de 1941, a tradução de Pin-up quer dizer “tachinha – pendurada” devido ao ato muito comum, dos soldados no período entre guerras, de pendurar páginas ou recortes de revistas, 582 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


jornais, cartões postais, cromos- litografias e posteriormente calendários de garotas consideradas bonitas e sexys, recodificadas contemporaneamente pela isotopia Lowbrow, na sua simbologia sensual, estilizada e idealizada pela narrativa polivalente que perpassa a Pop arte. No final do século XX, até a contemporaneidade, as pin- ups, demonstram em sua essência a mais pura fantasia sexual e desejo, insinuados em um corpo idealizado e pudico, conjugado a cenas banais do cotidiano em algo sensorialmente erótico e retoricamente instigante. O incrível País das Maravilhas de Lewis Carroll também relaciona-se à arte Lowbrow. Dúbios, os personagens de Carroll discursam sobre os signos cotidianos, modificados dentro do mundo fictício de Alice, que se transformam aparentemente em anomalias pelo princípio do desvio, evidenciando as estruturas dos signos normais da semiose cotidiana (WINFRIED, 1998). Como Humpty Dumpty, um ser monstruoso, ao passo que, segundo Omar Calabrese pode-se considerar “monstro” aquilo ou aquele que não se consegue definir com precisão, que não cabe na normalidade, que se parece com várias coisas, mas não é exatamente nenhuma, que é instável, que constrói incerteza, complexidade, variabilidade de atitudes, que causa estranhamento, às vezes medo, repulsa, etc. Muitas criações artísticas de arte Lowbrow compartilham dessas ideias e provocam essas sensações no espectador/receptor dessas obras. Calabrese cita, Renato Giovannoli:

[...] a forma can ônica dos novos monstros, incluindo os dos jogos em vídeo, é elástica, gomos a e transfo rm ável. É um a espécie de figu ra- pólipo, cap az de se inflar, de se dilatar, de se restringir, de se modificar co mo quer: e de se dividir (com o aconte ce e m certos jogos em víd eo) se le vad a a situaç ões d e c rise extre ma. (C AL A BR ESE, 1 987, p. 113- 114).

Fornece ndo pistas interessa ntes para pe nsar me us desenhos, sobre essa arte da forma informe, qua ndo se refere aos monstros do cine ma Cala brese (1987) diz que ela “[...] provoca bim odalida de de com porta me ntos tam bé m na socie da de em que se insere”, observa ndo o “surgime nto de novas poéticas liga das à incerteza e à não -definição de formas e de valores [...]”.

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Essa nã o-definição de formas e valores, nos permite caminhar por trilhas a mbíguas, onde os jogos são permitidos, brinca deiras de te mas controvers os, que mescla m inge nuida de e fantas ias lúdicas a algo poetica me nte libidinos o e erótic o, que brinca m com situaç ões da exis tênc ia huma na, ora inoce nte, ora culpa do, ora vivo, ora m orto, ora adulto, ora infantil..., alguns psic ólogos, com o Donald Winnic ott e Me laine Klein, ente nde m que o process o do brincar pode ligar-se ao prazer físic o, masturbatório, pois é gera dor de praze r por relacionar-se com as questões sensoriais. E m algum as obras de arte o brincar ve m com o intuito de fazer com que o especta dor vá além de uma sim ples observaçã o, mas perce ba que ele faz parte de um jogo, de uma brinca deira, com o as propostas pela arte Lowbr ow em toda sua essência irônica perte nce nte a um univers o lúdic o e oníric o onde tudo se torna poss ível e pas sível. 1

HARK, Ina Rae. Edward Lear. Boston: Twayne Publishers, 1982, p. 52. STEWART, Susan. Nonsense. Balt imore: John Hopkins University Press, 1989, p. 05. 3 ADES, Daw. O Dada e o Surrealismo. Barcelona: Editorial Labor S.A., 1976, p. 06. 4 Contrário de highbrow, significand o chique, sofisticado, elitista, integrante de um a cultura popular apar ec e nu ma époc a em qu e m uito da arte undergrou nd surgiu co mo re aç ão à de magogia d a gu erra f ria e o movime nto de Contra cultura. 5 participou da Bienal de São Paulo, em 1983. 2

Referências Bibliográficas ADES, Daw. O Dada e o Surrealismo. Barcelona: Ed itorial Labor S.A., 1976. ANDERSON, K. ; MCCORMICK, C. ; REID, Anderson et al. Pop Surrealism: the rise of Underground Art. San Francisco: Last Gasp, 2004. BRADLEY, Fiona. Surrealismo. São Paulo: Cosac & Naify edições, 2001. CA LABRESE, Omar. A i dade neobarroca. São Paulo: Martins Fontes, 1987. HARK, Ina Rae. Edward Lear. Boston: Twayne Publishers, 1982. GA RDNER, Mart in. Alice edição comentada. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 2002. GITAHY, Celso. O que é Graffiti. 1 Ed. São Paulo: Brasiliense, 1999. McCARTHY, David. Arte Pop. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. NÖTH, Winfried. Panorama da Semiótica: de Platão a Pierce. São Pau lo: Annablu me, 1998, p 104. SANTA ELLA, Lucia. A ecologia pluralista das mí dias locati vas. Disponível http://pt.scribd.com/doc/90884458/A-ecologia-pluralista-das-mid ias-locativas. Acesso em 14/ set/2012.

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em:


SPINELLI, João J. Alex Vallauri: graffi ti: fundamentos estéticos do pi oneiro do grafite no Brasil. São Paulo: Ed itora Bei, 2011. WINNICOTT, Donald Woods. O brincar e a reali dade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

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TECNOLOGIA E EXPRESSIVIDADE: Reflexões sobre experimentações em videoarte e videoclipes na obra de Zbigniew Rybczyński Liene Nunes Saddi

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Resumo: A produção de videoclipes musicais, desde os anos 1970, vem se desenvolvendo em intenso diálogo com questões trabalhadas pelos pioneiros da videoarte, como Nam June Paik, e cineastas experimentais, como Zbigniew Rybczyński. A expansão da produção em videoarte e da computer art ocupou, desde então, espaços em universidades, galerias e exposições, o que, de certa maneira, preparou o terreno conceitual para que diretores e produtores de televisão e novas mídias pudessem utilizar, em seu desenvolvimento de linguagem, a ideia básica do tempo inscrito na imagem, a experimentação de novas relações espaço-temporais e novas maneiras de ver e sentir o mundo. Produzindo imagens para músicas, realizadores diversos desabrocharam seus mais produtivos diálogos com iconografias tecnicistas e colagens ritmadas. Assim, encontraram, no fluxo que afeta psiquicamente a vida das grandes metrópoles de hoje, subsídios para falar da fragmentação de instantes na construção de sentidos que afetam o individual e o coletivo. Entre estes diretores, o polonês e pioneiro Zbigniew Rybczyński, em diversos momentos de sua trajetória como realizador, dialoga diretamente com questões caras à produção visual contemporânea. Pesquisador e desenvolvedor de tecnologias visuais como o uso dos fundos em chroma-key, sua configuração de imagens em „camadas‟, desde a década de 1970, vem ressignificando a criação de narrativas digitais. Diretor de obras experimentais em videoarte como “Plamuz” (1973), “Tango” (1980), e “Steps” (1987), seu trânsito com os canais de comunicação ocorreu de maneira fortalecida, especialmente junto à televisão, ao dirigir videoclipes musicais dos artistas Mick Jagger, John Lennon, Yoko Ono e Lou Reed, entre outros. Ao elencar e analisar algumas de suas obras através de uma abordagem metodológica transdisciplinar entre a Arte e a Tecnologia, propõe-se a reflexão sobre possibilidades contemporâneas de expressividade e de modos de representação visual, através da reconfiguração de elementos temporais e espaciais nos produtos da cultura visual. Palavras-Chave: Vídeo-arte. Arte e Tecnologia. Videoclipe. Expressividade. Arte contemporânea.

Introdução Um garoto entra por uma janela em busca de sua bola. Pega o objeto no cenário e retorna para fora do quadro, pulando a mesma janela. Na sequência, volta a repetir este movimento de entrada e saída, identicamente, e desta maneira prossegue por mais oito minutos. Além dele, outros personagens entram em cena, observados em um plano de câmera fixa, dentro do mesmo cenário: um cômodo com um armário, uma cama, um berço, uma mesa de centro, uma janela e três portas. Por estas portas, outros trinta personagens entram e saem

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do quadro concomitantemente, realizando ações distintas, como comer ou trocar de roupa, em ciclos intermináveis. São personagens que não interagem ou realizam trocas entre si, mas sim com o cenário; tampouco poderiam estar ao mesmo tempo neste pequeno campo espacial, de maneira verossímil, realizando estas ações simultâneas. Mas se encontram dispostos nesta composição desvinculada do real graças aos recursos digitais de sobreposição em camadas de imagens, utilizados pelo idealizador e diretor, Zbigniew Rybczyński, para a confecção da obra comentada, um curta- metragem experimental intitulado “Tango” (1980). Toma-se estas camadas do vídeo citado como ponto de partida para averiguar quebras entre tempo e espaço propiciadas pelos recursos de edição e pós-produção na realização de obras artísticas que se utilizam do suporte videográfico para a construção de suas poéticas. Afinal, tendo como referência a percepção do espectador dotado de um tempo interno próprio ao entrar em contato com a obra, diferentes elementos e espectros em movimento convergem no mesmo espaço, sem índice ou relação com seus rastros, como coloca Philippe Dubois:

“... a imagem-vídeo não existe como tal, ou pelo menos não existe no espaço (sempre há um único ponto por vez), mas apenas no tempo. Esse é um dado fundamental do qual se esquece com muita frequência: a imagem de TV é exclusivamente um proble ma de tempo”. (DUBOIS, 2004, p. 103).

A trajetória de Zbigniew Rybczyński, polonês nascido em 1949, na cidade de Lodz, traz à tona questões muito próximas de discussões trazidas nas últimas décadas pelos videoartistas que ocupam o campo dos museus e galerias. Contudo, sua discussão vem acontecendo à parte deste circuito, sendo que a circulação de sua produção se insere diretamente no meio televisivo, através da direção de dezenas de videoclipes musicais nas décadas de 1970 e 1980, para artistas como John Lennon, Yoko Ono, Mick Jagger, Lou Reed, entre outros. Atuando desde então em experimentações com o meio videográfico, foi um dos pioneiros no desenvolvimento de pesquisas em animação digital, em técnicas de representação digital e a criar dispositivos virtuais de composição imagética, com resultados veiculados em larga escala, primeiramente por emissoras de televisão, e com maior abrangência nos últimos anos, após o surgimento da Internet.

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Doutoranda pelo Programa de Pós -Graduação em Artes Visuais da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp ). 587 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Para Rybczyński, utilizar o meio televisivo corporativo para veicular sua produção artística é uma das maneiras de se utilizar a arte contemporânea como dispositivo de reflexão para além do espaço da galeria. Assim como ele, videoartistas atuantes desde a década de 1980, como Paul Carrin, Bill Viola e Mary Perillo, também compartilharam a ideia de se criar experiências sensoriais em um meio, até então, basicamente constituído por informação. Ao assumirem e adentrarem o campo com propostas de desvios, trouxeram discussões e contribuições internas ao meio artístico, as quais acabaram por ser incorporadas, posteriormente, pelo canal de videoclipes musicais MTV. O posicionamento de videoartistas em intenso diálogo com o uso da tecnologia como forma de expressão artística se consolida na década de 1960, após o lançamento do primeiro gravador de videotape portátil pela empresa Sony. Com preços mais acessíveis e tamanhos com maior portabilidade, o desenvolvimento de tecnologias de gravação, edição e exibição de vídeos possibilitou que os artistas envolvidos com experimentações em poéticas tecnológicas ampliassem seu rol de intervenções. Desde então, pioneiros como Nam June Paik (19322006) e Bill Viola (1951-) começaram a utilizar a tecnologia do vídeo para discutir processos de criação, bem como extrapolar a relação original entre obra e receptor. Diante de um cenário de experimentações, não demorou para que relações entre este meio fossem estabelecidas junto à linguagem musical. E sobre esta adesão dos artistas do vídeo à produção de videoclipes musicais, Arlindo Machado (1995), inclusive, coloca que o grande evento televisivo, nos anos 1980, foi a transformação da vídeo-arte em television art. Na contramão do engessamento que vinha constituindo a produção televisiva nas últimas décadas, o videoclipe traria a quebra de narrativas e um diálogo com os intensos modos de percepção da sociedade contemporânea. Com uma sociedade submersa em uma vida líquida, a tecnologia passa a mediar a percepção e construção de conhecime nto, como coloca Marshall McLuhan: “Uma vez que todos os meios não são senão extensões de nosso corpo e de nossos sentidos, e assim co mo habitualmente traduzimos u m sentido em outro, em nossa experiência diária, não deve surpreender-nos o fato de os nossos sentidos prolongados, ou tecnologias, repetirem o processo da tradução e assimilação de uma forma por outra.” (McLUHAN, 1971, p. 137).

Diante desta contextualização perante a constituição de um campo para a circulação de videoclipes musicais, acentuadas na última década com a circulação online de produtos da 588 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Cultura Visual pela Internet, o presente artigo prevê uma breve e pontual reflexão acerca do diálogo de algumas das obras experimentais e videoclipes realizados por Rybczyński, indicando seu trabalho pioneiro em questões temporais, presentes também na produção visual contemporânea. Para isto, foram elencados os videoclipes “Diana D” (Chuck Mangione), “Imagine” (John Lennon), “Stereotomy” (The Alan Parsons Project) e “Dragnet” (Art of Noite), os quais trouxeram também, como extensão do campo videográfico, ressignificações imagéticas em relação aos artistas musicais que representam. “Diana D.” (1984) “Diana D.” é um videoclipe produzido por Rybczyński para o músico e trompetista Chuck Mangione, em 1984. Apresenta ao espectador uma atriz que, em trajes de ginástica, se exercita e ordena seis monitores de TV, de aproximadamente quinze polegadas, de diferentes maneiras durante o vídeo. Em cada monitor, é possível identificar um fragmento de Mangione, de maneira que suas ordenações geram enquadramentos e revelações diferentes do músico como um todo (FIG. 1). Em movimentos acelerados através de recursos de edição, a atriz do videoclipe empilha seguidamente as televisões, levando-as de um lado para o outro do cenário, um estúdio branco. O músico Chuck Mangione, com isso, aparece fragmentado dentro de cada monitor, os quais mediam sua relação tanto com a própria atriz - que aparece deitada ou sentada sobre os monitores - quanto com o espectador, como telas inseridas dentro da própria tela por onde se assiste o vídeo. Com caráter similar a uma performance, a atriz ajeita também os fios elétricos que ligam cada televisão, revelando o mecanismo de funcionamento por detrás dos aparelhos. Já o músico, ao aparecer deitado com monitores na horizontal ou estendido com monitores na vertical, provoca também a percepção do espectador, ao entrar e sair do quadro de maneira pouco usual.

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FIGURA 1: Frame do videoclipe “Diana D.” (1984).

Esta indicação de janelas midiáticas como recortes de enunciações aparece de maneira recorrente em outros momentos da produção do diretor, como no vídeo “Mein Fenster” (My Window), de 1979 (FIG. 2). Neste vídeo, é apresentada uma televisão com um âncora de um programa jornalístico realizando a leitura de notícias bélicas. Além da televisão, há também, presente no cenário, uma garrafa de vidro, com água, e um pássaro em uma gaiola. Ao longo do vídeo, a sensação é de que o eixo da gravidade está sendo invertido em cada elemento disposto, pois a água dentro da garrafa, o pássaro dentro da gaiola e o repórter dentro do monitor passam a girar em torno do próprio eixo, sem que os objetos fixos mudem de posição no cenário. O discurso sobre a mediação deste suporte acontece também na obra “Media” (1980), em que o personagem principal, dentro de uma sala com negativos de filmes, interage com um globo terrestre virtual, através de dois monitores de TV, sendo um a cores, e o outro preto e branco (FIG. 3). Neste movimento com o globo, não é possível identificar se o que está sendo representado pelo monitor frontal de fato está acontecendo ao personagem, uma vez que a imagem dos monitores se sobrepõe, acompanhando o movimento, e revelando pelo monitor frontal um cenário diferente do que o que o personagem se encontra.

FIGURA 2: Frame de “Mein Fenster” (1979)

FIGURA 3: Frame de “Media” (1980)

As relações estabelecidas por estes três vídeos, ao apresentarem interações entre personagens e monitores – ou entre o espectador e o recorte dos monitores – nos indica, de alguma maneira, as condições de visionamento de obras contemporâneas, que se ampliaram para além do contato com a imagem- matéria, ditado pela espacialização, ou pelo contato com

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a imagem fílmica, permeado pelo escurecimento, pela sala escura. Ao termo que Jose Luis Brea atribui à imagem eletrônica, a e-imagem, esta nova condição de visionamento indica a ubiquidade e a onipresença da imagem, presente e permeando as relações sociais de seu público (BREA, 2012). Em relação à questão temporal que permeia estas imagens, pode-se dizer que o tempo dos personagens nestes vídeos não condiz com o tempo representado em cada monitor: desta maneira, o realizador quebra a possibilidade de uma história linear, sobrepondo duas camadas de tempo em fragmentos, através de um estado de colisão. Este processo de ruptura temporal é, com frequência, encontrado na produção visual contemporânea e trabalhado pelos videoartistas nas últimas décadas, o que vem desencadeando mudanças sensoriais na percepção destas obras. Estes artistas possuem práticas, como coloca Nicolas Bourriaud (2009), de percursos entre signos já existentes, cabendo a estas figuras expressivas a invenção de itinerários culturais. O mesmo autor também indica a construção de modos de existência dentro do real a partir dos meios existentes: “En otras palabras, las obras ya no tienen como meta formar realidades imag inarias o utópicas, sino constituir modos de existencia o modelos de acción dentro de lo real ya existente, cualquiera que fuera la escala elegida por el artista. Althusser decía que siempre se toma el t ren del mundo en marcha; Deleu ze, que "el pasto crece en el med io" y no abajo o arriba. El art ista habita las circunstancias que el presente le ofrece para transformar el contexto de su vida (su relación con el mundo sensible o conceptual) en un universo duradero” (BOURRIAUD, 2008, p. 12).

“Imagine” (1986) O videoclipe de “Imagine”, produzido para o músico John Lennon, conta como recurso principal com uma espécie de movimento de travelling interminável, que se inicia em um cômodo claro com uma bicicleta infantil posicionada, e prossegue em ritmo contínuo, revelando cômodos idênticos em momentos distintos e com pessoas diferentes (FIG. 4). O que liga estes cômodos é uma porta ao lado direito do quadro, pela qual alguns dos personagens atravessam os cômodos, aparecendo do outro lado seja com roupas diferentes, seja em idades diferentes. Crianças, adultos, senhores, d iferentes elementos cenográficos, o músico John Lennon, a artista Yoko Ono, e até um cavalo branco são revelados por entre esta

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porta, até que a câmera atinge a disposição inicial do cenário, com a bicicleta infantil, e finalmente para o movimento, encerrando o clipe.

FIGURA 4: Frame do videoclipe “Imag ine” (1986).

A proposta de se abordar o interminável também é tema recorrente na obra de Rybczyński. Em seu já citado vídeo “Tango”, de 1980, as figuras que aparecem em camadas no cenário, no ritmo da música, entram e saem do cenário através de três portas e uma janela dispostas no cômodo. O ciclo só se interrompe quando, ao final do vídeo, as camadas vão diminuindo paulatinamente, e a última personagem em cena, uma senhora deitada na cama, se levanta e quebra pela primeira vez a repetição de movimentos do vídeo, ao pegar a bola no início da história. A diferença primordial em relação ao videoclipe “Imagine”, é que neste caso o cenário se encontra estático, e são os personagens que se apropriam dele, interagindo com seus elementos (FIG. 5). Já no vídeo de John Lennon, é a câmera quem conduz a narrativa, deixando sempre para trás, perdidos no tempo, os personagens que já apareceram. O fluxo de imagens, ditado também pelos modos de viver da contemporaneidade, se reflete no vídeo: “No cinema ou vídeo, para acompanhar o flu xo de imagens é preciso estar atento para metabolizar não só as imagens, mas também o flu xo, e apreender o seu direcionamento e sua significação” (TRIVINHO, 1999, p. 42).

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FIGURA 5: Frame de “Tango” (1980)

Esta noção de se deixar para trás elementos e pessoas que estão no caminho, ao longo da narrativa, também é encontrada em uma das primeiras produções de Zbigniew, de 1976. Trata-se de “Oh! I can‟t stop!” (Oj! Nie moge sie zatrzymac!), vídeo trabalhado com o ponto de vista da câmera em primeira pessoa. Não se sabe quem é o anônimo que conduz o olhar e o discurso, mas em todas as vezes que esta câmera passa próxima a pessoas no caminho, ouvese um grito, de dor ou desespero. Utilizando a técnica de câmera acelerada, a cidade passa inteira pela câmera, desde as áreas mais afastadas e desertas, com árvores e campo, até o centro movimentado, com carros, bicicletas (FIG. 6). A câmera atravessa casas, paredes, construções, placas, dando a impressão de se constituir como um plano-sequência, sem cortes. Ao longo do vídeo, o ritmo se acelera até que não se consiga mais distinguir seu trajeto, exceto pela percepção de que se está em todos os lugares e, ao mesmo tempo, não se pertence a nenhum. Por fim, no ápice da intensidade do ritmo, uma das paredes de um prédio interrompe essa câmera, resultando em um grito de colisão e em uma grande mancha vermelha, remetendo a sangue, por toda esta parede.

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FIGURA 6: Frame de “Oh! I Can‟t Stop!” (Oj! Nie moge sie zatrzy mac !)

Esta abordagem do interminável é também assumida por outros artistas visuais contemporâneos, em especial por Andy Warhol, precursor na exploração do tempo através dos recursos do vídeo. Ao utilizar esta tecnologia para criar obras com desconstruções de narrativas, alguns dos artistas utilizam a estratégia do loop para que um fragmento se repita várias vezes, com emendas entre o começo e o fim, para que não se identifique o ponto de partida ou de chegada da narrativa. No caso de alguns dos vídeos citados, em especial “Tango”, além dos loops realizados, o aumento consecutivo de camadas cria a mesma sensação de repetição, mas com a construção contínua de um cenário em movimento constante. Já em “Oh! I can‟t stop!”, a paisagem se integra ao fluxo percebido, implicando na aniquilação do próprio espaço: “A paisagem se torna flu xo, cintilação, desaparecendo por completo caso a velocidade seja ainda mais incrementada. Nessa condição, o que impera é o tempo ou, se se quiser, o espaço-tempo – co mposto em que o espaço não é físico, geográfico, mas tão-somente lapso, ínterim, tempo ultracurto” (TRIVINHO, 1999 p. 41).

Especialmente em “Imagine”, aproximações poéticas nunca antes trabalhadas por outros meios são trazidas aos conceitos de espaço e tempo, uma vez que não se pode falar de movimentos de câmeras ou de contiguidade com o espaço (MACHADO, 1995). O tempo flui de novas maneiras, apresentado em uma ordem visual que extrapola o conceito de representação. Como coloca Edmond Couchot, “não se trata mais de figurar o que é visível: trata-se de figurar aquilo que é modelizável” (COUCHOT, 1993, p. 43). “Stereotomy” (1986) 594 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


“Stereotomy” é um vídeo musical criado para o grupo de rock progressivo The Alan Parsons Project, em 1986. O grupo abordou, em sua trajetória musical, questões relacionadas ao consumismo, ao tempo, ao psicanalismo e à vida urbana. No álbum onde se insere esta canção, de nome homônimo, o grupo apresenta pontos de vista de personagens com diferentes doenças mentais, sendo a palavra stereotomy referência a um conto de Edgar Allan Poe, que indica o corte de formas sólidas em diferentes formas. Na música, é utilizada como uma metáfora para as mudanças que os artistas da indústria cultural sofrem em função das demandas do mercado. Neste videoclipe, Zbigniew preenche os cenários, previamente filmados, com figuras digitais que representam pessoas executando passos de dança. Estas figuras foram criadas a partir da técnica de animação chamada pixelation, que apresenta imagens configuradas através da disposição de pixels em tamanho visível ao olho humano (FIG. 7). Cabe ressaltar que a mesma técnica já vinha sendo utilizada pelo diretor desde sua primeira produção, em 1972, intitulada “Kwadrat”. Neste vídeo experimental, grandes quadrados brancos acendem e apagam na tela escura, realizando diferentes combinações até diminuírem de tamanho e formarem figuras em pixels, que assim como no videoclipe para o grupo The Alan Parsons Project, também representam pessoas em movimento. Ao longo do vídeo, os fragmentos dessas representações se combinam de maneira aleatória em posições e cores distintas, criando mosaicos visuais com a estética do pixel (FIG. 8) – a mesma localizada nas primeiras criações para jogos de videogame. Além dos quadrados em diversas cores, são formados também mosaicos com pedaços de fotografias, a partir das quais se originam as figuras pixeladas. Ao final, a aproximação desses mosaicos resulta em quadrados cada vez maiores, até que se atinja novamente o grande quadrado branco presente no início do vídeo. A característica do digital, de construção de imagens em pixels, propicia que esta aproximação e desconstrução da referência original resulte em combinações e resultados visuais novos ao olhar humano.

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FIGURA 7: Frame de “Stereoto my” (1986).

FIGURA 8: Frame de “Kwadrat” (1974)

No caso do videoclipe, inseridas em camadas com outros vídeos, estas figuras digitais, representando pessoas através de pixels, interagem espacialmente com outras pessoas já dançando nos vídeos originais, sem que se toquem. Nos vídeos originais, da camada-base, as repetições, cortes e pausas nos movimentos dos dançarinos, criam quebras na organicidade de movimentos, despertando novas sensações ao olhar. Estes movimentos, além de terem sido editados de maneira ritmada junto à música, também orientam a orientação do quadro, que se inclina uma série de vezes, revelando por detrás uma terceira camada, com imagens de cenários naturais como nuvens, vulcões e o espaço. Novamente, a presença de janelas limitando ou extrapolando o quadro midiático, onde o movimento do quadro é diretamente relacionado ao movimento dos dançarinos e das figuras virtuais, que ditam sua direção. O uso de elementos geométricos e de camadas de cores para acompanhar músicas pode ser encontrado, na vídeo-arte, desde a década de 1970. E apesar de ser atribuído a Nam June Paik a realização do primeiro vídeo musical com a utilização de recursos tecnológicos para o desenvolvimento da estética do videoclipe (MACHADO, 1995), a obra “Global Groove”, de 1973, cabe ressaltar que é do mesmo ano a produção de “Plamuz”, vídeo experimental de Zbigniew Rybczyński, já colocado nesta época sob a chancela de music art pelo diretor. Trata-se de uma sessão de improvisos em jazz, onde cada músico é representado por diferentes faixas de cores que dividem a tela, e que aumentam, diminuem ou se tornam borrões e vultos de cores conforme sua intervenção na música (FIG. 9). Este pioneirismo na ilustração plástica de composições musicais aproximou, pelos anos seguintes, o diálogo da obra visual de Zbigniew com o campo musical. 596 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


FIGURA 9: Frame de “Plamu z” (1973)

“Dragnet” (1987) O videoclipe e música-tema do filme de paródia policial intitulado “Dragnet” (1987), trabalha basicamente com a inserção dos músicos da banda de synthpop Art of Noise em ações sobrepostas às cenas do filme. Os músicos se deslocam entre cenas já gravadas do filme, interagindo visualmente com o espaço e com as ações ocorridas. De maneira similar, no mesmo ano, o diretor Rybczyński realiza o curta- metragem experimental “Steps”, onde um grupo de turistas norte-americanos é levado a um passeio „virtual‟ às cenas mais emblemáticas de “O Encouração Potenkim”, de 1925, dirigido por Sergei Eisenstein (FIGS. 10 e 11).

FIGURA 10: Frame de “Steps” (1987).

FIGURA 11: Frame de “Steps” (1987).

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Em ambas as obras, o trabalho a partir de objetos já em circulação no mercado cultural, chamado também de apropriação, produz novas significações e insere os objetos em novos enredos e narrativas, método presente na tipologia da pós-produção, em que são reprogramadas obras existentes para se inscrever a obra de arte em uma rede de signos, ao invés de se compreendê-las como formas autônomas (BOURRIAUD, 2009). Desta maneira, para que se decodifique e se tenha acesso aos conteúdos propostos pelas obras, é preciso que o público também porte este repertório intertextual, relacionando a presença de tempos distintos em um mesmo objeto artístico.

Conclusões O tempo configurado como recurso de expressividade e como ponto de partida para a construção de novos sistemas de representação. Diante dos videoclipes e vídeos experimentais analisados, observa-se que a relação de Zbigniew Rybczyński com as possibilidades expressivas do campo tecnológico se constitui, desde a década de 1970, através do uso, invenção e desenvolvimento de técnicas e algoritmos que oferecem novas maneiras de se experimentar as criações artísticas para o meio videográfico. Acima de tudo, observa-se que o meio foi utilizado pelo artista no estabelecimento de conexões pós- indiciais entre as imagens e seus referentes. Enquanto a imagem indicial, presente em boa parte de trabalhos fotográficos, remete a um referente determinado que a causou (DUBOIS, 2004), os vídeos apresentados remetem de maneira concomitante a diferentes traços, nos casos de sobreposições de gravações, e em alguns momentos sequer possuem traços do real do espectador, por terem sido criados exclusivamente através de recursos digitais. A manipulação artificial de imagens, utilizada desde os primórdios da história do cinema por Georges Meliés, de modo manual, toma corpo e nova velocidade nas últimas décadas com a imagem sintetizada e efeitos gráficos que afastam o vídeo de padrões figurativos: “na modalidade digital, os códigos numéricos correspondentes aos sinais eletrônicos podem sofrer praticamente qualquer sorte de manipulação...” (MACHADO, 1995, p. 161).

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Neste sistema de representação recente, da imagem eletrônica, o tempo também passa a ser incorporado, expandindo as possibilidades de ilusões de movimento oriundas do meio cinematográfico. No vídeo, é possível, através da pós-produção, fazer com que o tempo pareça fluir de acordo com o mundo real do público, sobrepondo camadas de imagens e multiplicando as possibilidades de percepção. Como coloca Nicolas Bourriaud, a pósprodução designa também a invenção de “protocolos de uso para os modos de representação e as estruturas formais existentes” (BOURRIAUD, 2009, p. 14). Ao incorporar o tempo dentro do vídeo, especialmente na produção de videoclipes para artistas musicais, largamente difundidos no meio televisivo a partir da década de 1980 e com potencialização de difusão desde o advento da Internet, Rybczyński acaba por estabelecer um frutífero diálogo com os videoartistas presentes na galeria, retomando questões colocadas em debate no campo da arte contemporânea, como o aspecto processual das práticas artísticas, a aproximação da arte com a vida e a quebra com os espaços expositivos tradicionais. E se desde o início do século XX, artistas de diferentes movimentos artísticos vem trabalhando a representação de novos conceitos de tempo, seja ao fundir diferentes pontos de vista de um objeto em uma única imagem, ao justapor movimentos em uma única composição ou ao realizar retratos imagéticos em estados oníricos, as últimas décadas e a virada do último século legitimam as possibilidades de expressão do vídeo, do analógico ao digital, com a ampliação de meios tecnológicos, câmeras de fácil acesso, programas de edição e de computação gráfica. Rybczyński e outros artistas do meio se aproximaram destes recursos expressivos para trazer à tona, através de suas obras visuais, novas percepções sobre o tempo. Desta maneira, puderam construir, a partir do não- linear, das técnicas de processamento de imagens e das redes de efeitos gráficos, narrativas de pertencimento em maior aproximação junto aos modos de viver contemporâneos.

Referências Bibliográficas BOURRIA UD, Nico las. Estética Relacional. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2008. BOURRIA UD, Nico las. Pós-Produção: co mo a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo : Mart ins Fontes, 2009. 599 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


BREA, José Luis. Las tres eras de la i magen. Madrid: Akal, 2010. COUCHOT, Ed mond. Da representação à simulação : evolução das técnicas e das artes da figuração. In: PARENTE, André (org.). Imagem Máquina. São Pau lo: Ed . 34,1993. DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios . Camp inas: Papirus, 2004. MACHADO, Arlindo. A arte do ví deo. São Pau lo: Brasiliense, 1995. McLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem: understanding media. São Paulo: Ed itora Cultrix, 1971. TRIVINHO, Eugênio. Redes: obliterações no fim de século. São Paulo : Annablume / FAPESP, 1999.

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VISUALIDADES PICTÓRICAS: Divergências e convergências entre cinema e pintura na poética de Derek Jarman Luiz Carlos Andreghetto

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Resumo: Desde as vanguardas artísticas dos anos 20 se percebe uma aproximação maior entre o cinema e a pintura. Essas relações de semelhanças ou diferenças podem ser produzidas através do dispositivo, da moldura e do quadro, da representação e da cena, da luz e da cor, do fora de quadro, do plano, etc. Para Jacques Aumont o cinema não contém a pintura, mas ele a cinde, a explode e a radicaliza. O cineasta inglês Derek Jarman, “herdeiro” dessas vanguardas artísticas, propõe uma poética amparada em uma produção com marcas autorais e frequentes experimentações. As obras audiovisuais de Jarman indicam um diálogo fértil com a pintura, seja através de questões formais ou visuais, sendo o ápice dessas relações o filme Caravaggio (1986), baseado na vida do pintor italiano Michelangelo da Caravaggio. Palavras-Chave: Cinema. Pintura. Derek Jarman. Caravaggio. Abstract: From the artistic avant-gardes of the 20s one realizes a close contact between film and painting. Tthese relations of similarities or differences can be produced through the device, the molding and the frame, the representation and the scene, the light and color, the out o f frame, the take, etc. For Jacques Aumont the cinema contains no the painting, but he the divides, he the explodes and he the radicalizes. The British filmmaker Derek Jarman, "heir" of these artistic vanguards, proposes a poetics supported in a production with authorial marks and frequent experimentation. The Audiovisual works of Jarman indicate a fertile dialogue with painting, whether through formal or visual issues, and the apex of these relations is the film Caravaggio (1986), based on the life of Ital ian painter Michelangelo da Caravaggio. Keywords: Cinema. Painting. Derek Jarman. Caravaggio.

A pintura no cinema “[...] o cinema não é senão a instância mais evoluída do realismo p lástico, que principiou co m o Renascimento e alcançou a sua exp ressão limite na pintura barroca” (MALRAUX, apud BAZIN , p. 20).

Logo de início já nos deparamos com um paradoxo na relação entre esses dois suportes, cinema e pintura. Não é possível ao cinema, imagem audiovisual em movimento, ser pictórico ou que a pintura, pertencente ao terreno das aparências plásticas (AUMONT, 2004, p. 242) seja uma imagem cinematográfica. Para o cinema, se existe uma aproximação mais pertinente às suas idiossincrasias, seria com a imagem fotográfica. Não há tradução possível que faça a câmera equivaler ao pincel, o filme ao quadro: “[...] só há equivalências eventuais

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Mestre em Artes Visuais no programa de pós -graduação do Instituto de Artes/Unicamp 601 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


na parte mais implícita da arte, que a relação entre cinema e pintura não é nem a „correspondência‟ nem a filiação caras às estéticas clássicas” (AUMONT, 2004, p. 243). O que se tenta é estabelecer os aspectos de como a pintura está presente no cinema, para que possamos “[...] ver de que modo se parece ou se diferencia seu tratamento na pintura e no cinema: o dispositivo, a moldura e o quadro, a representação e a cena, a luz e a co r” (ORTIZ e PIQUERAS, 2003, p. 39). Para Jacques Aumont o cinema não contém a pintura, mas ele a cinde, a explode e a radicaliza. A princípio, o que mais chama atenção nessas relações entre o cinema e a pintura é a questão do quadro/moldura na pintura e do quadro/enquadramento/plano na imagem cinematográfica. Esse espaço da representação visual delimita um marco, uma porção da imagem que percebemos (ORTIZ e PIQUERAS, 2003, p. 34), seja ela pictórica ou audiovisual. Esse quadro fílmico é a primeira instância de trabalho de um cineasta, no qual o equilíbrio e a expressividade da composição (AUMONT, 1995, p. 20) remetem à pintura, muitas vezes não devendo nada a ela. Mesmo fazendo uma análise minuciosa, e supondo, sensatamente, que “quadro” substitui “plano”, ao menos em parte, resta uma ideia, indefinida, mas sugestiva, do quadro como quadro temporal, que exclu i todo pensamento do quadro como janela, como limite ou co mo co mposição, em p rol de u ma concepção do enquadramento como gesto, como gesto unitário, atr ibuído ao mestre, cuja arte ele revelaria” (AUMONT, 2004, p. 223).

O “quadro” cinematográfico ou plano não é uma imagem fixa (como uma fotografia ou uma tela pintada), dentro de cada plano/fotograma que se sucede um após o outro através do movimento da montagem, também possui seu movimento interno de composição (da câmera, dos personagens) criando espaços com profundidade de campo e perspectiva, sendo a nitidez da imagem um forte componente na ilusão dessa profundidade.

Em pintura, o problema é relat ivamente simp les: embora o p intor seja mais ou menos obrigado a respeitar uma certa lei perspectiva, ele brinca co m liberdade com os diversos graus de nitidez da imagem; sobretudo na pintura, o flou, em part icular tem u m valor expressivo que se pode usar à vontade (AUMONT, 1995, p. 33).

No cinema, isso não acontece. A câmera trabalha com a nitidez de uma forma mais mecânica: o objeto regula a nitidez de acordo com a quantidade de luz e a distância do objeto,

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sendo que isso pode variar dependendo da câmera e de como ela é colocada em relação ao objeto. Para Áurea Ortiz e María Jesús Piqueras (2003, p. 35), essa profundidade de campo contradiz a percepção do real, “é evidente que não percebemos com a mesma nitidez os objetos a distancia e que nosso olho realiza um exercício continuo e inevitável de focalização (da qual a escala de planos é uma transposição)”. Com isso percebe-se uma função que se coloca como um grande diferencial entre o cinema e a pintura: o fora de quadro/campo.

El fuera de campo en la pintura es siempre imag inário, el espectador nunca podrá verlo, aunque la representación ló construya: el resto del espacio y las figuras que violentamente corta Degas, ló que miran lós personajes del Paseo Matinal (1785), de Gainsborough, o los de El Balcón (1868), de Manet, el barco que divisan los supervivientes del Naufragio de La Medusa (1819), de Géricault , etc” (ORTIZ e PIQUERAS, 2003, p. 35) 2 .

Ao contrário, no cinema, o fora de campo existe, ele é concreto e pode ser visto, vivido ou sentido com apenas um simples deslizar da câmera. O crítico francês André Bazin argumenta que a imagem pictórica é centrípeta, suas representações permanecem dentro do limite do quadro/moldura, enquanto a imagem cinematográfica é centrífuga, os seus fragmentos possuem uma relação extrínseca com o espaço exterior, se prolongam além da borda da imagem.

Por mais hábil que fosse o pintor, a sua obra era sempre hipotecada por uma inevitável subjetividade. Diante da imagem u ma dúvida persistia, por causa da presença do homem. Assim, o fenômeno essencial na passagem da pintura barroca à fotografia não reside no mero aperfeiçoamento material (...) mas nu m fato psicológico: a satisfação completa do nosso afã de ilusão por uma reprodução mecân ica da qual o ho mem se achava exclu ído (BAZIN, 1985, p. 21).

Os filmes que fazem suas construções poéticas e visuais próximos do que seriam, na maioria das vezes, questões pictóricas, procuram “colocar em evidencia o artifício, a construção, propondo um jogo metalinguístico entre o cinema e a pintura ” (ORTIZ e

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O fora de campo na pintura é sempre imaginário, o espectador nunca pode vê -lo, embora a representação o construa: o resto do espaço e as figuras que Degas corta violentamente, o que olha os personagens de Caminhada Matinal (1785), de Gainsborough, ou os de O Balcão (1868), de Manet, o barco no qual se avista os sobreviventes do Naufrágio da Medusa (1819), de Géricault, etc. (Tradução do Autor) 603 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


PIQUERAS, 2003, p. 188), na verdade um jogo e uma reflexão sobre a representação seja ela audiovisual ou pictórica. Para Aumont é na luz, em seu tratamento, seus contrastes e a falta desses (as sombras), que reside as principais diferenças entre o cinema e a pintura. A pintura utiliza a luz para fazer dela um material plástico, portanto trabalha com uma luz que não é real, é uma impressão, no cinema essa luz é muita fácil de ser conseguida, mas ao mesmo tempo é muito difícil de ser adquirida e colocada de forma realista na película, sem atrapalhar o enquadramento e a movimentação da câmera. A pintura, ainda citando Aumont, possui meios mais rápidos de chegar à emoção através de seus elementos pictóricos: a cor, os valores, os contrastes e as nuances, o campo da plasticidade (2004, p. 167). Com isso o cinema, apesar de sua natureza fotográfica tenta igualar-se a pintura:

Querendo fazer tudo da pintura, e fazê-lo melhor do que ela, o cinema provocou, ao longo de sua história, incessantes paralelos entre um vocabulário formal do material pictórico, formas e cores, valores e superfícies, e u m vocabulário – sempre a ser forjado – do “material” fílmico. O fílmico quis absorver também o pictórico (AUMONT, 2004, p. 168).

O primeiro momento que essas relações entre cinema e pintura se entrelaçaram com maior afinco e afinidade foi nas vanguardas artísticas do início do século XX. Dentro dos movimentos das artes plásticas, como o dadaísmo, o futurismo, o surrealismo e outros, alguns pintores se aventuraram além do cavalete fazendo experimentações fotográficas com uma arte com pouco tempo de existência: o cinema.

Estas manifestaciones se produjeron de diferentes maneras: mediante una afirmación del color y sus valores subjetivos, el fauvismo; descomponiendo en espacio de carácter renacentista mediante la introducción del factor tiempo, el cubismo; negando el estatuto artístico tradicional de la obra de arte, el dadaísmo; en una exploración de la mente y el comportamiento humano, el expresionis mo; o resaltando la velocidad y la importancia de los condicionantes de la vida moderna, el futurismo (...) sin olvidar tampoco el movimiento surrealista, u m poco más tardio (período de entreguerras), heredero del dadísmo con un fuerte componente subjetivo en la ideia artística de partida (ORTIZ e PIQUERA S, 2003, p. 92) 3 . 3

Estas manifestações ocorrem de diferentes maneiras: med iante uma afirmação da cor e seus valores subjetivos, o fauvismo; decompondo-se em u m espaço de caráter renascentista mediante a introdução do fator tempo, o cubismo; negando o estatuto artístico tradicional da obra de arte, o dadaísmo; em uma exp loração da mente e do comportamento humano, o exp ressionismo; ou ressaltando a velocidade e a importância dos condicionantes da vida moderna, o futuris mo (...) sem esquecer o movimento surrealista, u m pouco mais tardio (período de entre guerras), herdeiro do dadaísmo com u m forte co mponente subjetivo na ideia artística d e partida. Tradução do Autor 604 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Todas essas manifestações nasceram da necessidade de ruptura, não só estéticas, mas de diversos valores socioculturais que afligiam os artistas. A busca por experimentalismo se converteu na busca por novos atos artísticos, sendo que a maioria desses artistas passou a empregar em suas produções todos os suportes que até então havia disponível. A busca por novos materiais e novas maneiras de se trabalhar o pictórico fizeram com que esses artistas, que viveram esse fenômeno cinematográfico do início do século, buscassem o campo do experimental para trabalhar com as possibilidades de uma nova linguagem. “Em geral, todos eles chegaram ao cinema a partir de um processo de desmaterialização e decomposição do objeto artístico, provavelmente atraídos pelas infinitas possibilidades que diante deles mostrava o cinematógrafo” (ORTIZ e PIQUERAS, 2003, p. 95).

O cinema pictórico de Derek Jarman O cineasta inglês Derek Jarman (1942-1994), “herdeiro” dessas vanguardas artísticas e intensamente influenciado pelo cinema underground e experimental dos anos 50/60, construiu sua poética fortemente amparada nos elementos pictóricos. Com um estilo visual singular - ao qual misturou passado e presente, teatro e pintura, artes performáticas e abstrações visuais, sexo e política – realizou um cinema com fortes marcas autorais, frequentemente calcado na polêmica e na provocação ao establishment existente na época (Inglaterra, anos 80, então governo da primeira ministra Margareth Thatcher), com características experimentais. Segundo Monika Keska (2007), “[...] seu estilo pode ser caracterizado amplamente como uma combinação de experimentação formal e rejeição do sistema de narrativa clássica, e as referências à tradição cultural britânica”. Jarman começou suas experimentações audiovisuais através do Super-8 4 , com pequenos curtas- metragens muito próximos à videoarte, como, por exemplo, A Journey to Avebury (1971), Art of Mirrors (1973) entre outros. Posteriormente continuou filmando em Super-8, mas transferia essas imagens para o 35mm, deixando-as mais lentas, meio “borradas”, mais próximas do pictórico do que do audiovisual, construindo obras fílmicas

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A câmera Super-8 foi lançada pela Kodak em maio de 1965, co mo uma câmera caseira para documentar eventos pessoais e cotidianos. 605 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


como The Angelic Conversation (1987), The Last of England (1988) e The Garden (1990), que evidenciavam a sua formação em artes plásticas. Mas é com Caravaggio (1986) que Jarman consegue um dos seus maiores sucessos de crítica e de público, mesmo que para isso não tenha aberto mão de seu estilo e mise en scène repleta de experimentações, sem nenhum tipo de concessão a sua poética ou visão autoral. Baseado na complexa vida do pintor barroco do século XVII, Michelangelo Merisi da Caravaggio (1571-1610), em suas pinturas polêmicas e sua relação com o “submundo” italiano, Jarman constrói uma poética amparada nas relações entre cinema e pintura, usando como temas o poder, a violência, a homossexualidade, a história da arte e as pinturas de Caravaggio. Caravaggio, o filme, incorpora técnicas do pintor no estilo e na estética cinematográfica (principalmente o chiaroscuro 5 ) para, através das pinturas, refletir sobre a obra e a relevância de Caravaggio no século XX. Ao retratar o pintor barroco do século XVII, polêmico, bissexual, violento e envolvido com a marginalidade da época (bêbados, drogados, prostitutas e ladrões), Jarman, na verdade, está falando de si mesmo: diretor, artista plástico, homossexual, contestador, participante ativo do underground londrino, cuja estética cinematográfica muito se compara aos resquícios da imagética barroca. Os contrastes entre luz e sombra, o vermelho pulsante, a disposição das figuras remete durante todo o filme as concepções pictóricas de Caravaggio. Jarman utiliza-as, dramatizando-as, sem que com isso elas percam o seu referente inicial, na verdade, muito pelo contrário: as pinturas de Caravaggio são os referentes primeiros em toda a concepção dessa poética. Nos quadros de Caravaggio as pinceladas são densas, escuras, predominando os ambientes internos, Jarman opta por construir a cenografia de seu filme amparada nessa imagem pictórica, recriada a partir das obras do pintor: os interiores são (des) construídos a partir das sombras, com incidência de uma iluminação que ressalta o chiaroscuro da imagem, com sons que mostram que existe um mundo externo, mas que nunca é visto, criando assim, ao mesmo tempo, uma atmosfera claustrofóbica e sedutora. Jarman dialoga com a obra pictórica de Caravaggio, seja na realização de questões visuais/formais e/ou cenográficas ou (re) montando essas pinturas em cena. Utilizadas em

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forma de tableau vivant6 , com modelos estáticos aguardando a ordem do pintor para saírem da pose, esse subterfúgio de dar “vida” aos quadros de Caravaggio é frequentemente utilizado no decorrer do filme, com ênfase na obra em seu processo de criação, como, por exemplo, quando vemos o pintor/personagem Caravaggio no início do processo da realização do que será posteriormente o quadro O Martírio de São Mateus (1599-1600, óleo sobre tela, 323x343 cm).

Existe nessa cena uma relação tríade na imagem: temos um diretor filmando a pintura de um quadro, temos os “bastidores” da realização dessa pintura (com o modelo em pose) e temos o quadro sendo feito em cena. Essa encenação triangular permite um trabalho de interpretação: primeiro reconhecemos o assunto (pintura de um quadro), passa-se da imagem do suporte pictórico para o suporte audiovisual, procurando reproduzir os mesmos efeitos da pintura, transcendendo as percepções visuais suscitadas pela pintura e as transformando em outras (através dos ruídos, das palavras, da fotografia, da montagem), evocando o jogo da ilusão e do “reflexo”. Esse “reflexo” que pretende ser ao “mesmo tempo totalizante e minucioso” (SARDUY, 1979), possui múltiplas maneiras de ver e ser visto. Esses duplos reflexos que se instauram nos levam a perceber o quão limítrofe são as fronteiras construídas por Jarman, que é ao mesmo tempo diretor do filme, o realizador dos enquadramentos, e reflete-se na figura do pintor real, Caravaggio, que no filme é representado por um ator que “finge” ser Caravaggio pintando uma de suas obras. Nunca vemos o quadro terminado (ao contrário de outras obras mostradas no filme), sendo que essas questões relacionadas ao quadro, que a priori estão sendo tratadas, também suscita questões relacionadas ao “limite” do quadro, ou do enquadramento, do extra-quadro, do fora-de-quadro. Além de ser um elemento plástico da imagem, o quadro também é um elemento específico nessa composição, porque é o que “a isola, a circunscreve, que a designa como imagem” (JOLY, 2000). O quadro que, na maioria das vezes, é retangular, herança particular do Renascimento italiano e da representação em perspectiva (JOLY, 2000), sendo que, até o século XV, essa

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Palavra italiana que significa claro-escuro. Na pintura é defin ido pelo contraste entre luz e s ombra na composição da imagem p ictórica. 6 Tableau Vivant – termo francês para “living pictures”. Descreve um grupo de atores ou modelos, cuidadosamente colocados e teatralmente ilu minados. Durante toda a duração da exib ição, eles não se mexem ou 607 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


“margem” da imagem variava de acordo com a arquitetura do suporte utilizado: fachada ou cúpula de igrejas, retábulos, pináculos, nichos, medalhões, etc. Esse limite ou essa fronteira que se torna uma imposição faz com que vários artistas do século XX procurem se libertar desse expediente.

Na nossa época de reprodução sistemática das obras de arte, em particular pelo dispositivo, conhece-se um aspecto das obras que não só perdem suas proporções, mas também as suas molduras e ignora-se a maior parte das vezes todo o trabalho de inovação de artistas como Degas, Seurat, Puvis de Chavannes, Monet ou ainda Van Gogh. (JOLY, 2000, p. 149).

Esses apontamentos em relação aos “limites” do quadro, uma fronteira física que delimita e, ao mesmo tempo, separa dois espaços (o interior e o exterior), pode ser pensado através de dois conceitos: contorno e moldura. Entendem por contorno o traço não material que divide o espaço em duas regiões, para criar, em termos gestálticos, o fundo e a forma. O contorno distingue -se do simp les limite; tropologicamente apresenta um interio r e um exterior, embora pertença perceptivamente à imagem identificada. É, pois, um percepto que intervém na delimitação de unidades e de conjuntos icônicos e/ou plásticos. Pode ser mais ou menos marcado, segundo a imagem se destaque do fundo em maior ou menor número de planos (cor, textura, etc.). (NASCIM ENTO, 2006, p. 123).

A moldura, por sua vez, vai delimitar essa imagem no seu ambiente interno e alargá- la em seu ambiente externo. Na linguagem cinematográfica,

utiliza-se o nome de

enquadramento para essa “moldura” da imagem. É no enquadramento que temos a alternância dos planos e os movimentos de câmera, dentro dos limites estabelecidos pela história que se quer contar. O fora-de-campo, o espaço do extra-quadro torna-se tão importante quanto o espaço representado na imagem. Portanto, qual a moldura, o limite na construção da imagem na cena da pintura do quadro O Martírio de São Mateus? Temos nesse lugar duas molduras: a do quadro que está sendo pintado, no qual, em seu interior vemos as pinceladas e a imagem surgindo aos poucos, temos no seu fora-de-quadro (mas que está no interior do quadro da imagem cinematográfica) o modelo em pose deixando ser visto e “manipulado” para a realização da pintura. Temos uma segunda moldura, que é a moldura do enquadramento cinematográfico, que delimita suas “margens” em planos fechados nos dois atores, deixando a pintura do falam. Muitas vezes utilizado para enfat izar mo mentos dramát icos. No cinema, esse recurso já foi explorado pelos diretores Peter Greenaway, Gus Van Sant, Jean-Luc Godard, M ichael Haneke, entre outros. 608 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


quadro no interior do enquadramento da imagem, para retirar deles a tensão necessária às questões extra-quadro, o fora-de-campo: o modelo recebendo para posar, o pintor seduzindo-o com o seu dinheiro, e os dois outros personagens em cena que são testemunhas onipresentes daquele instante. Ambas as molduras alargam suas fronteiras, sendo mais explícito em relação ao quadro pictórico, pois a representação que deveria ser vista na tela também é vista fora dela, causando um simulacro da imagem real. Qual imagem é a real? A que está sendo pintada no quadro, ou a imagem cinematográfica que mostra a realização dessa pintura? Nesse duplo reflexo da imagem pintada e da imagem filmada que é a imagem da pintura vemos que:

O espelho indica ao homem a inacessibilidade da sua imagem, por conseguinte a ordem da div isão que está na base da relação com o outro, co m a alteridade do seu princípio [...]. É a questão do espelho, porque só há imagem se houver espelho, ou qualquer outro equivalente simbólico, se houver um terceiro que nos separe para sempre de nós mes mos. (JOLY, 2002, p. 133).

Caravaggio, o pintor real que se torna pintor-personagem nas mãos de Jarman faz parte de um passado que não existe mais, porém o passado e o presente são dois elementos do tempo que convivem entre si. “O passado não sucede ao presente que ele não é mais, que ele deixou de ser” (DELEUZE, 1997). O passado não existe depois de ter sido presente, ele coexiste consigo como presente. Mesmo não existindo o passado não deixa de ser. Existe no tempo um desdobramento, uma diferenciação a cada instante: “presente que passa e passado que se conserva”. Jarman também não tem certeza de como essa pintura realmente foi realizada, da mesma maneira que muitos fatos e a ordem desses acontecimentos na vida do biografado não lhe interessam. Jarman se coloca na obra cinematográfica traduzindo-se ora como o Caravaggio real, ora como o Caravaggio personagem. Jarman deixa que o tempo e o espaço em que habita, manifeste-se no texto fílmico, produzindo um amálgama de relações com o pintor/personagem “biografado”. Ao falar de Caravaggio, Jarman mais fala de si próprio do que do seu objeto de análise. Os fatos narrados da vida do pintor servem apenas como pretexto para que o cineasta produza um enunciado que, ao refletir a personagem Caravaggio em si mesmo, consegue chegar o mais próximo possível do Caravaggio real. Não é aleatório que Jarman procure Caravaggio e retire dele os emaranhados de uma construção visual amparada no pictórico, e nem que Caravaggio sirva tão facilmente aos 609 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


propósitos “jarmanianos”. Do mesmo modo que Caravaggio rompe com a arte produzida em sua época, o Renascimento, propondo uma nova utilização de luz e sombra e na maneira de retratar passagens bíblicas, Jarman inicia também uma ruptura com o cinema produzido até então na Grã-Bretanha, propondo um “[...] esforço incessante para produzir imagens, para escapar ao domínio da linguagem, para levar o máximo possível o cinema para a esfera do visual, da visualidade” (AUMONT, 2004, p. 219), ao mesmo tempo em que se opõe ao establishment e o status quo de sua época.

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PASSANTE - CORPO E IMAGEM EM EXPERIMENTAÇÃO AUDIOVISUAL Lyara Oliveira 1 Resumo: Trabalhos artísticos de experimentação audiovisual muitas vezes esbarram em aspectos da narrativa audiovisual convencional. Neste artigo configuro uma proposta de prática poética que passa por questionamentos das esferas pragmáticas da produção audiovisual. Apresento reflexões e exponho o modo de realização da videoinstalação Passante, realizada em 2011 como parte de minha dissertação de mestrado cuja proposta inicial previa a realização de uma pesquisa que conjugasse prática artística e reflexão teórica. A presença do corpo do indivíduo no espaço público e sua interação com os acontecimentos banais ou extraordinários desse espaço são o ponto de partida para as indagações que aqui apresento. Palavras chave: arte contemporânea 1, narrativa audiovisual 2, experiência 3, corpo 4, imagem 5 A ABSTRACT: Artworks on audiovisual experimentation often run into the conventional aspects of audiovisual narrative. In this article I set up a proposal for a poetic practice that involves questions of the pragmatic spheres of audiovisual production. Here I present ideas and expose the way of making the video installation Passante held in 2011 as part of my mastership, which the original proposal provided for the holding of a research which combines artistic practice and theoretical reflection. The presence of the individual's body in public space and its interaction with the ordinary or extraordinary events, in this space, is the starting point for the investigations presented here. Keywords: contemporary art, audiovisual narrative, experience, body, image

1. Desconstrução e questionamento nas práticas contemporâneas No contemporâneo, trabalhos experimentais em audiovisual fazem uso de procedimentos desconstrutivos tanto no que concerne a desestruturação da condição da narrativa em si quanto com relação a uma desestruturação do modo de uso da linguagem audiovisual tradicionalmente empregada na elaboração das narrativas hegemônicas. A experimentação se coloca tanto no campo das objetividades físicas quanto no campo das linguagens. Nos trabalhos de diversos artistas contemporâneos é reconhecível uma vontade de lidar diretamente com as narrativas audiovisuais de modo desconstrutivo e questionador. “Os procedimentos desconstrutivos na arte dizem respeito à destruição e à reconstrução da noção 1

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de objeto artístico, inserindo-se em práticas cujos objetivos giram em torno da desmontagem de um significado para se obter outro.” (MELLO, 2008, p. 115). Esses procedimentos têm origem ainda nas vanguardas modernistas e são retomados a partir dos anos 60. A desconstrução está diretamente ligada à ideia do experimental. Christine Mello indica a corrente desconstrutiva na arte como uma vertente experimental. Ao mesmo tempo, mostra que a prática experimental carrega a experiência do processo artístico como parte fundamental de sua constituição (2008, p. 119). A forma de agir desconstrutivamente na arte aproxima-se do ideal de ação proposto por Vilém Flusser, que atribui ao artista a função de elucidar os dispositivos de produção formatados pelos modos convencionais de operação nas mais diversas áreas. Flusser apresenta em seu texto Filosofia da Caixa Preta (2002) uma série de definições de termos que, a princípio, dizem respeito a uma análise da fotografia, mas que podemos aplicar a todas as “máquinas contemporâneas de produção simbólica” como destaca Arlindo Machado (2007a, p. 43). Para Flusser, a máquina fotográfica é um aparelho, um equipamento que traduz pensamento conceitual em imagem, perante o qual é possível assumir duas posturas diferentes. A primeira à qual a maioria das pessoas adere é a postura de funcionário, onde o indivíduo manipula o aparelho agindo em função deste, atuando de acordo com o programa (combinação de regras que regem o aparelho). A segunda postura possível, muito mais difícil e complexa, é a postura de fotógrafo, na qual o indivíduo procura inserir na imagem resultante informações não previstas pelo aparelho. Machado complementa essa idéia dizendo que é nessa segunda categoria que devem se colocar os que se pretendem artistas. “O que faz, portanto, um verdadeiro criador, em vez de simplesmente submeter-se às determinações do aparato técnico, é subverter continuamente a função da máquina, ou do programa que utiliza, é manejá- los no sentido contrário ao de sua produtividade programada.” (MACHADO, 2007a, p. 14).

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Desconstruir e subverter as normas estéticas instituídas no campo do audiovisual são as premissas para a reflexão que aqui toma forma. Existem diferentes e variados modelos de apreciação crítica da narrativa audiovisual. A forma trabalhada em minha prática artística para propor uma reflexão questionadora e poética que produza estranhamento no código audiovisual é a da prática artística que faz uso do vídeo como meio de ação e, ao mesmo tempo, trabalha a narrativa como um dispositivo de articulação de pensamento. Procuro empreender uma forma de pensar e realizar trabalhos que sigam num sentido contrário ao das narrativas audiovisuais hegemônicas e aos seus modos de produção. Nesse sentido, desenvolvo um plano de realização de trabalho audiovisual que parte de um acontecimento1 e das imagens e sons por ele gerados para instigar uma potencialidade narrativa, justapondo registro e articulação narrativa, ao mesmo tempo em que a noção de acontecimento também ocorre na exposição do trabalho, pois a proposição narrativa só é viável quando de sua apresentação. Ao invés de atuar por meio da junção conceitual de fragmentos para conduzir a uma ordem linear lógica que se institui a partir de uma organização discursiva - procedimento adotado nos meios hegemônicos de produção -, tento criar uma narrativa enquanto fluxo, trabalhando a partir do tempo da experiência. Uma narrativa que é, sim, construção e elaboração, mas que se evidencia enquanto construção. Uma narrativa não ilusionista – no sentido em que ela não se propõe a criar uma ilusão de coesão e continuidade – aberta ao acaso e capaz de ativar uma experiência emocional e espacial. A minha proposta de realização artística está ligada a uma reflexão mais ampla, que é a de produzir processos narrativos, pensados a partir das imagens e dos sons, tentando confrontar a linearidade programada das narrativas audiovisuais hegemônicas, que formalmente partem de bases verbais escritas, forjadas em processos lineares progressivos (FLUSSER, 2007, p.113). Retive para isso, como ideia norteadora, outra colocação de Flusser, esboçada no livro O Mundo Codificado, que sustenta a crença na possibilidade de formulação de pensamento a partir de imagens (2007).

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Seguindo mais essa premissa, tento elaborar ensaios experimentais audiovisuais sobre a questão da narrativa que fujam de uma abordagem da estruturação conceitual verbal e tratem a narrativa como um processo organizador de pensamentos. O ensaio audiovisual Passante, sobre o qual trato nesse texto, é fruto de um trabalho processual, onde a captação das imagens e dos sons junto ao acontecimento tem importância equivalente aos procedimentos de pós-produção. É no processo de realização que se instaura a desconstrução dos cânones da narrativa audiovisual em diferentes esferas: sobre aspectos da narrativa em si e/ou sobre os modos vigentes de produção audiovisual. 2. Um corpo estendido na calçada Passante está inserido numa investigação e prática artística mais ampliada e extensiva dentro de minha prática artística. A videoinstalação foi desenvolvida durante a pesquisa de mestrado sobre o uso de predicados narrativos em práticas artísticas contemporâneas. As imagens foram captadas, editadas, reeditadas, repensadas junto à realização de leituras, da apreciação de outros trabalhos em vídeo e cinema e da redação da dissertação. Tudo em função da proposta de pesquisa teórica-prática apresentada desde como projeto de pesquisa. A seguir, apresento um breve detalhamento sobre a realização e concepção de Passante (videoinstalação sem áudio, 2011 – looping).

FIGURA 01: Frame do vídeo da videoinstalação Passante

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FIGURA 02: Frame do vídeo da videoinstalação Passante

FIGURA 03: Frame do vídeo da videoinstalação Passante

Em Passante, a proposta é evidenciar o momento do acontecimento, ou do nãoacontecimento: um corpo estendido na calçada. Isso pode ser o desfecho, o início ou o meio de uma situação. O que se apresenta de efetivo é a situação posta do corpo na calçada. Pessoas passam, mas nada acontece. A situação não se altera. O espectador não sabe exatamente do que se trata. É uma mulher? É um travesti? Ela está morta, bêbada, adormecida ou ferida? (FIG. 01, 02 e 03)

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A qualquer momento ela poderá se levantar sozinha, alguém poderá ajudá-la ou alguém poderá constatar que ela está morta. Qualquer uma dessas ações geraria um acontecimento que desencadearia um possível desenrolar da situação. Mas isso não acontece. Durante o período de captação da situação, isso realmente não aconteceu. O tempo de captação foi contínuo. No entanto, no vídeo, esse tempo é esfacelado em planos separados que são expostos simultaneamente, gerando um único quadro que é resultado de planos diferentes de uma situação que é basicamente a mesma, mas em momentos diferentes. A imagem se desdobra em várias sobreposições e acaba por determinar a reincidência constante do gesto. A ação de passar diante do corpo. O gesto que poderia gerar um acontecimento, mas que não gera, que vai se repetindo e repetindo. E o não-acontecer se prolonga ad infinitum, pois o vídeo não tem fim, nem início, nem meio. Ele apenas se desenrola, se repete e a situação permanece a mesma. Essa repetição, no entanto, não leva necessariamente a um entendimento mais fácil ou imediato da situação que se coloca. A sobreposição de imagens de baixa definição, em meia fusão, e o movimento instável da câmera dificultam um possível entendimento imediato da situação. A questão da repetição relaciona-se com a idéia de reiteração que paira sobre a narrativa audiovisual. No cinema, onde a atenção do espectador está totalmente voltada para filme (ou pelo menos é o que se deseja), a narrativa praticamente não se repete, ela segue uma linha constante e racional de condução linear da história, que costuma ser bem amarrada e obedecer a uma ordem de lógica causal. Já na televisão, um meio dispersivo que disputa atenção com mundo ao seu redor, a narrativa precisa ser recorrente, circular, reiterar as idéias e sensações a cada novo plano (MACHADO, 2000, p 87). Em Passante, a reiteração da imagem é importante. A imagem do corpo caído é ignorada no ambiente real. Os passantes que presenciaram a situação na rua veem, mas não enxergam. O passante espectador do vídeo é compelido a ver e a enxergar. Ele pode, obviamente, só passar e também não enxergar. A obra demanda a sua atenção para decifrar aquela imagem explícita e aparentemente simples, que se repete indefinidamente. O 616 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


espectador é compelido a enxergar, desvendar e entender a imagem que ali se apresenta. A situação se repete e se repete, e é sempre a mesma. É possível entendê- la? É possível se compadecer? É possível se inquietar? É uma repetição que não leva a um desfecho. Uma sequencialidade que promove uma narrativa em potencial, em suspenso, que não se desenrola nunca, que está ali para evidenciar o instante, o acontecimento ou a falta do acontecimento, já que ninguém reage ou toma qualquer atitude ao passar diante do corpo estendido no chão, o trabalho não converge para um final, se sustenta sobre uma sugestão de inacabamento. A repetição aqui não é apenas redundância. Ao mesmo tempo em que evidência e explicita, ela gera um ritmo para o vídeo. Um ritmo inconstante, fluido, instável. A repetição se articula como um princípio organizativo e funciona de modo parecido ao de outros sistemas poéticos, que também se valem deste recurso como, por exemplo, a música, a poesia, história em quadrinhos e a tapeçaria (MACHADO, 2000, p. 89). A apresentação em espaço expográfico prevê uma projeção em baixa definição, em lugar claro, de fácil acesso e preferencialmente por onde passem muitas pessoas. Tais indicações visam a potencializar o efeito do vídeo, instigando os espectadores passantes. O corpo do próprio espectador pode ser inserido na obra, pois quem passa pela videoinstalação provoca uma sombra que interfere na projeção e que ao mesmo tempo é inserida no quadro. O espectador pode ser mais um passante que não vê ou ser alguém que compartilha daquela tragédia efêmera e cotidiana. (FIG. 04)

FIGURA 04: Imagem da videoinstalação Passante (2011)

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Cabe ainda mencionar que o que despertou o interesse na captação e na posterior vontade de transformar o material captado em trabalho poético foi a indignação com a cena que ocorria no meio de uma rua do Centro de São Paulo e o questionamento ético que ela levantava. A duração da captação foi curta, não era suportável olhar e enxergar aquela situação. Depois de se passarem aproximadamente três minutos, interrompi a gravação e fui verificar a pessoa que estava no chão. Tratava-se de um travesti semidesacordado, aparentemente em estado alterado. Logo que ele conseguiu se levantar apareceu uma mulher que se disse sua conhecida e ficou lá para ajudá- lo. Perguntando ao redor pude constatar que ele se encontrava ali no chão desde as primeiras horas daquela manhã. No momento da captação já passava um pouco das onze horas. Antes de chegar a essa última versão, as imagens de Passante foram editadas num clip simples com duração de um minuto e dez segundos. O clip foi disponibilizado em meados de 2010 no YouTube, sob o título de Inconveniência. Desde então, o vídeo já contabilizou mais de doze mil acessos, sem que nenhum tipo de divulgação fosse feito. É o meu vídeo com maior visibilidade. Esse grande número de acessos chamou atenção e também me instigou a continuar trabalhando com as imagens. Uma das intenções em Passante é gerar um questionamento da concepção de continuidade linear causal e conceitual, que está nas bases da narrativa aud iovisual. Para isso, emprego como estratégia uma maior aproximação com o acontecimento que dá ou poderia dar origem à narrativa. Procuro estabelecer menos uma representação e mais uma apresentação presentificada do acontecimento, sugerindo uma continuidade que esteja atada ao acontecimento ou, então, uma suspensão da continuidade. É a proximidade com um determinado acontecimento que gera a intenção de criar e realizar o trabalho. Ao mesmo tempo, quando de sua apresentação, o trabalho também se dá enquanto acontecimento, na medida em que tenta gerar uma experiência que lhe seja pertinente. A tentativa de presentificação se relaciona a uma característica intrínseca ao meio videográfico de sempre conjugar a imagem no presente. Não há como estabelecer uma distinção visual entre algo que está sendo transmitido ao vivo e algo que foi gravado. Mesmo 618 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


que a imagem tenha sido captada anteriormente, toda vez que é exposta ela se atualiza e se faz acontecimento. 3.Processos de investigação e prática artística Tenho realizado ensaios audiovisuais para diferentes plataformas: alguns para exibição em monocanal, outros para apresentação na forma de instalações e, mais recentemente, tenho utilizado os sites de compartilhamento YouTube e Vimeo como meio de divulgação de trabalhos. Procuro alcançar uma prática desconstrutiva, agindo a partir da exploração de espaços/ambientes que o tempo todo se interpenetram: o espaço urbano de ação coletiva, e o espaço de ação individual, determinado pelo do corpo e sua vontade de ação. Investigo a presença do corpo e a percepção do indivíduo nesses espaços de dobra, lidando com questões como a relação tempo/espaço, a memória e a ética. E indagando sobre a relação efêmera que ocorre entre realidade e subjetividade. Na realização de meus trabalhos, tento lançar um olhar carregado de percepção narrativa sobre ações banais e cotidianas, observando instantes de conflito, de acontecimento e, da mesma forma, captando os tempos mortos, os tempos de passagem, tempos distintos ao cronológico, regulamentar. A intenção é destrinchar o instrumental modelar de produção audiovisual, explorando o potencial poético dessa ação elucidativa. Em meu trabalho de prática poética existem algumas linhas de investigação dentro das quais tento me organizar. Uma das linhas de investigação parte da observação, em espaços de ação coletiva, das relações humanas, das relações dos indivíduos com o espaço e da presença do corpo desse indivíduo em relação à ação que se propõe e em relação a outros corpos que habitam e/ou circulam nesse mesmo espaço. O que busco são pequenos flagrantes situacionais, como na videoinstalação Passante. Nela, o material original foi captado em uma gravação realizada no centro de São Paulo, que não fora previamente programada, mas que, no entanto, se origina em uma disposição prévia de observação.

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Esse modo de investigação propõe uma intensa subjetividade na forma de expor uma percepção narrativa. O resultado almejado é a realização de trabalhos questionadores do campo da narrativa audiovisual, tentando borrar os limites entre realidade e percepção subjetiva narrativa. Para realizar os trabalhos me imponho uma proposta de jogo de linguagem. Um jogo aberto ao acaso, onde não há roteiro pré-estabelecido, o que existe é uma predisposição poética de observar a realidade e proceder com a captação de som e imagem, o que instiga a realização de um ensaio. O procedimento artístico se instaura em decorrência da proposição de reverter aquele estado banal de vivência em experiência artística, ou um estado intenso de experiência emocional e experiência artística. Trabalho a ideia de experiência conforme conceituação de Walter Benjamin em seus textos O Narrador e Experiência e Pobreza (2008). Segundo Benjamin o conceito de experiência deriva do acúmulo de dados e informações que afluem na memória, estando ligados à tradição do discurso vivo e à transmissão direta de conhecimento. A experiência é intensa, está diretamente ligada ao real, se dá na confluência com o acontecimento, pode ser individual ou coletiva, mas é sempre subjetiva. Já a vivência, por sua vez, é fugaz, efêmera e superficial, ela se dá pela proximidade com o fato, se realiza por meio de choques com a realidade, sem gerar, com esta, uma confluência profícua. Em Passante a situação está posta em seu aspecto vivencial. No entanto, paira sobre a situação real indícios fictícios. Proponho a narrativa como procedimento, tentando não incidir sobre as dicotomias convencionais entre realidade/ficção, memória/observação. O que importa é explanar a detonação de um estado emocional e não contar e/ou enunciar um fato acontecido Lúcia Santaella apresenta uma definição de narrativa convencional, bastante simples e eficaz, extraída da tradição literária. “Uma narrativa ideal começa por uma situação estável que uma força qualquer vem perturbar, do que resulta um estado de desequilíbrio. Uma força dirigida no sentido inverso

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restabelece o equilíbrio. O segundo equilíbrio é semelhante ao primeiro, mas ambos nunca são idênticos” (SANTAELLA, 2009 p. 322). Ensaios como Passante se realizam na exploração intensiva da força que perturba, pois o desequilíbrio que ela provoca realmente não tem fim. O que o trabalho sugere é focar a atenção nesse momento de perturbação e em seus desdobramentos imediatos sem levar a qualquer tipo de conclusão. Na apresentação deste tipo de obra, procuro também estabelecer um sutil jogo de linguagens que requer o envolvimento do espectador, pois é preciso que ele aceite se colocar como participante e se disponha a assumir as instâncias de narrador, personagem e espectador. Diferentemente dos ensaios experimentais como o apresentado aqui, uma narrativa audiovisual hegemônica é realizada na maioria das vezes seguindo um processo bastante estruturado2. A lógica de realização seria: p rimeiro a ideia (de origem abstrata, fictícia ou real), em seguida, o desenvolvimento da ideia em forma roteiro (que pode ser sistemático, fechado, ou apenas uma sugestão das ações narrativas) e, só depois, a gravação das sequências. Tal processo, em geral, atende mais a um plano prático de produção do que a uma ordem narrativa. As gravações são extremamente fragmentadas. Em razão disso, a captação de imagens obedece a rígidas normas de continuidade, seguindo uma lógica de causa e consequência, tanto narrativa, quanto na relação de tempo/espaço diegético. Na última etapa do processo, a pós-produção, é onde são almagamados os fragmentos, de modo a dar forma a um produto final coeso. A narrativa audiovisual hegemônica coloca-se no papel de explicar a história, por isso ela busca a linearidade, a verossimilhança com o real, a coerência narrativa, a explicação intrínseca às relações de causa e efeito. Mesmo quando começo, meio e fim são embaralhados em sua ordem de apresentação, de modo geral, ainda sim, persiste a lógica causal entre esses elementos e ao final o espectador ainda é capaz de organizar mentalmente a ordem do enredo. Nos meus ensaios, busco esgarçar a tecitura desse modo de produção. Sugerio uma radicalização desse modelo, aproximando-me não de uma noção de enredo/estória, mas de

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acontecimento. Tal proximidade proporciona uma possibilidade de distanciamento da linearidade de relações causais. Talvez o mais radical aqui seja sugerir uma aproximação menos distinta entre o que se quer narrar e o ato de narrar, conjugando tudo isso à experiência resultante do acontecimento. De forma que o acontecimento dite o modo de realização. Propondo um estreitamento e uma indistinção entre forma e conteúdo, sem incorrer numa quebra absoluta da continuidade. Essa maior aproximação com o acontecimento proporciona uma continuidade não formalizada. Mas uma continuidade que possa estar ou não, no acontecimento em si. Diferente da continuidade conceitual, orquestrada a partir de normas e convenções da linguagem instituída. O que tento criar pesquisando e realizando obras audiovisuais experimentais são trabalhos que se distanciem dos conceitos de verossimilhança e coerência linear causal que estão arraigados à narrativa audiovisual hegemônica. “Não existe continuidade ou descontinuidade na história, mas apenas na explicação da história” (PARENTE, 2009, p. 33) Esse trabalho, aqui apresentado, tenta realizar, a partir de uma prática artística subjetiva e do desvio das normas instituídas, uma operação pela diferença. Tal procedimento não é de modo algum inédito, entretanto, ele se atualiza no desafio de encarar o mundo contemporâneo e trazer a público uma experimentação poética. A escolha de pensar em conjunto teoria e realização prática incide num processo complexo, aberto e experimental. O que ofereço neste artigo é um vislumbre de uma possibilidade de se pensar e realizar uma desconstrução dos modos operacionais da narrativa audiovisual hegemônica, de forma a gerar uma experiência poética dentro do campo da arte contemporânea. Nota 1 A conceituação de acontecimento, bem como, de apresentação narrativa como acontecimento estão expostos nas teorizações de André Parente (2000), que se apoia nas proposições de Gilles Deleuze e Maurice Blanchot.

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FRED FOREST: O poder da mídia espontânea como elemento de criação artística Maíra Sanchez Cezaretto Camargo 1 Resumo: Este artigo tem o objetivo de discutir o poder da mídia utilizado para criação artística, mais especificamente a mídia espontânea. A relação entre arte e comunicação é analisada com o apoio na obra denominada Wanted Julia Margareth Cameron, de Fred Forest. São avaliados os aspectos que levam o artista a idealizar e colocar em prática suas estratégias. As ferramentas utilizadas por Forest em suas obras e a articulação delas também são contempladas neste estudo. Além disso, o potencial publicitário nas criações de Fred Forest foi igualmente objeto de consideração. Palavras-chave: Fred Forest. Arte e mídia. Ações participativas. Poder da mídia. Mídia espontânea. Abstract: This article aims to discuss the power of the media used for artistic creation, specifically the spontaneous media. The relationship between art and communication is analyzed with the support of the work called Julia Margaret Cameron Wanted by Fred Forest, evaluating the issues that lead the artist to create their actions. The tools used by Forest in their work and the articulation of them are also addressed in this study. In addition to evaluating the advertising potential in the creations of Fred Forest. Keywords: Art and media. Participatory activities. Media power. Media spontaneously.

1. A mídia e o meio de comunicação A relação entre arte e mídia se constitui em uma temática atual no contexto da cultura digital. Já há artistas que nela trabalham há algum tempo. Um nome expressivo nesse campo é Fred Forest, cujas ações revelam uma atuação neste campo, com ímpeto e ousadia. Uma de suas obras que se destaca e merece estudo dessa relação entre arte e comunicação é “Wanted Julia Margaret Cameron”, que, para sua realização, ele se utilizou explicitamente de um processo de mídia espontânea, aproveitando-se do sistema de funcionamento dos meios de comunicação em busca de audiência, e que será objeto do presente trabalho. O artista em questão, segundo Mario Costa (2006:52), foi um dos primeiros a entender que o universo da informação e da cultura é dominado pelos meios de comunicação de massa e pelas novas tecnologias. Forest reconhece o funcionamento desses meios para aumentar a audiência, socorre-se deles, e explora esses meandros como estratégia não só para produção como também para divulgação de sua obra artística. 1

Universidade Estadual Paulista “Júlio De Mesquita Filho”, Instituto De Artes.

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É inegável que a mídia tem o poder de dar credibilidade a qualquer acontecimento real ou fictício. Não raro, as notícias são construídas para gerar audiência. Quando uma tragédia ou determinado tema polêmico acontece na vida de uma personalidade famosa, por exemplo, o fato se torna tema de discussão nos mais diferentes ambientes, ganha destaque, e é até mesmo colocando à frente de assuntos mais importantes, como política e saúde. Os leitores comentam, discutem e vivenciam a notícia. Em muitos casos, o veículo ou o autor são processados ou se tornam famosos pelo feito. O prazer por tragédias é reconhecido e aproveitado também como estratégia para elevação de audiência e, por consequência e em última instância, para o faturamento do veículo de comunicação. 2. Comunicação e mídia espontânea A comunicação como indústria cultural, cuja teoria foi desenvolvida e defendida pela escola de Frankfurt, na qual os meios de comunicação se utilizam do seu poder para dominar as massas para interesse, que, entretanto, não necessariamente são os mesmos delas, também se insere no arcabouço teórico da tese. E, em outra linha de pensamento, a comunicação, por atingir grande quantidade de pessoas pode, e deveria, proporcionar o bem-estar social. Assim, na análise dessas duas teorias sobre a finalidade dos meios de comunicação, pode ser encontrado o entendimento das ações de Fred Forest. A mídia espontânea, especificamente, trata de informações sobre produtos e serviços divulgados de forma, como diz a própria nomenclatura, espontânea. Em marketing, o meio de comunicação se torna o objeto incitado a divulgar os produtos, serviços, e outros, gerados pelas assessorias de imprensa de empresas e celebridades, que são contratadas para essa finalidade. Como é sabido, os meios de comunicação necessitam de conteúdos que gerem audiência, para se sustentarem. Aproveitando-se desses mecanismos, as empresas tornam seus produtos e serviços conhecidos e fazem a manutenção e ampliação de suas vendas. A divulgação vai além daquela possível com a contratação de espaços nos intervalos comerciais dos programas produzidos pelos meios de comunicação. Porém, a técnica de contratar uma assessoria de imprensa para gerar mídia espontânea também é utilizada por pessoas que necessitam de tal exposição para atrair negócios, patrocínios e contratos. Os editoriais de revistas cabem aqui bem como exemplo. 625 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


No entanto, comunicação é um tema largo, constituído de muitas facetas e é importante trazer ao contexto a conceituação externada por Legendre, que sinaliza afinidade com a obra Fred Forest, artista que subverte os meios de comunicação, fazendo uma crítica à forma e ao conteúdo, utilizados pelas empresas deste segmento. Eu detesto a palavra „comunicação‟. Socialmente, a fala é o império da força; a comunicação é dogma, uma rede de proposições que nos remete ao princípio de autoridade. Hoje, buscamos não ser manipulados. Ladain ha de todos os cientistas, que pretende eliminar o jogo imaginário do poder oculto. Ora, a comunicação não está aí para garantir a realidade, ou dar satisfação, ou satisfazer a ob jetividade. Trata-se de um artifício, que é divert ido, euforizante, que está aí para ocultar a violência, para manter a fachada. Ela é teatralmente convocada, contando com a imbecilidade e com nosso infantilismo (LEGENDRE apud Sfez, 1982:9).

Paralelamente, é de fundamental importância conhecer mais de perto o funcionamento dos meios de comunicação e da mídia espontânea, e é nesse funcionamento que emerge o entendimento da obra de Fred Forest, que dá vários indícios, por meio de sua manifestação artística, que tem percepção acurada dessas ferramentas, discutindo questões sociais que envolvem essas mídias. 3. Ações de Forest Muitos estudiosos discutem a obra de Fred Forest e, como ele próprio é um pesquisador, se uniu a diversos intelectuais para analisar temas de interesse geral. Com Mario Costa Forest iniciou um movimento de pesquisa referente à estética da comunicação. E para Costa, o trabalho de Forest resulta sempre na combinação de três fatores: o fator publicitário, o fator sociológico e o fator estético. O fator publicitário é o de sempre tornar eficaz a informação e sua força de penetração, o que justifica a forma cada vez mais estranhamente surpreendente como divulga ou propõe suas obras. O procedimento artístico o é de usar arte como propaganda da própria arte, a arte funcionando como propagandas; um dos motivos de assim agir é para evidenciar a arbitrariedade dos sistemas de comunicação social. Para tanto, recorre a signos inusitados, pois, segundo a teoria da informação, as informações contidas em um signo previsível são poucas; em contra partida, um signo imprevisível tem maior quantidade de informações, instigando a atenção. Vistas desta maneira, as ações de Forest exploram o potencial publicitário, e ele mesmo, por vezes, surge como agente publicitário de um gênero que as agências de propaganda ainda não vislumbram em usar na venda de seus produtos. 626 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


No fator sociológico, ainda de acordo com Costa (2006:54), Forest discute diversas vertentes do comportamento do homem em sociedade simulando situações que expõem a lógica de suas reações. Nesse sentido, as ações criadas pelo artista acabam fornecendo instrumentos para geração de metodologias novas para pesquisas na área da sociologia, com capacidade criativa inesgotável para ultrapassar os limites das metodologias utilizadas até então, que trazem apenas informações estatísticas. Em relação ao fator estético, Forest coloca tanto o fator publicitário quanto o fator sociológico – que contam com criatividade, crítica pelo humor, participação da sociedade, tecnologia da comunicação – em coesão. A coesão em equilibrar todos estes aspectos e manter a sensibilidade artística dá coerência às ações do autor, que podem ser entendida como estética da comunicação. Ainda sobre estética da comunicação, Mario Costa explica como: “uma reflexão filosófica sobre a nova condição antropológica e, co nseqüentemente, sobre as novas formas de vivências estéticas instauradas pelas tecnologias comunicacionais...” (COSTA,1995:7).

Em entrevista cedida à revista Flusser Studies 08, Fred Forest ao ser questionado sobre a possibilidade de sua obra modificar a sociedade manifesta-se assim: Eu faço o que faço porque é uma maneira de me investir de um poder que eu não tenho. Se você não tem poder, você não pode agir em u ma sociedade, denunciá -la. Você pode denunciá-la através da palavra, mas quando você está num lugar co mo o meu e que você quer se apropriar de um poder, você é confrontado com uma realidade e daí você deve ter u ma estratégia. (Flusser Studies. Vo lu me 08, maio de 2009)

Essa afirmação mostra como Forest valoriza a condição de poder manifestar suas ideias e pensamentos a respeito de fatos e de atitudes que ocorrem em nossa sociedade. Contudo, toda vez que pretende dizer algo, quer ser ouvido pelo maior número de pessoas possível. Para tanto, cria estratégias para divulgar suas ideias, de promover a si mesmo para poder ser ouvido. Forest conhece o funcionamento dos meios de comunicação, sabe como a mídia trabalha para promover fatos e pessoas. Munido dessa informação, cria uma estratégia que utiliza o sistema midiático para promover suas ações, que geram reações na sociedade. Nesse ponto é possível compreender que as questões sociológicas, tão estudadas pelo artista, também são articuladas estrategicamente com o propósito de chamar a atenção para a ação. A estética entra como a 627 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


coerência da forma, do formato da obra, para que ela seja vivenciada pelo espectador, para que ao menos faça uma reflexão a respeito. Forest cria situações com o objetivo de levar a sociedade a refletir sobre si mesma e sobre a forma como seus integrantes estão sendo levados a viver. Suas ações mostram a participação da mídia nesse sistema. Depois de analisarmos as obras criadas pelo artista e os possíveis motivos que o levaram a produzi- las, foi possível verificar o quanto a arte de Forest é profunda e articulada, na medida em que discute o que são novas manifestações artísticas, o que pode ser considerado arte, quem é artista, qual o valor de uma obra de arte, os comportamentos sociológicos do ser humano, a estética da informação e outras possíveis questões. Porém todas elas são sempre evidenciadas através da mídia como sua principal ferramenta de divulgação. 4. Wanted Julia Margareth Em 1988, Forest lançou pelos meios de comunicação a busca por uma artista chamada Julia Margaret Cameron, com base em 40 diferentes anúncios pub licados em um jornal diário local, ao longo de seis meses, na seção de “pessoas desaparecidas”. Esses anúncios foram reforçados por panfletos distribuídos em locais públicos, cartazes, grafites e divulgação em rádio e televisão. Com isso o artista gerou uma sensação de suspense em torno de uma personagem fictícia que alegava estar desaparecida. O público foi convidado a enviar à pessoa misteriosa letras, imagens e mensagens de telefone; e todo o material recolhido era imediatamente colocado em exposição no museu da cidade de Toulon (França). No final dessa ação participativa, que demonstrava a capacidade da mídia para transformar a ficção em realidade, a personagem, desempenhada por uma atriz, fez um retorno triunfante em um show ao ar livre. Na verdade, tudo não passava de uma grande farsa: Julia Margareth Cameron jamais existira, mas muitos afirmaram conhecê- la. Todas essas ações se constituíam em um de seus projetos. Para realização da obra Wanted Julia Margareth Cameron, Fred Forest se utiliza dos meios de comunicação, como jornal impresso e televisão, para divulgar informações criadas por ele próprio. Nessa obra, ele demonstra o poder de divulgação das mídias de uma forma bem inusitada. Esse projeto remete às experiências de Orson Wells tais como ao já histórico Guerra nos Mundos (1938) em que ele simulou uma invasão de marcianos no planeta Terra. 628 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


No caso das ações de Forest, não se trata apenas de denunciar o potencial e o poder de transmissão dos meios de comunicação e sim de, concomitantemente, cria r situações em que o público possa dar voz as simulações dele, aos próprios circuitos imaginários utilizando, para isto, os meios de comunicação (ARANTES, 2006:19). Porém, Julia Margareth Cameron nunca existiu! 5. Julia Margareth e a mídia Fred Forest revela que as mídias sabiam da participação da imprensa, nesse processo. Mas, o fato é que ele conquistou um espaço para divulgar seu trabalho, e gerou uma polêmica que foi interessante para a mídia ter audiência, continuar falando sobre o assunto, além de conseguir sensibilizar a sociedade para sua ação. Segundo dados compilados para este estudo de caso sobre a obra de Fred Forest, a ideia de criar essa ação era “uma forma de introduzir a crítica imaginária na grande imprensa”, como ele próprio afirma em sua e ntrevista para este trabalho. As ações do artista – sob o olhar do autor Mário Costa – se utilizam de três elementos fundamentais, ou seja, os fatores: publicitário, sociológico e estético, como já discorrido no capítulo anterior. Analisando o fator publicitário da ação, verifica-se que Forest cria uma forma inusitada de promover um artista socorrendo-se de um apelo, no caso, invocando o retorno de Julia Margareth, artista desaparecida, em atendimento aos fãs dela. Tal mensagem publicitária foge do óbvio, e, por isso mesmo, torna o fato interessante, enigmático. E abre espaço para “dar asas à imaginação” do espectador, que passa, então, a se colocar como fã ou conhecedor da artista. Por outro lado, a mídia fomentou e aproveitou a oportunidade para explorar o “fato”, mesmo sabendo que tudo não passava de uma ilusão, pois nas palavras de Forest: “As mídias sabiam, é claro, mas o público não tinha certeza. Esta incerteza, conscientemente mantida fa z parte da arte”. (FOREST apud CAMARGO, ANEXO1, 2011:1) Ao mesmo tempo, o fator sociológico também aparece na reação da sociedade em relação à ação. O público em geral é convidado por Forest a manifestar sua admiração e interesse por Julia Margareth por meio de cartas, que são expostas em um museu local, e declarações em telejornais. Aliás, o museu não foi um elemento aleatório, colocado descuidadamente, ele tem

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uma função. Segundo Forest “o museu agiu como um receptáculo e arquivamento de toda a comunicação produzida”, e também era uma forma de trazer essa ação para o campo da arte. Tal qual o museu, o recurso de se utilizar de diversas mídias para anunciar o desaparecimento de Julia também faz parte da cena, e os motivos, são contados por Forest: “Eu utilizo anúncios de imprensa para tocar o mais vasto público que está fora do ambiente específico da arte e de seu mercado”. (FOREST apud CAMARGO, ANEXO1, 2011:1) Como agora se sabe, a imprensa tinha conhecimento de que a atriz procurada, Julia Margareth, não existia e ainda assim deu espaço em telejornais para promover o assunto. Tal conduta é um tanto quanto intrigante e parece sinalizar que a imprensa considera que - mesmo sendo um fato inexistente, o que até pode ser um objeto de critica as suas práticas - a polêmica vale a audiência. Por fim, parece ficar implícito que o público não tinha certeza da veracidade da existência da tal musicista desaparecida. Ora, a mídia espontânea, como já exposto anteriormente, é muito utilizada em marketing e tem como objeto incitado a divulgar os produtos, serviços, e outros, gerados pelas assessorias de imprensa de empresas e celebridades, que são contratadas para essa finalidade. E por sua vez, os meios de comunicação necessitam de conteúdos, que gerem audiência, para se sustentarem. Aproveitando-se desses mecanismos, as empresas tornam seus produtos e serviços conhecidos e fazem a manutenção e ampliação de suas vendas. O artista foi indagado sobre a possibilidade de estar cercado de uma assessoria de imprensa. Mas, sua declaração a este respeito foi: Não, eu não tenho meios financeiros para recorrer a u ma agência de co municação ou relações públicas. Ainda mais que eu me situo, ideologicamente, fora do mercado. Para mim a arte é u m chamado para co mpartilhar co isas que eu considero importante para os outros, e nunca para uma função de negócio. Pelo meu entendimento e conhecimento de sistemas de míd ia posso substituir, eu mesmo, os intermediários da comunicação. É certo que a internet mais a imaginação dão hoje os meios aos artistas e aos indivíduos de fazer passar suas mensagens e de exis tir co m u ma autonomia maior. O que lhes dá uma maior liberdade crítica. (FOREST apud CAMARGO, ANEXO1, 2011:2)

As palavras de Forest demonstram que toda a estratégia de divulgação é pensada pelo artista durante o processo de criação de suas ações, e mostra o posicionamento dele, como pesquisador e formador de opinião, em relação ao mundo das artes. E reforçam os propósitos de gerar reações e reflexões nos mais diferentes públicos. E apresenta mais uma motivação de 630 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Forest, que é compartilhar coisas que considera importante. Ou seja, o artista não conta com uma assessoria de imprensa ou relações públicas para fazer a divulgação de suas ações nem para auxiliar no desenvolvimento de suas estratégias de divulgação. Isso torna mais evidente o conhecimento dele nessa área, pois suas estratégias estão baseadas no entendimento da sociedade, das mídias e meios de comunicação. E sua resposta levanta outras possibilidades, uma delas está em sintonia com a afirmação de Pierre Levy, quando escreve sobre a obra de Forest e diz que “o caminho da pesquisa inaugurada por Fred Forest e alguns outros conduzirá um dia a formas de arte inéditas”. As ações criadas pelo artista, justamente por procurar formas inusitadas de gerar uma reação e/ou reflexão, trabalhando o conceito de estética da comunicação, muitas vezes inova nas ferramentas e nos meios de apresentar suas obras. Mario Costa (2006), no livro “Fred Forest: Circuitos Paralelos – retrospectiva”, organizado por Priscila Arantes, declara que a obra do artista em questão sempre conta com três fatores: o publicitário, o sociológico e o estético. Sobre isso, o artista assim se manifesta: Concordo com Mario Costa. Mas falta entender a publicidade no sentido geral da palavra e não « stricto sensu», (FOREST apud CAMARGO, ANEXO1, 2011:2)

Forest reconhece, em sua resposta, que sua obra contém os fatores sociológicos e estéticos alegados por Mario Costa. Porém, quanto ao publicitário, pensa que falta entender o que publicidade no sentido geral. “Latu sensu”, a palavra publicidade remete a público; arte, ciência e técnica de tornar algo ou alguém conhecido para ter aceitação do público. A obra de Forest não se coloca como instrumento do marketing e da propaganda. O fator publicitário, nas ações de Forest, tem como possível propósito se nsibilizar os mais diferentes públicos, mesmo àqueles que não estão ligados ao meio das artes. O propósito da estratégia de divulgação empreendida por Forest em suas obras não se restringe a ideia de marketing, de venda de sua obra como produto de mercado. Ela é utilizada como recurso para despertar a reflexão do público e dos meios de comunicação. Como ocorre, se ocorre e em que extensão ocorre essa reflexão nos meios de comunicação, não foi aferido para esta dissertação, pois que fugiria ao propósito da tese. Mas, a reação do público no caso de Wanted Julia Margareth Cameron, pôde ser aferida pelo material enviado ao museu por "seus fãs", "seus admiradores", por aqueles que se sensibilizaram aos apelos, e pelas 631 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


declarações aos meios de comunicação, ao show de “retorno” de Julia. Mas o inesperado para Forest foi a repercussão, que atingiu um ponto além do esperado, como ele próprio afirma: “A resposta do público prosseguiu conforme previsto, com uma alta taxa de participação que me surpreendeu”.(FOREST apud CAMARGO, ANEXO1, 2011:1) 6. Conclusão Seria esvaziar a questão afirmar que o artista se coloca a serviço do marketing e da propaganda. A realização de sua obra contém mais: “meu trabalho necessita bastante de outras coisas essenciais, a saber: a paixão, a motivação, a energia, a confiança em si mesmo, a curiosidade, a imaginação”, como declara o próprio Forest. Também interessante foi ouvir do próprio Fred Forest os motivos que o fizeram criar a obra Wanted Julia Margareth, e como ele se reconhece e reconhece o valor dela enquanto instrumento que estimula, provoca, reflexões. E mais, que certas afirmações ratificam conclusões de outros estudiosos sobre o conjunto de sua obra. Além das correlações apontadas, ele deixa um legado para o mundo das artes. Sua forma de pensar e fazer abre novas possibilidades de arte em mídias diferentes, visto que explora de maneira brilhante a internet para suas ações e as faz integrando diversas mídias ao mesmo tempo, criando, então, uma estratégia que é obra e tem função de es tratégia também. A obra dele, de certa forma, se repete, mas de modo inovador, instigante, interessante, trazendo sempre à tona discussões sobre a participação da mídia na arte, da mídia como ferramenta da arte e da mídia como parte integrante da arte. Ademais, o Forest por si só é um evento. Ele não é um homem comum que busca resultados comuns. Muito embora diversos aspectos tenham sido abordados neste artigo, existem ainda outros temas, dentro da obra de Forest, que podem ser discutidos e analisados. Uma mídia que ainda renderá muitas obras e estudos é a internet – e sua aplicação em plataformas como notebook, netbook, tablet, celular e outras que ainda possam surgir –, pois ela abre campo para infinitas formas de arte serem exploradas e as plataformas trazem mais público , em tempo real, para discussões e reflexões que ela venha a ensejar. Referências Bibliográficas ARANTES, Priscila. Arte e mí di a. Perspectivas da estética digital. Editora Senac. São Paulo. 632 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


BOUSSO, Vitória Dan iela. Circuitos Paralelos: Retrospectiva Fred Forest. São Paulo: Ed. Imp rensa Oficial de São Paulo, 2006. COSTA, Mario. O subli me tecnológico. São Pau lo: Experimento, 1995. COSTA, Mario, in BOUSSO, Vitória Daniela. Circuitos Paralelos: Retrospectiva Fred Fo rest. São Paulo : Ed. Imprensa Oficial de São Paulo, 2006. PLAZA, Julio. Arte e Internati vi dade: Autor-Obra-Recepção. CONCINNITAS - Revista do Instituto de Artes da UERJ, Nú mero 4, ano 4, Março 2003. SFEZ, Lucien. A comunicação. Ed. Martins Fontes, 2004.

Dissertações CAMARGO, Maíra Cezaretto. Fred forest: o poder da mí di a es pontânea como elemento de criação artística. 2012. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais), Programa de Pós -Graduação em Artes Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes.

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COMO CONSTRUIR UM DISPOSITIVO DE ESCUTA? Marcelo Salum Resumo: O artigo analisa alguns aspectos da ação artística denominada Receitas, realizada em três versões pelo grupo de artistas chamado Coletivo Comestível. Para isso, estabelece relações entre a atuação artística no espaço urbano com outros tipos de manifestações artísticas, como o trabalho gráfico ou filmográfico. Para tornar as relações mais claras, procedeu-se a comparação com alguns trabalhos da artista Mira Schendel e de Cao Guimarães. As relações são formuladas a partir da retomada dos procedimentos conceituais envolvidos nesses casos analisados. Seguindo esses procedimentos, o artigo foi dividido em 4 partes: 1. Construir uma situação de esvaziamento; 2. Construir um dispositivo para que o real tome a cena; 3. Construir um trabalho coletivamente em forma de rede; 4. Pensar a questão do registro da ação. Palavras-chave: Ação urbana. Procedimentos artísticos. Arte colaborativa. Dispositivo. Registro artístico.

A pergunta foi formulada a partir de um questionamento sobre o sentido de atuar como artista no espaço urbano. Através das referências do campo das artes visuais que nos formam como artistas, passamos a observar os espaços sobre os quais trabalhamos de forma singular. Considero ser essa a especificidade do campo de atuação das artes, mais que qualquer definição estetizante. Pudemos perceber, atuando sobre o espaço da cidade, algumas tangências com procedimentos conceituais utilizados em ações em outros espaços, seja no plano que serve de base para uma ação gráfica - o papel - ou o espaço imaterial de linguagens como a do vídeo, por exemplo. É como se o real da cidade fosse o suporte sobre o qual agimos.

1.

Construir uma situação de esvaziamento.

Partindo desse paralelo que toma o contexto real da cidade como suporte sobre o qual agimos, tomamos como necessário um recorte para que esse campo se configure. Nesse sentido, em primeiro lugar, faz-se necessário construir uma situação de esvaziamento. Podemos observar a utilização de procedimentos que lidam com o que se poderia chamar de mecanismo de esvaziamento em vários processos artísticos. Vamos 634 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


tomar o trabalho da artista suíça, radicada no Brasil, Mira Schendel (1919-1988), como um deles. Ao nos defrontarmos com o percurso definido pelas obras de Mira, apreendemos a configuração de um campo de força constituído por gestos mínimos, seja em suas marcas gráficas seja em suas experiências espacializadas. Quando observamos os resíduos desses gestos, através das marcas gráficas deixadas no papel, nas Monotipias, ou nas configurações orgânicas dos emaranhados nas Droguinhas, notamos que o vazio que circunda essas ações é o que lhes potencializa a apreensão. Mira define esse campo como “ativamente vazio”. Restringir os elementos materiais e as ações a situações mínimas permite que cada um desses componentes seja tomado como um fator significativo. Em outras palavras: mais que uma atitude de preenchimento, as ações se materializam sobre um vácuo, que permite a respiração livre de quem se aproxima. Podemos observar, então, esse esvaziamento em dois momentos: como operação presente na conformação dos gestos significativos dos trabalhos e como parte integrante do campo no qual se encontram os resíduos desses gestos. Assim, nos trabalhos de Mira Schendel, as ações geram situações espaciais através de gestos mínimos. Gesto mínimo, nesse caso não diz respeito a uma ideia de contenção, porém de uma diminuição expressiva, de vocabulário e de movimentos, para que as ações aconteçam apenas movidas por sua necessidade mais primárias. Assim, para se construir um dispositivo de escuta é necessário, em primeiro lugar, se criar um campo esvaziado. Tal campo é produzido por ações que não vem acompanhadas de organizações formais exteriores à relação dos movimentos corporais dos participantes da ação e do entorno. A essa diminuição expressiva denominamos situação de esvaziamento.

2.

Construir um dispositivo para que o real tome a cena

Podemos nos aproximar da noção de esvaziamento também através de outros campos expressivos como o cruzamento entre o cinema e as artes visuais, presentes no

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trabalho do artista brasileiro Cao Guimarães (1965-). O esvaziamento, nesse caso, acontece por meio de um outro tipo de mecanismo, o que se pode ser tomado como um esvaziamento operado através de um dispositivo. Para exemplificarmos o mecanismo do esvaziamento operado através de um dispositivo vamos nos concentrar em observar alguns aspectos do documentário “Acidente”, realizado por Cao Guimarães e Pablo Lobato, realizado em 2005 para o programa Doc TV II. Podemos notar dois aspectos que constituem o esvaziamento, presentes nesse trabalho do artista mineiro: em primeiro lugar uma espécie de escuta silenciosa do mundo e, em segundo lugar, a invenção de dispositivos para fabricar as obras. Existe nos trabalhos de Cao, notadamente no “Acidente”, uma espécie de deslocamento temporal, em grande medida provocado pela colocação, em primeiro plano, da experiência sensorial das situações, ou do que chamamos de escuta silenciosa do mundo. Isso ocorre porque, ao se priorizar a experiência sensorial, a temporalidade não mais coincide com uma cronologia funcional ou factual, ou seja, não se persegue uma narrativa de encadeamento cronológico, mas uma montagem de sequências de temporalidades diversas. Trazer à tona temporalidades diversas significa não recorrer a encadeamentos apenas lineares ou a de um fluxo único de acontecimentos, mas perceber em que medida as temporalidades se apresentam. Isso se torna possível, no caso de “Acidente”, graças ao mecanismo de esvaziamento que permite que essas situações temporais emerjam. Assim, em algumas passagens o tempo transcorre como um fluxo, em outras como um recorte e em outras como sobreposição. Com relação à invenção de dispositivos para fabricar obras temos, no caso de “Acidente”, um fator de aleatoriedade como atributo do procedimento poético. Foram escolhidos nomes de cidade mineiras de populações reduzidas. Cem cidades foram escolhidas e seus nomes foram impressos em pequenos papéis. Esses papéis foram espalhados sobre a mesa e os artistas – Cao Guimarães e Pablo Lobato - começaram a 636 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


brincar com os nomes como palavras soltas. As associações entre essas palavras aconteceram através de mecanismos sensoriais, como as reverberações sonoras, os sentidos fabuladores, as materialidades soltas. Esse procedimento de pesquisa ampliou a potência do nome em detrimento de outros referenciais estatísticos. A associação dos nomes fabula uma trajetória por vezes dramática, por vezes trágica ou apenas silenciosa. Heliodora, Virgem da Lapa, Espera Feliz, Jacinto Olhos d’Água. Entre Folhas, Ferros, Palma, Caldas, Vazante, Passos. Pai Pedro Abre Campo, Fervedouro Descoberto, Tiros, Tombos, Planura, Águas Vermelhas, Dores de Campos. O dispositivo-poema torna-se portanto uma máquina de produzir imagem e adquire, co mo todo dispositivo, um certo poder sobre os cineastas. Decide por eles onde vão filmar; ret ira deles o direito de recusar uma cidade caso não gostassem dela, porque nesse caso o poema deixaria de funcionar. Diminui o excesso de intencionalidade. É u m jogo, que tem suas regras, às quais eles devem se submeter. Não se trata em absoluto de adaptar palavras às coisas, nomes às cidades, mas construir u ma forma de se confrontar com o caos do mundo sem submergir, de imprimir u ma direção in icial, abrindo ao mesmo tempo o filme aos acasos, imprevistos e imponderáveis do real. (LINS, 2007, pag. 04)

Esse jogo, instituído pelo dispositivo-poema, no caso, permite que se encare o mundo sem decisões estéticas tomadas a priori. Esse é o aspecto que aproxima esse procedimento poético com o que é utilizado na ação Receitas. Nos dois casos, a emergência do real no trabalho decorre do esvaziamento, que possibilita uma abertura de espaço no campo do rela e pelo dispositivo detonador da emergência das narrativas, que permite a escuta do mundo. O esvaziamento permite uma entrada direta no cotidiano, na medida em que não há outro filtro além do jogo proposto pelo dispositivo criando pela ação Receitas. Esse dispositivo é acionado ao se colocar elementos que sinalizam uma situação de interação. Os elementos que compõe a ação são simples: consistem numa mesa, duas cadeiras e uma placa com a inscrição “Receitas”. Um dos desdobramentos dessa entrada direta no dia-a-dia da cidade é a criação de uma relação de diálogo com o cotidiano, na qual estão envolvidas questões como o afeto, a memória e a empatia. Na situação proposta na ação Receitas, a atenção é 637 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


dirigida a um tempo no qual as ocorrências são mínimas e por vezes vindas de reminiscências e fragmentos, que interessam menos como um recorte linear do real do que como a emergência de experiências vividas e a possibilidade de troca. A ação Receitas busca observar, entre outras coisas, como acontecem as trocas na cidade. As trocas de sobrevivência, as trocas simbólicas, as trocas de comércio. Podemos imaginar a cidade como se fosse um laboratório de testagem de troca, de modo não-hierárquico, construída como um processo de heterogênese. Entender a cidade como processo de heterogênese significa distanc iar-se de vêla como um organismo que é imposto aos cidadãos a partir de um plano exterior, mas ao contrário, observá-lo como um resultado desses percursos pessoais, perambulações, derivas, trocas e vivências. Trazer à tona a possibilidade de troca interpessoal, segundo nossa visão, é resgatar na cidade a vocação de lugar de interação com o outro. Assim, a cidade deixa de ser apenas um espaço de passagem, ou um não lugar 1 , e passa a ser o espaço que abriga uma rede de afetos.

3. Construir um trabalho coletivamente e m forma de rede.

A ação Receitas A ação realizado sobre o espaço urbano, denominada Receitas propõe uma pausa no cotidiano para a realização de uma troca de conhecimentos e experiências. Essa situação dialógica muitas vezes se desdobra em uma troca de afetos, de histórias, de 1

O ideia de não-lugares foi desenvolvida pelo antropólogo francês Marc Augé (1935 - ). Em parte de seus estudos, Augé se concentra na análise da relação antropológica do homem co m o espaço, e da questão da identidade e da coletividade. Para ele, o não-lugar é representado, entre outras coisas , por espaços públicos de rápida circulação, como metrôs, aeroportos, e por lugares privados de não permanência co mo hotéis e supermercados. A constituição de um não-lugar, para o autor, entretanto, é realizada como um contrato entre sujeitos. Esse contrato é conformado através de símbolos culturais, como passaportes e cartões de crédito, por exemp lo, que autorizam deslocamentos impessoais.

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memórias. A captura de receitas no espaço público, age como um dispositivo de alteridade capaz de gerar e transmitir uma série de “experiências” que estão além da união de determinados ingredientes. Nessa aproximação com pessoas e suas histórias que se encontram num espaço fronteiriço entre real e ficção, os artistas do grupo imergem em universos particulares através da apreensão de “ficções”, de relatos, histórias e receitas. Uma forma de investigar, nesse local de enfrentamento, de contato entre diferentes identidades e da ação corriqueira, como estabelecemos relações pessoais e como a experiência artística emerge potencialmente desses encontros. Nesse sentido, A ação Receitas cria uma situação para dar voz aos fluxos de comunicação da cidade, através da construção de um espaço de atenção para a heterogeneidade de narrativas que provém dos transeuntes. O processo de gerar a ação Receitas acontece em meio a ação conjunta de construir um coletivo, de nome Comestível. Leva-se em conta, nessa ação, a noção de público, porém tomando como relevante o singular e o específico de cada espaço. Desse modo transforma-se os espaços em lugares. Os espaços criados pela ação tem como pressuposto a noção de público, porém esta é tomada em forma de uma rede de afinidades, de um trânsito eletivo de afetos. Os procedimentos que compõe a ação Receitas, realizada pelo Coletivo Comestível criam uma situação de esvaziamento nos fluxos intrincados da cidade, na medida em que propõe apenas uma coleta de “indicações”. Tanto na postura com relação aos transeuntes quanto no tipo de conteúdo presente nos diálogos existe uma atitude de troca sem nenhuma finalidade específica. Uma espécie de troca que poderíamos localizar num plano esvaziado de finalidade, ou num campo “ativamente vazio”. O Coletivo comestível Coletivo Comestível é um grupo de artes visuais que reúne artistas amigos de diferentes origens que hoje vivem e trabalham em São Paulo: Bruna Rafaella Ferrer (Vitória de Santo Antão-PE), Lyara Oliveira (Jundiaí-SP), Marcelo Salum (Tambaú-SP) e Patrícia Francisco (Porto Alegre-RS). O desejo desse encontro produtivo é criar um 639 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


ambiente de aprofundamento das relações habitualmente construídas no meio artístico e elaborar propostas de experiências artísticas colaborativas, gerando assim momentos de debate e articulação para circulação dessas experiências. Para

mais

informações

sobre

o

grupo

pode-se

consultar

o

blog

coletivocomestivel.blogspot.com.

4. Pensar a questão do registro da ação A ação Receitas foi elaborada, como vimos, em meio aos processos de conversa do Coletivo Comestível. Ela nunca existiu inteiramente antes de ter acontecido na rua. Todos os contornos foram sendo percebidos na ação. Questões como : qual tempo dar às narrativas? ou como abordar as pessoas?, foram aparecendo durante as experiências. A questão de como realizar o registro foi surgindo durante esse processo. O registro das receitas esta sendo feito por meio de câmeras de mão e algumas das narrativas são registradas também através da escrita no papel. Como lidamos com narrativas muito ricas, no sentido da heterogeneidade e singularidade do narrador, apareceu um desejo de que cada uma delas tivesse um registro o mais preciso possível. Isso criou uma espécie de relação conflituosa entre o que acontecia na rua e o tipo de registro que poderíamos adotar. Foi necessário que nos aprofundássemos na especificidade da ação que queríamos realizar para que a questão do registro ficasse um pouco mais clara. Em primeiro lugar tomamos consciência de que a ação não consistia num documentário sobre receitas, mas na criação de um espaço de interlocução. Isso tem como consequência a consciência de que a câmera não precisa realizar um registro do fluxo narrativo, mas da ação como um todo. Além disso, existe uma resposta corporal que acontece quando se tem uma câmera colocada frontalmente. Essa reação pode ter como consequência que os relatos se tornem menos fluentes, retirando, desse modo, muito de sua espontaneidade. Fomos percebendo, então, que o trabalho lidava com

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questões como a empatia e nesse sentido, a relação a ser privilegiada não era a relação “pessoa-câmera”, mas a relação “pessoa-pessoa”. Essas duas constatações passaram a servir como guia para pensarmos o registro da ação Receitas, mesmo que ainda pensemos em incorporar novos recursos de captação de imagens e sons, ainda em estudo.

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Imagens: Blog onde se encontra os trabalhos observados: www.co letivocomestivel.b logspot.com

Fig. 1 Mira Schendel Droguinha, dec. 1960 Papel japonês retorcido, dimensões variáveis Col. Particular, São Pau lo

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Fig. 2 Mira Schendel Droguinha, dec. 1960 Papel japonês retorcido, dimensões variáveis Col. Particular, São Pau lo

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Figs 3 e 4 Mira Schendel Sem Título, 1964-65 Monotipia sobre papel arro z 47x23cm col. Particular, São Pau lo e Buenos Aires

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Fig. 5 Mira Schendel Sem Título, 1964-65 Monotipia sobre papel arro z 47x23cm col. Particular, São Pau lo

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Fig. 6 Frames do longa metragem Acidente, 2005 Cao Gu imarães e Pablo Lobato Cidades: Entre Folhas, Ferros e Planura 646 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Fig. 7 Frames do longa metragem Acidente, 2005 Cao Gu imarães e Pablo Lobato Cidade: Espera Feliz

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Fig. 8 Frame do longa met ragem Acidente, 2005 Cao Gu imarães e Pablo Lobato

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Fig. 9 e 10 Fotos da ação Receitas realizada na região central de São Paulo Novembro de 2011

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Fig. 11 e 12 Fotos da ação Receitas realizada na região central de São Paulo Novembro de 2011

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PORQUE SOMOS HELENAS Uma passagem entre linguagens Maria Helena Machado Farina 1 Resumo: A presente pesquisa consiste no estudo e registro da semiose na passagem da linguagempictórica para a cênica de alguns autorretratos da artista finlandesa HeleneSchjerfbec. Busca compreender o percurso criativo e o processo de construção e desconstrução existentes nesta passagem em um contexto de espaço e tempo diferentes. Registra o trabalho de criação em seu movimento, em sua forma imprecisa, problemática, instigant e, com o intuito de trazer novas utilizações dos códigos da linguagem cênica, por meio do rompimento dos limites entre as linguagens artísticas, em que novas possibilidades criativas surgem. Constitui um desafio de comunicação e interação de universos próximos, porém distintos. Investiga de que maneira a síntese interpretativa da vida desta artista plástica em seus autorretratos pode ser transformada em expressão cênica, em personagem que se expressa principalmente por meio do corpo, do gesto, da face, do olhar. Pesquisa de que forma o que é envolvido pela moldura destes quadros, sob a visão de uma atriz, dirigida pelo encenador Fábio Vinasci, em um processo de criação cênica, pode ser transposto para a cena teatral. Assim, recupera a atribuição de sentido e xpresso na tela e “vivifica-o” na representação cênica. As autorrepresentações da artista finlandesa HeleneSchjerfbeck (1862 -1946) me impactaram pela força expressiva e pela representação da passagem do tempo: autorretratos desde muito jovem até seus últimos anos de vida. No seu percurso artístico altera sua pintura conforme suas próprias transformações corporais e emocionais, acompanhando sempre as mudanças nas artes visuais. Seus autorretratos sugerem estados emocionais individuais e arquetípicos. A invenção de novas experimentações cênicas a partir deste olhar buscou privilegiar a função poética das linguagens.Explorar os limites da linguagem para chegar a outra linguagem, testar possibilidades expressivas , afina a sensibilidade e potencializa a criação. Desaloja certezas, tira categorias estanques. O processo de improvisações consistiu na criação de expressões cênicas a partir de efeitos produzidos pelas imagens dos autorretratos escolhidos. Assim, formas, cores, luzes se recriavam em gestos, movimentos, máscaras, iluminação. Há registro do processo (fotos) e da apresentação (DVD). Palavras-Chave: Helene Schjerfbeck . Autorretrato. Processo de criação. Performance. Linguagem.

1. Processo criativo da performance “Porque somos Helenas” Minha primeira grande pergunta é: que significações estão impregnadas nos autorretratos de HeleneSchjerfbeck? Ora, há uma ficção na construção que cada indivíduo faz da sua própria imagem, sobretudo quando se expõe ao outro. Há uma parcela de mentiras que faz parte da verdade de cada um, que é componente essencial da realidade, pois somos o que somos, o que imaginamos e o que desejaríamos ser. Até onde vão as barreiras entre mentira e ilusão,

Programa de Pós Graduação em Educação, Arte e História da Cu ltura - Un iversidade Presbiteriana Macken zie 651 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


percepção e fidelidade, verossimilhança e fantasia? O ator é aquele que empresta seu corpo, sua aparência, sua voz para a personagem. A criação da personagem não “despenca do céu”, não é fruto de uma iluminação especial, mas o ator, como o escritor, o pintor, extrai dele mesmo a produção de sua obra. Assim, a atriz quando revela a pe rsonagem, também é revelada por ela. Descobre-se através da personagem. Reconhece a si no outro. A atriz não quer se limitar a repetir, mas sim, viver na imaginação a ficção para que ganhe força de um fato real. Tem a preocupação de entender o outro, ler e interpretar – no caso – mensagens não verbais, visuais, aliadas a histórias que recolheu sobre a vida da pintora. Em cena, não critica, não agride, ou seja, não julga, o que evita que a personagem fique achatada e estereotipada. Isto é, a atriz não significa por simples transposição e imitação: constrói as suas significações. Nesta teia complexa de componentes próprios e do outro, existem sutilezas entre vida real e vida interpretada. Quem é a verdadeira protagonista da história? Tudo tão delicadamente re al.

FIGURA 1: Busca, movimento e expressão: Seis vezes Helene. FONTE: Cossalter (2011). Disponho

os seis autorretratos de HeleneSchjerfbeck

na

minha

frente e

contemplo(FIG. 1). Fecho os olhos e revejo-os. Abro os olhos. Pergunto- me: como despregálos da moldura e incorporá- los? Como dar vida, movimento, a alguém que está lá, parado, 652 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


fixo, imóvel? Fiquei angustiada e paralisada alguns dias. “O artista mostra necessitar da paciência daqueles que trabalham sobre o estímulo da esperança. Trabalho de quase Sísifo” (SALLES, 2009, p. 87). Resolvi trabalhar imagem por imagem. Nesta preparação, decidi trabalhar no coletivo: num processo colaborativo, recorri à bailarina Miriam Dascal para ampliar meus recursos corporais, na busca de expressões cênicas das imagens. Reli as situações da vida de HeleneSchjerfbeck para que me despertassem sentimentos, emoções. Quem sabe assim, “rechearia” a vida interior da personagem dando- lhe mais sentido. Stanislavsky (1991, p. 77), fundador do Teatro de Arte de Moscou, pontua a importância das “circunstâncias dadas”: fatos, acontecimentos, época, tempo, local, condições de vida da personagem como elementos que podem despertar uma atividade interior e real; podem ser a alavanca para determinados atos e sentimentos dessa pessoa imaginária.

FIGURA 2: Busca, movimento e expressão: Helenas. FONTE: Dascal (2011). Após a releitura, refiz minha postura para reproduzir sua primeira imagem, mas o peso e a densidade do meu gesto, do meu olhar não correspondiam aos da figura de Helene em seu primeiro autorretrato (FIG. 2). 653 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Seres humanos são interpretadores dos fatos, tendendo a precipitar entendimentos diante do desconhecido. A imagem escapou. Queria valorizar apenas aquele momento, aquela imagem, apreendê- la no imediato. Fazer pulsar em mim o que pulsava naquele autorretrato por meio de suas cores e formas. Forma, ritmo e fluxo. Eugênio Barba, fundador do OdinTeatret, ao tratar da partitura, que é a manifestação objetiva do mundo subjetivo do ator, cita quatro possibilidades: tratá- la como forma, como ritmo, como cores ou como fluxo. Forma seria o desenho dinâmico no espaço; ritmo, a alternância de tempos; cores, a qualidade de energia – macia ou vigorosa; fluxo seria como um dique que contém o fluir orgânico das energias (BARBA, 2010, p. 69). Pensando nesses conceitos, olhei a primeira imagem de Helene, achei-a jovem, provavelmente apaixonada por sua arte e comecei a dançar. Não havia desejo de contar história nenhuma, era uma dança livre. Pretendia uma comunicação subjetiva, e como a relação com os espectadores é prismática, permitiria diversas afetações. Optei pela dança porque o espaço na improvisação dá fluxo e na performance não há a interface entre teatro e dança. O corpo expressava uma atmosfera, um estado de espírito. O movimento, em dança pura era a poesia do corpo no espaço. As influências do movimento eram musicais (testamos algumas músicas) e o conteúdo emocional era a “vontade de pintar o mundo”, a aventura de descobrir-se por meio da pintura. “Os desenhos visíveis da dança podem ser descritos em palavras, mas seu significado mais profundo é verbalmente inexprimível” (LABAN, 1971, p. 53). Movimentos variados para cima, para baixo, direita, esquerda, frente e trás percorriam o espaço como se o corpo estivesse pintando este espaço. Mutantes expressões corporais traçavam um contorno complexo em múltiplas combinações até o momento em que acontecia uma nova escolha na forma dos gestos e postura corporal. Neste instante, a ação era dotada de um objetivo específico: a personagem começava a pintar seu primeiro autorretrato; colocava-se na posição da imagem do autorretrato e ficava imóvel por uns instantes. Como se quisesse fixá- la em uma moldura. Segundo autorretrato de HeleneSchjerfbeck (1895): Qual é a s ingularidade de HeleneSchjerfbeck? Algo se repete, mas algo se transforma. Ela muda e se torna outra.

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Retorna sobre si, o que a modifica e a torna inédita. O passado sai do campo de ação, mas coexiste. Ela se torna algo diferente dela, apesar dela. Mudou, mas segue sempre sendo uma. Perco-me em labirintos, hiatos, possibilidades. Neste segundo autorretrato, Helene ainda é jovem, mas seu rosto, seu olhar estão diferentes. Há uma diferença na pintura e nas cores. A pincelada neste autorretrato tem movimento em torno da cabeça, as cores do rosto, da roupa e dos cabelos são também as cores do fundo, o que provoca uma harmonia, uma suavidade. O rosto em posição ¾ traz um olhar mais enviezado para o lado, provocando certo distanciamento em relação ao espectador. Este olhar dá a impressão de que Helene se procura na imagem do espelho. A roupa escura, com gola alta, valoriza o semblante de pele clara, numa relação de alto contraste. Olho para a imagem e para o espelho e faço uma posição corporal igual a ela. Providencio pano azul, de tonalidade parecida com o azul do quadro, pano é cênico, lúdico. Tem mobilidade, é mágico.

FIGURA 3: Busca, movimento e expressão: Obliquamente. FONTE: Dascal (2011). Faço um olhar de lado, (desconfiado?), como o dela (FIG. 3). 655 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Fiquei parecida, mas ainda não estava satisfeita. De qualquer forma, passei a contemplar o quadro seguinte. Terceiro autorretrato de HeleneSchjerfbeck (1912): A partir deste autorretrato, não há mais compromisso com a “realidade” da imagem. Numa fase já expressionista, pinta um olho de cada cor, uma sobrancelha de azul, espalha círculos coloridos pelo rosto e a boca é pintada. Cada olho tem uma cor. Olhar abandonado a si mesmo, desconfiado, estrangeiro? Com que olho ela vê o quê? Olho, fronteira móvel e aberta entre o mundo externo e Helene. As cores expressam-na e escondem- na. A primeira associação que faço é com o palhaço, que imprime em sua fisionomia as mais disparatadas maquinações de cores. O palhaço é brincante, é melancólico. O nariz vermelho é característico, e ele só aparece numa relação com outra pessoa (FIG. 4). Helene está só, mas tento me relacionar com ela. O que esta imagem de Helene revela?

FIGURA 4: Busca, movimento e expressão: Cores e formas II. FONTE: Dascal (2011). 656 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


O palhaço revela o ridículo de todos nós. E ela? Dor? Mesmo colorida, sua expressão não é alegre. Ando pelo espaço, procuro exprimir corporalmente o que este quadro me transmite. Movimentos de tensão e encolhimento mesclados com movimentos de relaxamento e liberdade expressavam a dialética dentro versus fora, exposição versus esconderijo, choro versus riso. A seguir, fitei- me no espelho alguns instantes e desenhei com batom vermelho círculos no meu nariz, na bochecha, na testa. Olhei- me, olhei de lado, me senti criança, brincante, atriz. Quarto autorretrato (1915): Trata-se de uma mulher madura, que me transmite segurança, altivez. Apropriada de si mesma e de sua função de artista, uma vez que aparecem, pela primeira vez, objetos de pintura. Neste retrato, o rosto é fro ntal, o olhar direto e a roupa é clara, com um broche. Segundo Focos (1995), este autorretrato foi uma encomenda da Associação de Artes da Finlândia. Ora, pressuponho, então, que ela mostrou-se como queria ser vista. Talvez seja como ela se apresenta no mundo, sua persona. Seu papel social, a aparência exibida para facilitar a comunicação com o mundo externo, com a sociedade em que vive. Olho para o espelho, me penteio, faço maquiagem, me arrumo. Fito- me. Penso na minha/dela identidade. Olho novamente para o quadro e observo os signos que ela escolheu para representá- la: recipiente com pincéis, o que a define como pintora; maquilagem, broche, apetrecho no cabelo lhe dão identidade feminina (FIG. 5). Olho para ela, para mim, para o espelho.

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FIGURA 5: Busca, movimento e expressão: Através do espelho. FONTE: Dascal (2011). Quinto autorretrato (1939): Pintura dramática, subjetiva. Figura torta, deformada, monstruosa. Máscara angustiante, estranha. Sobrancelhas e olhos mais uma vez chamam a atenção. Uma sobra ncelha bem expressiva, a outra quase inexistente. Um olho diferente do outro. Ao contrário da imagem anterior, esta não possui características de identidade definida, é quase uma máscara, que produz um impacto emocional no espectador. Observo o autorretrato e faço caretas exageradas, grito para exprimir esta distorção. Que angústias esta imagem expressa e provoca? Olho todos os autorretratos e percebo um movimento de Helene do exterior para o interior, conforme ela fica mais velha. Há um amadurecimento na idade e na pintura. De uma expressão realista, passa para momentos expressionistas, em que deforma a figura para ressaltar o sentimento. Conforme o tempo passa, a expressão do seu mundo psicológico adquire maior importância do que seu mundo físico, aparente (FIG. 6). Na minha interpretação, o olho é a fronteira entre os dois mundos: interno e externo. Lanço perguntas à imagem, especialmente aos seus olhos. O que ressalta é sempre o olho. 658 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Qual olho revela, qual olho engana? As percepções visuais são muitas ve zes assimétricas e dinâmicas.

FIGURA 6: Busca, movimento e expressão: Desconstrução. FONTE: Dascal (2011). Branca, “pastelada”, esta imagem nos remete a nossas partes obscuras, malditas; um espelho de nossas distorções, contradições, aflições interiores. Ela é patética, retorcida. A mim, me faz pensar em facetas da loucura, conflito entre partes, caos interno. Inevitável a associação com máscara, a imagem parece uma máscara, que por sua vez, designa uma criação fantástica, feiticeira, relacionada a manifestações diabólicas em torno de um mistério. No Teatro primitivo, aquele que usa máscara perde a identidade, passa a ser quem representa; é “possuído” pelo espírito daquilo que personifica e os espectadores participam dessa transfiguração. A máscara trágica procura reproduzir o patético e a dor. A máscara expressionista na pintura exprime as convulsões da alma humana; no teatro, ela representa o outro: o ator “perde” a identidade e passa a ser quem representa, o que é compartilhado com quem o assiste (espectador). Assim, a máscara relaciona de forma peculiar, o real e o imaginário, tem valor simbólico, é arquetípica. Planos e ângulos da iluminação no palco, relação de luz e espaço cênico, ou seja, desenho de luz, construído com um iluminador, transmitem efeitos análogos aos efeitos de jogos de contrastes, de luz e sombra na pintura. Dão clima, valorizam expressões. 659 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Este autorretrato me levou a exploração de outros signos cênicos: máscara, iluminação. Sexto autorretrato (1944): este autorretrato me colocou e m contato com sensações, emoções vinculadas à ideia de morte. É como se Helene registrasse sua imagem esvaindo-se, já perto do final da vida. Trata-se de uma pintura bem impactante, é quase um borrão, com um olho bem grande e o outro praticamente apagado, só se vê sua sombra. Neste quadro, HeleneSchjerfbeck tematiza sua própria finitude, a imagem é dissonante, denuncia a ilusão da harmonia eterna que gostaríamos de ter. Lembrei- me da última cena do filme: Morte em Veneza, do diretor italiano Luchino Visconti, produzido em 1971. Na cena a qual me refiro, o maestro protagonista morre ao mesmo tempo em que a tinta de seus cabelos escorre pela fronte. É uma cena muito bonita. Embora no filme a imagem tivesse outros significados, meu pensamento sobre velhice, mor te e pintura de Helene me trouxe a imagem desta cena que também, entre outras coisas, se relacionava com velhice, morte, arte, tinta escorrendo, vida acabando. Como mostrar corporalmente um processo de desmaterialização, de alguém que está indo embora, mas ainda vive? Difícil. Deixo meu corpo tenso, encolhido, respiração ofegante. Um olho fechado, outro, aberto. Embora numa postura desconfortante, angustiante, olhando no espelho, percebo que seu efeito não impacta como eu gostaria( FIG. 7).

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FIGURA 7: Busca, movimento e expressão: Movimento e gesto. FONTE: Dascal (2011). Trata-se de uma qualidade nova, um clímax, um conteúdo expressivo diferente. “À sublime beleza do viver justapõe-se o sentido da solidão essencial ante o destino” (DA VINCI [14--] apud OSTROWER, 2004, p. 50). Refaço meu gesto, encolho, respiro com dificuldade, mas não estou satisfeita com o resultado. Apesar da intenção, sinto- me ainda distanciada daquilo que quero expressar. As cores da maquiagem cênica, bem como as cores na pintura, expressam sensações e podem definir um contexto com diferentes significados. Uma maquiagem escura, borrada, pode ter efeito parecido com o “borrão” deste autorretrato. Construir ou desfazer características do rosto, criar outra identidade são funções da maquiagem cênica. Pode ser um recurso interessante a ser experimentado. Experimento possibilidades.

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Após esta imersão contemplativa com ensaios gestuais correspondentes em cada autorretrato de HeleneSchjerfbeck, resolvi sair das partes e pensar no todo, num processo menos estanque. Este olhar mais gestáltico pode trazer novos recursos, ideias, criações cênicas. Até aquele momento tive um movimento de buscar minhas reações corporais subjetivas a partir de cada imagem de Helene, tentando expressar o efeito que eles produziam em mim. No momento seguinte comecei a pensar nela como uma personagem propriamente dita e no conflito essencial que a movia, resultando neste desejo de se autorretratar. De que forma esses conflitos poderiam ser expressos por meio de signos cênicos? O autorretrato possibilita um jogo de imagem entre o que a artista pensa ser, deseja ser, finge ser... o resultado é a pintura na tela. Cenicamente quais poderiam ser os signos representativos deste jogo, desta oscilação e mescla entre revelar e esconder-se? Entre ser um e ser outros? Com que objetos, suportes cênicos, a atriz poderia relacionar-se para significar estes vaivéns? Resolvi, então, procurar a colaboração de um encenador que me ajudasse a refletir sobre o processo, com um olhar panorâmico. Desta forma, com Fábio Vinasci, experimentei durante os ensaios alguns objetos que, utilizados cenicamente, pudessem expressar o conflito que nasce do desejo de se revelar e se enxergar e, ao mesmo tempo, se tornar outro como na pintura. Elegemos a utilização da máscara como ponto de partida para a experimentação por ser um objeto que, em função das suas particularidades (cores, formas, linhas e expressões), permite a ampliação do imaginário, tanto do ponto de vista da criação do performer, quanto do olhar do espectador. É importante ressaltar que nossa ideia não era criar um espetáculo de máscaras, o que exigiria um processo de pesquisa mais longo e aprofundado, mas aproveitar a gama de possibilidades desse elemento cênico para enriquecer a minha performance. Tampouco tínhamos a intenção de utilizar uma máscara que representasse de forma realista a figura de HeleneSchjerfbeck, e sim evocar sua presença em cena. A máscara utilizada durante os ensaios foi criada a partir do meu próprio rosto, o que me possibilitou experienciar a sensação de ter, por meio de outro suporte, o meu autorretrato, uma vez que participei da sua confecção. No entanto, ao me mascarar, perdi dois dos elementos de expressão mais comumente utilizados no meu trabalho de atriz, que são o rosto 662 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


e a voz. A ausência desses dois recursos aliada ao uso da máscara reforçou a sensação de ser outra pessoa em cena, mesmo utilizando sobre a minha pele um molde do meu próprio rosto.

FIGURA 8: Máscaras: Máscara II. FONTE: Vinasci (2011). Entretanto, este processo revelou-se inadequado, e optamos pelo uso de uma máscara industrializada. O uso da máscara nesse processo me estimulou a experimentar outras possibilidades corporais, tornando meu gestual mais expressivo e sensível à atmosfera que emana dos quadros de Helene, percorrendo sua obra não apenas a partir de uma abordagem racional e lógica, mas principalmente sob o prisma de uma percepção mais sensorial e onírica (FIG. 8).

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FIGURA 9: Máscaras: Máscara III. FONTE: Vinasci (2011). A busca pela forma e pela representação dessa identidade cênica a partir da minha própria máscara e do universo pictórico de Helene será o conflito motor por intermédio do qual se desencadearão as ações dramáticas da minha encenação, que encontra paralelo com a necessidade de expressão da pintura através de sua obra (FIG. 9). Estas fotos me levaram à percepção de enquadramento, o que trouxe um diálogo do pictórico com o cênico. Embora fosse a mesma máscara, magicamente ela mudava. Conforme a relação da atriz com ela, da máscara com outros objetos, outros sons, climas diferentes eram sugeridos e a máscara parecia outra. Além da máscara, relações com outros signos cênicos podem ser experimentadas. Uma janela, por exemplo, pode ser um elemento cenográfico interessante, uma vez que pode ser o equivalente a uma moldura. Wim Wenders, cineasta alemão, num depoimento no filme Janelas da alma (2001), de João Jardim, relata que acha que ficamos mais conscientes no enquadramento. Ele prefere os óculos às lentes porque eles dão enquadramento, deixam a visão mais seletiva. Segundo ele, o enquadramento nos dá mais consciência do que vemos de fato.

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A janela é um “portal de contemplação”, permite e compartilha a passagem do tempo. Fechada, é o silêncio. A porta também é metafórica: pode receber, acolher, mas também proteger e esconder. A artista plástica Keller Duarte pintou os quadros que compuseram a cenografia, uma vez que acompanhou o processo inteiro do trabalho. Joana Salles, figurinista, foi convidada a assistir a um ensaio em que também estava presente o diretor Fábio Vinasci, e fazer a concepção do figurino. Assistindo, fez comentários sobre o clima da performance, perguntou sobre a artista e sua época, expressou sua percepção, e juntos refletimos sobre efeitos realistas e expressionistas. No que diz respeito à trilha sonora, meu interesse não foi pesquisar a música da época, nem do país de HeleneSchjerfbeck, mas sim, dar vazão à intuição durante os ensaios. Conseguir climas, atmosferas. Valorizar momentos de intensidade interpretativa. A luz sempre dialoga com os movimentos e o estado interior da atriz, contracena com a música e o espaço cênico em todos os seus aspectos. A iluminação pode dar ênfase a certos aspectos do cenário, pode estabelecer relações entre a atriz e os objetos, pode enfatizar as expressões da atriz, pode limitar o espaço de representação a um círculo de luz, e muitos outros efeitos. Para tal, o iluminador Airton dos Santos Filho, com sua técnica de iluminação, buscou estes efeitos nos ensaios. O corpo da performer estará produzindo significações, por meio de suas relações com a plateia, com objetos cênicos, cenografia, música, iluminação e espaço cênico. Várias fases da vida de HeleneSchjerfbeck são evocadas: o tempo da juventude, da maturidade, da velhice; a passagem dos anos, a efemeridade da vida, são panos de fundo para a busca de climas nas passagens. Embora morta, sua presença no mundo não foi apagada. Referências Bibliográficas BARBA, Eugenio. Queimar a casa - Origens de um diretor. São Pau lo: Ed itora Perspectiva S. A., 2010. CANTON, Katia. Es pelho de artista [autorretrato]. São Paulo : Editora Cosac Naify, 2004. COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo : Editora Perspectiva, 2004. DONDIS, A. Donis. Sintaxe da Linguagem Visual. São Pau lo, SP. Editora Mart ins Fontes, 2007. FOCOS, M ichelle. Os autorretratos de HeleneSchjerfbeck: revelação e dissimu lação.Spring: Wo man’s Art Journal,1995. 665 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


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ARQUIVOS EM PROCESSO: Filme, fotografia e memória Patrícia Francisco 1

Resumo: Tenho como proposta uma reflexão sobre o processo de realização de um documentário, a partir de minhas reflexões como realizadora. A memória aparece na proposição de uma for ma documental. Parto de conceitos literários sobre a memória subsidiada com referências fotográficas na invenção do conteúdo do documentário Eu, trilho. Assim, entre filme e texto, tenho como propósito uma reflexão na apresentação de conceitos e histórias da fotografia e do cinema. Palavras-chave: memória, filme documentário, fotografia, identidade

1. Memória e Esquecimento Reuni arquivos de imagens fotográficas e um filme 8mm para contar a história de vida de minha avó Ana com outras pessoas, através da realização de um filme documentário 2 em vídeo. Essas pessoas foram encontradas ao acaso em estações e vagões de trem, e desses encontros, escolhi três mulheres cuja trajetória de vida tem pontos em comum com a vida de minha avó. Recolho documentos e depoimentos associados ao meu imaginário, que ora relata trechos da vida de minha avó, ora os recria. O documentário é o documento dessa memória. O título é Eu, trilho (Patrícia Francisco, 2008). A memória se constitui em situações que ficaram gravadas com um s entido ou significado. Nunca guardei uma situação inteira, porém um detalhe, algo que ficou marcado por algum motivo de uma situação vivida. Não há um controle do que eu vou recordar no sentido do encontro com esse referencial que possa suscitar a minha memória. “Um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o 1 Patrícia Francisco é natural de Porto Alegre/ RS. Vive e trabalha em São Paulo/SP. É Diretora, Montadora e

Artista Plástica. Mestre em Artes pela Escola de Co municação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA USP) co m a tese: Um outro cinema – cinema documentário e memória. Trabalha entre as artes plásticas e o cinema, realizando filmes, instalações, fotografias e livros. Seus filmes curta-metragem, Retratos da Vó Ana (2008), E u, trilho (2008) e A Inventariante (2010), fo ram selecionados para vários festivais e mostras nacionais e internacionais. E-mail: francisco.patricia@g mail.co m; Site: www.patriciafrancisco.co m.br 2

Cabe salientar que o trabalho que apresento junto ao texto, o documentário Eu, trilho (2008), foi, durante sua realização, ao mes mo tempo, a busca de uma forma documental para a minha memória e o delimitar de diferentes temas que sempre associei ao projeto, tais co mo, o trem, a roça, as imagens fotográficas e minha memó ria. O documentário podes er visualizado em: http://www.patriciafrancisco.com.br/filter/Femin ino#1647127/Eu -Trilho 667 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes de depois”3 . Os conceitos de memória involuntária e voluntária de Marcel Proust têm relações com essa memória que estou construindo e que pode estar constituída, ao mesmo tempo, da memória voluntária e involuntária de Proust. Podemos dizer que a memória voluntária, racional, é a pura fotografia, o retrato, e a memória involuntária é a infância, o afeto. Como define o próprio Proust, “para mim, a memória voluntária, que é sobretudo uma memória da inteligência e dos olhos, não nos dá, do passado, mais do que faces sem realidade; mas se um cheiro, um sabor encontrados em algumas circunstâncias totalmente diferentes, despertam em nós, à nossa revelia, o passado, passamos a sentir o quanto este passado era diferente daquilo que acreditávamos lembrar, e que nossa memória voluntária pintava, como os maus pintores, com cores sem realidade”4 . Marcel Proust, em sua obra literária “Em busca do tempo perdido”, construiu uma relação entre o personagem e sua avó. O personagem narrador da história “escuta a voz de sua avó, ou o que supõe ser sua voz, já que a escuta agora pela primeira vez, em toda sua pureza e realidade”5 . Eu tento construir minha memória dos fatos vividos por minha avó. Os fatos que eu lembro e que sua filha, minha mãe, me ajuda a recordar. Ponho- me a escutar e contar a história de minha avó. E o meu “olho funciona com a precisão cruel de uma câmera e fotografa a realidade”6 , com recordações e observações que foram sendo anotadas, à medida que a memória fluiu e me mostrou os possíveis caminhos. Walter Benjamin em seu ensaio “A imagem de Proust” indaga-se “a memória involuntária, de Proust, não está mais próxima do esquecimento que daquilo que em geral chamamos de reminiscência?”. Ele analisa a obra de Proust, sua escrita, como um infindável tecer de ideias que se condensa numa “síntese impossível” de uma “obra autobiográfica”. Em 3

BENJAMIN, Walter. A i magem de Proust in Magia e técnica, arte e polít ica – ensaios sobre literatura e história da cultura – obras escolhidas v.1. São Paulo : Brasiliense, 1987. p.37. 4 PROUST, Marcel. Trad. Mário Quintana. Em busca do tempo perdi do – no caminho de S wann. São Paulo : Globo, 2006, p.511. 5 BECKET, Samuel.Trad. Arthur Nestrovski. Proust. São Pau lo: Cosac & Naify, 2003. p.26 6 Idem BECKET, p.27. 668 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


meio a suas argumentações percebemos uma aproximação entre as ideias do escritor e do filósofo, ao ponto que, verificamos uma diferença, quando se trata da memória involuntária, das ressureições da memória. “Essas „ressurreições da memória‟, como Proust as define, referem-se, em sua obra, ao passado individual e dependem de um acaso providencial, como aquele da Madeleine (...). Para Benjamin, essas ressurreições aludem ao passado coletivo da humanidade e não podem depender do acaso, mas devem ser produzidas pelo trabalho do historiador materialista” 7 . No ensaio sobre a memória e a fotografia de Philippe Dubois, ele inicia o texto com uma síntese: “Em suma, é essa obsessão que faz de qualquer foto o equivalente visual exato da lembrança. Uma foto é sempre uma imagem mental. Ou, em outras palavras, nossa memória só é feita de fotografias” 8 . Ele associa as imagens fotográficas, por estarem formuladas na mente do fotógrafo, ou seja, uma supostamente já arquivada, à capacidade de armazenamento da memória. É interessante lembrar que o cineasta Robert Bresson associa à ideia dessa imagem mental a ideia de que o som forma imagens mentais, “o apito de uma locomotiva imprime em nós a visão de toda uma estação de trem” 9 . 2. Registros e histórias Dentro de uma imensidão de fotos de família que observo, tenho uma coleção de múltiplas imagens de minha avó Ana. Fui selecionando algumas imagens em que houvessem a presença dela em diversos momentos de nossa vida, mas não só isso - que a contivessem, também em vários momentos de sua vida. Escolhi fotografias que resgatam momentos no meio social que ela vivia. Construo uma história com atividades de produção de uma época, com pessoas que trabalharam na roça, pois minha avó também trabalhou na roça. Quando entrevisto pessoas que exercem ou exerceram essa atividade, é como se restaurasse essa parte da vida dela em minha memória, como se ativasse, com esses depoimentos e imagens, pontos acessíveis a essa 7

GA GNEBIN, Jeanne Marie. Memória e libertação in Walter Benjamin – os cacos da história. São Paulo: Brasiliense, 1982. p. 71 e 72. 8 9

DUBOIS, Philippe. O Ato Fotográfico. Campinas-SP: Papirus, 2003. p.314. BRESSON, Robert. Trad. Evaldo Mocarzel. Notas sobre o cinematógrafo. São Paulo: Ilu minuras, 2005. p.66

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memória familiar e as reativasse, relacionando umas com as outras. Imagens de outras pessoas, mas que se assemelham, ou pela ordem do trabalho, quer pela dinâmica familiar, à experiência de vida dela. O trabalho profissional de minha avó sempre foi um fato marcante, porque estamos falando do início do século vinte, tempo em que não era unanimidade mulheres trabalharem fora de casa. E por esse motivo, tenho em minha memória a constatação de uma mulher corajosa. Como esse projeto não teve uma pesquisa de personagens, o contato com as pessoas entrevistadas foi à primeira vista. O local escolhido, estações e vagões de trem em Porto Alegre e São Paulo, foi pensado segundo um dispositivo: minha avó atravessava a linha férrea e, às vezes, esperava o trem passar para voltar do trabalho para casa. Eu capturo e converso sobre a vida de várias pessoas. Vidas representadas em depoimentos que revelam um cotidiano contado a partir de memórias reconstruídas em frente à câmera. Eduardo Coutinho, documentarista, fala que filma relação da equipe com a pessoa. “A filmagem exige da pessoa que ela se invente, que ela pense na vida dela” 10 . O documentarista define que memória é memória e esquecimento. E tem a mentira que é uma parte que a gente esqueceu e inventa. Para Coutinho, a atitude de uma pessoa perante a câmera é semelhante a uma autobiografia, no qual você escolhe alguns momentos de sua vida e tenta organizá- los durante sua fala. “Autobiografia é a coisa mais mentirosa que tem, não mentirosa no sentido de ser mentira, você faz uma seleção, um arranjo. Quando você fala para a câmera, você tenta dar sentido a sua vida (...) autobiografia dá um arranjo para parecer lógico, mas a vida não é lógica”11 . Quando estamos representando para a câmera, construímos várias personagens. Ao ativar nossa memória em frente a ela, acabamos por pre encher lacunas que supram os nossos esquecimentos. “Se tudo se inscreve na memória psíquica e ali permanece gravado intacto, nem tudo volta. O recalcamento é originário, e sempre haverá restos perdidos, parcelas inacessíveis à consciência”12 . Por isso “Cabe chamar atenção para o fato de que a memória trai. Pesquisas sobre memórias e 10

Entrevista com Eduardo Coutinho realizada por Patrícia Francisco. Entrev ista com Eduardo Coutinho realizada por Patrícia Francisco. 12 Idem DUBOIS, p. 325. 11

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esquecimento indicam que cada vez que uma lembrança é trazida à consciência, torna-se instável e se modifica. O processo ocorre porque ao recordar, tiramos a imagem do seu recanto e a manipulamos, agregando a ela as emoções e os pensamentos do momento. Ou seja, nosso cérebro mistura lembranças e até incorpora falsas memórias”. 13 Escrita incessante, reunir fotografias e memória, operando em sequências que eu criei, não sei se são as sequências verdadeiras ou cronológicas, mas essa ordenação vem da busca por construir uma memória baseada em alguns fatos reais que deixaram um rastro, um índice daquilo que aconteceu. Assim, “há alguns anos, todo o discurso teórico sobre a fotografia não cessou de repetir, sob todas as espécies de formulações, que „a fotografia‟ é o traço”. (a impressão luminosa, num determinado momento do tempo, de um objeto situado à distância”14 . Eu, trilho tenta resgatar minha memória sobre minha avó, em um processo mediado por lembranças e esquecimentos, que são os depoimentos, no resgate de um filme e de fotografias, que estavam arquivados. Assim a proposta audiovisual desse documentário se constrói . As invenções, tanto da fotografia como do cinema, vão formando as imagens do desejo de recordar, são pequenas manchas escuras, luz e sombra, preto e branco. Imagens esmaecidas, quase apagadas, mas que instigam por seu apagamento. A aparente deterioração da película, nas imagens de Lumière com movimentos mínimos, porém projetados com movimentos ligeiramente mais rápidos. O cinema 15 nasce assim, aos poucos, nas mãos de dois fotógrafos preocupados em desenvolver tecnologias para capturar e projetar imagens. A fotografia 16 nasce da imagem 13

PINTO, Ivonete. Um filme delicado in Revista Teorema, n.11, setembro 2007, Porto Alegre.p.12 -13. Idem DUBOIS, p.247. 15 Em 28 de dezembro de 1895 foi inventado o cinematógrafo pelos irmãos Auguste e Louis Luimière. Esta data se refere a primeira sessão paga e pública, no qual apro ximadamente 30 pessoas assistiram a primeira projeção de filmes em u ma grande tela. Entre os filmes projetados nessa primeira sessão estão: Sortie d‟usine Lu mière / Saída da fábrica Lu mière (p&b/ 46seg/ 1895), Le repas de bébé / O almoço do bebê (p&b/ 41seg /1895) e L‟arroseur arrosé/ O regador regado (p&b/ 49 seg/ 1895) 16 “Embora criadas simultaneamente em fins da década de 1830, não foi a invenção de Fox Talbot do processo negativo-positivo, mas sim a invenção de Daguerre, apoiada pelo governo e anunciada em 1839 co m grande publicidade, que se tornou o primeiro processo fotográfico de uso geral”. (SONTA G, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Co mpanhia das Letras, 2004. p.142) “A história da fotografia é considerada ainda mais estranha que 14

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produzida num daguerreótipo, primeiras impressões e registros da realidade, tanto do Daguerre 17 , como de Niépce 18 e Talbot, mais tarde, Nadar, até chegar na família Lumière 19 . Todos esses registros fotográficos são memórias do nascimento das imagens. Essas imagens vem carregadas de um caráter histórico e de memória ao mesmo tempo. “Os daguerreótipos eram placas de prata iodadas, postas sob a ação da luz na camera obscura: elas tinham de ser submetidas a uma série de acertos até que, sob iluminação correta, se pudesse reconhecer sobre elas uma imagem levemente acinzentada”20 . Havia um certo desenvolvimento de uma série de pesquisas sobre a imagem, durante o século XIX, que culminaram no cinema. E são recorrentes em nossa memória histórica vários, podemos dizer, pesquisadores que se empenharam em desenvolver técnicas e objetos que permitissem a reprodução da nossa imagem em movimento, projetada, ou da nossa imagem fixa em uma superfície. Os panoramas, os estudos do movimento, a fotografia, o espetáculo de feira (ou as atrações de feira) e o cinema, em resumo, foram os principais caminhos percorridos para os desdobramentos do estudo da imagem. “O panorama, na verdade, é bem mais importante na história de seu próprio dispositivo. „Panorama”, asseguram- nos, vem de duas raízes gregas que significam onividência; trata-se, é claro, de abraçar com o olhar uma vasta zona. (...) O panorama, gênero realista, exigente, praticamente implacável, requeria uma grande ciência dos efeitos de realidade: saber reproduzir as luzes, os reflexos, as carnes, os gestos. (...) O panorama já é espetáculo e quase cinema – sem considerar o movimento”21 .

– idade, no Egito – só ter dado lugar à descoberta de um procedimento técnico passível de ser explorado trinta ou quarenta séculos mais tarde”. (AUMONT, Jacques. O olho interminável [cinema e p intura]. São Paulo: Cosac Naify, 2004.p.48.) 17

Jacques Daguerre (1787-1851) No ano de 1837 inventa o daguerreótipo, que fixa as imagens numa placa de cobre prateada. 18 Nicéphore Niépce (1765-1833) Em 1826, realiza a primeira fotografia co m u ma câmera escura. 19 Os irmãos Auguste e Louis Lu mière p roduziram cerca de 1.400 filmes. Treinaram 30 cinegrafistas que se espalharam pelo mundo a partir de 1895, divulgando a nova invenção, o cinematógrafo. 20 BENJAMIN, Walter. Pequena História da Fotografia in Magia e Técn ica, Arte e Po lítica: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhi das v.I. São Pau lo: Brasiliense,1994.p.221 21 Idem A UMONT, p.55 e 57. 672 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


O cinema era apresentado em feiras ou em parques de diversões, tinha uma conotação de espetáculo diferente do que é o cinema hoje. Era consumido como atração e não como documento.

Os irmãos Louis e Auguste Lumière primeiramente estavam centrados na

técnica fotográfica, depois é que vão a busca de uma máquina que geraria o movimento da imagem. Então, os irmãos Lumière estavam preocupados com o desenvolvimento científico. Por isso a célebre frase “o cinema é uma invenção sem futuro” se justifica, porque, a princípio, o problema já estava resolvido para eles, uma máquina foi inventada e a imagem já poderia ser vista em movimento. Assim, a situação da cidade crescendo rapidamente, a chegada das estradas de ferro e 22

o trem , o ápice do desenrolar das pesquisas sobre a imagem com a chegada do cinema começaram a se imbricar, se sobrepor e se relacionar. Essas três situações foram se desenvolvendo e uma foi subsidiando a outra. A cidade que dá o movimento do cinema, o cinema que mostra a vista da janela do trem, o trem que, por sua vez, parece materializar conceitualmente aquilo que o cinema é: uma máquina do tempo. “Olho móvel, corpo imóvel: está tudo aí, e é por aí que o trem substitui o espectador „ecológico‟ da pintura de paisagem, o simples andarilho que descobre o mundo que rodeia (...), mas, ao mesmo tempo, dotado de ubiquidade e de onividência, que é o espectador de cinema”23 . Com essa contextualização histórica, constato uma espécie de adoração pela primeira imagem, um desejo de ver uma imagem gravada ou impressa, é “o tema do conhecimento pelas aparências, que é o tema do século XIX, e o do cinema” 24 . No caso dos irmãos Lumière, por exemplo, em “Saída da fábrica” (Lumiére, 1895), é filmada a saída dos operários de suas fábricas. Abrem-se as portas e muitas pessoas saem. É um movimento de inúmeras pessoas caminhando em diversas direções e é essa a imagem que temos e nos basta. É apenas a presença do movimento.“A vista Lumière é, assim, literalmente, 22

O trem representava a máquina e o crescimento da industrialização. Dentro de um trem, poderiam ter a vista panorâmica de u ma cidade pelo deslocamento do olhar. É famosa a aliança entre o trem e o cinema, para exemplificar temos os filmes Arrivée d‟un train en gare à La Ciotat/ A chegada do trem à estação de Ciotat (1895) de Louis Lu mière, The General/ A General (1926) de Buster Keaton e La roue/ A Roda (1922) de Abel Gance. 23 Idem AUM ONT, p.54. 24 Idem AUM ONT, p.51. 673 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


o que se vê a partir desse ponto, o que mostra de visível o ponto escolhido, o exercício da visão (do olhar) a partir desse ponto”. 25 Os Lumière produziam filmes com duração de cerca de trinta segundos até aproximadamente um minuto, não passava muito além desse tempo. Então, existia basicamente um enquadramento, ligava-se a câmera e registrava-se o simples movimento de pessoas e/ ou coisas que passavam em frente à câmera. O filme Um olhar a cada dia26 (Theo Angelopoulos, 27 1995), trata da questão da primeira imagem, ou seja, do primeiro registro filmado na Grécia, quando o personagem vai em busca do primeiro filme feito pelos irmãos pioneiros do cinema grego, os irmãos Manakis, uma analogia aos primeiros filmes de Louis e Auguste Lumière. O filme dos irmãos Manakis é encontrado e exibido no final do filme. Vemos uma pequena fração de segundos da projeção e o cineasta conduz o espectador a ver o personagem sentado numa sala de cinema vazia, assistindo a projeção emocionado. Em Lumière, o filme é o registro; no filme de Angelopoulos estamos atrás do registro. Esses procedimentos de registro de imagem, de captura de algo que podemos apreender e guardar são as operações que me interessam. Roubamos imagens do nosso real. “Assim a câmera obscura propõe uma dimensão de recursividade à realidade, que está completamente fora do alcance da fotografia corrente: um objeto da vida cotidiana pode olhar para outro” 28 . Ou seja, qualquer coisa pode se transformar em uma câmera e capturar imagens. A idéia da imagem de Daguerre, de que cada imagem é uma imagem única é relacionada a idéia dos retratos que guardo de minha avó, sem negativos, não posso mais fazer uma reprodução analógica, o negativo não existe mais. O maior desafio é essa imagem única perdurar, “reviver o princípio da câmera de daguerreótipo: cada cópia é um objeto único” 29 . Essas antigas placas formadoras de imagens únicas que impulsionaram e deram início 25

Idem AUM ONT, p.42. Um Olhar a Cada Dia /To Vlemma tou odyssea (cor e p&b / 35mm/ 180min / 1995) 27 Theo Angelopoulos, cineasta grego, nasceu em Atenas, na Grécia, em 1936. Sua filmografia lhe rendeu diversos prêmios internacionais, entre eles, a Palma de Ouro, por “A Etern idade e u m dia”. Entre seus principais filmes estão: A viagem dos comediantes (1975), Paisagem na neblina (1988), Um olhar a cada dia (1995), A eternidade e um dia (1988), Viagem a Citera (1984), O passo suspenso da cegonha (1991), O apicultor (1986). 28 Idem DIETRICH, p.64. 29 Idem SONTA G, p. 142. 26

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ao registro de imagens, antes, possível de ver nas câmeras escuras, mas não de tocar. “No instante em que Daguerre conseguiu fixar as imagens da câmera obscura, neste momento, os pintores haviam sido despedidos pelo técnico”30 . A partir de 1839, é possível ter uma imagem impressa e podemos vê- la várias vezes, enriquecendo nosso repertório imagético. Temos as pinturas, as gravuras e temos a fotografia. Walter Benjamin cita o fotógrafo Karl Dauthendey numa interessante observação sobre as imagens produzidas no daguerreótipo, comentário que parece perdurar ainda nas minhas contemplações de imagens de minha avó. Vejo as fotografias assim, como “No começo, não se ousava olhar as primeiras imagens que ela produzia. Ficava-se intimidado pela nitidez dos seres humanos e se acreditava que esses pequenos, esses diminutos rostos das pessoas fixados na placa eram capazes de olhar para nós mesmos, tão espantosa era para todos a extraordinária nitidez e fidelidade dos primeiros daguerreótipos” 31 . As pessoas fotografadas naquele momento ficavam expostas a um longo período. A pose que hoje observamos foi vivida por um momento mais extenso do que o que vivenciamos hoje ao ser fotografados, exercendo “sobre o espectador uma impressão mais penetrante e mais duradoura do que fotografias mais recentes (...) é que as primeiras fotografias, tão belas e tão intangíveis, brotam da obscuridade dos dias de nossos avós”32 . Nas minhas memórias, as imagens do trabalho feminino, são as mais fortes e recorrentes, como o trabalho de uma mulher no início do século XX e sua persistência de se desenvolver profissionalmente para sustentar sua família, da roça para a fábrica, da fábrica para a sua pequena empresa comercial, uma loja de calçados, e dela para sua costura, por fim, minha avó se tornou costureira. Criamos pontos de aproximação de fragmentos de sua trajetória na sua vida profissional e afetiva. Com retalhos de tecidos, pequenos ou grandes pedaços de tecidos, ela costura pequenas trilhas que formam quadrados, várias linhas construídas em unidades, cores justapostas a outras cores vão formando vários quadrados. Ao finalizar essa etapa do trabalho, ela costura novamente um quadro ao lado do outro, para formar um quadrado ainda maior que 30 31 32

Idem BENJAMIN, p.224. Idem BENJAMIN, p.223. ORLIK in BENJAMIN, p. 223 e 240. 675 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


formava uma colcha. Nessa colcha, dezenas de quadrados multicoloridos formam uma rede de possibilidades efetivadas no pensamento de Ana e dos observadores da colcha, que tentam reconstruir seu pensamento ao observar o produto feito por suas mãos com o auxílio da máquina de costura. O que ficou, o que está na memória é esse momento da costura. O som da máquina de costura, uma máquina antiga, preta, com sua base de madeira e, abaixo, um grande pedal. Uma pequena almofada cravada de alfinetes e agulhas, sacos de retalhos guardados em um armário com portas de vidro esverdeada. É isso que a minha memória traz à tona. O resto são fotografias. Imagens que eu tento justapor e montar, os momentos esvaziados de esquecimento e lembranças. 3. Morte nas imagens A fotografia é presença e ausência ao mesmo tempo. Você olha para uma foto e fala: o passado está aqui, nas minhas mãos ou na minha caixa, no meu álbum ou no meu portaretrato. E é apenas isso que ela pode nos dar, a fixação e a distância de um passado registrado, a presentificação da morte. “Não há quem tenha se dedicado ao estudo da fotografia sem mencionar, mais ou menos enfaticamente, seu poder mortífero, sem notar sua afinidade com a morte. De fato, ambas estão ligadas de vários modos” 33 . A recusa e a aceitação do luto também são experiências que passam pelos fotografados e pelo fotógrafo. Não existe fotografia que não fale da morte, segundo Roland Barthes. “O Fotógrafo sabe isso muito bem e ele próprio receia (...) essa morte na qual o seu gesto me vai embalsamar” 34 . A partir do momento que interrompemos o curso do tempo, paralisando dada situação fotografada, “congelamos” aquele momento e a presença da imagem fotográfica se fortifica, representando a morte. A morte da fotografia é uma espécie de especulação do cotidiano, de coisas, pessoas, que passaram por nós. Um segundo atrás, fotografo, e não é mais presente. Está morto. A morte é assim, fugaz, ligeiramente grava suas impressões. O que está representado está morto,

33

SA NTA ELLA, Lucia & NÖTH, Winfriedp. Imagem – cognição, semiótica, mí di a. São Paulo :Ilu minuras, 2005. p.133. 34

BARTHES, Roland. A Câmara Clara. Lisboa: Edições 70, 2006. p. 22. 676 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


aquele momento não existe mais. Contemplamos algo pacato, uma imagem imóvel, ao mesmo tempo, uma espécie de devaneio vem à mente, porque a fisicalidade da foto não nos deixa devanear por completo. A morte traz um pouco essa situação de que algo deixou de existir para sempre. Para mim, a fotografia tem em seu conceito a idéia da morte. É o principal mote da fotografia. Conceitualmente a fotografia é a morte. Então, quando pensamos no gesto fotográfico, na imagem-ato como conceitua Dubois, posso afirmar que essa ação é o disparador para matar a presença humana ou qualquer situação fotografada. Para os autores que mencionei e apóio os meus argumentos sobre a conceituação da fotografia, reafirmo que na fotografia há uma ligação entre o passado e o presente. A idéia da morte está presente no referente, naquilo que foi registrado. A fotografia é indicial e a noção aurática instaurada por Benjamin vem somar à idéia de morte proposta por Barthes, “assim que descubro no produto desta operação, aquilo que vejo é que me tornei Todo-Imagem, ou seja, a Morte em pessoa”35 . Portanto, se no próprio conceito de fotografia está imbricada a idéia da morte é porque “A fotografia é indiferente a qualquer escala: não inventa, é a própria autenticação, jamais mente, ou melhor, pode mentir sobre o sentido da coisa, sendo tendenciosa por natureza, mas nunca sobre sua existência”36 . Roland Barthes fala em um noema da imagem fotográfica, que é justamente o essencial de alguma coisa, segundo Platão. A fotografia de Barthes é “isto foi”, está atestado. Barthes trata a fotografia como “princípio de designação que informa que o referente esteve ali, presente, no momento da fotografia” 37 . Para Philippe Dubois podemos pensar “a imagem fotográfica como impensável fora do próprio ato que a faz ser (...) espécie de imagem-ato absoluta, inseparável de sua situação referencial” 38 . O passado está impresso no presente. Ele foi, mas a fotografia sempre está. “Revelação da representação do referente em um tempo e em um lugar qualquer, a fotografia consola o observador pela substituição da ausência do que se foi, pela presença do que foi no 35

Idem BA RTHES, p. 22-23. Idem BA RTHES, p. 37 KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Relações imaginárias: a fotografia e o real in A CHUTTI, Luiz Eduardo R. (org). Ensaios sobre o fotográfico – série escrita fotográfica. Porto Alegre: Aleph Editorial, 1998. p.76 38 Idem DUBOIS, p.79. 36

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passado, fixo no presente. Imortalizado, o instantâneo fotográfico vira eterna presença” 39 . “A imagem deve existir na mente do fotógrafo”40 . A fotografia já está presente antes de apertarmos o disparador, para que o diafragma, na abertura correta, deixe fluir a passagem da luz. “Se fotos são mensagens, a mensagem é, a um só tempo, transparente e misteriosa. „Uma foto é um segredo sobre um segredo‟. Apesar da ilusão de oferecer compreensão, ver por meio de fotos desperta em nós, na verdade, uma relação aquisitiva com o mundo, que alimenta a consciência estética e fomenta o distanciamento emocional” 41 . Podemos ainda complementar esses conceitos sobre a fotografia com outro argumento de Dubois que diz que a distância é inerente ao dispositivo fotográfico, podendo funcionar muito bem no espaço como no tempo. “No espaço: ao mesmo tempo que é, por sua gênese, um signo unido às coisas, a imagem fotográfica tampouco deixa de estar, como signo, separada espacialmente do que representa (...) Em nenhum momento no índice fotográfico, o signo é a coisa ”42 . “O que é realmente a aura? Uma peculiar fantasia de espaço e tempo: a aparição única de algo distante, por mais próximo que possa estar” 43 . A definição de aura criada por Benjamin nos textos “Pequena história da fotografia” e “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” afirma o efeito de aproximação e distância que o conteúdo da imagem fotográfica representa, a presença inefável do conteúdo da imagem- foto. Dubois afirma que a “principal qualidade de uma imagem que serve ao culto é ser inacessível” 44 . “O culto do futuro (de uma visão cada vez mais rápida) alterna com o desejo de voltar a um passado mais puro e mais artesanal – quando as imagens ainda tinham um atributo de manufatura, uma aura” 45 . O que Benjamin também completa em seu texto. “O mesmo vale para o condicionamento técnico do fenômeno aurático. Especialmente certas fotografias de grupos humanos conservam ainda essa maneira etérea de estar junto, tal como 39 40 41 42 43 44 45

Idem KOURY. p.73. Idem SONTA G, p.133. Idem SONTA G, p.127. Idem DUBOIS, p.88 e 89. Idem BENJAMIN, p.228. Idem DUBOIS, p.311. Idem SONTA G, p.141. 678 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


ela aparece por um breve instante sobre a placa antes de desaparecer no „flagrante original‟” 46 . A placa, como afirma Walter Benjamin, são as placas do daguerreótipo, que nos projetam a uma ação bem anterior do processo fotográfico. O tempo da imagem única, e que aos poucos começaria a se reproduzir incessantemente. E esse mesmo tempo que dá o tom diferenciado entre a aura de uma fotografia e de uma pintura como descreve Susan Sontag. “A verdadeira diferença entre a aura que pode ter uma foto e a aura de uma pintura repousa na relação diferente com o tempo. A devastação do tempo tende a agir contra as pinturas. Mas parte do interesse incorporado às fotos, e uma fonte importante de seu valor estético são precisamente as transformações que o tempo opera sobre elas, o modo como as fotos escapam das intenções de seus criadores. Após o tempo necessário, as fotos adquirem de fato uma aura (...) todas as fotos são interessantes, além de comoventes, se forem velhas o bastante”47 . Reinvenção da mesma fotografia, apenas uma foto é geradora de outras fotos. No filme “Carta para Jane”48 (Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin, 1972), em um contexto completamente diferente, um contexto político, os diretores fizeram o filme apenas com uma foto que é reenquadrada diversas vezes ao som de um texto em “off” que resiginifica a fotografia, na verdade, dando praticamente outro siginificado a ela. “O curta- metragem (...) redunda em uma espécie de contralegenda para uma foto – uma crítica mordaz a uma foto de Jane Fonda, tirada durante uma visita ao Vietnã do Norte. O filme é também uma lição exemplar de como ler qualquer foto, como decifrar a natureza não inocente do enquadramento, do ângulo, do foco de uma foto” 49 . Nas fotos que retratam a minha avó, há uma que sempre chamou muita atenção. É uma fotografia à moda de uma época, em que as pessoas encomendavam um retrato pessoal ou da família para um fotógrafo. É uma espécie de junção de uma fotografia com a pintura, retrato 46

Idem BENJAMIN, p.226. Idem SONTA G, p.156 e 157. 48 Letter to Jane (An investigation about a still) / Carta para Jane, direção Jean-Luc Godard e Jean- Pierre Go rin (cor/ 16mm/ 52 min/ 1972). Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin fazem co mentários em vo z over analisando a fotografia de John Kraft que apareceu na rev ista L‟Exp ress (31 de julho – 6 de agosto de 1972) mostrando Jane Fonda em sua viagem ao Vietnã do Norte. O filme reflete sobre o status da imagem e o papel do intelectual de forma min imalista e critica ironicamente a iconografia e o star system hollywoodiano (...) soa mes mo co mo um alerta ao que o sistema estaria fazendo aos movimentos revolucionários, simplificando e “fagocitando” as idéias em no me de si mesmo.(...)Trata-se de u ma reflexão sobre a representação na míd ia contemporânea. ALM EIDA, Jane (org). Grupo Dziga Vertov. São Pau lo: witz edições, 2005. p.114 e 115. 49 Idem SONTA G, p.124. 47

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pintado, de forma oval, pintado à mão por algum fotógrafo. A imagem sempre me atraiu pela estranheza e mistério que ela proporciona, a aura da foto, um pouco pelos olhares das pessoas na imagem e um pouco pela técnica da imagem. Ainda Philippe Dubois, “daí, desse desaparecimento pela distância, o caráter „aurífico‟ (espectral, de fantasma) de certas fotografias, e particularmente do tipo de fotografias chamado retratos”50 . E a fotografia remonta histórias na minha memória voluntária, a qual contesta o que passou, o que ficou gravado. Ela se faz presente como registro de uma dada realidade, “pois é da natureza de uma foto não poder nunca transcender completamente seu tema, como pode uma pintura”51 . A proximidade do real que contém numa fotografia, sob qualquer tema, no caso dessa pesquisa, de registros sociais de uma família, só acrescenta uma parte da história que não lembro ou que desperta algum momento marcante, pois “a fotografia é vista habitualmente como um instrumento para conhecer as coisas”52 . Mas a fotografia pode ser muito mais do que uma mera lembrança de um ponto de vista do real. Marcel Proust afirma que a fotografia revela um dado da realidade e nada mais. Ele “entende de forma errada o que são fotos: não tanto um instrumento da memória como uma invenção dela, ou um substituto. (...) Não é a realidade que as fotos tornam imediatamente acessível, mas sim as imagens” 53 . É a “tríade” argumentada por Dubois de que não podemos pensar a foto no simples registro, pensamos a foto como o ato da tomada, da recepção e da contemplação da imagem. O ato de fotografar e o registro da imagem estão juntos. E a nossa reflexão se torna mais complexa, pois não podemos separar o ato fotográfico da fotografia. Existe um tempo morto revelado em algumas imagens fotográficas que eu faço, habitualmente, quando filmo. É como se eu tentasse construir a minha memória nesse tempo morto, numa imagem fixa, parada, com pouco movimento ou um movimento mínimo. É a presença do nada e da negociação do movimento. Objetos e pessoas na imagem e o

50 51 52 53

Idem DUBOIS, p. 248. Idem SONTA G, p.111. Idem SONTA G, p. 109. Idem SONTA G, p.181. 680 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


enquadramento é fixo. Essa imagem fixa tem origem na fotografia, mas não é fotografia, porque está presente um movimento, como um tableau vivant, tudo o que passa por esse enquadramento quer ser apreendido. É um olhar perdido, tentando apreender imagens para recriar em cima delas outras imagens. Mas é também a busca de uma imagem para ser contemplada, não no sentido de admiração, mas no sentido de apreensão. É um desejo de guardar ou se apropriar de imagens.

Referências Bibliográficas BARTHES, Ro land. A Câmara Cl ara. Lisboa: Ed ições 70, 2006. BENJAMIN, Walter. A imagem de Proust in Mag ia e técnica, arte e polít ica – ensaios sobre literatura e história da cultura – obras escolhidas v.1. São Paulo: Brasiliense, 1987. p.37. BECKET, Samuel.Trad. Arthur Nestrovski. Proust. São Pau lo: Cosac & Naify, 2003. p.26. BRESSON, Robert. Trad. Evaldo Mocarzel. Notas sobre o cinematógrafo. São Paulo: Ilu minuras, 2005. p.66 DUBOIS, Philippe. O Ato Fotográfico. Campinas-SP: Papirus, 2003. p.314. FRA NCISCO, Patrícia. Um outro cinema – cinema documentário e memóri a. Dissertação de Mestrado em Artes – Universidade de São Paulo. Escola de Co municação e Artes. São Paulo, 2008. GA GNEBIN, Jeanne Marie. Memória e li bertação in Walter Benjamin – os cacos da história. São Paulo : Brasiliense, 1982. p. 71 e 72. KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Relações Imaginárias: a fotografia e o real in ACHUTTI, Lu is Eduardo R. (org) Ensai os sobre o fotográfico – série escrita fotográfica. Porto A legre: Aleph Editorial, 1998. PROUST, Marcel. Trad. Mário Quintana. Em busca do tempo perdi do – no caminho de S wann. São Paulo : Globo, 2006, p.511. SANTA ELLA, Lucia & NÖTH, Winfriedp. Imagem – cognição, semiótica, mí di a. São Paulo : Ilu minuras, 2005. SONTA G, Susan.Trad. Rubens Figueiredo. Sobre Fotografia. São Paulo: Co mpanhia das Letras, 2004. Entrevista: Eduardo Coutinho, Rio de Janeiro, outubro de 2007, realização Patrícia Francisco.

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NOVAS COMPLEXIDADES: Um novo olhar para a fotografia Matheus Mazini Ramos 1

Resumo: A fotografia, na medida em que se contextualiza em sua época, participa efetivamente de seu próprio processo evolutivo, de certa forma, em sua tentativa de permanência no tempo, se desenvolve em novas complexidades onde podemos destacar, por exemplo, seu envolvimento, principalmente, com as artes de vanguarda na segunda metade do século XX. Busca-se neste artigo, pautados, principalmente, nas ideias de permanência sistêmica de Jorge Albuquerque Vieira (2008) e de núcleos duros e áreas de interseção de Arlindo Machado (2010), mostrar que a fotografia, em sua tentativa de permanecer no tempo, migra para o ciberespaço (tendo a internet como principal ambiente) se transformando – na relação com outros sistemas – em novas complexidades. Adotamos aqui, a permanência sistêmica citada por Vieira e seu processo de “crise de estabilidade” como parâmetros chave da sobrevivência do sistema fotográfico. Palavras chave: Fotografia. Permanência. Hibridação. Internet.

Introdução A etimologia da palavra “fotografia” vem do grego “fós” (luz), e grafis (estilo, pincel), em senso comum, significa escrita através da luz ou escrever/pintar com a luz. Segundo o dicionário de português Michaelis, um dos conceitos do significado de “fotografia” é: a arte ou processo de produzir, pela ação da luz, ou qualquer espécie de energia radiante, sobre uma superfície sensibilizada, imagens obtidas mediante uma câmara escura. O aspecto indicial (Peirce: 1839-1914) de cópia, de testemunho e representação de uma dada realidade concreta foi o principal arcabouço no surgimento da fotografia, e esses aspectos, permearam em toda a segunda metade do século XIX. Paralelamente, o contexto fragmentário 2 da imagem fotografia se estende até a segunda metade do século XX e a partir daí, gradativamente, vem ocorrendo uma quebra de paradigmas, a fotografia, agora eletrônica,

1

Doutorando em Artes Visuais pela Escola de Co municação e Artes da Universidade de São Paulo - ECA-USP. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP. Orientando da Profa. Dra. Silvia Regina Ferreira de Laurentiz e integrante do grupo de pesquisa “Realidades”. 2

Tecnicamente a fotografia é u ma ação frag mentária, u m frag mento de tempo que permite que a lu z se inscreva num suporte químico ou eletro magnético, o corte do obturador guilhotina o tempo contínuo capturando um frag mento de tempo. Segundo Susan Sontag (2007, p.13) “Co lecionar fot os é colecionar o mundo”, mundo em frag mentos. 682 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


passa a relacionar-se em novos ambientes e dessa forma, propicia o surgimento de um novo conceito sobre fotografia. A fotografia, mais do nunca, em constante movimento, técnico e evolutivo. É fato que hoje, com o advento tecnológico e a ascensão cada vez mais rápida do mundo virtual, mundo esse ocasionado pelas tecnologias digitais, com ênfase na década de 1990, com a democratização da internet e a convergência dos grandes meios de comunicação de massa para o ciberespaço – tendo aqui a internet como principal ambiente –, faz com que nossa percepção sobre a imagem fotográfica mude. Essa coexistência de sistemas culturais e suas relações no ciberespaço fazem brotar uma nova fertilidade para a fotografia eletrônica, num contexto evolutivo, a fotografia se contextualiza em sua época, o que vem acontecendo desde sua invenção. As inovações tecnológicas correntes mostram u ma interpenetração da fotografia co m outros meio técnicos, tais como a eletrografia, a teleco municação, o vídeo e a informát ica. É nessa vertente que se localizam as origens da fotografia de base eletrônica, configurando-se como uma reinvenção técnica e estética. (VICENTE, 2005, p.322)

A internet torna-se um meio de trocas e fusões dos mais variados sistemas de comunicação, como as que acontecem com a televisão para web, o rádio para web, as redes de relacionamento social, sites de consumo, etc. Formando o ambiente propício para o surgimento de novas trocas culturais e sistêmicas. No ciberespaço, a coexistência e a convivência dos diferentes sistemas tecnológicos reforça o que hoje conhecemos como hibridização /hibridação, onde dois elementos distintos se unem – no conceito de semiosfera (Iúri Lótman) podemos classificar como choques culturais ou de sistemas – propiciando a formação de um novo elemento. Entretanto alguns autores como Irene Machado (2007), se preocupam com o emprego do termo, pois, na biologia um ser híbrido é estéril e, no explosivo ambiente virtual, onde diferentes sistemas tecnológicos/midiáticos se encontram, o termo pode não ser bem empregado.

Permanência fotográfica 683 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Contudo, a própria ideia de que a fotografia se contextualiza em sua época, nos remete ao que Jorge Albuquerque Vieira (2008), em seu livro “Teoria do Conhecimento e Arte”, trata como “Permanência Sistêmica”. O problema da permanência co mo u m parâmetro básico sistêmico é u m problema do Universo. O Un iverso, por algu m motivo desconhecido, existe. E por u m outro motivo também desconhecido, ele tenta continuar existindo. Podemos citar isso na forma de um princíp io. Não chega nem a ser uma proposta ontológica fundada, mas é um princíp io: o Universo tende a permanecer. E se a física estiver certa, em sua termodinâmica dos sistemas abertos, essa permanência do Universo, que se dá através de sua expansão, implica em emergência de todos os outros sistemas e controla a permanência de todos os outros sistemas. (VIEIRA, 2010, p. 106)

O Universo tenta permanecer no tempo, consequentemente, todos os seus subsistemas – biológicos e culturais – são, também, convidados a permanecer no tempo. A permanência dos subsistemas é reflexo da permanência do Universo e toda cultura, portanto, precisa criar mecanismos de permanência que estejam além do ciclo normal que dura uma vida humana. E nessa tentativa, que se define como um mecanismo de permanência, os sistemas desenvolvem-se em novas complexidades, o que vem ocorrendo com a fotografia, com maior ênfase, nos ambientes explosivos do ciberespaço. Na tentativa de sobreviver, a fotografia desenvolve-se em novas complexidades. Podemos ilustrar a ideia de evolução da fotografia no próprio conceito que Vieira (2010) classifica como o conceito de evolon. Tomando como base que a própria estabilidade da fotografia – estabilidade esta, que se classifica como um processo de permanência – já é um contexto de evolução e da transição de um nível de estabilidade para outro, damos o nome de evolon, ou seja, um momento de crise que se instaura entre o estágio de estabilidade anterior e o posterior. Segundo Vieira (2010): Por essa ideia, o processo evolutivo não é uma transformação suave, monotônica no tempo: os sistemas em evolução “apegam-se” à estabilidade em seu esforço de permanecer. O meio amb iente possui flutuações; o próprio sistema, dependendo de sua complexidade, possui flutuações internas; quando essas flutuações “entram em ressonância” e certos parâmetros típicos da natureza do sistema são ultrapassados em valores crít icos, surge uma amplificação (u m processo não -linear) da flutuação que atira o sistema em u ma crise de estabilidade. (VIEIRA, 2010, p. 60)

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Talvez, possamos afirmar que hoje, a fotografia encontra-se em uma possível “crise” na busca de uma amplificação de seus conceitos técnicos e contextuais, aspirando ao surgimento de uma nova complexidade que irá consolidar, mais um degrau, em sua escala evolutiva. Segundo Mende, uma sequência de evolons constitui uma escala evolutiva, pela transição repetitiva de um estado estacionário ao próximo . Atingir o estacionário , na verdade o metaestável, é uma imposição de permanência. (VIEIRA, 2010, p. 60)

A permanência sistêmica parece ser o parâmetro que governa os processos evolutivos, na tentativa de permanecer, sistemas abertos permanentemente sujeitos à crise reestruturam-se e reorganizam-se gerando outras complexidades. Um sistema aberto pode permanece no tempo se apresentar três características:

1)

“deve possuir sensibilidade, no sentido de reagir adequadamente e à tempo às variações ou diferenças que ocorrem nele mesmo ou no ambiente ” (VIEIRA, 2008, p. 21), segundo o autor, essas cadeias de eventos que são geradoras de processos, se manifestam – para os sistemas – como sinais ou fluxos de informações;

2)

“O sistema deve ser capaz de reter parte desse fluxo, sob a forma de um colapso relacional, a partir da progressiva internalização de relações nascidas de sua atividade interna e do contato com o ambiente” (VIEIRA, 2008, p. 21). O sistema aqui passa a não somente perceber uma informação, mas nas palavras do autor, “percebê-la de uma certa maneira”. O que segundo o autor remete a uma função de transferência ou função memória, sendo que ao longo do tempo ganha maior flexibilidade a medida que o sistema adquire graus de complexidade mais elevados. “É a partir da memória, aqui generalizada, que um sistema consegue conectar seu

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passado, na forma de uma história, com o presente transiente e com possíveis futuros”. (VIEIRA, 2008, p. 22) 3)

“Sistemas tendem a permanecer; como abertos, necessitam de um ambiente; para permanecer, evoluem elaborando informações a partir de uma história”. (VIEIRA, 2008, p. 22)

Baseados nestas afirmações e conectados as ideais de permanência sistêmica, entendemos a fotografia como parte de um sistema aberto em que, sua principal articulação para permanecer no tempo, é sua capacidade de reagir às variações que ocorrem em seu ambiente, reter o fluxo de informações trazidos a partir de uma memória e, sobretudo, evoluir principalmente com base em suas informações históricas, uma vez que segundo o autor, “memória é uma grande solução evolutiva. Da mesma forma que o código genético preserva a informação e a propaga, uma obra de arte é guardada, evocada, transmitida pela cultura de um povo”. (VIEIRA, 2008, p. 95)

Um novo olhar para a fotografia Contudo, a ideia de permanência sistêmica, nos lança o olhar para o explosivo ambiente do ciberespaço e, principalmente, nos novos diálogos que o sistema fotográfico estabelece com outros sistemas. Para explicitar a convergência e divergência das artes e dos meios, no livro “Arte e Mídia”, Arlindo Machado (2010) propõe a ideia de pensarmos o universo da cultura como um mar de acontecimentos ligados a esfera humana, as artes ou os meios de comunicação como círculos que limitam um determinado tipo de acontecimento. Embora seja impossível delinear o raio da circunferência desses círculos, tomemos como base, a fotografia, o cinema e o vídeo (que no atual estudo se torna pertinente) como círculos detentores desses acontecimentos. Cada círculo apresentado, da mesma forma que possui suas particularidades, possui também pontos de interseção com outros círculos. Suas bordas interceptam as bordas de

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outros círculos, se sobrepondo e formando outro elemento constituinte de acontecimentos, esses proporcionados pelo fenômeno da interseção (ver figura abaixo). A ideia de interseção implica diretamente no conceito de permanência sistêmica e de hibridização já citados acima, segundo Machado “(...) nesses novos tempos de ressaca da chamada „pós-modernidade‟ a cisão entre os vários níveis de cultura não parece tão cristalina. Em nossa época, o universo da cultura se mostra muito mais híbrido e turbulento do que o foi em qualquer outro momento. (MACHADO, 2010, p. 24).

Na figura acima é mostrado uma relação direta entre vários círculos. É impossível, por exemplo, falar de cinema sem citar a fotografia, ou pensarmos em cinema sem mencionar o vídeo. No caso específico, os círculos possuem uma relação de dependência ontoló gica e contextual, pois fazem parte de uma natureza em comum, até mesmo em um processo cronológico de evolução. Mas o que queremos mostrar, é que neste universo da cultura, as particularidades se chocam mostrando-nos uma nova apresentação. Machado (2010) exemplifica ainda mais quando cita a ideia de núcleos duros, segundo o autor: Cada u m desses círculos seria mais bem representado se, em lugar de imaginá -lo uma simples circunferência vazia, optássemos por imaginá-lo um círculo preenchido por uma mancha gráfica de densidade variável: mais densa no centro, menos densa 687 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


nas bordas, perfazendo portanto um gradiente de tons que vai de um centro muito negro a bordas mais suaves, tendendo ao branco. Esse centro denso representaria a chamada “especificidade” de cada meio, aquilo que o distingue como tal e que nos permite diferenciá-lo dos outros meios e dos outros fatos da cultura humana. Cada círculo teria então o seu núcleo duro (...). (MA CHA DO, 2010, p. 59)

Entretanto, na medida em que caminhássemos para a borda e os pontos de interseção, a diferenciação entre os meios já não seria tão evidente, “(...) os conceitos que os definem podem ser transportados de uns para outros, as práticas e as tecnologias podem ser compartilhadas (...)”. (MACHADO, 2010, p. 59). Baseado no pensamento da convergência, a ideia de delimitação dos círculos acaba por se tornar obsoleta, na medida em que os círculos – aqui podemos resaltar o ciberespaço como suporte – podem aumentar de forma tão intensa que até mesmo os núcleos duros passam a se mesclar e perder a ideia de especificidades. O repertório de obras produzidas em cada círculo se expande em progressão geométrica, e algu mas delas, mais revolucionárias, redirecionam o ru mo do pensamento e da prática. Isso quer dizer que tanto os círculos como os seus “núcleos duros” vivem u m movimento permanente de expansão e, nesse movimento, as suas zonas de interseção com outros círculos também se amp liam. Chega um mo mento em que a ampliação dos círculos atinge tal magnitude que há interseção não apenas nas bordas, mas também em seus “núcleos duros”. (MACHADO, 2010, p. 64-65)

Diferentemente da ideia de divergência, onde cada meio possui suas especificidades, na ideia de convergência há uma ruptura com os conceitos mais tradicionais na medida em que os “núcleos duros”, caracterizados por suas especificidades, se mesclam com outros núcleos duros, chegando a confundir-se e nos colocar em “xeque”, sendo difícil definir, por exemplo, o que ainda é fotografia ou o que ainda é cinema ou o que ainda é vídeo. Talvez seja neste estágio que se encontre o que Vieira (2008) chama de “crise de estabilidade” do sistema e a partir deste ponto, o sistema se transforma em uma nova complexidade, se (re)apresentando em seu ambiente. A tecnologia do aparato fotográfico (câmeras fotográficas) deixa de ser um fator primordial na produção e criação das imagens e passa a ser um aparato de suporte, é normal nos depararmos com imagens criadas em scanners, sensores de calor, aparelhos de raio X e até mesmo manipulações digitais mesclando outras tecnologias, o vídeo por exemplo, que 688 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


aumenta o grau de realidade das imagens fotográficas, nesse caso, a imagem querendo aproximar-se mais do real, se desprendendo da fixação e do quadro fotográfico. Na esteira de Machado, Edmond Couchot complementa dizendo que: No que, então, as técnicas de figuração numérica mod ificam algu ma coisa na arte? Elas o fazem na medida em que são empregadas para controlar todas as imagens automáticas (fotografia, cinema, televisão), pois estas serão, a curto ou médio prazo, transmutadas em números para poderem ser registradas, tratadas, difundidas, conservadas, manipuladas: o destino da imagem é daqui em diante numérico. Essas técnicas não podem deixar de interessar artistas à procura de novas experiências e d e novas investigações perceptíveis. Aliás, elas já conquistaram alguns desses artistas. Ora, enquanto as técnicas óticas os levaram a representar o real ou a questionar essa representação e a recusar indefinidamente essa alternativa, as técnicas de síntese os convidam, a partir de agora, a simu lá-lo. (COUCHOT, 1996, p. 45)

O exemplo disso são as novas aplicações de conceitos e técnicas já discutidos no passado que estão reinventando o uso da imagem fotográfica, como o “time lapse”, o “cinemagraphy” e as fotografias 360 graus. O primeiro corresponde a captura de um “lapso de tempo”, 10 segundos de vídeo corresponde aproximadamente 3 à 4 horas de captura fotográfica. A técnica, num contexto amplo, se dá pela junção das imagens fotográficas em um software de edição de vídeo, baseado no conceito “frame a frame”, onde imagens agrupadas e organizadas, uma após a outra, gera um fragmento de vídeo (diferente da técnica stop motion, que se utiliza de animação “frame a frame” com modelos em diversos materiais como, por exemplo, massa de modelar), a linha inovadora está na criação e manipulação de arquivos HDR - High Dynamic Range (Alto Alcance Dinâmico) usados em fotografia ou em processamento de imagens, permitindo um detalhamento maior de áreas mais claras, iluminada s diretamente por uma fonte de luz a áreas mais escuras, possivelmente em sombras e arquivos RAW (cru), considerados o “negativo digital” na fotografia eletrônica, não podendo ser aplicada a compressão com perda de informações como ocorre nos arquivos JPEG. Fotos em formatos JPEG possuem uma profundidade de cor de 8-bit por canal. Isso quer dizer que são processadas cores de 0 a 255, do preto ao branco, em cada canal. Arquivos com profundidade de cor de 16-bit possuem mais fidelidade de cores (inclusive do preto e do branco) pois contém mais informações de cor em cada canal. O intervalo entre as imagens de 689 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


8-bit e 16-bit é chamado de alcance dinâmico – muito mais detalhes e fidelidade de cores são encontrados nas imagens de 16-bit, simplesmente porque existe mais informações sobre a luminosidade de cada pixel quando temos um intervalo maior de valores de luminosidade em cada canal. Por causa desta limitação, fotos HDR são feitas a partir de imagens em formato RAW, que geralmente possui uma profundidade de cor que varia entre 30 e 32 bits/pixel.

Time Lapse Patryk Kizny - http://vimeo.co m/ 16414140

No segundo, é utilizado o antigo conceito de “gifs animados”, onde elementos particulares na fotografia se movem em meio a uma imagem fixa, parada, proporcionando um loop infinito.

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Cinemagraph 2011 - Jamie Beck & Kev in Burg – http://cinemagraphs.com

A técnica da ilusão de que o “espectador” está assistindo um filme, mas o movimento limita-se a pequenos gestos ou movimentos de detalhes como iluminação e reflexo. O cinemagraph é comumente produzido, tomando uma série de fotografias e, utilizando um software de edição de imagem para compô-las em quadros seqüenciais, de forma que gere um loop infinito, muitas vezes utilizando do formato de arquivo “GIF animado” para a finalização dos trabalhos. E por fim, o terceiro mais comum, mas tão importante quanto – principalmente no que diz respeito à participação do sujeito – é o processo de criação do “Tour Virtual”, onde a interação se torna o principal fator do diálogo homem- imagem.

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Fotografia 360 graus http://fotos360.co m.br/faca -fotos-360-para-seu-site/?gclid=CIKfg YOUzK8CFcqa7Qod-U4JYQ

Na produção técnica do “Tour Virtual”, quatro etapas são necessárias para seu desenvolvimento: 1) Captura de imagens: Processo delicado onde é necessário, no mínimo, 20 minutos para fotografar uma foto 360º, esta fotografia consiste em 16 ou 22 fotos feitas em dois ângulos diferentes, no mesmo eixo, do mesmo ponto de visão. O tempo de 20 minutos é necessário para que seja feita a calibragem da câmera em relação à fotometria e iluminação, fotograma por fotograma, muitas vezes fazendo três fotos para cada posição, um estilo de fotografia chamado HDRI (High Dynamic Range Image - Imagem de Alto Alcance Dinâmico), que gera efeitos realistas ou com viés artístico. 2) Preparação da fotografia esférica. É o primeiro passo na pós-produção. Todas as fotografias RAW (extensão de arquivo de câmeras semi-profissionais e profissionais) são tratadas em um software específico, transformando todas em uma só imagem esférica 692 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


distorcida e com linha de horizonte equacionada. Neste processo também é realizado o tratamento de todas as imagens. 3) Criação da realidade virtual aumentada. Esta é a etapa mais importante, onde será criada a foto em formato VRML (Realidade Virtual Aumentada), que nos possibilita a autoração em outro software próprio para a navegação em 360º. 4) Autoração e finalização. A autoração é a fase em que são inseridos arquivos e links (fotos, textos, ícones, etc.) que possibilitam a navegação do Tour virtual. Após tudo isso, é finalizado o “Tour Vitual” em formato compatível com os parâmetros do website, onde o “Tour Virtual” será hospedado. Todas as técnicas aumentam significativamente o efeito de representação de realidade e criam uma nova forma de interação entre sujeito e obra, uma vez que as ideias fragmentárias da fotografia são colocadas a prova e o que prevalece agora é a própria ideia de movimento, em termos técnicos e contextuais. Notadamente, a tecnologia – no que diz respeito à fotografia – caminha para um futuro em que, cada vez mais, o sujeito que observa a obra passa a cumprir um papel de interator, a ponto de participar de forma há modificar a própria obra.

Considerações finais Hoje, não diferente dos processos evolutivos e de suas tentativas – constantes – em permanecer no tempo, a fotografia, novamente, entra em uma chamada “crise de estabilidade” – fator primordial na passagem para outro nível de estabilidade – e passa a migrar para os suportes digitais, o ciberespaço, tendo a internet como principal ambiente. Neste novo ambiente, que fundamenta o contexto de convergência das mídias, a fotografia passa a relacionar-se com outros sistemas, a exemplo, o cinema e o vídeo. Com esse envolvimento, desenvolve-se em novas complexidades em virtude do processo de hibridização/hibridação. Fica evidente que, a crise dos sistemas abertos, em específico o sistema fotográfico, é um fator intrínseco ao processo de existência e permanência do sistema fotográfico no tempo.

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Desta forma, a complexidade do sistema fotográfico apresenta-nos uma nova forma de visualidade, essa, pautada na interseção entre vários sistemas.

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TERRITÓRIOS EXPANDIDOS Práticas contemporâneas de arte-joalheria Mirla Fernandes

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Resumo: A arte-joalheria é uma disciplina que vem buscando o reconhecimento no campo da arte. Permeada em seus primórdios pela funcionalidade , como foi também o caso da fotografia, hoje a joalheria contemporânea se ramifica por um lado em peças de caráter tradicional, ligados exclusivamente ao adorno, e por outro lado, em trabalhos que dão prioridade ao desenvolvimento de um discurso poético, a chamada arte-joalheria, a ser tratada neste artigo. Ainda pouco conhecida no cenário brasileiro, a arte-joalheria estabelece interfaces com outras mídias operando no campo da arte contemporânea. O presente artigo é uma reflexão a partir de trabalhos de artistas joalheiros de reconhecimento internacional que expandiram os tradicionais territórios ocupados pela joalheria, ou seja usar o corpo como suporte, para trabalhar com fotografia, vídeo e instalação. Palavras-Chave : Arte-joalheria. Hibridismo. Arte contemporânea. Joalheria. Corpo. Abstract: Art-jewelry is a discipline that has been searching recognition in the art field. From its beginning, permeated by functionality, such was the case of photography, art jewelry branches out into pieces of adornment, and in the other hand, in works that give priority to the development of a poetic discourse, the so called art jewelry to be mentioned here in this paper. Almost unknown in the Brazilian art scene, it establishes interfaces with other medias operating in the contemporary art field. This paper is a reflection on works of internationally recognized jewelry artists that have expanded the traditional territories occupied by jewelry using also photography, video and installation. Keywords : Art-jewelry. Hybridism. Contemporary art. Jewelry. Body.

1. Territórios da Arte A partir daquilo que Tassinari (2001) chama de fase de desdobramento do modernismo aparecem na arte novas configurações nas quais a relação de comunicação entre a obra e o espaço do mundo se dá de tal forma que passa a ser difícil distinguir o espaço da obra de um espaço cotidiano qualquer. Nota-se que sobretudo dos anos 1950 em diante os limites espaciais vão se tornando pouco a pouco híbridos, assim como a relação entre as linguagens que coexistem no do campo da arte. Da pureza de linguagem experimentada no início do modernismo passa-se ao “desmantelamento das fronteiras interdisciplinares” (ARCHER, 2008, p.61) e a livre articulação das ideias do artista fazendo uso de procedimentos mistos. Ao pensarmos no campo da arte estamos portanto nos referindo a um território que se configura pela invenção de seu fazer:

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mestranda em Poéticas Visuais pelo Instituto de Arte da Unicamp, pesquisadora do Grupo Ornata 695 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


“a arte toda, não é mais o lugar da metáfora, mas da metamorfose, que leva a um comportamento ativo e interrogativo, móvel e modelável, interativo , de natureza que convida ao jogo, à manipulação, à transformação, ao ensaio e à mudança, à experimentação e à invenção de outras regras estéticas.” (PLAZA; TA VARES; 1998, p.199)

Não havendo distinção clara nos limites, o que está em jogo é a qualidade do discurso, a coerência nas escolhas e interações entre linguagens em função da poética do artista. Podemos pensar como exemplo, no trabalho de Cindy Sherman (FIG.1) onde a pintura e a fotografia se interpenetram para reconfigurar a tradição do autorretrato. Ou no trabalho de apropriação de imagens publicitárias e o uso da palavra no trabalho de Bárbara Kruger (FIG. 2).

FIGURA 1: Untit led #224, 1990

FIGURA 2: Untit led, 1986

O artista contemporâneo é multidisciplinar, tomando as técnicas e estruturas de diversas linguagens com desenvoltura para construir sua obra. Lembremos do trabalho de Matthew Barney, que desenvolve desenhos com uma forte carga performática, como na série Drawing Restraint (FIG. 3), onde a imagem surge a partir de configurações de ação limitantes pré-estabelecidas pelo artista. Barney ao mesmo tempo desenvolve filmes, como os da série Cremaster Cicle (FIG. 4) onde mescla e incorpora elementos da pintura, da música, cultura pop e mitológica, criando personagens híbridos que não seguem uma estrutura narrativa típica do cinema.

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FIGURA 3:Drawing Restraint 6, 1987-89

FIGURA 4: Cremaster 4, 1994

2. A Situação na Arte-Joalheria Se adornos sempre tiveram um papel significativo em diversas culturas no mundo há séculos, em tempos atuais a joalheria deslocou-se de suas raízes ornamentais para tornar-se uma forma de arte que não pode mais ser definida apenas por suas características materiais ou técnicas. Assim como ocorreu com a pintura e escultura, a joalheria foi tomada por transformações, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, quando questionamentos sobre preciosidade, unicidade e uma busca por novas possibilidades estéticas gerou o que hoje definimos como arte-joalheria: uma prática que questiona as fundações históricas da joalheria assim como seu papel no campo da arte. (STRAUSS et al., 2007) Pouco a pouco, o que se iniciou por um interesse em novas possibilidades materiais além do metal precioso e das gemas, foi se desdobrando em outras vertentes que começaram a existir sobretudo a partir dos anos 1960 como investigações sobre as relações com o corpo. Esses questionamentos distinguiram-se inicialmente da Body Art pela intermediação do objeto-joia, embora isso não signifique que houvesse uma intenção decorativa como continuava a ocorrer na joalheria tradicional. O enfoque conceitual configurou obras que, assim como estava acontecendo em outras formas de arte, buscaram valorizar a experiência do usuário. Strauss cita inclusive a similaridade da proposta de ampliação da sensibilid ade sensorial buscada na obra da inglesa Caroline Broadhead (FIG. 5) com a pesquisa de Lygia Clark. (STRAUSS et al., 2007) Entretanto, a medida que essa nova atitude se desenvolvia na joalheria, a relação com o objeto-joia também começou a ser trabalhada de outras maneiras por artistas que chegaram à transgressão do objeto em si e avançaram sobre outros territórios de práticas artísticas tais 697 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


como o vídeo, a instalação ou a performance. No cenário atual tem-se que os trabalhos de arte-joalheria não podem ser entendidos apenas por uma escolha estética diferenciada da joalheria tradicional, mas também pela integridade do uso de estratégias artísticas e processos definidos a partir de um questionamento conceitual. (ASTFALK in GRANT, 2005)

3. Territórios Expandidos Assim como podemos perceber uma convergência de linguagens na produção da arte contemporânea, o mesmo se dá com a arte-joalheria. Inúmeros artistas valem-se de outras linguagens para discutir assuntos pertinentes ao universo da joalheria saindo das tipo logias tradicionais, tais como, colares, brincos, anéis e broches para flertar com a fotografia, o vídeo, a instalação e a performance. Temos na incorporação de outras linguagens pelo artista joalheiro o deslocamento de seus trabalhos para um território difuso, entre fronteiras e portanto com uma carga de ambiguidade maior, possibilitando uma leitura de obra mais rica. Tratam-se de portanto de trabalhos híbridos que entre outros assuntos caracterizam-se por explorar a relação entre corpo e objeto. (BROADHEAD in GRANT, 2005) Dos vários artistas que transitam e experimentam expandir os territórios da artejoalheria destacamos o suíço radicado em Munique, Otto Künzli, chefe do departamento de joalheria da Akademie de Bildenden Künste desde 1991, que tem seu trabalho representado por galerias de arte e em coleções de diversos museus. Künzli faz parte de uma geração que se destacou a partir dos anos 70 inicialmente pelo uso de materiais não preciosos, mas que além da discussão material/formal já levantada pela geração anterior, também se caracterizou por experimentações com performance e fotografia. Tomemos o exemplo da performance de 1983, Das Schweiser Gold – Die Deutsche Mark (FIG.5) que pode ser traduzido como “O ouro suíço, o marco alemão” . Nela um casal vestido em trajes bastante formais permaneceu isolado em uma vitrine enquanto se dava a abertura de uma exposição. O homem usava um broche de grandes proporções na forma de uma barra de ouro, que no entanto era feito de papel de chocolate suíço. A mulher usa va um colar feito de 200 moedas de um marco alemão. Durante a performance, o casal aproveitava o momento conversando, fumando, tomando champanhe enquanto em uma sala adjacente eram observados pelos visitantes da exposição. Não havia contato acústico entre eles. Da rua podiase observar tanto o público quanto os performers. (BESTEN, 2011, p.39) 698 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Com este trabalho Künzli cria uma situação de voyeurismo explícito onde as joias sublinham uma atmosfera de decadência e exibicionismo, trata aí da relação entre o falso e o real, a vaidade e o consumo, temas caros à joalheria. As joias em si, pelos materiais escolhidos já evidenciam uma postura questionadora q ue é ampliada pela performance na qual Künzli revela as convenções e o papel mais comum da joalheria na sociedade. Em Beauty Gallery (FIG. 6), de 1984, Künzli funde duas linguagens ao criar retratos onde mulheres estão usando molduras de quadros no lugar de colares. Esse trabalho consiste em uma série de fotografias, expostas como tal e que hoje fazem parte do acervo de joias do Australian Craft Board. Se assumirmos que o retrato é construção artificial a serviço de uma vontade de singularização (FABRIS, 2004), da mesma forma, a joia clássica o é, agindo como objeto que, em princípio, ressalta qualidades, amplia a beleza e capacidade sedutora de quem a porta e portanto atua como elemento de distinção.

FIGURA 5: Das Schweiser Go ld ,

FIGURA 6: Beauty Gallery (Susy), 1984

Die Deutsche Mark, 1983

No cenário da arte joalheria europeia destaca-se também a artista portuguesa Cristina Filipe, responsável pelo departamento de joalheria da Escola Ar.Co de Lisboa e co- fundadora e presidente da PIN, Associação Portuguesa de Joalharia Contemporânea. Embora se coloque como uma artista do universo da joalheria, seu trabalho transborda os limites préestabelecidos da escala corporal da joalheria ao usar a fotografia e o vídeo como mídias. Em “Il est tout plat, et il a une emeraude, la plus belle que j’aie jamais vue...” (FIG. 7) de 1997, temos uma interferência site-specific documentada em suporte fotográfico. O 699 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


trabalho tem como inspiração a história de Tristão e Isolda. Dentre tantos e lementos que permeiam tal história, Filipe elege o anel: a prova da identidade de Isolda ao enviar uma mensagem a Tristão por meio de um mensageiro. O anel, testemunha de identidade é efêmero tal como “são os corpos de Tristão e Isolda ou qualquer corpo de um morto que volta à terra e se transforma em cinzas ou em pó, permanecendo na nossa memória, apenas..” 2 . Aqui portanto a tipologia tradicional do anel é referenciada, porém desmaterializada na medida que se torna uma intervenção no espaço.

FIGURA 7:“Il est tout plat, et il a une emeraude, la plus belle que j’aie jamais vue...”

Para o artista, o fato de um trabalho ser pensado para um corpo torna-o um mediador que potencia a significação da obra. Muitos trabalhos passam a fazer sentido quando vestidos apenas ou têm seu sentido amplificado quando sobre o corpo. É o que pensa a artista joalheira brasileira radicada na França, Dani Soter. Seus primeiros trabalhos iniciaram-se pela fotografia e hoje ela transita livremente também pelo desenho e pelo objeto-joia, como prefere chamar. Em suas palavras: “A joia é o resultado de uma reflexão, de um impu lso ou de uma experiência. Ela pode, ou não, usar o corpo como suporte, mas é fundamental para identificar e relacionar o objeto enquanto joia, seja através de um conceito, seja por inspirar sua 2

Entrev ista concedida à autora por email em 06/ 11/ 2011. 700 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


concepção, sua representação e sua realização. O corpo inspira e impõe sua presença à joia, que tanto pode ser exibida, sentida e interpretada por ele, co mo viver separada dele, apesar de uma dependência constante entre os dois . Interesso-me pela joia que veicula a comunicação e estabelece um elo entre as pessoas, estimulando sua curiosidade, tanto visual como intelectual.” 3

Ao eleger a linha como símbolo de seu próprio percurso criativo, Soter não hesita em usá- la ora no desenho, ora na fotografia, ora no objeto em alguma relação com o corpo. Assim tem-se uma linha que escorre pelo corpo na fotografia “À Mostra” (FIG. 6), e outra que alude a um possível caminho percorrido em “Percurso” (FIG. 7). Se na fotografia o corpo está visível e aparece tomado por fios que remetem a veias, no objeto-joia o corpo não aparece mas é convidado sutilmente ao interagir pois o colar traz em si a potência de ser vestido. O fio vermelho sai do plano da fotografia para o objeto. Como delineador de percursos, o fio sólido e concreto convida ao toque, evoca a uma cumplicidade que passa pela possibilidade de ser usado pelo corpo de quem usufrui, sendo assim, joia. Por outro lado, remete também aos colares de contas usados por diversas religiões onde cada conta se refere a uma oração, e portanto a uma concentração específica em um determinado ponto. Em “Percurso”, cada círculo de metal alude à passagem por um lugar costumeiro aos trajetos da artista. É também um convite à uma viagem conjunta, que é no fim das contas o que a obra de arte evoca: o embarque na proposta do artista, o deslocamento para uma realidade por ele proposta. Em ambos a presença da linha “parece ter vida própria”, como a própria artista explica sobre seus desenhos: “me insinuam que desejam sair do papel. A solução que encontrei fo i deixar que a linha do desenho se tornasse um objeto que se pudesse tocar, que pud esse sair do papel para se enroscar no lápis, depois nos dedos, na mão, no braço e assim por diante [...]”. 4

Desta forma vemos em Soter trabalhos que vão se construindo através de um diálogo pela linha. O elemento constitutivo do desenho é aqui retomado através do código de outras disciplinas para dar continuidade a sua poética, que não se limita a existir dentro de fronteiras pré-fixadas ou definições categorizadas de uma única linguagem.

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Em entrevista concedida à autora por email entre 6 e 12 de Setembro de 2012. Ibid. 701 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


FIGURA 6 : “À mostra”, Dan i Soter, 2002

FIGURA 7: “Percurso”, Dani Soter, 2009

4. Considerações Finais Pelos trabalhos exemplificados de Künzli, Filipe e Soter vimos que a arte-joalheria pode fundir questões pertinentes joalheria à de outras linguagens. Embora essa nova faceta da joalheria venha se desenvolvendo há mais de 40 anos, a arte-joalheria, assim como ocorreu com a fotografia até meados dos anos 1960, ainda busca o reconhecimento no campo da arte. Ao analisar o percurso da inserção da fotografia na arte, deixando de lado uma certa existência marginal a que estava sujeita, Jeff Wall (in GOLDSTEIN;RORIMER, 1995) afirma que foi apenas a partir do momento em que se auto-desconstruiu é que a fotografia finalmente se afastou da questão da representação. Quando a fotografia se desvencilhou de seu caráter reportagem a partir da fotografia conceitual, onde a perícia técnica do artista também foi posta em cheque, é que a fotografia alcançou o status de arte contemporânea. 702 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Tal qual a fotografia, a joia, na medida que se afasta de sua tipologia habitual e da função decorativa, amplia seu território de ação no entrecruzamento com outras práticas de arte. Ao escolher transitar por uma zona de imprecisão e apropriar-se de outros códigos distancia-se das associações instantâneas que acompanham a ideia de joia, normalmente ligadas às dinâmicas da indústria joalheira e de moda. O fato de não usar uma tipologia já conhecida causa um estranhamento que exige mais do usuário/usufruidor da obra. A obra torna-se mais complexa nessa convulsão semiótica provocada pelo artista e ao mesmo tempo insere-se mais afirmativamente no contexto da arte contemporânea.

Referências Bibliográficas ARCHER, Michael. Arte Contemporânea. Uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2008. GRA NT, Catherine (Org.) New Directions in Jewellery.Essays by Ji van Astfalck, Caroline Broadhead and Paul Derrez. Londres: Black Dog Publishing, 2005. BESTEN, L.d. On Jewellery. A Compendi um of internati onal contemporary art jewellery. Stuttgart: Arnoldsche Art Publishers, 2011. FABRIS, Annateresa. Identi dades Virtuais. Uma leitura do Retrato Fotográfico. Belo Horizonte: Editora UFM G, 2004. GOLDSTEIN, A.; RORIM ER, A. Reconsidering the Object of Art: 1965-1975 with essays by Lucy Lippard, Stephen Melville and Jeff Wall. Los Angeles: The Museum of Contemporary Art, 1995. PLAZA, Julio; TA VA RES, Monica. Processos Criati vos com o Meios Eletronicos: Poéticas Digitais . São Paulo: Ed itora Hucitec, 1998. STRA USS, C; ENGLISH, H.W.D.; BURROWS, K.M .; WETZEL, K. Ornament as Art. Avant-garde Jewelry from the Helen Williams Drutt Collection. Houston:The Museum of Fine Arts. Stuttgart: Arnolds che Art Publishers, 2007. TASSINARI, A lberto. O es paço moderno. São Paulo : Cosac Naify, 2001.

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ARTE E LOUCURA: alguns fundamentos clínico-estéticos Myrna Coelho

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Resumo: O presente artigo trata da interface arte-loucura. Esse tema será problematizado a partir dos resultados de uma pesquisa sobre a experiência de criação coletiva de um grupo de dança-teatro chamado “Cia. Experimental Mu...Dança” formado por militantes da Luta Antimanicomial em seus quatro segmentos: usuários dos serviços de saúde mental, seus familiares, profissionais e estudantes. Essa pesquisa foi realizada entre os anos de 199 9 e 2006 e sistematizada na dissertação de mestrado “’das loucuras Da História’: dança -teatro, sofrimento psíquico e inclusão social.”, apresentada ao Programa de Pós Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo (USP) . Muitos têm sido os esforços dos pesquisadores antimanicomiais em teorizar sobre suas práticas, na tentativa de rumar a reforma psiquiátrica brasileira para um terreno de transformação de paradigmas. Esse modo diferente de relação com o fenômeno da loucura é conceitualizado na reforma psiquiátrica a partir de quatro dimensões inter-relacionadas, salientando a relação da arte neste campo. Conceitualizaremos, primeiramente, os fundamentos da Reforma Psiquiátrica para posteriormente compreendermos a inserção das artes no campo da saúde mental, exemplificada a partir dos achados teóricos da pesquisa referida. Abordamos a interface arte-loucura discutindo esta experiência como criação de um espaço de participação política . Palavras-Chave: Arte-Loucura. Reforma Psiquiátrica. Oficinas Artísticas. Fenomenologia. Dança-teatro.

Introdução A discussão sobre loucura não é nova, Foucault (2000) traz uma dimensão deste fenômeno pensando na divisão incessante entre razão e loucura e na interdição que a indicação do rótulo “loucura” contém. No Brasil essa discussão ganhou maior destaque, inclusive acadêmico, com a criação do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial, em 1987, e posterior aprovação da Lei 10.216 em 2001, e com toda a construção das práticas em saúde mental desenvolvidas pelos profissionais ligados ao pensamento desse movimento, que versa sobre a extinção progressiva dos manicômios e sua substituição por uma rede de saúde mental inserida em equipamentos de saúde e cultura no território. A partir daí, também se passou a inserir artistas como trabalhadores na rede de saúde mental, produzindo um novo desafio na consolidação dessas equipes interdisciplinares. A metodologia de construção das oficinas artísticas no campo da reforma psiquiátrica deve se fundamentar na possibilidade de sair de um lugar de troca-zero – como o lugar da loucura – para um lugar de criação, abre caminho para que outras potencialidades sejam

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exploradas pelos usuários. Sair do papel social do louco é a possibilidade de ocupar múltiplos papéis sociais. A apropriação de uma nova linguagem, a vivência de uma construção grupal, a ampliação da percepção sobre ser- no- mundo-com-os-outros e lutar pela mudança do imaginário social da loucura é o que possibilita ao grupo a vivência do trabalho como ressignificação do ser-louco. Ressaltamos que o trabalho é, também, pensado com Hannah Arendt em sua distinção entre trabalho e labor, distinção esta gerada por uma sociedade de consumo. A idéia de trabalhar está relacionada hoje com o suor, a supressão, mas Arendt chama nossa atenção para quanto estes aspectos relacionam-se com a idéia de labor. Labor pensado como ciclos repetitivos, de longa duração. É a diferença entre fabricar bens duráveis e não duráveis, produzir fruição de beleza e produzir escravidão (Arendt, 2003). Mas para fechar os manicômios não basta derrubar seus muros, mas os muros daquilo que Peter Pal Pélbart (Pélbart, 1990) chama de “Manicômio Mental”, ou seja, da significação do imaginário social da loucura. O autor mostra que uma sociedade não pode erradicar seus loucos e sua loucura. Precisamos do direito à liberdade de desarrazoar, ou seja: “(...) uma dimensão essencial de nossa cultura: a estranheza, a ameaça, a alteridade radical, tudo aquilo que uma civilização enxerga como seu limite, o seu contrário, o seu outro, o seu além” (Pélbart, 1990).

1.

Reforma Psiquiátrica O conceito de loucura na dinâmica da reforma psiquiátrica é entendido não como uma

doença que necessita de cura e que, portanto, pede remédio, mas sim a partir de uma tentativa de colocar a doença entre parênteses, que é muito bem definida por Paulo Amarante: Esta atitude epistemológica de colocar a doença entre parênteses não significa a negação da doença no sentido de não reconhecimento de u ma determinada experiência de sofrimento ou diversidade. Em outras palavras, não significa a recusa em aceitar que exista uma experiência que possa produzir dor, sofrimento, diferença ou mal-estar. Significa, isto sim, a recusa à explicação oferecida pela psiquiatria, para dar conta daquela experiência, co mo se esta pudesse ser exp licada pelo simples fato de ser nomeada co mo doença. (...) A doença entre parênteses é, ao mesmo tempo, a denúncia social e política da exclusão, e a ruptura epistemológica co m o saber da psiquiatria que adotou o modelo das ciências naturais para objetivar conhecer a subjetividade. (...) O 1

Psicóloga, mestre em Estética e História da Arte – USP, doutora em Integração da América Lat ina – USP, integrante da Co missão de Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo – CRP-06, integrante da Associação Brasileira de Daseinsanalyse – ABD. 705 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


resultado prático desta psiquiatria, ao considerar que a loucura é doença, no sentido do erro, fo i criar para o louco u m lugar de exclusão, um lugar zero de trocas sociais, que é como Rotelli se refere ao manicô mio. (...) É necessário estabelecer rupturas – com conceitos tais como o de doença, de terapêutica, de cura, de ciência, de técnica, de verdade! (...) pois a relação a ser estabelecida não é com a doença, mas co m o sujeito da experiência . (A marante, 2003, p. 56 - 61).

Quando colocamos a loucura entre parênteses estamos lançando mão da postura husserliana da Époché (Husserl, 1952), implicando-nos com o compromisso de deixar de lado os psicologismos envolvidos nos pensamentos que se ocupam da saúde mental, fundados no dualismo cartesiano. Esse modo diferente de relação com o fenômeno da loucura é conceitualizado na reforma psiquiátrica a partir de quatro dimensões inter-relacionadas. A primeira dimensão refere-se ao campo teórico-conceitual, ou epistemológico. Aqui, ressaltamos o conceito de desinstitucionalização como um processo ético-estético de reconhecimento de novas situações que produzem novos sujeitos de direito, e novos direitos para os sujeitos. Também submete o conceito de doença a uma desconstrução, supondo que as relações entre as pessoas envolvidas também serão transformadas, assim como os serviços, os dispositivos e os espaços. O sujeito, não mais visto como alteridade incompreensível possibilita outras formas de conhecimento, as quais produzirão novas práticas clínicas e sociais. Na dimensão epistemológica, busca-se estabelecer uma relação entre a transição paradigmática das ciências e a ruptura epistemológica em relação à psiquiatria tradicional, presente nos fundamentos da invenção da loucura como doença mental. A segunda dimensão seria a técnico-assistencial, donde emerge a questão do modelo assistencial. O modelo psiquiátrico é calcado na tutela, na custódia, na disciplina e na vigilância, legitimando a institucionalização, expressando-se no manicômio. Enquanto alienado, o louco estaria incapaz de decidir pelo seu tratamento e o asilo seria o local ideal para o exercício do “tratamento moral”, da reeducação pedagógica, da vigilância e da disciplina. O conceito de alienação se oporia, então, ao conceito de cidadania, pois o alienado não pode exercer sua cidadania por sua condição de ausência de Razão. Na dimensão técnicoassistencial propõe-se realizar uma analise dos principais conceitos que norteiam a produção de cuidados na rede substitutiva, entendida não apenas como um conjunto de serviços, mas como uma estratégia que produz uma ruptura com o modelo assistencial hegemônico. 706 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Uma terceira dimensão da Reforma Psiquiátrica diz respeito ao campo jurídicopolítico, onde importa rediscutir e redefinir as relações sociais e civis em termos de cidadania, de direitos humanos e sociais, pelo fato da psiquiatria ter instituído uma série de noções que relacionam loucura à periculosidade, irracionalidade, incapacidade e irresponsabilidade civil. Na dimensão jurídico-política, através de uma análise do percurso histórico da Reforma Psiquiátrica, propõe-se destacar as tensões e conflitos decorrentes das ações dos diferentes atores sociais que provocam e interrogam a relação entre Estado e Sociedade. A quarta dimensão seria a sociocultural, que expressa o objetivo maior da Reforma Psiquiátrica, ou seja, a transformação do lugar social da loucura, pois o imaginário social – decorrente da ideologia psiquiátrica tornada senso-comum – relaciona loucura à incapacidade do sujeito em estabelecer trocas sociais e simbólicas. Nessa dimensão, muitos trabalhos e pesquisas foram realizados a partir de experiências artísticas, o que trouxe – desde Nise da Silveira – um novo campo de formulação e debates na saúde mental. Esses debates polemizam a arte como objetivo x a arte como método, trazendo embates profícuos para profissionais tanto do campo da saúde mental como do campo das artes, agora comungando novas possibilidades e potencialidades de encontros. Desta forma, o aspecto estratégico desta dimensão diz respeito ao conjunto de ações que visam transformar a concepção de loucura no imaginário social, transformando as relações entre sociedade e loucura. É a partir dessa quarta dimensão que podemos pensar modos de produzir oficinas artísticas como um olhar para a loucura que não parte das dicotomias de um paradigma cartesiano, da divisão corpo-mente, sujeito-objeto, mas através da experiência. Todo o conjunto de transformações e inovações (...) contribuem para a construção de um novo imag inário social em relação à loucura e aos sujeitos em sofrimento, que não seja rejeição ou tolerância, mas de reciprocidade e solidariedade. (A marante, 2007, p. 73)

Assim, na reforma psiquiátrica, as transformações devem transcender à simples reorganização do modelo assistencial e alcançar as práticas e concepções sociais, intervindo não apenas no funcionamento dos serviços e na formação profissional dos técnicos envolvidos, mas no profundo e complexo fenômeno da representação social da loucura. Devemos pensar o campo da saúde mental não como um modelo, mas como um processo, e, para isso, a dimensão sociocultural é fundamental. 707 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


2. Arte e Loucura Com o advento e a proliferação, especialmente nas duas últimas décadas, de serviços substitutivos ao manicômio no Brasil, as práticas artísticas passaram a ser amplamente utilizadas e, com isso, pesquisadas. Inclusive, a legislação brasileira que regulamenta o funcionamento dos Centros de Atendimento Psicossocial insere a prática de oficinas terapêuticas como “uma das principais formas de tratamento oferecido nos CAPS” (Ministério da Saúde, 2004, p. 20). Essas práticas se baseiam, especialmente e inicialmente, na experiência paradigmática de Nise da Silveira no Museu de Imagens do Inconsciente. Para tanto, faz-se necessário um breve histórico da relação arte- loucura. No século XVIII, quando os asilos eram visitados pela população, os artistas se interessaram por fazer desenhos de observação de dentro dos asilos e também pelos desenhos dos loucos, pendurados, muitas vezes, nas paredes das celas. Mas é a partir da segunda metade do século XIX que se pode datar a utilização das artes no âmbito da psiquiatria e psicologia, tendo sido as primeiras pesquisas realizadas por Max Simon, no final do século XIX, inaugurando um tema que despertou a curiosidade científica de diversos autores, inclusive de Charcot, que se interessou pelas produções artísticas dos pacientes psiquiátricos com objetivos nosológicos e diagnósticos. Em 1906, Mohr realizou um estudo comparativo de produções de doentes mentais, pessoas ditas normais e grandes artistas no qual percebeu a manifestação de histórias de vida e conflitos pessoais que originaram, posteriormente, a formulação de diversos testes psicológicos de investigação da personalidade. Em 1922, o trabalho de H. Prinzhorn veio a público inaugurando a visada estética sobre as produções dos doentes mentais, opondo-se ao uso de seu modo de leitura para o diagnóstico de pacientes e rotulagem de uma obra nos mo ldes da psicopatologia. Em 1917, no Brasil, Monteiro Lobato criticou duramente uma exposição de Anita Malfati, comparando a Arte Moderna, depreciativamente, à arte dos loucos. No Brasil, em 1925, Osório César escreveu sobre os trabalhos dos pacientes do Juqueri, no primeiro registro brasileiro sobre o tema, o qual despertou o interesse dos modernistas; posteriormente, organizou a primeira exposição de arte do Juqueri no MASP (de 10 de outubro à 19 de dezembro de 1948). Nesses registros é possível percebermos a 708 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


preocupação de Osório César com o profissionalismo do fazer artístico no manicômio, salientando para que este trabalho contasse com instrutores capacitados. Em 1933, Flávio de Carvalho organizou em São Paulo uma exposição com desenhos de crianças e loucos, questionando o academicismo da Escola Nacional de Belas Artes e o gosto artístico da classe média. Em 1947 ocorreu a primeira exposição de pinturas dos internos do Centro Psiquiátrico Nacional, no Ministério da Educação, no Rio de Janeiro. Mas o grande marco da discussão brasileira a respeito de trabalhos artísticos com loucos se deveu, sobretudo, ao trabalho pioneiro de Nise da Silveira (1905-1999). De 1946 a 1974 ela dirigiu a seção de terapia ocupacional do Centro Psiquiátrico Pedro II, no Rio de Janeiro, utilizando métodos e teorias que contrariavam a ordem imposta pela psiquiatria tradicional. A partir da teoria de Carl Gustav Jung ela tentava compreender os delírios, as alucinações e os gestos através das imagens pintadas ou modeladas por pessoas ditas esquizofrênicas. As pesquisas realizadas pela psiquiatra abriram aos loucos a possibilidade de ocuparem o espaço destinado aos artistas: o atelier, um lugar onde suas obras nunca seriam interpretadas do ponto de vista psicanalítico, já que Nise preoc upava-se em observar, facilitar e acolher a expressão dos pacientes. Em 1949, no MAM do Rio de Janeiro, ocorreu a exposição “Nove artistas do Engenho de Dentro”, com a participação de Nise da Silveira. Nesta época, artistas e críticos posicionavam-se contra o intelectualismo e a favor do informalismo nas artes. Em 1950, Mário Pedrosa, opondo-se a um determinado preconceito com relação às expressões plásticas dos esquizofrênicos, escreveu a favor do que denominou “arte virgem”, conceitualizando-a como uma arte que não leva em consideração as convenções acadêmicas estabelecidas. Este conceito é, em grande parte, parente do conceito “art brut”, criado por Jean Dubuffet, também no pós- guerra. A partir deste olhar muitas modificações ocorrem no âmbito do tratamento em saúde mental. Como exemplo, podemos citar a descoberta de Arthur Bispo do Rosário (1911-1989) como artista, confinado por 50 anos na Colônia Psiquiátrica Juliano Moreira. Inicialmente, Bispo utilizava em suas obras apenas fios de linha azul que tira va de seu uniforme de paciente e de velhos lençóis para bordar e recriar, com palavras e imagens, o mundo a que tinha acesso dentro do hospício. Depois, passou a juntar canecas, sapatos, garrafas e toda espécie de objetos, reunindo-os em painéis e mantos que são fantásticas obras de arte (Silva, 1998). 709 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Nos últimos anos, nota-se uma valorização destas manifestações, em exposições como, por exemplo, a Bienal de Arte Incomum, realizada na XVI Bienal Internacional de Arte de São Paulo, em 1981 (Frayze-Pereira, 1995). Temos também a exposição de Arthur Bispo do Rosário no MAC 1990 e a exposição de Arte e Loucura realizada em 1987 também em São Paulo, pelo Instituto Psiquiátrico Juqueri na ocasião da defesa do doutorado de Maria Heloisa Correa de Toledo Ferraz (1998). Hoje, temos uma sala dedicada a obra de Arthur Bispo do Rosário sendo apresentada na 30ª. Bienal Internacional de Arte de São Paulo. Vale a pena ressaltar que quando falamos de arte e loucura adentramos um território problemático, pois estamos falando de manifestações que possuem suas raízes numa segregação historicamente pontuada, ou seja, aquela que se designou chamar doença mental e todo seu aparato tecnológico e institucional que o Ocidente vivenciou desde o surgimento do período que Foucault (2000) chamou de “Grande Internação”. Assim como a doença mental passou por uma profunda revisão de seus postulados nosográficos nos últimos anos, o mesmo se delineou nas artes, pois vivemos uma desterritorialização da instituição arte. Contudo as constantes apologias a curadorias e exposições sobre o tema Arte e Loucura suscitam, entre outras coisas, à pergunta do que é arte e do que não é arte, encaminhando-nos ao confronto direto entre limites (Valero, 2001). O trabalho e a arte têm a função de inserção no mundo da coletividade e de rompimento do isolamento que caracteriza a vivência subjetiva contemporânea não apenas para os pacientes psiquiátricos. E a questão das oficinas se reveste de um caráter essencialmente político porque o desejo é por si mesmo revolucionário, por ser um produtor não apenas de fantasias, mas de “mundos”. As oficinas serão terapêuticas ou funcionarão como vetores de existencialização caso consigam estabelecer outras e melhores conexões que as habitualmente existentes entre produção desejante e produção da vida material, caso consigam conectar-se com o plano de imanência da vida, o mesmo plano com base nas quais são engendradas a arte, a política, o amor. Essa prática consiste não apenas numa prática de reinserção social, mas numa reestruturação do mundo, já que ele tem que ser recriado, um tecido cultural tem que ser produzido. Quando desejamos, por meio da arte ou do trabalho, produzir territórios existenciais cresse que está se falando não de adaptação à ordem estabelecida, mas de fazer com que trabalho e arte se reconectem com o primado da criação, com o desejo e com o plano de produção da vida (Rauter, 2003). 710 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Podemos dizer que a obra de arte vale por si mesma, independentemente da pessoa que a produziu. Se as pessoas criativas não são necessariamente loucas, também os loucos não são necessariamente pessoas criativas (Valero, 2001). As preocupações, tais como de Osório César, com a qualidade artística do que se faz em saúde mental continuam, mas não em todos os projetos. Na Cia. Experimental Mu…Dança esta preocupação era uma constante, pois entendíamos que, se a arte pedia o reconhecimento de um público, esta deveria ser reconhecida pela sua qualidade, e não de outra forma (Coelho, 2007). As oficinas em saúde mental trilham o caminho de flexibilizar a identidade do louco com a loucura. No caso da oficina de dança-teatro da Cia. Experimental Mu...Dança, encarnar um papel significava descolar-se de uma representação de si para poder experimentar uma outra. Esse distanciar-se, particularmente difícil, acabou sendo feito de modo que não precisasse suprimir o ator, de modo que suas características, dificuldades ou estigmas pudessem ser construídos como estilo da personagem a ser incorporada na atividade (Coelho, 2007). Flexibilizando-se essa identidade do louco ele pode como dançarino, cantor, ator, pintor, deixar a unicidade de ser louco, para a qual convergem todos os aspectos de sua vida a partir do momento do diagnóstico, ocupando outro lugar no mundo, que, como qualquer lugar artístico, pressupõe o reconhecimento de um público (Valero, 2001). Entretanto, o fato de inserirmos práticas artísticas em saúde mental não garante que elas sejam antimanicomiais. Muitas práticas, infelizmente, acabam por corroborar o pensamento manicomial, reforçando preconceitos e prestando um desserviço à população. Por isso torna-se tão necessário que possamos discutir tais práticas contemporâneas. Figura 1 – apresentação da Cia. Experimental Mu...Dança no vão livre do MASP, 18 de maio de 2004.

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3.

Cia. Experime ntal Mu...Dança A Cia. Experimental Mu...Dança (FIG. 1) foi um grupo de dança –teatro formado no

Centro de Atenção Psicossocial Integral (Capsi) de Diadema (grande São Paulo) e trabalhou entre 1999 e 2006 e teve como participantes militantes do Movimento nacional da Luta Antimanicomial (MNLA) representados pelos seus quarto segmentos: usuários do sistema de saúde mental, seus familiares, profissionais e estudantes, assim como também a comunidade em geral. A dimensão sociocultural implica que todos os participantes são iguais, horizontalizados pela própria atividade o que implica que a posição de poder/saber circula. Os objetivos eram: criar coreografias, espetáculos, performances ou happenings pautados no estudo da dança-teatro, em pesquisas sobre os processos de enlouquecimento e nos sentidos da militância antimanicomial a partir das histórias propostas pelos bailarinos na metodologia de construção coletiva; militar no movimento nacional da luta antimanicomial a

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fim de ressignificar o lugar social da loucura; criar um espaço político onde a existência da ação ocorra (Arendt, 2003). Os resultados deste trabalho estão na dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação Interunidades em Estética e História da Arte da USP intitulada: “„das loucuras Da História‟: dança-teatro, sofrimento psíquico e inclusão social” (Coelho, 2007). No caso específico do grupo apresentado, utilizamos a técnica da dança-teatro. A dança-teatro é um conceito formulado no decorrer da história da dança a partir das danças corais desenvolvidas por Laban. Nos aproximamos da definição de dança-teatro a partir da obra de Pina Bausch, ela revela o cansaço dos coreógrafos com os gestos teatrais heróicos e tem seu foco no movimento de pedestres, nas relações humanas básicas, nas pessoas comuns. Ela é compreendida como “Experimentação, contato consigo mesmo, com o corpo, com os outros e com os fatos e acontecimentos presentes em nossa cultura. Significa a possibilidade de colocar em gestos, os sentimentos, os pensamentos, as idé ias, as emoções e cenas vividas” (Castro, 1992). (é) Uma dança altamente autobiográfica, co m sua força na intensidade da experiência e em sua expressão. Sua limitação está em sua subjetividade. Não oferece soluções, mas articula os problemas. Seus dançarinos dirigem-se diretamente para a platéia, e falam sobre si mesmos. (Partsh-Bergsohn, 2004).

Assim, durante todo o processo as preocupações coreográficas centraram-se na valorização e reapropriação da própria gestualidade individual, construindo pontes destas com o grupo, ampliando as possibilidades criativas (Castro, 1992). Altamente autobiográfica, a dança-teatro tem sua força na intensidade da experiência, não oferece soluções, mas articula os problemas. Faz uma arqueologia dos modos de vida, busca uma nova percepção em oposição aos mundos de imagens pré-concebidas. Ela é fruto da busca por uma linguagem para aquilo que não se pode expressar de outra forma, explorando a lacuna entre a dança e o teatro num nível estético, psicológico e social. Dessa forma, os bailarinos são a metáfora da sociedade tendo a condição humana como matéria prima. São guiados na manipulação e transformação de sua história de vida. No início do grupo nossa maior dificuldade foi justamente fazer a palavra circular. Os bailarinos chegavam para um encontro onde o produto já era conhecido, não se permitiam lançar a uma diferente possibilidade, não se permitiam encontrar com diferentes, e tão pouco 713 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


nós terapeutas que, apesar de sabermos da importância daquela atividade, tínhamos que nos deparar inúmeras vezes com a prática de criticá- la, de repensá- la e de cuidar constantemente dos objetivos e dos papéis daquele grupo, já que na condição de louco a submissão torna-se automática. Percebemos que, para construirmos juntos, é necessário pensarmos juntos, partindo do problema da desigualdade. Encontrar-se com a loucura pode ser encontrar-se com o diferente, como são todos os encontros, mas também é encontrar-se com os desiguais. A história da loucura como doença mental construiu uma visão de homem e mbotada e, nas relações em saúde mental contemporâneas, faz-se necessário que esse engano seja retomado, que o outro deixe de ser reificado pelos estudos dos sintomas e torne-se visível, desfazendo em nós o sentimento de que o louco é alguém que perdeu seus direitos, parecendo-nos desprezível e repugnante, cuja última atitude sã resultaria em submeter-se completamente ao saber psi. A desigualdade não pode nunca dispensar os homens para que se mantenha. O problema da loucura, tal qual o problema da desigualdade, é problema humano, problema tornado visível pelo fato de carecermos de igualdade e liberdade em nossas relações. E a experiência estética, a criação artística, pode trazer a essas relações a possibilidade de se ressignificarem se forem vivenciadas num espaço de igualdade política, um espaço onde se possa construir o entendimento dos campos da iniciativa e da palavra.

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POR UMA POÉTICA DA AUTORIA ABERTA: apropriação do sistêmico como programa poético nas artes participativas e interativas Nardo Germano 1 Resumo: Abordando alguns aspectos de minha tese de doutorado defendida em 2012, este artigo apresenta o conceito de “Poética da Autoria Aberta” que concebo como práxis artística de apropriação dos mecanismos de produção das representações sociais, no contexto da autoria dos espectadores nas artes participativas e interativas. O estudo tem como referência fundamental a reflexão de Umberto Eco, que estabelece uma distinção entre Abertura Estética (de caráter sistêmico) e Poética da Obra Aberta (compreendida como programa artístico que intencionalmente adota a abertura como princípio instaurador da obra). Numa transferência interdisciplinar de conceitos, este estudo sobre a autoria aberta articula reflexões de Mikhail Bakhtin, Roland Barthes, Michel Foucault, Marcel Duchamp e George Landow, envolvendo diversos campos de atividade (literatura, fotografia, artes plásticas, artetecnologia) para investigar a compreensão sobre a autoria na recepção como fenômeno sistêmico, segundo o reconhecimento de uma coautoria imanente do espectador no âmbito da Estética tal como postulada por estudiosos da Estética da Recepção, a exemplo de Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser. Minha abordagem estende aquela distinção de Eco para pensar essa mesma questão e propor a coautoria do espectador enquanto Poética, através da adoção dessa possibilidade sistêmica como objetivo final de um programa artístico elaborado por um artistapropositor de uma obra aberta com intenção de promover agenciamentos e processos autorais dos espectadores como princípio poético. Como desdobramento do conceito de Poética da Autoria Aberta, o estudo propõe as noções de autorabilidade (pensada quanto ao espectador, aos meios, ao repertório, às circunstâncias de recepção, ao macrocontexto etc.), obra autorável, agenciamento autoral do espectador, bem como adota o conceito de “espect-autor” de Mohamed Aziz Gellouz. Com essas formulações, que privilegiam a noção de autoria em suas notações, configura-se uma taxonomia mais apropriada para compor um vocabulário que permita designar, compreender e legitimar essa modalidade de produção espectatorial enquanto forma, repertório e significados, nas obras cuja abertura poética propõe desafios autorais aos seus espectadores. Palavras-Chave: Poética da Autoria Aberta. Autorabilidade. Obra Autorável. Agenciamento Autoral dos Espectadores. Apropriação dos dispositivos tecnológicos. Abstract: Discussing some aspects of my thesis (2012), this paper defends the concept of “Poetics of the Open Authorship” as an artistic praxis of appropriation of the production technological devices of the social representations in the context of the spectator’s authorship in the participatory and interactive arts. The study references the Umberto Eco’s writings in Open Work that establish a distinction between the systemic characteristic of the Aesthetic Openness and the Poetics of Open Work as an artistic program that adopts intentionally the openness as a principle of the work. Through an interdisciplinary transfer of concepts, this approach articulates studies of Mikhail Bakhtin, Roland Barthes, Michel Foucault, Marcel Duchamp and George Landow (literature, photography, visual arts, arts and technology) in order to investigate the understanding of the spectator authorship as a systemic phenomenon, according to the notion of an immanent coauthorship of the spectator, as postulated by the proponents of the Aesthetic of Reception as Hans Robert Jauss and Wofgang Iser. My approach extends that Eco’s distinction, focusing on the spectator coauthorship as Poetics, through the adoption of that systemic possibility as the final goal of an artistic program elaborated by an artist-proposer of an open 1

Doutor em Artes Visuais pelo PPG Artes Visuais; área de Concentração: Poéticas Visuais; linha de Pesquisa: Processos de Criação em Artes Visuais, ECA/USP, 2012. Atua nos Grupos de Pesquisa “Poéticas Digitais” (ECA/USP) e “Poéticas Híbridas” (IA/UNESP, pesquisador) – CNPq. E-mail nardogermano@uol.com.br 716 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


work, intending to promote authorial agencies and processes of the spectators as poetics principle. In that context of Open Authorship Poetics, the study proposes the notions of authorability (of the spectator, the media, the repertory, the circumstances of reception, the macrocontext etc.), authoriable artwork, authorial agency of the spectator and also adopts the Gellouz concept of “spect-author” (2007). Those formulations, which privilege the notion of authorship, set a taxonomy more appropriate to compose a vocabulary that describes and increases the understanding of the concept of spect-authorship, and legitimizes that modality of authorial production of the spectators as form, repertory and meanings, in the artworks whose poetic openness proposes authorial challenges to their spectators. Key-words: Poetics of the Open Authorship. Authorability. Authoriable artwork. Authorial Agency of the Spectators. Appropriation of the technological devices.

Introdução A obra não é mais um objeto fixo, ela pode ser modificada, sob certas condições, pelo espectador. Não é nada mais do que um conjunto de potencialidades e somente existe e tem sentido na medida em que o espectador a atualiza. De tal modo, o destinatário da obra torna-se por sua vez o seu coautor. É claro que associar o espectador à criação de uma obra de arte não se limita à arte digital – uma ideia profundamente influente na estética dos anos 70 – mas encontra uma nova vida com a interatividade digital e tornase uma das principais características da artemídia. O status de artista, obra de arte e público são redefinidos, o que, por sua vez, provoca uma redefinição do acesso a obras de arte, da crítica de arte e da estética. (Edmond Couchot, 2005)

No contexto arte-pesquisa, este artigo apresenta as formulações teóricas e conceituais resultantes de uma pesquisa em Poéticas Visuais empreendida sob o método indutivo, com o estudo dos fenômenos ocorridos na minha série artística Autorretrato Coletivo no processo de abertura aos espectadores através de estratégias de participação e interatividade, e que em sua abrangência constituem minha contribuição como artista-pesquisador para o estado da arte. A primeira questão de ordem conceitual que se coloca para uma discussão sobre a autoria do espectador nas obras participativas e interativas é o embasamento da reflexão no contexto da Obra Aberta, de Umberto Eco (1988). Nesse texto, o filósofo italiano investiga as condições de “abertura” da obra de arte contemporânea e estabelece uma distinção entre uma abordagem estética ou poética da questão, distinção fundamental para a compreensão de toda a formulação teórica de uma poética da autoria aberta tal como proponho, uma vez que a circunscrição de estudos dessa questão não é um problema de ordem estética, mas sim um problema no âmbito das poéticas.

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1.

Obra Aberta: Abertura Estética x Poética da Obra Aberta

Uma premissa importante no pensamento de Umberto Eco para que se compreenda a sua reflexão sobre o conceito de obra aberta é o dimensionamento do fenômeno enquanto estética ou poética. Nas palavras do pensador: Se devêssemos sintetizar o objeto das presentes pesquisas, valer-nos-íamos de uma noção já adotada por muitas estéticas contemporâneas: a obra de arte é uma mensagem fundamentalmente ambígua, uma pluralidade de significados que convivem num só significante. Essa condição constitui característica de toda obra de arte [...]; [...] tal ambigüidade se torna – nas poéticas contemporâneas – uma das finalidades explícitas da obra, um valor a realizar de preferência a outros (ECO, 1988, p.22).

Vale apontar que na Abertura Estética observa-se uma polissemia que se elabora e se deflagra no âmbito da fruição da obra, e que esse processo polissêmico se realiza até mesmo à revelia de uma possível intenção de fechamento das potenciais significações de uma obra, operadas por um autor interessado na necessária transmissão objetiva de determinados significados (como se observa na arte clássica e renascentista). Nesse caso, tal abertura, apesar de nem sempre desejada pelo autor e às vezes por ele controlada, é inerente à obra; essa condição constitui-se numa abertura sistêmica de toda obra de arte na medida em que, nas palavras de Eco, “uma obra de arte, forma acabada e fechada em sua perfeição de organismo perfeitamente calibrado, é também aberta, isto é, passível de mil interpretações diferentes” (1988, p. 40, grifos do autor). Esse raciocínio é reforçado mais adiante, quando o pensador complementa que “qualquer obra de arte, embora não se entregue materialmente inacabada, exige uma resposta livre e inventiva, mesmo porque não poderá ser realmente compreendida se o intérprete não a reinventar num ato de congenialidade com o autor” (1988, p. 41). Nessa passagem revela-se um pensamento no qual podemos identificar essa “congenialidade” como um indício do que se poderia considerar uma possível coautoria sistêmica entre autor e leitor/espectador de uma obra no âmbito da estética aberta. Em contrapartida, no caso das Poéticas da Obra Aberta na contemporaneidade, a abertura não se restringe a ser um fenômeno compulsório da condição de toda obra de arte, em que toda obra é aberta. Ao contrário: nessa nova perspectiva, “os chamados textos abertos são apenas a exploração mais extrema e provocativa – para fins poéticos – de um princípio que rege tanto a produção quanto a interpretação de textos em geral” (ECO, 1984, p. 4-5). Assim, a abertura é prevista e proposta intencionalmente pelo artista que, no processo de criação e produção de sua obra, revela sua consciência crítica dessa realidade contingente da Estética e, ao invés de 718 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


lutar contra, forçando um fechamento na interpretação da obra, ou de “sujeitar-se à „abertura‟ como fator inevitável, erige-a em programa produtivo e até propõe a obra de modo a promover a maior abertura possível” (ECO, 1988, p. 42, grifo nosso), instaurando o que Bakhtin considera como “o inacabamento de princípio, a abertura dialógica” na relação com o espectador (1970, p. 347, tradução nossa). Focando a reflexão no âmbito da Poética, Eco considera duas categorias de obra aberta, que denomina como “obras em movimento”. A categoria mais ampla e genérica é composta por obras contemporâneas que propõem uma abertura intencional e deliberada que, embora fisicamente completadas pelo próprio autor, são capazes de promover uma “germinação contínua de relações internas que o fruidor deve descobrir e escolher no ato de percepção da totalidade dos estímulos” (ECO, 1988, p. 64) encerrados no signo enquanto interpretação. Essas obras propõem uma abertura que se baseia “na colaboração teorética, mental, do fruidor, o qual deve interpretar livremente um fato de arte já produzido, já organizado segundo uma completude estrutural (ainda que estruturado de forma a tornar-se indefinidamente interpretável)” (ECO, 1988, p. 50), reorganizando-o. A outra categoria de “obra em movimento” caracteriza-se por se apresentar intencionalmente incompleta, como “obra inacabada” (ECO, 1988), um tipo de obra contemporânea “em que „abertura‟ é menos metafórica e mais concreta” (GULLAR, 1968, p. 128), na medida em que é colocada para o espectador explicitamente como um “convite a fazer a obra com o autor” (ECO, 1988, p. 63, grifo do autor). Nesse sentido, a obra solicita a colaboração para realizar o discurso artístico, que então “o fruidor organiza e estrutura, no próprio campo da produção e da manualidade” (ECO, 1988, p. 50, grifo do autor) da obra, envolvendo-se na sua criação. Configura-se, nessas duas categorias de obra em movimento, um indício que considero como coautoria não sistêmica, posto que é deliberadamente intencionada e buscada pelo artista contemporâneo.

2.

Poética da Autoria Aberta

A partir do esclarecimento desses dois aspectos, da generalidade do conceito de abertura enquanto Estética e sua especificidade enquanto Poética, evidencia-se a coerência de considerarmos essa mesma premissa apresentada por Eco sobre a obra aberta para tratarmos de nossa discussão em torno da autoria do espectador, proposta no contexto das obras em movimento, que envolvem proposições participativas e interativas, em aberturas de 2º e 3º 719 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


graus, respectivamente (ECO, 1988; PLAZA, 2003). Por um lado, cumpre discernir uma coautoria imanente do espectador no âmbito da Estética, postulada por estudiosos da Estética da Recepção, como Jauss e Iser, cujas teorias “concluem que os atos de leitura e recepção pressupõem interpretações diferenciadas e atos criativos que convertem a figura do receptor em co-criador” (PLAZA, 2003, p. 12), uma vez que não há isolamento entre o sujeito da produção e o sujeito da recepção, que são pensados como sujeitos transubjetivos, numa mediação social e cultural. Encontra-se na Estética da Recepção de Jauss (1978, p. 123-157) o princípio da inversão da aisthesis em poiesis no momento da recepção, enquanto em Iser encontra-se a percepção da “relevância estética dos vazios” (in: LIMA, 1979, p. 89), fatores pelos quais, segundo o raciocínio lógico dessas abordagens, os espectadores exercem uma influência autoral sobre a obra. Por outro lado, cumpre propor essa mesma questão enquanto Poética, como adoção da coautoria do espectador considerando-a o objetivo final de um programa elaborado por um artista-propositor de uma obra aberta. Nesse caso, entende-se que “a noção de poética como programa operacional proposto pelo artista corresponde ao projeto de formação de determinada obra” (PLAZA, 2003, p. 11) que teria como pressuposto provocar aquela conversão do espectador de aisthesis para poeisis de Jauss para propiciar o completamento autoral pelo espectador – ou o preenchimento de seus vazios, como quer Iser... Minha reflexão está ancorada também na noção de “autoria aberta”, pensamento que comparece associado à lógica do hipertexto, como em George P. Landow, quando considera que “ao permitir que os leitores escolham seus trajetos através de um conjunto particular de lexias, o hipertexto em essência transfere algum poder do autor para os leitores” (1996, p. 225, tradução nossa) na construção do discurso. Discutindo no âmbito da política do hipertexto, Landow elenca várias das características-chave dos sistemas hipertextuais que intrinsecamente promovem novos tipos de liberdade e autonomia, que trazem como consequência um novo poder do leitor; entre os quais, o fato de que

O leitor também escreve e linka; este poder, que remove grande parte da lacuna nas convencionais relações de status entre leitor e autor, permite que os leitores leiam ativamente de um modo ainda mais poderoso – anotando documentos, discutindo com eles, deixando suas marcas próprias. (1997, p. 281, tradução nossa.)

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Landow cunha o termo wreader (1997, p. 255), um neologismo obtido pela aglutinação das palavras writer e reader, para melhor caracterizar o desempenho do leitor no hipertexto e o emprega ao descrever o caso exemplar da passagem da versão impressa de seu livro para hipertexto, num experimento junto a seus estudantes que reconfiguraram sintomaticamente o original “na medida em que leram Hypertext enquanto wreaders – como leitores ativos e mesmo agressivos que podem e adicionam links, comentários, e suas próprias subwebs a web principal” (1997, p. 255). Noutro momento, discutindo aspectos da linkagem no hipertexto, reforça-se a ideia de um (w)reader como um leitor que é também autor:

An equally basic form of linking involves the degree to which readers either activate or even create them. In contemporary hypertext jargon, the opposition is usually phrased as a question of whether links are author or (w)reader determined, or – putting the matter differently – whether they are hard or soft. Most writing about hypertext from Bush and Nelson to the present assumes that someone, author or reader functioning as author, creates an electronic link, a so-called hard link. (LANDOW, 1997, p. 17, grifos nossos)

Essa estrutura de reorganização de discursos através de linkagens e demais procedimentos elencados por Landow permite “misturar gêneros e modos de escrita”, como “uma obra de autoria aberta” (GOSCIOLA, 2010, p. 148), estrutura que por si só estabelece essa condição autoral sistêmica, recordando que o próprio Landow a considera intrínseca ao sistema hipertextual, como um recurso tecnológico provido pelo hipertexto. A reflexão que proponho investe em uma abordagem mais geral e ampla que, além da tecnologia, pode abarcar também os outros meios de produção artesanais e técnicos, justificando-me com o reconhecimento do próprio Landow, em “The Definition of Hypertext and Its History as a Concept”, quanto a uma correlação estrutural e conceitual entre o texto tradicional e o hipertexto apontando que, “como quase todos os estruturalistas e pósestruturalistas, Barthes e Foucault descrevem o texto, o mundo das letras, e as relações de poder e status que o envolvem, em termos compartilhados pelo campo do hipertexto do computador”, tais como rede, links, teia, nós etc. (1997, p. 3, tradução nossa) – o que nos permite intuir que essa noção de autoria aberta é intrínseca, mas não inaugural no sistema hipertextual, pois já estaria conceitualmente pressuposta, ainda que de modo bastante abstrato, na compreensão da lógica textual antecedente. Essa noção de rede também comparece no ensaio La Mort de l’Auteur, de 1968, quando 721 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Barthes, refletindo especificamente sobre os processos autorais na escritura, confere ênfase para a recepção. Barthes desenvolve o ensaio de modo a propor uma inversão: ao invés de buscar a interpretação da obra no passado, ao qual o autor está condicionado, o filósofo francês sugere focar a atenção para o futuro da escritura, ou seja, para a recepção – e reconhecer o leitor como “o ser total da escritura”, apresentando a seguinte argumentação:

um texto é feito de escrituras múltiplas, oriundas de várias culturas e que entram umas com as outras em diálogo, em paródia, em contestação; mas há um lugar onde essa multiplicidade se reúne, e esse lugar não é o autor, como se disse até o presente, é o leitor: o leitor é o espaço mesmo onde se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que é feita uma escritura. (BARTHES, 1994, p. 495)

Essa perspectiva coloca o leitor na posição de detentor do significado final do discurso, mas, em consequência da opção simbólica (e curiosamente suicida) de Barthes por proclamar a polêmica morte do autor, a ideia de transferência da noção de autor para o leitor tornou-se inviável... Ou seja, esse pensamento bloqueou o reconhecimento de que, na lógica sistêmica da escritura, o leitor torna-se coautor do texto que lê. Mas na base conceitual de sua reflexão, é essa transferência que está descrita na conclusão de seu ensaio que não se tornou ainda mais polêmico porque Barthes, talvez traído pela própria consciência de classe, enquanto elite intelectual, e exercendo sua autoridade de autor, tenha “preferido” naquele momento não passar o bastão da autoria para o leitor... Posteriormente, em Le Plaisir du Texte, refletindo especificamente sobre sua experiência de leitor, Barthes reintroduz o autor, reconhecendo que, “perdido no meio do texto [...], há sempre o outro, o autor” (1973, p. 45, grifo do autor). Em outra passagem de sua escritura, poeticamente sugere, na organização sintática de uma frase, a ambígua equivalência entre as duas instâncias autor/leitor na recepção (1987, p. 14, grifo do autor): “o autor (o leitor) parece dizer-lhes: amo a vocês todos (palavras, giros, frases, adjetivos, rupturas: de cambulhada: os signos e as miragens de objetos que eles representam)”. Prosseguindo sua reflexão, afirma que na recepção todas as citações e seus autores se inscrevem; inclusive o conjunto de citações circunscrito no texto organizado pelo próprio escritor que “possui esse imenso dicionário de onde retira uma escritura que não pode ter parada” (1988, p. 70). Considerandose que o leitor é aquele lugar de inscrição de todas as citações de uma escritura, e somando-se a isso a declaração de Barthes de que “não há outro tempo senão o da enunciação, e todo texto 722 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


é escrito eternamente aqui e agora” (1994, p. 493), podemos inferir que para Barthes a escritura do texto prossegue na recepção. Embora não enunciada explicitamente nos dois textos barthesianos, é essa a interpretação que se constrói nos textos: na recepção, o papel do leitor equivale ao do escritor na sua relação com a escritura. No livro A Câmara Clara, numa bela reflexão sobre fotografia, Barthes (1980) estabelece a distinção entre o Operator, o Spectrum e o Spectator, respectivamente o Fotógrafo, o Fotografado e o Espectador. Se pensarmos a fotografia também como uma escritura (enquanto texto ou narrativa visual), veremos que o raciocínio barthesiano sobre o leitor aqui tem o seu correspondente no Spectator como o ser total do que vou denominar aqui de “escritura fotográfica”: Barthes analisa uma série de situações em que, no âmbito da recepção, o Spectator pode perceber um punctum que é um elemento não integrante das intencionalidades (o studium) do autor-fotógrafo, mas que pode ter passado despercebido no momento da produção da imagem. Esse elemento inesperado afeta o espectador, ganha importância e interfere no sentido da escritura, exemplificando assim a noção de que todas as citações se reúnem... no Spectator. Mais uma vez, o foco de Barthes volta-se para os processos de recepção da obra, reiterando o seu método de provisoriamente retirar de cena a figura do autor como explicação da obra para que sua reflexão possa revelar a importância do Spectator da fotografia como aquele elemento que, em definitivo, expande o campo de significação da obra, aquele que é responsável pelo futuro de sua escritura visual. Nas artes visuais, a proposição de Marcel Duchamp já antecipava esse “deslocamento de papéis”, assim compreendido no enfoque de Anne Cauquelin (2005, p. 98):

A famosa proposição de Duchamp “É o observador que faz o quadro” é para ser tomada ao pé da letra. Ela não se refere – como se crê com muita freqüência – a alguma metafísica do olhar, a um idealismo do sujeito que enxerga, mas corresponde a uma lei bem conhecida da cibernética, retomada pelas teorias da comunicação: o observador faz parte do sistema que observa; ao observar, ele produz as condições de sua observação e transforma o objeto observado. Vê-se que não se trata mais de separar o artista de seu consumidor virtual, mas de uni-los em uma mesma produção.

O deslocamento de papéis instaurado na proposição Duchampiana corresponde coerentemente à lógica de sua expressão “coeficiente artístico” (DUCHAMP, 1986, p. 74) que consiste na relação “entre o que permanece inexpresso embora intencionado, e o que é expresso não723 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


intencionalmente” pelo artista em sua obra de arte (veja-se sua ressonância na relação studium/punctum barthesiano). Recordando ainda nas palavras de Duchamp: “o ato criador não é executado pelo artista sozinho; o público estabelece o contato entre a obra de arte e o mundo exterior, decifrando e interpretando suas qualidades intrínsecas e, desta forma, acrescenta sua contribuição ao ato criador”, refinando a obra em seu estado bruto. Bakhtin também considera a questão da interpretação do leitor/espectador como um fenômeno de coautoria, conforme compreende Guattari (1992, p. 25-26):

Bakhtine descreve uma transferência de subjetivação que se opera entre o autor e o contemplador de uma obra – o olhador, no sentido de Marcel Duchamp. Nesse movimento, para ele, o „consumidor‟ se torna, de algum modo, co-criador. A forma estética só chega a esse resultado por intermédio de uma função de isolamento ou de separação, de tal modo que a matéria de expressão se torna formalmente criadora.

Bakhtin, ao considerar que “a forma é a expressão da relação axiológica ativa do autor-criador e do indivíduo que percebe (co-criador da forma) com o conteúdo” (2010, p. 59), sublinha que, pela forma, autor-criador e leitor se equivalem na criação, numa relação de coautoria. Essa afirmação bakhtiniana pode ser estendida para todas as áreas da criação, na medida em que o próprio Bakhtin procura registrar a abrangência de sua reflexão, realizada especificamente no âmbito da Literatura, para outras áreas de expressão artística, quando se preocupa em denominar o componente estético como “uma formação estético-singular realizada na poesia com a ajuda da palavra, nas artes figurativas com a ajuda de um material visualmente perceptível” (BAKHTIN, 2010, p. 53, grifos do autor), de modo que se compreenda que aquele indivíduo co-criador da forma pode estar num processo tanto de leitura de um texto, quanto de contemplação de uma obra visual e assim por diante. Por exercer intensamente a atividade da escritura, Bakhtin atenta para a sua própria experiência enquanto leitor e logra reconhecer uma intersecção de elementos do seu processo autoral em comum no processo de recepção da obra e elabora esta descrição, num depoimento pessoal surpreendente: Durante a leitura ou a audição de uma obra poética, eu não permaneço no exterior de mim, como o enunciado de outrem, que é preciso apenas ouvir e cujo significado prático ou cognitivo é preciso apenas compreender; mas, numa certa medida, eu faço dele o meu próprio enunciado acerca de outrem, domino o ritmo, a entonação, a tensão articulatória, a gesticulação interior (criadora do movimento) da narração, a atividade figurativa da metáfora, etc., como a expressão adequada da minha própria 724 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


relação axiológica com o conteúdo. (BAKHTIN, 2010, p. 59, grifos nossos).

Em todas essas reflexões apresentadas, perpassa a noção de autoria aberta a um exercício de conotação autoral por parte do leitor, ouvinte, ou espectador, enquanto fenômeno intrínseco da recepção de uma obra. Tendo em conta essas observações, e ainda apoiados nas premissas de Umberto Eco, retornemos, agora, à distinção da noção de autoria aberta compreendida de um lado enquanto fenômeno de estética (um fenômeno sistêmico) e de outro lado enquanto fenômeno de poética (um fenômeno intencionado, de arbítrio do artista) para propor a minha noção de autoria aberta enquanto Poética, formulando o conceito de uma “Poética da Autoria Aberta”. Nesse sentido, aquele princípio sistêmico de uma escritura/criação sempre em aberto colocado por Bakhtin, Duchamp e Barthes como fenômeno inerente ao processo de produção/recepção bem como por Landow enquanto propriedade tecnológica intrínseca do hipertexto pode, na medida da tomada de consciência dos artistas, ser adotado como programa poético. Pleiteio essa noção específica em decorrência de minha experiência com as estratégias de abertura poética aos espectadores que implantei na série Autorretrato Coletivo, mas também porque tenho observado na produção artística contemporânea uma dupla tendência com relação às práticas abertas ao espectador: de um lado, artistas que propõem obras abertas, na categoria da obra em movimento, para promover a ação do espectador sem intencionar nem declarar, nessa ação, algum princípio autoral ou compartilhamento de autorias; de outro lado, artistas, entre os quais me incluo, que assumem declaradamente em suas intencionalidades a busca desse engajamento autoral dos espectadores em suas obras participativas e/ou interativas e em seus projetos coletivos.

3.

Obra Autorável e Autorabilidade

Toda a minha reflexão sobre a questão da autoria do espectador desenvolve-se no âmbito da Obra Aberta. É nesse contexto que se torna possível reconhecer, internamente, uma categoria de obras com qualidades e características de abertura com proposições artísticas cujos autores intencionalmente viabilizam e/ou até mesmo solicitam explicitamente o engajamento autoral do espectador. A essa categoria passo a denominar mais especificamente como “Obra Autorável”, ou seja, um conceito a partir do qual podemos investir mais franca e 725 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


objetivamente nas questões que envolvem autoria dos espectadores no contexto das obras abertas – frisando que, no contexto de uma Poética da Autoria Aberta, toda obra autorável é uma obra aberta, mas nem toda obra aberta é uma obra autorável – e que o fato de uma obra ser autorável não a classifica como uma obra artisticamente melhor nem pior do que as outras. Reconhecida a abertura em toda obra autorável, em quê consistiria a sua autorabilidade? A autorabilidade é um conceito de mão dupla que pressupõe uma relação dinâmica que, originando-se na produção, se efetiva no eixo da recepção, mediado pela obra, no momento em que recepção pode se desdobrar em nova etapa de produção quando a autorabilidade da obra encontra uma potencial autorabilidade do espectador. E podemos intuir que caberia também considerar uma possível autorabilidade dos meios – mais ou menos facilitadores em seus recursos – e das circunstâncias da recepção (ECO, 1974) ou do macrocontexto2 etc.. Quanto à obra, a autorabilidade seria a potencialidade de uma obra aberta ser autorável, ou seja, o potencial autorável que o autor incutiu na obra, o investimento de autorabilidade que o autor empreendeu para que esteja aberta não somente a uma ação do espectador, mas aberta a processos de autoria desse espectador sobre sua constituição. A autorabilidade, quanto ao espectador, corresponderia à capacidade, habilidade ou predisposição de um determinado indivíduo para exercer a função de autor, ou seja, sua autorabilidade – desse sujeito – em relação a determinado objeto artístico. Consistiria também numa relação processual na qual esse indivíduo identifique, na conformação do objeto artístico aberto, em sua forma significante, o apelo (poético ou comunicativo) para a autoria – e venha a atendê-lo, ignorá-lo, ou desafiá-lo. A autorabilidade, quanto ao repertório, corresponde ao maior ou menor índice repertorial que uma obra autorável pode apresentar como ponto de partida para o processo. Nesse sentido, segundo o critério do repertório, a obra autorável pode se configurar como obra inacabada ou obra-proposição, e estabelece alguns parâmetros de ação do espectador sobre esse repertório que podem funcionar como pontos de referência para a compreensão das modalidades de autorabilidade acionadas poeticamente e de suas respostas que, nesses processos, não ocorrem em estado puro, mas numa gama de nuances que resultam nas qualidades específicas (ou o coeficiente artístico Duchampiano...) de uma obra inacabada ou de uma obra-proposição (que 2

Em estilística, macrocontexto é “o conjunto dos dados contextuais presentes ao espírito do leitor quando ele lê um texto: o macrocontexto é, então, constituído pela situação cultural do leitor.” (DUBOIS, 2004, p. 398). 726 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


antecipadamente solicitam o refino do público):  O espectador é convidado a articular um repertório alheio preexistente (do artista ou de outros espectadores) contido na obra autorável (obra inacabada);  O espectador pode acrescentar o seu próprio repertório ao repertório alheio preexistente na obra autorável (obra inacabada) e  O espectador é convidado a criar a partir de seu próprio repertório, sem um repertório massivo anterior ou preexistente como referência, mas apenas o repertório verbal ou visual mínimo da proposição (obra autorável enquanto obra-proposição).

É nesse eixo dinâmico, no qual recepção se encontra num devir de produção, que se estabelece uma relação de autorabilidade entre a obra aberta e o espectador: a obra torna-se autorável pela capacitação que lhe impressa para estimular a autoria do espectador – abertura que propicia não apenas a interpretação, execução ou experimentação da obra pelo espectador, mas também hipostasia e explora poeticamente o potencial autoral dessas ações, o que pendularmente também depende da autorabilidade do espectador para que se consolide o processo, sem o quê a autorabilidade seria mera possibilidade irrealizável. Se considerarmos que a autorabilidade de toda obra aberta seja imanente (relembrando que enquanto estética toda obra seria autorável), o fator que aciona um diferenciador nesse processo é a noção de Poética, ou seja, uma Poética da Autoria Aberta, em que o artista intencionalmente cria a obra visando a explorar artisticamente essa autorabilidade. No meio digital, reconhecemos que as estruturas de hipertexto, wiki e campos de formulários sejam um sistema de autoria aberta por excelência, é uma questão inerente ao meio ao qual pertencem; nesse sentido, trata-se de uma abertura autoral de ordem sistêmica. Porém, se um artista ou programador, ao construir uma determinada interface, não intencionar uma autoria aberta, então deliberadamente “fechará” essas comportas autorais oferecidas pelo sistema aberto – não abrirá espaço para comentários dos visitantes, ou então construirá sites cujo campo de comentários seja mediado por um processo de avaliação e aprovação para posterior publicação apenas de conteúdos autorizados; esse autor configurará uma autorabilidade restrita, vigiada, controlada – nesse caso, o objeto mediador da relação autor/receptor não se caracteriza como obra autorável, uma vez que explora o espectador enquanto ratificador da autoridade do autor – enfim, autorabilidade reduzida a mera chancela para a autoridade. No sentido de buscar a superação do exercício autoritário da autoridade de autor, uma obra 727 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


proposta poeticamente como obra autorável coloca-se na perspectiva de explorar a autorabilidade do sistema até as últimas consequências e seus limites serão combatidos, rompidos, superados, de modo que dialogismo e polifonia (BAKHTIN, 1970) sejam elementos portadores dos mais diversos pontos de vista manifestados das mais diferentes formas, abrindo comportas para que o autêntico, o imprevisível, o imponderável e o nãoautorizado sejam veiculados livremente como garantia autoral do outro, constituindo, enfim, alteridade e diversidade no corpus da obra efetivamente aberta à autoria dos espectadores.

4.

Agenciamento autoral ou enunciativo

Uma questão sobre o fenômeno de abertura da obra é o agenciamento do espectador, que estabelece na recepção um novo estatuto dessa figura fundamental como agente do processo artístico. Nesse sentido, um aspecto que me desperta atenção e interesse consiste em considerar a autorabilidade desse agenciamento para constituir sujeitos de enunciação 3 (DUBOIS, 2004, p. 219) e a maneira como esse novo agenciamento reinventa o espectador, liberando-o ou desafiando-o para o exercício de novas funções no processo de produção e recepção da obra de arte. O termo “agenciamento” já aparece empregado por Maria Alice Milliet, ao comentar o agenciamento coletivo (1992) promovido pelas proposições participativas de Lygia Clark, na relação direta, corporal, do participante com o objeto artístico com conotações autorais consideradas pela artista (CLARK, 1980), e corresponde também aos projetos coletivos propostos por Hélio Oiticica para deflagrar processos de invenção em seus participadores (OITICICA, 1986). Já no contexto das especificidades do meio tecnológico, o uso do termo “agenciamento” foi convencionado como “intervenção autônoma do receptor” (MACHADO, 2007, p. 126) e se constitui de modo geral relacionado à interatividade dos meios digitais enquanto agenciamento do espectador, denotando-se daí que “tudo o que vai se desenrolar na tela depende agora das decisões, ações e iniciativas tomadas pelo sujeito que se relaciona com ela, o usuário do computador” (2007, p. 144), em última instância, o interator. Nas discussões sobre a autoria do interator no contexto tecnológico, Janet Horowitz Murray 3

Adoto “enunciação” e “sujeito de enunciação” no sentido da Linguística: Enunciação “é o ato individual de utilização da língua [...], é o ato de criação do falante. [...] Assim, a enunciação é constituída pelo conjunto dos fatos e dos atos que provocam a produção de um enunciado”. (DUBOIS, 2004, p. 218-219). 728 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


(2003, p. 149-150) considera que o que ocorre nesse processo “não é autoria, mas agência”, afastando da noção de agenciamento qualquer relação com processos autorais. No seu ponto de vista, “a autoria nos meios eletrônicos é procedimental” e argumenta que autoria procedimental “significa escrever as regras para o envolvimento do interator, isto é, as condições sob as quais as coisas acontecerão em resposta às ações dos participantes”. Ao colocar que é preciso “distinguir essa autoria derivativa da autoria original do próprio sistema”, Murray evidencia que a autoria procedimental corresponde a uma lógica sistêmica, que nos remete às reflexões de Landow sobre o sistema aberto do hipertexto. Nesse sentido, proponho, na constituição de uma Poética da Autoria Aberta, a expansão das possibilidades do agenciamento para processos autorais intencionalmente mobilizados no sentido de promover uma conversão do participante/interator em coautor da obra, considerando que “autoria aberta desloca o agenciamento” (GUZDIAL, 1998, p. 6) e estimula a criação. É preciso na verdade reconhecer que a autoria derivativa inscreve-se como uma modalidade de autoria, exercida pelo interator como “o sujeito de enunciação [...], o ego, local de produção de um enunciado” (DUBOIS, 2004, p. 219), e que o sistema provê as condições para a enunciação do sujeito, mas não a realiza e nem produz o enunciado. Essa é uma condição sine qua non para compreender o outro lado do problema. Considerando uma autorabilidade nesse agenciamento, enquanto qualidade e particularidade autoral de uma ação do interator, de sua enunciação, estabeleço a formulação “agenciamento autoral” (GERMANO, 2010), que poderia ser também “agenciamento enunciativo”, como um desdobramento coerente do termo em suas novas articulações.

Conclusão Para encaminhar nosso pensamento no sentido da evolução tecnológica, faço minhas as palavras de Felix Guattari, que a meu ver atendem perfeitamente para concluir essa questão esclarecendo que: [...] tudo depende de como for sua articulação com os agenciamentos coletivos de enunciação. [...]. As evoluções tecnológicas, conjugadas a experimentações sociais desses novos domínios, são talvez capazes [...] de nos fazer entrar em uma era pósmídia, caracterizada por uma reapropriação e uma re-singularização da utilização da mídia. (1992, p. 15-16, grifo nosso).

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Evidencia-se, assim, a existência de outro campo de estudo complementar que, incluindo os agenciamentos coletivos de enunciação, inclui extensivamente, a figura do espectador. Tratase de um campo no qual questões de ordem autoral dos espectadores em processos de enunciação também ganham importância conceitual e demandam uma abordagem teórica para a compreensão das diferentes modalidades de autoria e inserção da alteridade, pontos de vista e formatividades (PAREYSON, 1993) dos espectadores, tal como comparecem no corpus da minha série Autorretrato Coletivo, bem como no contexto geral e abrangente da arte contemporânea em obras participativas e interativas que, em seus agenciamentos, proponham uma “função-autor” (FOUCAULT, 2001, p. 831) para o espectador convidado a um exercício que encontra na notação semiótica “espect-autor” (GELLOUZ, 2007, p. 29-30) o conceito mais específico para sua nova função no corpus da obra – e assim: uma “função-espect-autor” (GERMANO, 2012, p. 79). Em suma, aplicada em toda sua extensão de programa operacional artístico (como conceito geral e abrangente), a Poética da Autoria Aberta, tal como compreendida e proposta, pode abrigar várias poéticas (pessoais), conforme o modo como cada artista-propositor organiza essa abertura para a autoria dos espectadores e, principalmente, conforme o modo como os espect-autores respondem, individual ou coletivamente, à apropriação do sistêmico para articular essa demanda autoral.

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DOUTRINA E CONFRONTO Corpo e Paisagem nos Trabalhos de Absalon e Natália Coutinho Natália Godinho Coutinho

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Resumo: O presente artigo objetiva provocar uma reavaliação das estratégias traçadas por um sistema social conservador, que se sustenta a partir de uma política de disciplina dos corpos, no intuito de disciplina-los e dividi-los em categorizações simplistas, para que os mesmos apresentem-se enquanto modelos interessantes a uma ordem civil. Palavras-Chave: Corpo. Disciplina. Paisagem. Absalon. Natália Coutinho. Abstract: This article aims to provoke a reassessment of the strategies designed by a conservative social system, which is supported based on a discipline policy of the bodies, in order to discipline them and divide them into simplistic categorizations, so that they present itself as interesting models to a civil order. Keywords: Body. Discipline. Landscape. Absalon. Natalia Coutinho.

Tematizada frequentemente nos trabalhos de artistas contemporâneos, a complexidade envolta nas relações tecidas entre corpo e espaço permeiam a historiografia da arte. Tal relação, constituindo uma paisagem arquitetonicamente preparada para melhor acondicionar o sujeito como fragmento de uma massa homogêneo-sociabilizante, aparece como questão correlata a dois trabalhos de dois artistas contemporâneos, analisados neste artigo. O primeiro destes Absalon, artista israelense que viveu em Paris de 1987 a 1993 onde produziu uma série de trabalhos intitulada “Células”, estruturas funcionais e habitáveis construídas e ntre os anos de 1991 e 1993. A segunda artista é Natália Coutinho, brasileira nascida em Belém-PA, da qual o trabalho Sala Neo-Concreta, produzido em 2008, é aqui enfocado. A maquinária que rege essa massa, em ação disciplinadora, justifica-se por uma lógica social arbitrária e assume um compromisso com a criação de uma “História” e de “momentos históricos” que possam validar e sustentar em desequilíbrio, o emblema da “verdade” de uma “Sociedade Contemporânea”. Segundo Foucault “a disciplina é um princípio de controle da produção do discurso. Ela fixa os limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualizarão permanente de regras” (FOUCAULT, 2005:36). As palavras do autor vêm aqui como elucidação das entranhas do processo de produção das identidades, que são edificadas para o sujeito ainda em sua primeira forma: o discurso.

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Torna-se, ainda, de suma importância investigar, as outras formas onde o discurso se materializa, na construção arquitetônica de um meio urbano, como espaço de representação dos papéis distribuídos e ainda no design mobiliário, como estratagemas presentes no cotidiano, que conduzem o corpo por meio de experiências sinestésicas a uma condição passiva de utilidade ao sistema. É importante salientar ainda que assim como o organismo social veio desenhando uma ordem a ser seguida, o corpo veio igualmente desviando e desarticulando as armadilhas que foram deixadas no caminho para que ele fosse encarcerado em definições simplificadoras.

A esse corpo foram atribuídas qualidades a serem exaltadas

ou reprimidas, instituindo-se para ele premiações e castigos na ratificação de um comportamento modelo – a norma.

FIGURA 1: Natália Coutinho – Sala Neo-Concreta, 2008.

O texto aqui apresentado procura problematizar questões presentes dentro dessas relações, tomando parte do trabalho de Absalon “Células”, enquanto construções inteiramente brancas cujas formas reproduzem uma escala referente ao seu corpo, porém reduzindo aos movimentos mais mínimos que garantiriam sobrevivência, abreviando assim as ações por ele executadas criando relações entre o meio urbano e as qualidades subjetivas afetadas por esse 1

Natália God inho Coutinho é artista e aluna de pós-graduação do Instituto de Artes da Universidade de Camp inas. 734 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


meio social. O texto toma parte ainda de um trabalho de minha própria produção intitulado “Sala Neo-Concreta” (Fig.1), onde modifico escalas de uma mesa e cadeira e construo-as com materiais típicos do universo da construção civil como forma de pontuar as formas arquitetônicas que serviriam a recondicionar o corpo em um papel social pré-definido. A intenção é a de criar uma intersecção entre os conceitos discutidos nos dois trabalhos para que os mesmos possam indicar caminhos possíveis para desarticulação desses papéis instituídos ao corpo do sujeito.

1.1 O Corpo como Processo nos Trabalhos de Absalon As construções assépticas do artista Israelense Absalon, produzidas em Paris entre 1991 e 1993, intituladas “Células” (Fig.2), possuem internamente o mobiliário com medidas relacionadas às de seu próprio corpo, em escala extremamente reduzida, restringindo ao máximo suas ações a comer, dormir, escovar os dentes, masturbar-se entre outras ações, estas filmadas e exibidas posteriormente em vídeos intitulados “Soluções”. O artista declara assumir uma postura de preservação de sua subjetividade, quando se auto-aloca nessas instalações compactas. Ainda que afirme que sua intenção não seja a de se isolar do mundo que o cerca, mas que apenas intenciona resguardar ali um lugar para que suas qualidades subjetivas possam sobreviver, é dentro dessa condição de clausura que o enxergamos. Perceber o corpo do trabalho de Absalon é adentrar em uma representação do sujeito que teve seus movimentos amplamente restringidos e que luta contra o desvanecimento de suas qualidades mais intrínsecas, que foram atingidas por um complexo normativohomogeneizante. Quando os vídeos “Soluções”, de 1992, mostram o artista em ações mínimas como dormir, escovar os dentes, masturbar-se, banhar-se, etc. Presenciamos uma espécie de concentração das qualidades básicas de sua existência, em movimentos que acabam adquirindo dentro dessa construção asséptica e mínima, uma potência significativa que se dilata, precisamente na restrição desse espaço. Ao assistir o artista em performance, é impossível não relacionar essa restrição também ao fato do mesmo ter contraído Aids durante a própria construção de do trabalho em Paris e igualmente considerar o fato do artista ter vivido uma experiência como soldado ainda em Israel, tendo desertado, alegando loucura para fugir de sua obrigação militar. Apesar desse dado importante, não é especificamente essa informação que sustenta toda essa fragilidade que presenciamos no gestual do artista, quando 735 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


em performance, mas a sua declaração sobre essa espécie de ataque às suas qualidades subjetivas, como algo recorrente na vida em sociedade. Ao assumir a referência em Bunkers, construções típicas do imaginário bélico, Absalon sublinha para nós um estado de defesa constante e absoluto, permitindo que enxerguemos essas células como um nicho dentro de um habitat naturalmente hostil e modelador das qualidades do sujeito, apontando não para uma guerra propriamente dita, mas para uma espécie de batalha pela existência e sobrevivência do subjetivo diante da massificação. É necessário lembrar que a matéria que Absalon escolhe para construir suas células é absolutamente frágil, constituindo-se dessa forma em uma contradição, já que aos nossos olhos parece que o artista nos aponta para uma defesa que já está predestinada a falhar, a ser invadida e destruída. Tais construções foram projetadas e montadas em áreas dentro de cidades distintas, espalhadas pelo mundo inteiro, conferindo dessa maneira, ainda, um caráter nômade ao corpo dentro de uma atmosfera de perseguição instaurada.

1.2 A Paisagem como corpo do trabalho de Absalon Se o corpo do sujeito é identificado como fragmento físico de uma gigantesca massa social, a paisagem que é estabelecida para Absalon se dá em forma de uma arquitetura delimitadora. A paisagem dentro dos trabalhos do artista é como recortes de uma percepção sensorial desse sistema de códigos normativos. Não faz-nos pensar em árvores, montanhas, lagos, nem tão pouco em prédios, carros, praças, mas a paisagem em seus trabalhos passa a ser um conjunto de situações imperativas, repetidas incessantemente em forma de cotidiano. A paisagem poderia ser compreendida nesses trabalhos como jogo, dentro do conjunto de regras básicas engendradas para que se possa minimamente ter a permissão de jogar. A tensão desse jogo estaria presente o tempo inteiro numa configuração contínua de jogadas que elaborariam para o jogador a expectativa do próximo lance, onde o erro e o acerto seriam as bases regentes de um movimento físico do corpo do sujeito, como peça fundamental. Se o jogo é estabelecido em uma paisagem social, presume-se que se pudéssemos fazer uma analogia com a realidade, o tabuleiro poderia ser representado enquanto arquitetura e essa consciência no trabalho do artista, de que as linhas e formas que ela engendra vão marcar definitivamente a maneira pelas quais as relações serão e stabelecidas naquele espaço, são categoricamente intuídas e fisicamente expressas nos trabalhos do artista. Ao modificar as escalas padrão de uma moradia, criando um ambiente que leva o sujeito à concentração 736 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


máxima de suas ações e gestual, Absalon se vale da arquitetura para tensionar a presença desse corpo em sua “Célula”. As relações entre a arquitetura, e corpo são bem demarcadas do trabalho de Absalon, que assinala para uma absoluta necessidade em demonstrar por mediação da performance no trabalho “Soluções” (que funciona de certa maneira como um desmembramento de “Células” já que demonstra a ação que se passa dentro dela), a forma a qual o corpo reage a um espaço tão austero em suas medidas expressivamente compactas. É possível tecer através de tais relações, uma proximidade com o pensamento modernista, de arquitetura pura, cética e radical de Le Corbusier. Ainda que consideremos que o artista nasceu em Israel e que esta em sua arquitetura nunca se influenciou por fontes modernistas, sabe-se que suas construções urbanas são marcadas pela cor branca e pela contenção de formas, levando-nos consequentemente a entender que as bases do pensamento de Absalon tenham realmente sido pré- formuladas ainda em sua cidade Natal. Contudo, o fato do artista ter escolhido como estúdio uma construção desenhada por um arquiteto tão emblemático como Le Corbusier, cuja trabalho possibilitava diversas tangentes com o seu próprio processo, pode ser compreendido também como um sinal de que Absalon assume essa proximidade entre os dois pensamentos. Ao revisitar as bases do pensamento modernista na arquitetura e especificamente em Le Corbusier, nos deparamos com uma de suas premissas básicas: a total rejeição aos estilos históricos instituídos, carregados de superficialidade causada pelo uso constante do ornamento. O desejo em criar uma arquitetura de espaços mínimos, geométricos e abstratos, levou às construções úteis e econômicas e salvas de qualquer artifício ornamental, inclusive da cor, adotando, portanto o uso do branco, na tentativa de enfatizar o afastamento a um pensamento vulgarizado pelo mero ilustrativo. Torna-se, assim, pontual assinalar tais similitudes para que possamos compreender melhor o papel da paisagem do trabalho do artista, que ao ser formulado como algo que poderia desconcentrar o sujeito de suas características essenciais e promover nele uma dispersão, é imediatamente apartada, não de forma a ignorá- la por completo, mas de assegurar que esta não decretaria um modelo a ser espelhado.

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FIGURA 2: Duas vistas de um trabalho da série “Célu las” do artista Absalon-1992-93

1.3 Corpo como alvo, como Estratégia em meu processo de trabalho. Em sala Neo-Concreta, trabalho de minha autoria de 2008, modifico as escalas de uma mesa e de uma cadeira, alterando a composição física deste mobiliário, construindo-o a partir de materiais específicos do universo da construção civil, como cimento, compensado, arame, pedras, areia, etc. Levando os móveis a adquirir um aspecto mais bruto, a criar um desconforto ao vivenciador, que ao sentar em uma cadeira mais baixa que a medida padrão, tendo à sua frente uma mesa mais alta que o habitual, fica com o campo de visão amplamente restringido. O olhar do espectador fica direcionado pela posição estratégica do móvel a uma imagem fixada na parede, desenho em perspectiva humanizada de um ambiente peculiar típico de stands de comercialização de imóveis, que costumam funcionar como tática de sedução aos possíveis compradores, onde as proporções nunca correspondem às reais, criando uma expectativa falsa para esse corpo. Dessa forma aloco o expectador numa condição de total submissão à imagem, demonstrando, como num espelhamento, a posição de superioridade que a imagem vem adquirindo quando confrontada ao real. O lugar ocupado pelo corpo em meus trabalhos tem sido a de um espaço previamente reservado para que ele perceba o mundo e as coisas dentro de uma ótica, que o aloque em uma condição frágil e suscetível. Conduzido ele vaga pelos lugares se m absorvê- los e propositalmente são definidas formas nas quais os movimentos devem ser executados em uma coreografia serializada que o conduz a um lugar comum com o argumento da sociabilização. Definidas as metas que este corpo deve cumprir, sequencialmente são geradas uma série de datas as quais também devem ser respeitadas para que ele possa atingir uma total 738 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


plenitude existencial. Ainda que todo controle exercido dentro de uma rede sequencial de treinamentos pelo qual ele passa, desde a primeira idade, tenham s ido cuidadosamente projetadas para que sejam suficientemente atraentes para ele, ainda assim existem corpos que falham que não cumprem essa demanda ou se negam a cumpri- la. Dessa forma os trabalhos que apresento também tem a preocupação em demonstrar as formas que o corpo foi encontrando para driblar tais mecanismos de controle.

1.4

Paisagem-instável e Paisagem-estabelecimento em trabalhos de minha autoria A paisagem em meus trabalhos tem se caracterizado como um lugar em constante

construção, por vezes um lugar muito mais da imagem do lugar do que do lugar propriamente dito, sendo assim, uma projeção romântica de espaço a ser ocupado pelo corpo. Em outros momentos essa paisagem aparece em forma de contrastes entre uma arquitetura imponente e sofisticada e uma arquitetura frágil e precária, onde o lugar do corpo é quase sempre um lugar do desconforto, do desequilíbrio. A atmosfera que fui construindo em meu processo de trabalho foi consequentemente se articulando ou como a sombra de um lugar que já havia sido ou como um espaço reservado pronto a ser demolido a qualquer instante. Essa inconstância do lugar físico contraposto à imponência e solidez de uma paisagem enquanto instituição social formal vem cada vez mais se materializando em trabalhos que venho construindo, tanto em forma de espelhamento para situações em que o sujeito experiencie fisicamente condições em que a sua compreensão de lugar lhe seja arrancada, como em sugestões que formulo para que ele drible essa espécie de ataque que lhe é investido. A percepção da arquitetura como um organismo vivo, detentor de uma estrutura organizacional, capaz de engendrar para o corpo um caminho a ser percorrido com objetivos e metas, enquanto lugares formais vêm sugerindo para mim articulações que esse mesmo corpo encontra para esquivar-se dessa malha institucional. Essas articulações se materializam em trabalhos que crio, enquanto construções que possibilitem adentrar o núcleo dessas relações, tecidas através desse modelo social pré-fabricado e insinuar um novo posicionamento a ser ocupado pelo corpo, onde o mesmo desestabilize esse modelo formatado para ele. A consciência do peso das referências que carrego da paisagem de minha cidade natal, Belém, no estado do Pará, quando em confronto com a paisagem hoje apontada para mim em São Paulo, cidade onde vivo há mais de dez anos vêm determinando os contrastes que 739 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


produzo em meus trabalhos. Tendo eu nascido em região próxima à Amazônia, onde as construções ribeirinhas se disseminam pelos subúrbios cortados por rios e se contrapõem tanto às construções de linhas rebuscadas e ornamentais presentes na arquitetura de influência francesa representadas pela Belle-Époque, quanto aos novos prédios em construções cuja estrutura elevada abarca uma imponência esvaziada de estilo arquitetônico, acabo por me contagiar com essas informações urbanísticas para melhor conceber as bases de um pensamento que privilegia discussões sobre o lugar ocupado pelo corpo e os papéis reservados às relações fomentadas para ocupar esse ambiente. Ao entrar em contato com as construções do arquiteto Le Corbusier que alicerçou as bases de um pensamento modernista, tendo como conceito fundamental, uma arquitetura limpa e livre da superficialidade impressa pelo ornamento, atentei para a premissa uma nova estrutura de construções que deveriam alicerçar-se em Pilotis e dessa forma serem absolutamente suspensas. Encontrei, assim, uma similaridade com um antigo trabalho meu intitulado ”vírus- Palafita” em que construo uma palafita e ergo-a ao lado de uma instituição cultural de prédio imponente e arquitetura contemporânea do Instituto Itaú Cultural, o que me permitiu depois de uma pesquisa mais aprofundada sobre esse movimento, chegar a informação de que o arquiteto via realmente nessas construções simples e de origem humilde, um espelho do que seria a arquitetura de seu futuro: construções funcionais e suspensas, pensadas para que o homem exerce-se ali suas atividades vitais. A partir dessas informações, Atentar para as formas que o espaço urbano vem criando para o corpo no intuito de traçar para ele uma rota específica, assim como os subterfúgios incutidos no comportamento do sujeito, como formas estratégicas de fuga às expectativas projetadas para ele, são questões que emergem no decorrer de minha pesquisa.

1.5

Conceito de corpo em trabalhos de Absalon e em trabalhos de minha autoria Nos dois trabalhos, tanto em sala Neo-Concreta de minha autoria como em “Células”,

do artista Absalon, o corpo é apresentado como um corpo fragilizado, alocado dentro de uma situação em que essa fragilidade é potencializada ao máximo e dentro da qual são refletidos os mecanismos de um sistema hierarquizante que provoca nesse corpo uma condição de inferioridade.

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Em “Sala Neo-Concreta”, ao sentar de frente para a imagem tridimensional de um ambiente comum a ponto de venda imobiliários, na cadeira e mesa de madeira e cimento, matéria bruta com cheiro forte e com arames amarrados por toda a superfície, trazendo suas escalas modificadas já para reservar esse lugar passivo ao espectador- vivenciador da experiência, a ele é imediatamente designada essa qualidade de observador, como numa experiência didática enriquecedora, que tivesse sido preparada para que ele compreendesse sua condição frágil em relação ao sistema. Desse modo o trabalho remonta uma situação onde o corpo do sujeito é confinado em um mobiliário que não é mais apenas mobiliário, mas uma construção que equivaleria a um prédio, onde é definido para o sujeito um papel social a ser ocupado. Em “Células”, tanto o corpo de Absalon, como daqueles que experimentam adentrar o espaço mínimo dessa construção, são prontamente encarcerados numa brancura asfixiante, de vazio estarrecedor, na claustrofobia de medidas constritoras. Desse modo o artista leva o espectador- vivenciador da experiência a mimetizar um movimento seu de confinamento e confronto consigo próprio. Adentrar a célula de Absalon é uma espécie de convite a um ensimesmar que se perpetua no vazio daquela arquitetura mínima, e que obriga o expectador a ver-se nessa condição distanciada de seu eu-coletivo, o que nem sempre pode ser uma experiência prazerosa, tendo em vista que a percepção de subjetivo que lhe foi incutida é aquele ainda presente dentro de um conceito deformado vinculado à ideia de “identidade”, que formularia para ele respostas sobre ele mesmo. Ao propor uma intersecção entre os dois trabalhos “Células” de Absalon e “Sala NeoConcreta” de minha autoria, viso uma discussão entre o papel do corpo no espaço urbano, mais especificamente no espaço social, permitindo que se reavaliem os papéis que foram determinados e os métodos adotados para a compartimentalização da subjetividade do sujeito, dentro de um molde identitário, para que se possa repensar quais seriam as táticas para um desmembramento do sujeito desse modelo institucionalizado.

1.6 Intersecções entre o conceito de paisagem nos trabalhos de Absalon e de minha autoria Por mais que em meu cotidiano não conste uma memória direta de materiais bélicos e a experiência física com esse universo não tenha existido diretamente, consigo ver através de uma memória, que tanto pode ser a de um inconsciente coletivo, implantado pelas imagens da 741 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


televisão, como pelas imagens e acontecimentos que vivencio no cotidiano do espaço urbano de uma metrópole como São Paulo, que essa tensão implícita no convívio diário, dentro de grandes centros urbanos se aproxima de um estado de constante vigilância e paranoia, também vivenciadas de forma mais explícita em áreas de combate. O cotidiano de uma grande cidade, com toda a estrutura, planejamento e, ambiguamente, o caos que se instaura nas bases de uma política interna de sobrevivência, me apontam para uma existência que vai se justapondo àquelas vividas em áreas de conflito onde se pode experienciar, tanto formas veladas, como formas absolutamente explícitas de violência, que se perpetuam como um código emblemático e banalizado do conceito de sociedade contemporânea. Ainda que o contexto biográfico do artista Absalon, registre uma referência a materiais de uso bélico, sabe-se que as analogias criadas em seu trabalho apontam muito mais para uma luta pessoal que o mesmo trava no sentido de defender sua subjetividade, do que propriamente para uma defesa em um sentido mais óbvio, por um território enquanto pátria. O território que Absalon defendia era um território de caráter subjetivo, onde ele poderia exercer sua liberdade individual. Ao compreender a paisagem como uma edificação que elabora para o corpo um caminho em forma de cotidiano e que a partir de uma leitura prévia das qualidades do sujeito determina onde e de qual forma o mesmo vai ser aproveitado dentro de uma agregação socialmente satisfatória, imprime uma necessidade em rever algumas questões que foram sendo discutidas no universo da arte. Desta forma, se retira dele as qualidades que seriam interessantes para essa construção e descartando inteiramente àquelas insignific antes para essa escultura social. Estas referências conceituais foram igualmente alicerçando uma nova complexidade para o significado de corpo dentro de um espaço que veio sendo modificado tanto pelo advento da industrialização como de tantos outros fatores que vieram a reformular toda a estrutura política de orientação espacial para o mesmo. Avaliar os mecanismos onde se instala uma paisagem arquitetonicamente criada, como estratégia para a compressão e simplificação das qualidades subjetivas (que em geral se perpetuam em experiências proporcionadas ao corpo em construções tanto de uso comum, como de uso individualizado) tem sido uma inclinação recorrente dentro do processo de elaboração da poética de meus trabalhos, assim consequentemente é de extrema importância que eu estabeleça contato com o trabalho de artistas que tangenciem essas mesmas 742 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


preocupações, no intuito de que eu consiga provocar diálogos esclarecedores para minha própria pesquisa. A partir da consciência de que o trabalho de Absalon tangencia questões que se aproximam daquelas que têm sido uma constante em conceitos tratados em minha produção, e mesmo que seu processo de trabalho se diferencie do meu em muitos aspectos, acredito as tangentes entre entre os conceitos discutidos permitem a estruturação de artifício para novas estratégias que subvertam uma ordem totalitária infringida ao corpo em uma paisagem que se manifesta na arquitetura de um ambiente sensivelmente fiscalizado.

Referências Bibliográficas CAUQUELIN, Anne. A invenção da Paisagem. São Paulo: Martins, 2007. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. São Pau lo: Vozes, 2009. FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo : Loyola, 1996. PFEFFER, Susanne. Absalon. Berlin : KW, 2010.

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ARTE NO TERRITÓRIO DO DIÁLOGO Rachel de C. Venturini* Lucia Fonseca ** Resumo: A pesquisa está direcionada na busca por compreender, dentro do universo da arte, o que atualmente se observa no conceito expositivo de Zoológicos. O objeto de estudo configu ra-se como o processo de criação coletivo e multidisciplinar, que colocou em um território de diálogo a autora da pesquisa, artista visual, um arquiteto e os biólogos da FPZSP, para juntos construírem uma ambientação complexa e representativa de um habitat - um espaço qualificado para a habitação permanente de animais e para a apreciação temporária do público. Palavras-Chave: Processo criativo e poética visual. Criação tridimensional. Criação coletiva. Espaço. Zoológico contemporâneo.

1. A artista em meio ao novo e distinto A escolha por trabalhar com o processo de criação, no contexto da exposição zoológica, é derivada de uma aproximação minha desse universo, em um movimento que englobou vivências pessoais, profissionais e artísticas. De modo fortuito, em um momento que julgava ser breve em meu percurso profissional, fui levada ao encontro de todo um conjunto de conceitos espaço- visuais que o zoológico contemporâneo engloba. E ao contrario do que esperava, o que me foi apresentado imediatamente tornou-se objeto da atenção do olhar. Venho de um percurso focado na criação pessoal de pinturas de paisagem e cerâmicas. Este foi desenvolvido ao longo da graduação e em um projeto de mestrado, iniciado em 2010, mas modificado pouco tempo depois. Nesse mesmo ano, tomei contato e mergulhei nas atividades da Fundação Parque Zoológico de São Paulo (FPZSP). Iniciei uma vivência diária de rotinas e procedimentos inseridos no âmbito da biologia e veterinária acreditando, até então, estar distante das artes.

*

Mestranda no Programa de Pós -Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes (IA) da Un iversidade Estadual de Camp inas (UNICAMP), SP, Brasil. O texto faz parte da pesquisa em curso. ** Professora doutora no Departamento de Artes Plásticas (IA -UNICAMP). Orientadora e faz parte do corpo docente do Programa de Pós- Graduação em Artes Visuais (IA-UNICAMP). 744 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Contudo, ao longo desse período pude, de forma gradual, perceber e ganhar familiaridade com uma relação diferenciada, marcada pelos vínculos que os biólogos apresentam com as formas de vida não humanas e com a natureza em geral. Para eles, esta é compreendida a partir do conjunto das intricadas relações dos seres vivos entre si e com o meio. Tal percepção que então me era revelada foi aos poucos sendo absorvida. E, logo, a compreensão pessoal da natureza se tornou embebida dela. Devido à minha formação me foi proposto participar de um projeto inovador, diante do histórico da FPZSP, de ambientação para os novos recintos destinados à exposição de serpentes. A partir daí, e guiada por esse novo entendimento da natureza, senti- me instigada a construir e pensar o trabalho artístico, em um locus aparentemente muito distinto do que me era habitual. Assim, deu-se o impulso para a investigação do processo criativo das ambientações do “Caminho da Serpente”. ● O zoológico contemporâneo e o design de zoológicos O zoológico na atualidade apresenta complexos propósitos e perspectivas. Ele não se limita a condição única de espaço para o deleite, adquirindo múltiplos papéis dentro da sociedade atual e posicionando-se como um espaço propício à pesquisa e à educação, ambas vinculadas à conservação do meio ambiente. A incorporação de tais propósitos não exclui, no entanto, o entretenimento; ao contrário, o vê como fundamental na relação que o visitante estabelece com o espaço do zoológico. Sobre isso, Polakowski (1987) julga os quatro conceitos: entretenimento, educação, conservação e pesquisa, e os coloca em interconexão, como “quatro objetivos ou propositos centrais emergem como o cerne da filosofia de um parque zoológico moderno” (Polakowski, 1987, pág. 26). Assim, um zoológico hoje se configura pela conjugação dessas práticas, firmando-se em um cenário fundado na relação do homem com o animal. Tomando tal conjunto é possível distinguir duas frentes de ação: (i) em uma via, há a combinação de entretenimento e educação ambiental, ao passo que o visitante desfruta de momentos de relaxamento, de prazer, ele é colocado diante dos mais 745 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


variados dispositivos e níveis de informação, sendo convidado a conhecer e estabelecer um vínculo com o animal. O objetivo dessa associação é incitar uma reflexão, sobretudo voltada à conservação tanto de uma espécie quanto de seu habitat; (ii) em outra, encontra-se a pesquisa (microbiológica, veterinária, comportamental, entre outras) e a própria ação conservacionista. Esta última envolve inúmeros programas que vão desde a manutenção de reservas florestais e o apoio a pesquisadores que trabalham com o animal em vida livre (pesquisa in-situ) até estudos de inseminação artificial e reprodução em cativeiro, bem como o resguardo, através da manutenção de populações viáveis, de espécie já extinta em natureza (pesquisa ex-situ). Observa-se que ambas as ações são voltadas ao público e à área científica, tornando o espaço do zoológico catalisador do encontro desses pólos. Se por um lado a pesquisa fornece, por meio da educação ambiental, elementos de conhecimento para o público, este, por sua vez, ao tomar consciência de sua importância na conservação do meio ambiente, torna-se um agente transformador, difundindo em seu entorno (sua casa, bairro ou cidade) ações de respeito para com os seres vivos e seu habitat.

FIGURA 1: Recinto realista e imersivo de lêmu res no Pavilhão de Madagascar, do Zoológico do Bron x, NY. FONTE: Project description of “Madagascar!” Bron x Zoo, NY. 2009, pág.39 746 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Ao longo do século XX, os zoológicos se firmaram como local de produção e promoção do saber. E, para além disso, assumiram como bandeira, diante do cenário de devastação do meio ambiente, a conservação de espécies ameaçadas e seu meio ambiente. Em meio a isso, observa-se que os conceitos espaço- visuais de organização de um zoológico se configuraram como o catalisador de tais propósitos, assumindo uma evolução concomitante. A jaula passou a ser um recinto, que é pensado arquitetonicamente e visualmente a fim de corroborar as relações animal/homem/ambiente. Isto é, constrói-se uma ambientação que evoca o habitat original do animal (representação realista), facilitando seu comportamento natural e, simultaneamente, permitindo ao visitante participar desse universo de relações de forma não invasiva (paisagem imersiva), evidenciando o caráter de Ecossistema (FIG. 1). O pensamento da relação homem/animal pelo espaço é abrangido por uma área de estudo e atuação denominada design de zoológicos (Zoo Design), na qual há o envolvimento de biólogos, arquitetos, paisagistas, engenheiros, artistas, designers e veterinários, que criam ambientes que dêem conta de aspectos relativos ao bem estar animal, ao manejo técnico seguro e eficiente, e, sobretudo, buscam dialogar com o

visitante,

isto é,

“...fornecer os meios físicos (recursos)

para

a

transmissão de mensagens educativas

e

conservacionistas...” (Polakowski, 1987, pág. 78). O

conjunto

conhecimentos hoje

e

de práticas

englobados

pelo

denominado

Zoo

Design,

teve

nos

Estados

inicio

Unidos,

no

período

Pós-

FIGURA 2: Ilustração mostrando recinto misto, com amb ientação semelhante ao habitat e fosso em `U`, para contenção de Urço beiçudo e fosso seco para contenção de Javali, ambos em ângulos que os tornam nulos ao olhar do visitante. FONTE: Gupta. 2008, pág 36 747

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Segunda Guerra (Hanson, 1962), no qual uma série de fatores propiciou uma revisão dos conceitos expositivos nos zoológicos. Em uma analise geral, Graetz (1995) apresenta uma conjuntura abrangente “as mudanças mais relevantes para o design de zoológicos (...) os avanços científicos, o crescimento da tecnologia e as mudanças sociais”1 , mais adiante em seu texto faz uma análise pontualmente, colocando fatores como: o avanço das ciências b iológicas e comportamentais, bem como dos tratamentos veterinários e de inseminação artificial para a manutenção saudável de animais cativos; as novas tecnologias em materiais e conceitos arquitetônicos que possibilitaram a superação da jaula; e por fim uma estabilização econômica e a crescente noção global da fragilidade da natureza diante de um desenvolvimento inconseqüente. O Zoo Design, tal como um campo de pensamento/percepção da relação homem/animal, abrange duas vertentes entrecruzadas: Design for animals e Design for people. Na primeira há um foco em elementos ambientais que favoreçam o comportamento saudável do animal, como iluminação, unidade, temperatura, vegetação e relevo semelhante ao seu habitat, ou ainda um desenho de recinto que minimize o estresse da presença do publico; já em relação ao visitante, existe a intenção de se criar uma vista ampla, uma observação de paisagem natural e não uma caixa, para tal utiliza-se barreiras invisíveis, fossos e vidros, assim como uma ambientação que extravasa o limite do recinto colocando em um mesmo espaço, como iguais, homem e animal (FIG. 2). 2. Breve descrição das ambientações no “caminho da serpe nte”

A Fundação Parque Zoológico de São Paulo (FPZSP) vem demonstrando especial atenção à questão

da

reestruturação

do

seu

conceito

expositivo, na perspectiva de alcançar os recintos tidos como ideais e indicativos de excelência.

FIGURA 3: Logotipo da Exposição FONTE: Fundação Parque Zoológico de São Paulo

1

GRA ETZ, 1995 – capítulo I. Disponível em [http://designforlife.co m.sg/thesis/12history.html]. Acessodo em 12 de set/2012. 748 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Mediante tal intenção deu-se então a concretização do projeto “O Caminho da Serpente”, direcionado para a construção de uma nova exibição para a sua população de serpentes.

FIGURA 4: Visão da área interna da exposição “O Caminho da Serpente” FONTE: arquivo pessoal. 2012

● O antigo e o novo A reavaliação dos conceitos expositivos verificada ao longo do projeto e firmada pela transição da antiga exposição de serpentes, o “Terrarium”, para o que hoje é apresentado pelo “Caminho da Serpente” aponta para uma transformação pro funda e irreversível, um momento histórico vivido pela FPZSP. A exposição “Terrarium” consistia de uma mostra tradicional, inaugurada em 1988, contudo de caráter antiquado e desalinhado às atuais perspectivas (FIG. 5). Era composta por terrários de pequeno porte (caixas de 0,52 m² e 50 cm de altura), feitos em fibra de vidro, sem pontos de água FIGURA 5: Exposição “Terrariu m”: terrários com placa informat iva (lu minoso) FONTE: arquivo pessoal. 2011

e aquecimento, que eram fornecidos por

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meios externos como vasilhas e tapetes aquecidos. Estes eram somados a ambientação que consistia na colocação de substrato, pedras e plantas e um fundo preenchido por imagens ou terra e cascas coladas. (FIG. 6 e 7)

FIGURA 6 e 7: Interior dos terrários com amb ientação e imagem de fundo e colagem respectivamente. FONTE: arquivo pessoal de Cybele Lisboa. 2011 750 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


O agrupamento então observado mostrava um ambiente satisfatório (mas aquém do ideal) às necessidades do animal e com alguns elementos estéticos, porém não se configurava como um conjunto coeso, um habitat. Ocorria, sim, uma junção de pequenos fragmentos: a começar pe la separação entre um primeiro plano expositivo e uma paisagem de fundo, apenas decorativa, surgindo uma superficial conexão entre ambos, uma relação frágil de figura/fundo; também existiam elementos incompatíveis, como a colocação de uma vasilha de água comum (de cozinha) em meio aos troncos e pedras. Dentro desta configuração, percebe-se de fato, por motivos estéticos e de manutenção à vida, elementos próximos aos encontrados no habitat de origem da serpente, mas o espaço construído não atinge complexidade. Do ponto de vista técnico, era oferecida pouca área a ser explorada: a circulação do animal limitava-se ao chão e alguns estímulos sensoriais. Quanto à possibilidade de criação visual e espacial (ambientação), ela consistia em montar pequenos nichos em uma estrutura (frágil, como já mencionado) de figura- fundo. Ao servir-se de elementos visuais que iam do uso de fotografias de paisagem e texturizações (plano posterior), a substrato, galhos, plantas e pedras (plano frontal), eram estabelecidos dois estra tos ou camadas: uma ilustrativa e bidimensional, outra funcional (habitada) e tridimensional. O “Caminho da Serpente” – A concepção física dessa nova exposição é dada por um conjunto de dezenove terrários, localizados no interior de uma construção totalmente idealizada e reformada para atender às necessidades de manutenção e exposição de serpentes (FIG. 8 e 9). Sete desses terrários possuem medidas de 4 m² x 2,26 de altura (grandes), os outros doze terrários possuem medidas de 1,86 m² x 2,26 de altura (pequenos) (FIG. 10). Os recintos estão separados da área de visitação por um FIGURA 8: Área de exposição s/ cenografia FONTE: arquivo pessoal. 2011

vidro frontal. Cada um deles possui pontos de 751

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água, aquecimento e iluminação.

FIGURA 9: Local antes da reforma. FONTE: arquivo pessoal de Cybele Lisboa. 2009

FIGURA 10: Terrário s/ amb ientação FONTE: arquivo pessoal. 2011

Visualmente, a exposição incorpora em seu planejamento, construção e resultado final conceitos expositivos novos. Na criação dos terrários para o “Caminho da Serpente”, a ambientação pode ser pensada como um recorte coeso e representativo de um habitat, e o espaço antes estabelecido em um mecanismo nítido de dois planos torna-se complexo à medida que as camadas se multiplicam. É abandonada a estrutura figura- fundo e se estabelece uma conformação de unidade tridimensional, isto é, a ambientação é construída como um todo e em profundidade gradual, não utilizando fotografias de paisagem. O plano ao fundo, antes ilustrativo, torna-se parte ativa da ambientação, ampliando a possibilidade de circulação do animal, do mesmo modo que se configura como continuidade visual dos elementos dispostos mais à frente ou ao centro. Também pode ser observado que a construção visual desenvolvida em cada ambientação engloba dentro de um mesmo “discurso” os elementos que antes apareciam como à parte. Incorporados à estrutura montada estão todo o sistema de aquecimento, os pontos de água, as jardineiras para a vegetação, as portas de acesso do tratador, as tocas e pontos de fuga (local em que o animal pode se afastar do contato com o público, caso esteja estressado). (FIG. 11, 12 e 13) 752 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


FIGURAS 11, 12 e 13: Terrários co m amb ientação realista. FONTE: arquivo pessoal. 2012

A pesquisa realizada para a criação das ambientações se fundou em dois ramos: a busca de imagens e a experimentação prática. Quando digo isso, refiro- me a um estudo de imagens de recintos em zoológicos e/ou de habitats, buscando entender os conceitos aplicados e sua composição visual; simultaneamente houve também a experimentação no fazer, testando e 753 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


compreendendo as possibilidades das estruturas tridimensionais e dos materiais, analisando suas característica físicas (compatíveis ou não com os propósitos do projeto) e observando-os enquanto elementos de linguagem na construção de um espaço. Ao longo do desenvolvimento do processo criativo, recursos artísticos, científicos e técnicos foram sendo mobilizados à medida que a criação dos ambientes se concretizava. A composição visual a partir da articulação dos elementos de linguagem, a montagem de estruturas, a pesquisa de materiais, levando em conta qualidades plásticas, mecânicas e químicas, ou ainda o conhecimento de comportamento animal, determinante na colocação de elementos ambientais, constituem o corpo do processo, e são os componentes que tivemos em mãos para pensar e construir o espaço.

3. O pensamento compartilhado e a aprendizage m coletiva

Um fato primordial, destacado ao vivenciar e estudar o processo criativo das ambientações, foi a percepção de que o mesmo (no contexto do zoológico) se encontra no entremeio dialógico de três profissionais: o biólogo, o artista e o arquiteto. Pode-se afirmar que a criação artística, o pensamento estrutural e o conhecimento científico, aqui, não se configuram (cada um) como única via, tampouco um se torna imperativo sobre o outro, e sim mostram-se em permanente diálogo com conceitos e técnicas que se encontram além de seu saber próprio. Ao longo da elaboração e montagem das ambientações, as áreas citadas se viram de tal forma entrelaçadas, que não foi possível construir o espaço expositivo sem que houvesse um pensamento especifico, advindo de cada uma delas, interagindo no todo. No decorrer da criação da exposição sempre se fez presente a necessidade de ponderações técnicas, espaciais e visuais, na medida em que se apresentavam as demandas estruturais e conceituais do recinto. A cada reunião direcionada ao planejamento de um novo terrário, ou, em dados momentos, durante sua execução, houveram discussões fundadas em três perspectivas: a do biólogo que entende o recinto sob o aspecto técnico, como um habitat artificial e controlado, o que pressupõe protocolos de manejo e manutenção do animal; a do arquiteto, que pondera sobre a natureza da ocupação do 754 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


espaço, como as estruturas serão definidas e montadas no recinto – o lugar de sobrevivência do animal – e no espaço de visitação, local de fruição do público; e a do artista que lida com a percepção visual e tátil do observador, com os elementos de linguagem (cor, luz, textura, forma, volume, materialidade) e com a representação de paisagem na criação das ambientações.

FIGURA 14: artista em reunião de grupo co m bió logos. FONTE: arquivo pessoal de Danianderson Carvalho.

FIGURA 15: art ista em conversa com arquiteta FONTE: arquivo pessoal de Danianderson Carvalho

Guiando-se pela premissa do espaço como catalisador da proximidade do visitante com o animal, a equipe investigou conceitos que englobam as particularidades de ambos. O espaço pensado para o animal levou em consideração, primeiramente, sua biologia – seu habitat, como se comporta e interage com seu meio, quais suas necessidades para se manter saudável –, além disso ponderou sobre o fato do animal estar cativo, o que gera estresse e alteração do comportamento natural, e como isso pode ser minimizado. No caso do homem, houve um pensamento sobre qual a natureza da relação firmada com o espaço. Encontramos aqui um ponto duplo: por um lado, há o técnico que necessita de segurança e facilidade no manejo do animal, logo há um espaço pensado pela função; por outro, há o visitante que o vivencia pelo sensorial e pelo emocional, simbolizando e retendo a experiência, ou seja, um espaço do lúdico e da fruição. Ao longo de toda a montagem dos terrários da exposição, foram colocados questionamentos sobre a organização do espaço/visual em sua relação com o animal e com ser humano. Foram frequentes perguntas como: estes elementos ambientais facilitarão o comportamento hab itual do animal? O tratador poderá ver a serpente e terá segurança ao fazer a manutenção do terrário? A 755 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


composição visual que estamos criando fará sentido ao visitante? Esse exercício reflexivo, que se intensificou à medida que os conceito estudados eram absorvidos, trouxe complexidade à composição, e consequentemente à criação do espaço. É notório que as perspectivas adotadas estão diretamente vinculadas ao universo próprio de cada área de conhecimento, contudo, em momento algum, há sobreposição ou fragme ntação das informações, isto é, a aplicação de certo conceito sem conexão com os demais. Na construção dos recintos foi fundamental um pensamento conjunto e concomitante, que se desenvolveu a partir do diálogo e da troca de conhecimento entre os profissionais atuantes. As discussões decorrentes desse encontro de saberes trouxeram questionamentos significativos ao estudo do processo criativo. Em momentos distintos e diversos foram colocadas indagações, certas vezes até provocações, que tornaram mais evidente a percepção de cada um sobre o que estávamos construindo, mas também incitaram à conversação, favorecendo a construção de ideias e fazeres híbridos, no sentido de uma unidade indissolúvel, porém originada na distinção. Nesse contexto, a questão do espaço se firmou como o lugar do entremeio, da discussão e concordância. A distinção que menciono acima trata da relação particular, advinda de sua formação e vivência, que cada indivíduo demonstrou para com o espaço em processo – o arquiteto, o espaço estrutural; o biólogo, o habitat; o artista visual, a paisagem – já o híbrido se dá na conjunção dessas concepções, cujo resultado é a ambientação ocupada pelo animal e significada pelo visitante (FIG. 16). Uma passagem que pode esclarecer brevemente o que afirmo ocorreu na montagem do terrário de cerrado destinado às cascavéis (Crotalus sp.). Em meio à montagem e instalação das estruturas, momento em que se firmava a compreensão e ocupação

do

espaço

do

terrário,

os

questionamentos foram intensos. Em uma leitura das imagens (referencias imageticas) e do FIGURA 16: Crianças observando uma sucuri (Eunectes murinus) FONTE: arquivo pessoal de Cybele Lisboa. 2012

desenho (projeto) iniciei o paredão de rocha, 756

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moldando formas e volumes em um pensamento análogo ao da pintura – eu estava pensando a paisagem bidimensional e inabitada. Logo os biólogos observaram um ponto: as formas que eu estava criando facilitavam o acesso das serpentes aos aquecedores, onde poderiam se queimar, bem como permitiam que se aninhassem junto à porta, colocando em risco o tratador, que poderia levar uma picada. Logo entendi que haveria interações, a paisagem seria explorada, seria habitada. A partir desse ponto começamos juntos a pensar o espaço, transitando entre o habitat e a paisagem.

E, novamente, fomos questionados: a arquiteta, ao observar a instalação das

estruturas, alertou-nos para a sua fragilidade e interferência com o aquecimento e ventilação do ambiente. Resolvemos então refazer parte do que já havíamos montado, procurando observar o espaço sob o ponto de vista físico, sensorial, relativo à matéria e aos elementos ambientais (claridade, ventilação, temperatura), ou seja, incorporando uma percepção estrutural.

Assim, a construção da paisagem, a construção do ambiente e a construção de um habitat passaram a confluir na criação das ambientações.

Aqui gostaria de colocar outro ponto de observação sobre o espaço. Somente ao entrar nos terrários, pudemos nos apropriar de fato do espaço, possibilitando pensá- lo através do fazer, da ação. O trabalho dentro do terrário trouxe uma percepção física de sua área, das proporções, do que pode comportar em seu interior, uma percepção diferente da oferecida pela criação bidimensional do desenho de projeto, que realizamos em um momento anterior a montagem das estruturas. Assim, o corpo também foi instrumento, experimentávamos através dele, usando-o como parâmetro (proporções) para a ocupação espacial, ou termômetro sensorial, ao verificar as temperaturas do ambiente, das pedras aquecidas e aquecedores, ou mesmo identificando correntes elétricas (paralisamos por mais de um mês um dos terrários, pois estávamos tomando choques em vários pontos do chão e da estrutura). Também verificávamos a resistência das estruturas: escalávamos e nos pendurávamos. Percebo que se estabeleceu, a partir daí, um ir e vir entre o bi e tridimensional; a estruturação do pensamento se d eu em ambas as linguagens, uma vez que revisitávamos/repensávamos o projeto à medida que a criação tridimensional se desenvolvia. 757 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


● A aprendizagem coletiva e a dinâmica da criação

FIGURA 17: Biólogas Renata Vaz e Cybele Lisboa FONTE: arquivo pessoal de Danianderson Carvalho. 2011.

Houve um crescimento conjunto da equipe no decorrer do processo, juntamente com um crescente entrosamento, não isento de alguns pontos de discórdia e desentendimento, fazendo-nos aprimorar o diálogo tão necessário. Desenvolvemos e aprendemos técnicas, pesquisamos, experimentamos. A criação em si (o projeto e coordenação da montagem das ambientações) envolveu mais diretamente a bióloga chefe do Setor de Répteis, a mim, e mais outro biólogo (a arquiteta não chegou a finalizar o projeto, tendo de retirar-se antes)2 . Contudo a montagem contou com a participação de diversos profissionais e/ou funcionários da FPZSP (em grande parte biólogos) de forma constante e esporádica. Todos foram imersos no processo, conscientes do propósito do que realizavam e auxiliaram-nos desde a montagem das primeiras estrutura até a colocação da vegetação natural, parte final do projeto.

Um ponto que se fez presente ao coletivo (e evidente nas últimas montagens) foi a crescente familiaridade com esse novo lugar da criação. Quando começamos o primeiro terrário, estávamos diante do desconhecido, todos os aspectos necessitavam ser experimentados, explorados em suas possibilidades, mesmo que infrutíferas. Aos poucos, ganhamos intimidade com os materiais, as

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Biólogos: Cybele Lisboa (Chefe do Setor de Répteis), Danianderson Carvalho (Biólogo aprimo rando); Arquiteta: Karin Saito (voluntária); A rtista Visual: Rachel Venturini (au xiliar de b iologia do Setor de Répteis) 758 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


ferramentas, com a criação tridimensional e o espaço. No início, o pensamento se mostrou fragmentado e impreciso, considerando separadamente cada elemento – os conhecimentos da elaboração das estruturas, das qualidades dos materiais e do espaço ainda eram vagos. No final, o processo tornou-se coeso, sendo a criação pensada como um todo. Ao moldar a tela e arame para a estrutura, a construção da cor já estava presente, mesmo que essa só viesse a se concretizar após uma série de procedimentos, ou no momento da criação da forma, pensávamos a textura e a interação de ambas. Esse desenvolvimento paralelo promoveu um trânsito pelas diferentes etapas em diferentes recintos, isto é, enquanto recolhíamos informações para dar início a um terrário, já estávamos colocando a textura de outro, ao passo que realizávamos desenhos para um terceiro. Com isso surgiram as ressonâncias e as interferências de um processo em outro. Ao nos defrontarmos com uma questão em um terrário mais adiantado, era possível olhar para os que se encontravam no início e rediscuti- los; ou ainda, uma idéia que se colocava no planejamento de uma nova ambientação nos fazia voltar aos trabalhos que considerávamos finalizados. As reuniões para a discussão e reconsiderações da organização geral da montagem, ou mesmo da escolha dos habitats, continuaram ocorrendo durante todo o percurso, não sendo uma idéia fixada de início e resistente. O processo criativo foi marcado por uma dinâmica coletiva, por um movimento constante, um trânsito de pensamentos, decisões e ações. Deste modo, tal dinâmica não se deu em uma via única, de um ponto a outro, e sim de forma tortuosa, em movimentos de avanços e retrocessos, dotando o processo criativo de uma permanente transformação do conjunto.

Conclusão Esse contexto de estar trabalhando com o novo e diferente, incluindo essa mescla incomum de saberes dentro de uma mesma equipe, juntamente com as perspectivas depositadas nos resultados, repercutiu na criação. Por tratar-se de um trabalho com uma destinação específica: um espaço/recinto representativo de um habitat e voltado à vivencia do público, foi necessário um direcionamento, um objetivo comum. E, apesar de se nortear pelos conceitos desenvolvidos por zoológicos tidos como referência, tanto o projeto quanto a montagem das ambientações foram 759 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


sendo elaborados e aprimorados ao longo de sua própria execução. São pioneiros e não se guiaram por nenhum plano pré-existente (manuais). Com isso, procuro evidenciar o processo criativo da exposição como um imbricado percurso de aquisição de conhecimento cruzado entre as áreas de biologia, arquitetura e artes visuais, gerador de intensa pesquisa e criação, que exigiu da equipe envolvida trabalhar com o incerto a cada nova montagem. Assim, a criação configurou-se como extremamente experimental, marcada pela investigação e desenvolvimento de procedimentos e técnicas. Tal aspecto me direcionou a uma complexa reflexão na busca por compreender o processo criativo da construção das ambientações, uma vez que a conexão dos conceitos e do fazer tornou-se bastante densa. Por oito meses estive mergulhada inteiramente no fazer e nos três meses seguintes empenhada em docume ntar textualmente os meandros dessa criação, em um registro/análise do percurso. E somente agora, podendo tomar gradualmente um distanciamento, começo a vislumbrar os possíveis desdobramentos e campos de discussão conceitual. Dentro desse movimento, percebo e sou compelida à ponderar sobre a presença do artista na criação de ambientações, no contexto específica do Zoológico, como o saber próprio da artista, coloca-se nos diálogos que se estabelecem entre áreas da Biologia, Arquitetura e Artes Visuais.

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A PERCEPÇÃO DE ESCULTURAS POR TRÊS PESSOAS CEGAS Roseli Behaker Garcia

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Resumo: Este trabalho teve como objetivo ampliar o conhecimento sobre a percepção da obra de arte pela pessoa cega, no caso específico a percepção de esculturas. O que se propôs de svelar foi o universo peculiar e detalhes da experiência perceptiva de pessoas cegas, pelas vias sensoriais de que fazem uso. Concepções e ideias de autores como Kastrup, Almeida e Carijó (2010), Masini (2007), Sacks (1995), Vigotski (1997) constituíram fundamentação e referencial para a elaboração deste trabalho. Foi realizada uma pesquisa com três pessoas cegas congênitas, na Pinacoteca do Estado de São Paulo, onde realizaram a exploração tátil de duas esculturas figurativas. Os dados sobre o contato das pessoas cegas com as esculturas foram coletados por meio de entrevista e de depoimentos escritos de cada um dos sujeitos. A entrevista foi realizada no momento da exploração, de cada um dos sujeitos da pesquisa, gravando o que ocorria e era manifestado na situação, referente às sensações, às percepções e aos sentimentos. Os depoimentos escritos foram realizados pelos sujeitos da pesquisa, após um mês de contato com os objetos de arte, e enviados à pesquisadora. A análise foi realizada em duas etapas. Na primeira foi feita a análise individual de cada sujeito, no contato com a escultura, tanto dos dados objetivos, como dos sentimentos e do experienciado a que a pessoa entrevistada se referiu. Na segunda etapa foi feita a análise das convergências e divergências entre os dados objetivos, os sentimentos expressos e o que podem ter experienciado a que os três sujeitos entrevistados se referiram. A reflexão sobre esses dados evidenciou convergência e concordância entre os três sujeitos, tanto na exploração da escultura como no depoimento escrito, somente na categoria “elementos percebidos das esculturas”, evidenciando identificação denotativa referente aos objetos artísticos. Houve convergência entre os três sujeitos nas categorias “experiência pessoal”, “sentimentos”, “emoções”, “expressão pessoal do sentido da escultura”, “avaliação estética dos elementos da escultura”, em virtude de se tratarem de singularidades vivenciadas diferentemente pelos sujeitos. Palavras-Chave: escultura. Experiência. Percepção. Pessoa cega. Tato.

1. Introdução A percepção é estudada em biologia, educação, filosofia, medicina, psicanálise dentre outras áreas do conhecimento, de acordo com suas diferentes abordagens em variados contextos e aspectos. Neste projeto de pesquisa, referente à percepção de obras de arte pela pessoa cega, buscou-se concepções e fundamentação que pudessem esclarecer as especificidades da experiência perceptiva da pessoa cega, ao explorar o mundo que a cerca pelos vários sentidos de que dispõe. A temática deste projeto está voltada, pois, para a compreensão do universo da pessoa cega, das especificidades de sua exploração tátil, cinestésica, auditiva, espacial, olfativa do mundo circundante. A seleção de esculturas figurativas para esta investigação objetivou propiciar condições para aprofundar as formas de exploração perceptual no contato do corpo

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Programa de Pós graduação em Educação, Arte e História da Cultura – Universidade Presbiteriana Macken zie. 762 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


com o objeto de arte – no desvelar da escultura e do que fica encoberta desta quando percebida pelo uso unidimensional da visão. Em busca da compreensão do universo da pessoa que não dispõe do sentido da visão, o contato com a escultura possibilita investigar a experiência vivencial da pessoa cega por meio de sua percepção corporal – tatilidade e cinestesia. As pessoas por meio de sua percepção – quer com o uso da visão, quer não – entram em contato com o mundo que as rodeia e constroem representações e conceitos. Um dos caminhos para esclarecer como representações e conceitos tornam-se significativos para quem não enxerga pode ser por meio do registro e análise dos relatos das diferentes experiências perceptuais que ocorrem na exploração de esculturas. A originalidade deste projeto é o estudo do perceber como ponto central, da investigação sobre a pessoa cega no mundo da arte; o desvelar de seu universo peculiar e enriquecedor propiciado pelos inúmeros detalhes ao explorar uma escultura por meio das vias perceptivas de que faz uso. O estudo da percepção será focalizado aqui inspirado na Fenomenologia da Percepção de Merleau Ponty (1999), nas pesquisas e publicações de Masini (1994, 2003, 2007), de Sacks (1997) e de Kastrup. Almeida e Carijó (2010). Frente ao exposto, os objetivos deste projeto são os que seguem. Objetivo Geral: ampliar conhecimentos sobre a percepção da obra de arte pela pessoa cega – a percepção de esculturas. Objetivos específicos: registrar os elementos sensoriais a que a pessoa cega se refere sobre sua experiência perceptiva no contato com a escultura. Registrar os sentimentos e a percepção estética a que a pessoa cega se refere no contato com a escultura.

2. Um enfoque sobre pe rcepção

Perceber é um processo complexo, pois a própria linguagem que as pessoas utilizam para comunicação do que percebem, ao sinalizar situações cotidianas, revelam o seu caminho perceptual. A invenção da lâmpada elétrica e outros recursos eletrônicos, no século XX, transformaram grandemente a maneira do homem estar no mundo percebendo e se comunicando. A percepção visual passou a ser intensificada, facilitada por esses recursos. Dessa forma, se a visão passou a predominar é coerente que se tenha a percepção visual como referência na maioria das circunstâncias. Outros sentidos além da visão estão também 763 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


presentes tornando a percepção mais eficaz e ampliada. A audição, o olfato e o tato são indicadores de informação sobre o objeto ou sobre o acontecimento percebido, que acrescentam elementos ao perceber, além do sentido visual. As pessoas, no entanto, não estão tão atentas ao seu perceber por meio desses outros sentidos como estão à percepção visual.

Assim, no mundo dos videntes, como não poderia deixar de ser é o referencial visual que se impõe. Seria absurdo negar este fato. Antes, ele deve ser considerado para que se possa identificar conceitos, valores, definições do senso comum ditados pelo sentido da visão, que caracterizam as ações, os sentimentos e os conhecimentos da grande maioria dos seres humanos (MASINI, 2007, p. 5).

Diante da abordagem mencionada, caberia perguntar como se dá a percepção em indivíduos que não possuem o sentido da visão. Que fatores influenciam seu ato do perceber na ausência desse sentido, em um mundo em que as informações são, predominantemente, visuais? Psicólogos, neurologistas e estudiosos sobre o assunto têm concentrado suas atenções nesta temática complexa, e ao mesmo tempo instigante, a fim de conhecer a construção do mundo de uma pessoa que nunca enxergou e, portanto, apresenta formas distintas de relacionar-se com pessoas e elementos participantes do cotidiano circundante. Para compreender melhor este universo, é necessário acompanhar as ações que envolvem o perceber de tal indivíduo, no que se refere ao agir, comunicar, sentir, pensar e o relacionar-se no mundo. Questionamentos podem ser feitos, a fim de proporcionar informações precisas sobre a construção da espacialidade, reconhecimento de objetos e a interação com as pessoas ao redor. Merleau-Ponty (1999), em “Fenomenologia da Percepção”, escreve sobre a ciência e o sensível, considerando o sujeito não somente pelo conhecimento que possui, mas sim, pela experiência que sente, que vive, que percebe a partir do corpo – fonte

dos sentidos.

Considera, assim, o sujeito da percepção o corpo no mundo e sua experiência perceptiva.

O esforço desse autor foi o de mostrar que a relação no mundo é corporal, e sempre significativa. Para co mpreender a percepção é necessário considerar o sujeito da percepção e saber de sua experiência perceptiva. Neste sentido, diz-se que as coisas "se pensam" em cada pessoa, porque não é um pensar intelectual, no sentido de funcionamento de um sistema, mas sim do saber de si ao saber do objeto – ao entrar em contato com o objeto o sujeito entra em contato consigo mes mo (MASINI, 2007, p. 22).

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É nítida a colocação de Merleau-Ponty, ao levar em conta a preocupação com a reflexão sobre o campo perceptivo. A pessoa desprovida do sentido da visão faz uso de outros sentidos, como o tato, que capta texturas, formatos ou temperatura, essencial no contexto perceptivo. Assim ela dispõe de recursos sensoriais que proporcionam “pistas” para atingir o desejado no contexto perceptivo. O cheiro, as diferenças de texturas e formatos, o tamanho e a espacialidade constituem pontos predominantes para a construção da imagem mental de tal indivíduo. Ao explorar um objeto pode construir uma imagem mental do mesmo, mas sem essa exploração pelo uso dos próprios sentidos terá dificuldade de uma construção mental desse objeto. Indivíduos que nunca enxergaram apresentam uma maneira própria de conhecimento do mundo na sua tridimensionalidade – base perceptual do universo que os circunda. O palpável torna-se uma de suas vias perceptuais e a experiência perceptiva se dá por meio do estar, da presença, do tatilizar, do ouvir, do sentir e do exalar.

3. Tato e suas especificidades Brun (1991) em sua obra "A mão e o espírito", esclarece, inspirado no texto “O olho e o espírito”, de Merleau-Ponty, que o perceber ocorre como um sistema complexo na relação corpo-objeto e não se limita a processos sensoriais isolados. Os conhecimentos sobre a mão, o tato e o tocar ao longo da história foram se transformando, desde o estudo fisiológico e neurológico das sensações ao estudo da fenomenologia da percepção.

Importa, portanto repetir que o tocar não se limita à sensação dos corpúsculos do tato, do trajeto do influ xo nervoso, ou da fisiologia do tálamo e do córtex: o tato permite ao tocar exercer-se, mas não o constitui. O tocar é, co m efeito, mu ito mais que um sentido de contato: é o sentido da presença e leva à experiência do encontro [...] Quando com a sua mão , o homem toca, tenta emigrar de sua corporeid ade para ir ao encontro de outro, e tal experiência termina no regresso a si mes mo, regresso carregado de afetividade e talvez de dramas, já que pelo tocar, o homem é incessantemente reenviado ao seu eu [...] Pela mão que toca, o eu dirige-se ao outro; pela mão tocada volta a si. Nesse entre os dois encontra-se toda a dimensão do mundo (BRUN, 1991, p.128-129).

Essa relação corpo-objeto, tocar e ser tocado, ocorre por meio de uma ação ativa do sujeito que explora, que busca perceber. É o tato ativo, de extrema relevância para a pessoa cega perceber e relacionar-se no mundo. 765 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Para melhor compreensão deste significativo sentido, é necessário diferenciar o tato passivo e o tato ativo, ou sistema háptico (GIBSON, 1966).

Enquanto no primeiro a

informação tátil é recebida de forma não intencional ou passiva (como a sensação que a roupa, ou o calor, produz na pele), no tato ativo, a informação é buscada de forma intencional pelo indivíduo que toca o objeto.

[...] no tato ativo encontram-se envolvidos não somente os receptores da pele e os tecidos subjacentes (como ocorre no tato passivo), mas também a excitação correspondente aos receptores dos músculos e dos tendões, de maneira que o sistema perceptivo háptico capta a informação articu latória motora e de equilíbrio (GIBSON, 1966 p. 269).

Dessa maneira, Gibson destaca a importância da atividade no conhecimento do mundo mediante o tato, da mesma maneira que o movimento ou atividade perceptiva é necessário na percepção visual. Ao explorar um objeto, a pessoa cega, e m busca de identificá- lo, realiza movimentos intencionais, de modo que possa obter informações sobre sua forma, para posteriormente ter a imagem mental do mesmo. Diferentemente da visão, o tato explora somente o que está ao seu alcance, ou seja, até onde os braços conseguem alcançar. Assim sendo, objetos de grandes dimensões, não terão o mesmo êxito ao explorar.

4. Concepções sobre experiência Larossa Bondía (2002) em conferência proferida em um Seminário Internacional de Educação, realizado em Campinas, e publicado em 2002, propôs explorar a possibilidade existencial e estética, sem ser existencialista ou esteticista, a partir da conexão experiência/ sentido. Apresentou, assim, sua concepção. É experiência aquilo que “nos passa”, ou que nos toca, ou que nos acontece, e ao nos passar, nos forma e nos transforma. So mente o sujeito da experiência está, portanto, aberto à sua própria transformação (BONDÍA, 2002, p. 25-26).

Esse autor considera que se a experiência é o que acontece a uma pessoa sendo esta um território de passagem, então a experiência pode ser vista como uma paixão – podendo esta palavra paixão referir-se a várias coisas: a sofrimento ou padecimento; a heteronomia, ou responsabilidade em relação ao outro; a uma experiência de amor pensada como posse, um 766 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


desejo que permanece desejo. De acordo com essa concepção de paixão, a pessoa apaixonada não possui o objeto, mas é possuída por ele. Esclarece, porém, Bondía (2002, p. 26- 27) que isso não significa pensá- lo como incapaz de conhecimento, de compromisso e de ação, conforme segue.

A experiência funda também u ma ordem epistemo lógica e u ma o rdem ética. O sujeito passional tem também sua própria força, e essa força se expressa produtivamente em forma de saber e em fo rma de práxis. O que ocorre é qu e se trata de um saber distinto do saber científico e do saber da informação, e de u ma práxis distinta daquela da técnica e do trabalho. O saber de experiência se dá na relação entre o conhecimento e a vida humana [...] com a v ida singular e concreta de um existente singular e concreto. A experiência e o saber que dela deriva são o que nos permite apropriar-nos de nossa própria vida.

Na busca de delimitar com clareza as características dessa experiência singular e do saber que dela ocorre, e do saber científico, do saber da informação e do saber da práxis da técnica de trabalho, Bondía (2002, p. 28) apresenta características que a identificam.

[...] a experiência é singular. Se a lógica do experimento produz acordo, consenso ou homogeneidade entre os sujeitos, a lógica da experiência produz d iferença, heterogeneidade e pluralidade. [...] a experiência é irrepetível, sempre há algo como a primeira vez. [...] a experiência tem sempre u ma dimensão de incerteza que não pode ser reduzida. [...] a experiência não é o caminho até um objet ivo previsto [...] mas é u ma abertura para o desconhecido, para o que não se pode antecipar nem “pré-ver” nem “pré-d izer”.

A concepção de experiência de Dewey, conforme pode ser lido a seguir tem forte conexão com sua concepção de educação. Casteller (2008) em sua dissertação de mestrado focalizou a centralidade da experiência na concepção de educação. Delineou a capacidade do homem deweyano, diferentemente dos animais, de reter experiências passadas e de viver em um mundo em q ue cada acontecimento é carregado de reminiscências e ressonâncias, ao dispor de memória e consciência e de participar da construção da história. Branco (2010) em artigo publicado na “Revista Educação e Pesquisa” reiterou essa característica de continuidade temporal inerente à experiência, apoiada no passado e condicionando o futuro, citado por Dewey (1967): “continuidade e a interação, na sua ativa união uma com a outra providenciam a medida e o significado educativo de uma experiência”. 767 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Branco (2010) a partir do que ficou dito, reiterou que a diversidade de atividades propostas deve ter como meta a ampliação da experiência, cabendo ao educador, conforme Dewey (1997, p. 75): selecionar aquelas coisas dentro do âmbito da experiência existente que tem a promessa e a potencialidade de apresentar novos problemas, que estimulando novas formas de observação e juízo expandem a área da experiência posterior.

Varela (1991, p. 25), inspirado e guiado pelas ideias desenvolvidas por Merleau-Ponty, dissertou sobre a necessidade das ciências da mente da cultura ocidental alargar o seu horizonte para acompanhar a experiência humana vivida e as possibilidades de transformação inerentes à mesma, conforme afirma.

Não projetamos o nosso mundo. Encontramo-nos pura e simples mente com ele; acordamos para nós próprios e para o mundo que habitamos. Vamos refletindo sobre este mundo à medida que crescemos e que vivemos. Refletimos sobre um mundo que não é feito, mas, encontrado, e, no entanto, é também a nossa própria estrutura que nos permite refletir sobre este mundo. Deste modo, ao refletir encontramo -nos num círculo : estamos num mundo que aparenta estar ali antes da reflexão co meçar, mas esse mundo não está separado de nós.

A proposição de Varela foi a de abordar a experiê ncia prática e vivida envolvendo a reunião da totalidade do corpo e da mente. Alegou a necessidade de adotar uma perspectiva disciplinada da experiência humana, tendo como referência a fenomenologia e a forma de meditação das tradições orientais, da atenção/consciencialização, isto é, “um desenvolvimento gradual da capacidade de estar presente perante a mente e o corpo, não apenas em meditação formal, mas nas experiências da vida quotidiana” (VARELA, 1991, p. 93).

5. Experiência excepcional e inesquecível

[...] Toda sala se congela e retém a respiração [...] todos temos a consciência de participar nesse exato mo mento de uma experiência excepcional, de u ma experiência inesquecível (TODOROV, 2011, p. 7).

Em que consiste essa experiência? É o que Todorov (2011) convida a refletir, ao apresentar portas que se abrem e conduzem-nos a um lugar em que nos sentimos essenciais; que, apesar de familiar na plenitude que nos proporciona, não sabemos nomear; reconhecemos sua relevância quando o encontramos, sem saber, no entanto, que estávamos à 768 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


sua procura. Essa experiência de impacto ao deparar com a beleza de uma paisagem, de um encontro, ou de uma obra de arte é a experiência estética que, mesmo não sendo frequente, todos encontramos na vida cotidiana.

É mais do que um prazer ou mes mo u ma felicidade, pois esses atos me fazem pressentir de forma fugidia u m estado de perfeição, ausente em outro instante qualquer. [...] Essas experiências não se confundem entre si, porém todas conduzem a um estado de plenitude, nos dão um sentimento de realização interio r. Sensação fugaz e ao mesmo tempo infinitamente desejável, pois graças a ela nossa existência não decorre em vão, graças a esses mo mentos preciosos, ela se torna mais bela e mais rica de sentidos (TODOROV, 2011, p. 9).

Cintra (2004) reitera a concepção de Todorov ao afirmar:

A beleza não está no objeto observado e nem em quem o observa. Está na relação entre ambos. A experiência do belo é u m tipo específico de relação que mantemos com o mundo. O espectador diante da obra dialoga com os seus sentimentos e, num ir e vir de sensações, imagens, memórias, encontra-se consigo mesmo.

Nunes, da perspectiva de um olhar heideggeriano, desvela o quadro “A origem da obra de arte” de Van Gogh, em uma descrição fenomenológica de cada objeto que a compõe: materiais, cores, nuances, iluminação e comenta: Somente a obra cria para nós, o espaço de abertura onde o ser do utensílio – a sua serventia, o seu caráter de produto – aparece ou se manifesta, congregando a mu ltip licidade de relações do mundo de que foi ext raído e do qual nos apro xima.

A experiência estética, expressa e comunicada ou não, envolve uma troca intersubjetiva, em relação à obra de arte e aquele em contato com ela, de pertinência à verdade no desvelamento do individual e da humanidade. É a relação da subjetividade de uma mensagem intentada pelo artista, arbitrária e contingente, e a subjetividade de quem a recebe, em seu momento e contextualização. Assim sendo optamos nesta dissertação por uma análise da experiência estética a partir do referencial fenomenológico dos autores citados, que abordam a relação do evento e de sua significação. Evitamos introduzir outro referencial de análise como a da Semiótica devido às divergências entre esses dois enfoques no que diz respeito à representação. Como esclarece Santaella (2008, p. 16):

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Na semântica geral, encontram-se definições muito variadas do conceito de representação. O âmbito de sua significação situa-se entre “apresentação” e “imaginação” e estende-se assim a conceitos semióticos centrais como signo, veículo de signo, imagem (representação imagética), assim como representação e referência.

6. A pesquisa Para a realização deste projeto foram adotadas as diretrizes da pesquisa qualitativa por considerar ser esta a mais apropriada para este tema de investigação. A pesquisa qualitativa caracteriza-se por fatores como compreender o fenômeno e não explicá- lo, levar em consideração o contexto e a descrição do natural, zelar pelos registros de dados de situações e entrevista e romper a contradição pesquisador separado do objeto de investigação, justifica-se a escolha por este método de pesquisa.

Foram participantes desta pesquisa, três pessoas cegas congênitas: as três com curso superior na área de Letras; uma com atividade profissional como Professora no Ensino Fundamental, uma como funcionária no setor administrativo em uma Universidade particular e uma sem atividade profissional.

Os critérios de inclusão foram: Ser cego, na faixa etária acima de vinte anos, Dispor da habilidade de expor verbalmente suas percepções, sentimentos e ideias, bem como Ter interesse em participar da pesquisa e Ter disponibilidade para ir ao local onde estavam os objetos de arte – esculturas.

A pesquisa foi realizada na Pinacoteca do Estado de São Paulo na Galeria Tátil com autorização da coordenadora Dra. Amanda Tojal.

O critério de escolha das esculturas teve como foco principal serem figurativas e de dimensões que estivessem ao alcance das mãos e braços de quem as explora tatilmente. 1. Homem Andando - Ernesto de Fiori. Dois motivos levaram à escolha desta escultura: este homem que caminha retrata uma metáfora da vida, a dinâmica do estar em movimento; a possibilidade de identificação, pelos sujeitos do movimento pelo posicionamento da figura escultórica. 770 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


A superfície de certa rusticidade, semelhante a um relevo inacabado. 2. Dois Nus Femininos Entrelaçados – José Pedrosa. Dois motivos levaram à escolha desta escultura: o posicionamento das figuras escultóricas apresentarem maior complexidade do que a outra escultura da pesquisa; os dois corpos entrelaçados sugerindo por si só tensão relacional. Diferentemente do Homem Andando, a superfície é polida.

Coleta de Dados

A coleta de dados, de cada sujeito da pesquisa, foi realizada em dois momentos: o primeiro, por meio de entrevista, no momento da exploração das esculturas. O registro gravado e transcrito para posterior análise e interpretação dos dados, na perspectiva mais geral da percepção do objeto e dos sentimentos e experiência estética a respeito desse contato, bem como o detalhamento dos elementos perceptivos que propiciaram o acesso à forma percebida de cada sujeito.

O segundo momento, seis semanas depois da exploração das esculturas, por meio de depoimento escrito de cada sujeito. O que se buscou foi sistematizar e analisar o que se manteve e o que se transformou do sentido e da experiência perceptual e estética da escultura.

A análise dos dados das entrevistas foi realizada em três etapas, conforme segue 

1ª. fase - Leitura minuciosa das entrevistas registradas por escrito, selecionando os itens mais assinalados por eles.

2ª. fase - Levantamento, nas entrevistas registradas por escrito dos dados objetivos a que a pessoa entrevistada se referiu sobre sua experiência perceptiva no contato com a escultura.

3ª. fase - Levantamento, nas entrevistas registradas por escrito, dos sentimentos a que a pessoa entrevistada se referiu no contato com a escultura.

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Diante dos dados apresentados sobre o modo de percepção e caracterização dos sujeitos frente à obra de arte, é importante ressaltar manifestações relevantes de cada um dos sujeitos. O S1 expressou predominantemente emoções e avaliação estética das esculturas e seus elementos no decorrer da exploração das mesmas. Deixou claro seu encantamento ao explorar uma das esculturas, “Homem Andando”. Suas esclamações e verbalizações “gatíssimo”, “ele é lindo demais”, sugerem uma experiência com a escultura vista como uma paixão, conforme sugere Larossa Bondía, na p. 23 desta dissertação – concepção de paixão na qual a pessoa apaixonada não possui o objeto mas é possuída por ele. Seus gestos de abraçar a escultura e dizeres: “É real mesmo”, “Ele é lindo demais” e “Só faltava isso!”, ao concordar com a P que o S1 queria que ele saísse dali e lhe desse um beijo na boca, reiteram esta interpretação de experiência vista como paixão. Suas expressões de envolvimento emocional revelaram-se, também na escultura Dois Nus Femininos, quando esclareceu que as interferências no decorrer da pesquisa interromperam seu pensamento e destruíram sua imagem mental e o que sentiu na relação das duas mulheres na segunda escultura. O S2, ao descrever sua forma de explorar, revelou seu caminho próprio de percepção pelas vias que possuía e ensinou como fazia uso delas. Ao referir-se à sua própria forma de explorar, seu posicionamento no espaço em relação à escultura, informou sobre sua experiência perceptual e esclareceu uma das questões intrigantes sobre percepção da pessoa cega: a espacialidade. Reiterou sua forma de explorar em busca de identificação denotativa da escultura e dos elementos que a compõe, esclarecendo sobre os caminhos perceptuais táteis e uso do próprio corpo. Evidenciou ausência de posicionamento pessoal sobre os sentimentos e sensações corporais despertados, permanecendo a descrição referente a elementos objetivos no contato material e explicação intelectual. O S3 apresentou poucas manifestações na exploração das esculturas sobre o que percebia e o que sentia. O que expressou de forma mais espontânea foi o espanto frente à situação em que se encontrava e seu desconhecimento e incapacidade para explorar a escultura. Em uma situação em que a pesquisadora solicitou onde estavam as sobrancelhas de uma das mulheres, o S3 respondeu com o gesto de conduzir a mão da pesquisadora para a sobrancelha da escultura, indicando os elementos percebidos tatilmente. Cabe refletir se a dificuldade está na comunicação verbal. Ficou evidente a clareza da percepção tátil, por meio do gesto, em contraste com a predominância da ausência de verb alização frente às perguntas 772 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


da pesquisadora a respeito do que percebia em sua exploração das esculturas. Vale comentar o contraste entre a clareza da percepção tátil e o silêncio do S3, silêncio que pode ser interpretado ou como dificuldade de expressão verbal, ou inibição frente à situação. Duas circunstâncias sugerem a probabilidade maior do motivo de ausência de resposta ser devido à inibição: 1) O S3 frente à pergunta da pesquisadora sobre as formas que conhecia respondeu “quadrado, redondo, retangular”. Tendo mostrado o que conhecia, o S3 passou a verbalizar muito mais; 2) O S3 em seu depoimento escrito revelou lembranças de várias características das esculturas com detalhes, bem como os sentimentos despertados. Evidenciou, dessa forma, que seu silêncio talvez não se devesse à dificuldade de expressão verbal. O S3 reiterou no depoimento, após um mês da exploração da escultura, a mesma concepção sobre representação ligada ao sentido da visão ao afirmar que não percebia bem a escultura e expressões faciais por não enxergar. Afirmou que era difícil ter representações como as pessoas que veem, desconsiderando as representações que seus outros sentidos lhe forneciam. Emergiu um sentimento de possibilidade de utilizar o tato em substituição à visão, que a escultura proporciona – uma forma de arte que possibilita ampliar a visão de mundo e perceber a realidade de um novo ponto de vista.

Considerações Finais O objetivo central desta dissertação foi o de ampliar conhecimentos sobre a percepção da obra de arte pela pessoa cega – a percepção de duas esculturas figurativas. Para realizar este estudo, fizemos uso dos instrumentos de entrevistas com três jovens cegas congênitas, no momento de seus contatos com as obras de arte e de seus depoimentos escritos, realizados um mês após esse contato. Buscar conhecer essa experiência de perceber por meio das descrições orais e escritas das próprias jovens cegas é a ética deste trabalho. Assim, a análise do registro escrito das entrevistas e dos depoimentos escritos, apresentados, pela expressão de quem viveu a realidade estudada, foi um caminho extremamente profícuo, por revelar singularidades acerca das jovens e de suas percepções das esculturas. Por outro lado, foi também um caminho difícil por descortinar a complexidade desta relação com elementos tão imbricados que nos fizeram enfrentar desafios teóricos e metodológicos, como também contradições e ambiguidades ao enveredarmos pela via da interpretação. Procuramos compreender a partir daquilo que os

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registros apontaram, assinalando outros possíveis significados, com seus múltiplos sentidos que precisariam ser abordados na continuidade de investigações sobre esta temática. Ainda que não apresentemos aqui resultados conclusivos, pois o tema não pode ser esgotado neste estudo, a análise nos levou a apontar alguns resultados importantes, embora muitos outros merecessem ser mencionados. Foram nítidas as peculiaridades de cada uma das três jovens, sujeitos da pesquisa, no que se refere à forma de percepção dos objetos artísticos, b em como ao repertório diferenciado de experiências implicando caminhos distintos da exploração de cada um dos sujeitos. Foi possível constatar satisfação, alegria, dúvidas e descobertas vivenciadas pelos sujeitos, que tornaram a pesquisa desbravadora e instigante referente às diversas circunstâncias imbricadas no perceber das esculturas pela percepção tátil.

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ARDENDO EM CHAMAS Sandra Minae Sato

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Resumo: A presença da cerâmica desde as primeiras manifestações da inteligência humana na pré-história contrasta com a mesma frequência com que algumas linhas de pensamento persistem em classificá-la como “arte menor”. Este trabalho apresenta os primeiros resultados dos estudos sobre cerâmica contemporânea na linha de pesquisa em Poéticas Visuais para desenvolvimento de tese de doutorado pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, sob orientação da professora doutora Norma Tenenholz Grinberg. Ele convida à discussão sobre o estatuto da cerâmica desde o período moderno, a partir de exemplos como a crítica sobre a produção cerâmica de Picasso, consagrado como pintor mas cujas referências relacionada s à referida mídia ainda rendem, na atualidade, comentários como “o gênio de férias” ou “a cerâmica de Picasso é sucata de sua velhice”. Realiza uma revisão de momentos históricos como a origem das academias européias de arte, quando o material é segregado do conceito de belas artes ao ser classificado entre as artes aplicadas; bem como dos episódios de revalorização do estatuto da cerâmica, como nos movimentos Art & Crafts, Art Nouveau e Art Déco, no início do século XX, em que há o resgate da manufatura e dos objetos personalizados. E inicia a investigação histórica e conceitual acerca dos motivos pelos quais a cerâmica é tanto valorizada no design e em tecnologias de ponta quanto é discriminada nas chamadas belas artes. Ainda assim, o fato de artistas como Roy Lichtenstein, Jackson Pollock, e mais recentemente Adriana Varejão, Ai Weiwei ou Jeff Koons, por exemplo, insistirem em explorar essa mídia para responder a suas inquietações em plena era da arte “não-matérica” reafirma a i mportância de prosseguir investigando o fenômeno. Palavras-Chave: Cerâmica. Arte contemporânea. Artes aplicadas. Belas artes. Artes maiores e menores. Abstract: The presence of pottery from the earliest manifestations of human intelligence in prehistory contrasts with the same frequency with which certain lines of thought persist in classifying it as "low art". This paper presents the first results of studies on contemporary ceramics for development of doctoral thesis in Visual Poetics for the School of Communication and Arts, University of São Paulo, under the guidance of Professor Dr. Norma Tenenholz Grinberg. It invites to discuss the status of ceramics from the modern period, from examples like the criticism about the production of Picasso ceramics, enshrined as painter but whose references related to ceramic media still render, nowadays, comments such as "the genius on vacations" or "Picasso's ceramic is the scrap of his old age." This research suggests a review of historical moments, as the origin of European academies of art, when the ceramics is segregated from the concept of fine art to be ranked among the applied arts, as well as episodes that rescue the status of ceramics, such as the movements of Art & Crafts , Art Nouveau and Art Deco, in the early twentieth century, in which there is a revaluation of manufacture and custom objects. And begins the conceptual and historical investigation about the reasons why ceramics is valued both in design and in advanced technologies as well as is itemized when related to the concept of 'fine arts'. The fact that artists such as Roy Lichtenstein, Jackson Pollock, and more recently Adriana Varejão, Ai Weiwei or Jeff Koons, for example, insist on exploring this media to respond to their concerns in the era of the "non-materic" art also reaffirms the importance of further investigating the phenomenon. Keywords: Ceramics. Contemporary Art. Applied Arts. Fine Art. High and Low Art.

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Doutoranda em Poéticas Visuais pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, sob orientação da professora doutora Norma Tenenholz Grinberg. 776 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Paul Gauguin foi um estudioso da cerâmica escultórica e, entre os artistas de seu tempo, explorou como poucos a subjetividade desta linguagem. E isso, mesmo alguns admiradores do pintor desconhecem. No artigo “The Monstrous and the Grotesque: Gauguin’s Ceramic Sculpture” (2008) a pesquisadora Yeon Shim Chung mostra que o próprio artista tem consciência da diferença de estatuto entre a cerâmica e a pintura que produzia, quando este narra, em suas cartas (MAILINQUE, 1946), que suas cerâmicas foram consideradas “artísticas demais para serem vendidas”, mas que, se fossem apresentadas em uma exposição de arte industrial, teriam um “sucesso ultrajante”: “Gostaria que Satã pudesse ouvir isso!”, exclama Gauguin. Apesar da crescente valorização da cerâmica como suporte da arte contemporânea, o estigma de estar restrita ao conceito de artesanato ou utilitário permanece como pauta para discussão. Alguns séculos depois de estabelecida a distinção entre artes menores e maiores ainda é frequente identificar um elenco representativo de profissionais ligados a arte (jornalistas, críticos, estudiosos) que mencionam as massas cerâmicas como matéria-prima secundária na produção artística. Explicar o porquê desta discriminação talvez demande pontuar sinais da existência dessa discriminação, inicialmente. Com o prévio perdão do trocadilho, é como se a reputação da cerâmica, como técnica nas artes plásticas, estivesse constantemente queimando no limbo da história da arte. Na bibliografia contemporânea, uma das referências mais acessíveis na mídia sobre esta discussão certamente é a respeito de Pablo Picasso ceramista. (FIG. 1) Este “discurso de desmerecimento” à cerâmica é expresso em textos curatoriais e críticos, por exemplo. Não há tantos questionamentos a respeito do Picasso pintor quanto ao Picasso ceramista. Sobre este, o que se lê são inumeráveis comentários – sejam eles elogiosos ou depreciativos ao artista – que com frequência descrevem a cerâmica como uma forma menor de expressão da arte (KANGAS, 1999): Ao quebrar os preconceitos contra a cerâmica abraçando a arg ila tão intensamente, o maior art ista do século XX estabeleceu um padrão brilhante para o século XXI: não importa qual a matéria da arte, o que importa é a sua abordagem.

Ou (SMITH, 1999): Talvez, o estatuto de segunda classe tradicionalmente atribuído a cerâmica tenha provocado um efeito relaxante, contribuindo com a at mosfera do gênio de férias [...], que ambienta esta exposição.

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Um dos textos mais contundentes sobre esse preconceito quanto à cerâmica, identificado até o presente momento, é a entrevista concedida ao jornal espanhol El País pelo pesquisador Salvador Haro González, professor doutor em Belas Artes da Universidade de Málaga, ao receber o Premio de Investigación Pablo Ruiz Picasso com o artigo La creación pictórica en la cerámica de Pablo Picasso. Ele denuncia, no comentário que dá título à entrevista (algo como “Os críticos viam a cerâmica de Picasso como sucata de sua velhice”), o olhar discriminatório sobre a cerâmica do artista. Já na primeira pergunta, González comenta essa “falsa percepção” condenando o pensamento que considera “a cerâmica como uma questão menor” (MELLADO, 2005): Pergunta: Po r que a faceta de Picasso como ceramista é desvalorizada no conjunto de sua obra? Resposta: Pela tradição relacionada a este material. Desde sempre se vê a cerâmica como u m instrumento utilitário, o que se entende sempre como arte menor. Eram umas divisões feitas durante todo o século XIX, quando todas estas questões de que arte que tinha utilidade não era considerada arte verdadeira. A inda hoje não somos capazes de nos livrar totalmente dessa falsa percepção. A cerâmica é u m material, e o que se você faz como ele é o que a converte em um instrumento artístico ou não. Você pode pintar coisas a óleo que sejam totalmente utilitárias e que não tenham nenhum valor artístico. Há mu itos anos se admite que se possa fazer arte co m detritos ou lixo e ainda temos no subconsciente coletivo a imagem da cerâmica como u ma questão menor. Tanto, que antes de 1985 os grandes tratados sobre Picasso mal dedicaram linhas ao seu trabalho em cerâmica, e alguns sequer fazem isso.

Ainda que intensamente explorada e valorizada pelos designers, engenheiros e outros cientistas por sua adaptabilidade e aplicabilidade específicas, a cerâmica ainda é comumente apartada da ideia de High Art, como afirma o próprio González (2010). O conceito distingue manifestações de arte consideradas paradigmáticas, canônicas, como a pintura a óleo, a escultura em mármore ou bronze geralmente executadas por artistas clássicos (FISCHER, 2005). O editor da revista eletrônica norte-americana Artspan Contemporary Arts, Eric Sparre (2012), afirma que, atualmente, um dos maiores desafios em criar novos trabalhos em cerâmica “[...] é lutar contra o estigma comum de que a cerâmica é apenas um produto de artesãos ou destinado ao mercado utilitário”. No mesmo editorial, o autor enumera a disponibilidade do material, sua durabilidade e versatilidade técnica como qualidades que justificam sua presença na criação em praticamente todas as culturas no mundo. 778 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Intrigante é que quando se refere às massas cerâmicas, algumas peculiaridades – contrastantes entre si, inclusive - aquecem a discussão sobre o estatuto desta mídia. Ao mesmo tempo em que é uma das matérias-primas mais antigas utilizadas pelo ser humano para expressar suas subjetividades e manifestar sua racionalidade, a cerâmica está presente no desenvolvimento de tecnologias de vanguarda, como nas pesquisas espaciais, indústria, medicina e preservação ambiental. O armazenamento de energia diretamente da fonte é apenas uma das aplicações da cerâmica no chamado “futuro verde” (CASEY, 2010). No Instituto de Tecnologia da Geórgia, EUA, uma nova cerâmica está em desenvolvimento para compor células de armazenamento de energia a partir de combustível de óxido sólido. A cerâmica também vem sendo utilizada em novos revestimentos atóxicos para prevenir ferrugem em superfícies metálicas. Cerâmicas avançadas são exploradas em tecnologias de ponta graças a características únicas e ainda insuperáveis, como alta tolerância a temperaturas que fundiriam o aço, grande estabilidade química e a resistência à corrosão. São formas adaptadas de cerâmica, cujas propriedades são exploradas em seu potencial máximo para atender a aplicações específicas, desenvolvidas a partir de materiais e compostos já conhecidos graças a novas tecnologias de síntese e de processo (BRESSIANI, s.d). Estas pesquisas estão em desenvolvimento, inclusive, no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN) no estado de São Paulo, em parceria com a USP e gerenciada pela Comissão Nacional de Energia Nuclear. No IPEN, diversos laboratórios do Centro de Ciência e Tecnologia de Materiais são dedicados à pesquisa de cerâmicas de alta tecnologia. O nitreto de silício (Si3N4) é um exemplo de derivado destas novas formas cerâmicas. Tem excelente estabilidade, grande durabilidade e boa resistência a corrosão, altas temperaturas e choques térmicos. Por isso está substituindo, com vantagens, os metais para válvulas de máquinas, rolamentos, bicos para solda, componentes de motores para indústria automobilística e aeroespacial e ferramentas de corte. É um dos materiais mais promissores para a construção das novas gerações de turbinas a gás. São motores gigantescos, que irão movimentar usinas geradoras de energia elétrica, vão queimar combustível a temperaturas acima de 1.200° C, bem além da capacidade de quaisquer metais, mesmo de ligas metálicas de níquel, última palavra em tecnologia de resistência física e térmica. Disso resultará uma

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eficiência termal muito superior às termelétricas atuais, com emissão muito menor de gases poluentes na atmosfera (INOVAÇÃO TECNOLÓGICA.COM, 2005). Origens e o caminhar da cerâmica nas artes É possível que a discussão sobre a condição da cerâmica nas artes plásticas permeie outra questão tão instigante quanto: a diferença hierárquica entre artes aplicadas e belas artes. A distinção entre as duas formas de expressão parece ter como gênese a consagração do artista como intelectual e teórico, destacado da chamada guilda ou corporação, que até então respondia pelo ofício das artes de forma anônima e coletiva, em meados do século XVI. Naquele momento, a criação cerâmica permanece como incumbência de artesãos e operários para construção de peças de decoração e utilitários que vão das urnas funerárias aos artefatos para uso doméstico. Do vínculo da cerâmica como matéria-prima na produção de peças para artesanato e utilitários possivelmente derivou a associação ao conceito de arte aplicada e consequentemente, ao de “arte menor”, como denominado pelas primeiras academias de arte, de origem européia. Desde então, a história das artes é pontuada por aproximações e afastamentos desses dois conceitos distintos. Ao final do século XIX, movimentos como Art Nouveau e Arts & Crafts, este liderado por Huskins e Morris com berço na Inglaterra, marca uma das diversas ascensões da cer âmica, graças à valorização do fazer artesanal diante da automatização industrial. A produção do período tem princípios voltados para a reforma social e isso promove o enlace entre a vida social e a arte. No início de século XX, nota-se o resgate das artes do fogo, como a cerâmica e o vidro, como matérias-primas para as expressões contemporâneas de artistas que hoje, curiosamente, independem das linguagens plásticas para responder a suas questões conceituais. É quando artistas como Edgar Degas, Julio González e Auguste Rodin – este, pioneiro no final do século XIX - passam a valorizar a presença do material como marca na criação de suas obras escultóricas, no que a cerâmica tem papel fundamental, uma vez que se presta aos movimentos característicos da modelagem (BOZAL, 1996): A marca é às vezes o rastro de um processo quase brutal, co mo os estudos para Balzac, conservados no Musée Rodin, colocam de manifesto: o escultor [Rodin] acrescentou argila febrilmente, perdeu o detalhe in icial do rosto para plasmar a identidade espiritual de u m g igante, um criador.

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A mesma história da arte que revela o preconceito sobre a cerâmica em diferentes momentos, também aponta importante representatividade desta mídia em episódios como a sua consagração na Art Deco e na escola de Bauhaus, no início do século XX. Aqui, por outro lado, se delineia um diálogo claro entre política e estética, em que se defende uma arte funcional, com fortes influências dos princípios arquitetônicos e do objeto utilitário, cuja concepção é voltada para identificação do estilo pessoal do usuário. (FIG. 2 E 3) Após o período moderno e do desenvolvimento industrial, a valorização das artes aplicadas se volta agora para a criação mais autoral, que consolida o conceito de design de produto na contemporaneidade e leva o objeto utilitário para dentro dos espaços efetivos da arte, como museus e galerias. Evento consolidado, mais uma vez no Brasil, por exemplo, com a recente regulamentação da profissão de designer (POMPEU, 2012). Além de Picasso, outros grandes nomes exploraram a cerâmica, ou sua temática, como Marc Chagall, Paul Gauguin, Jackson Pollock, Joan Miró, Salvador Dalí, Claes Oldenburg, Frank Lloyd Wright. Os contemporâneos Jeff Koons, Ai Weiwei, Mark Ryden, Anish Kapoor, Nara Yoshitomo; e os brasileiros Carlos Zílio, Nelson Leiner, Gê Orthoff, Efrain Almeida e Adriana Varejão, numa lista improvisada de memória. Zílio, por exemplo, explorou pratos de porcelana comuns como base para a pintura crítica social nos anos 1971-72. Usando objetos industrializados, o artista brasileiro escapa dos meios tradicionais para a construção de cerâmica – modelagem, queima e esmaltação - e, involuntariamente ou não naquele momento, ele confronta a produção industrial, de artesanato e da arte conceitual em sua série "Prato ". (FIG. 4) O polêmico artista multimídia chinês Ai Weiwei vai buscar em suas raízes pessoais e coletivas a porcelana milenar, canonizada pelo tempo, para praticar suas interferências e performances que comovem o mundo e provocam reações que vão da indignação ao despertar de valores básicos dos direitos humanos, como a democracia e a liberdade de expressão. Sobre Roy Lichtenstein, Glenn (1977) afirma que aplicar um dispositivo pictórico, como simular sombras e brilhos, sobre uma obra tridimensional seria uma estratégia de padrão cubista. O próprio artista considera sua série de dez Cabeças de Cerâmica (1964-66) uma tentativa de estender sua ambiguidade de representação que caracteriza sua pintura:

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Tinha considerado pintar uma garota real no estilo cartoon, o que levou a desenhar sombras sobre uma superfície tridimensional. Eu acho que as cabeças de cerâmica são uma extensão disso. [Ao colocar símbolos tridimensionais em um objeto tridimensional] eu queria a ambiguidade entre realidade e irrealidade. Decorá -las fez parecerem irreais, ao mes mo tempo em que fingi fazê -las parecerem mais reais.

(FIG. 5) O frequente interesse de nomes representativos da arte na atualidade nos estimula a prosseguir com a investigação sobre a presença constante da mídia cerâmica, apesar das divergências históricas, nas expressões plásticas derivadas do raciocínio humano em diferentes tempos. O que resulta em diferentes produtos, frutos de diferentes olhares. Para Lichtenstein (1923-1997), por exemplo, é enxergar, na escultura cerâmica, uma forma de constantemente repensar o ato de desenhar: Eu não quero argumentar que a escultura é na realidade bidimensional [...]. Significat ivo é que sua organização é unificada, co mo em u m desenho [...]. O que funciona é a relação contraste para contraste, em vez de volu me para volu me.

Ou, como defende Jackson Pollock (1912-1956), que também modelou o barro, ao definir o artista (JACHEC, 2011): Quando eu digo artista quero dizer o homem que está a construir coisas - a criação de mo ldagem da terra - seja nas planícies do oeste - ou o minério de ferro de Penn. É tudo um grande jogo de construção - alguns com u m pincel - alguns com u ma pá alguns escolhem u ma caneta.

2. Figuras e tabelas 1.

FIGURA 1: Pablo Picasso

FONTE: KARSH, 1954, p. 1 2.

FIGURA 2: Jarra Art Déco em faiança com guarnição de metal

FONTE: MIRANDA, 2012, p. 4 3.

FIGURA 3: TAC teapot, design de Walter Groupius

FONTE: SATO, 2012, p.4 4.

FIGURA 5: Prato, de Carlos Zílio.

FONTE: ZILIO, 1971-72 5.

FIGURA 5: Head with blue shadow, Roy Lichtenstein

FONTE: JENSKINS, 1985, p. 6

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ARQUITETURA VIOLADA Hipóteses projetuais através de práticas artísticas Viviane de Andrade Sá

1

Resumo: As décadas de 60 / 70 representaram um período de profundas transformações nos modos de operação da arte. Esse momento ficou marcado por uma interdisciplinaridade que saltou dos textos teóricos para a prática por meio de intervenções plurais, nas quais se tornou extremamente complexo distinguir a que categoria das tradicionais artes pertencia. De uma forma geral, elas se libertavam de amarras da instituição e do mercado e almejavam ocupar o espaço público da cidade. O momento político era também delicado: a sociedade representava um padrão de comportamento imposto pelo capitalismo e dificilmente este estado tenderia a alguma alteração não fosse através do choque. Desta forma, inúmeros artistas buscaram modificar sua obra a fim de tornar visível para a sociedade a sua própria realidade. Esse deslocamento do espaço da obra desloca também o lugar da crítica, que passa da instituição para a arquitetura, assim como seu conteúdo, que é ampliado em textos, fotografias, projetos e intervenções que ora questionam o modo de ação do arquiteto, ora transgridem o espaço por ele projetado. Artistas como Dan Graham e Gordon Matta-Clark mostraram-se lúcidos diante da realidade americana daquele período ao produzirem um conjunto de obras críticas inseridas num limite entre arte e arquitetura. Esse outro olhar para a arquitetura se transfigura em hipóteses possíveis para compreensão e atuação no espaço urbano contemporâneo, e já são mecanismos de atuação por parte de alguns arquitetos como Peter Eisenman e Bernard Tschumi e, merecendo, portanto, uma investigação mais aprofundada. Palavras-Chave: Relação entre arte e arquitetura. Arte Contemporânea. Arquitetura Contemporânea. Movimentos culturais. Sociedade de consumo.

Desinventar objetos. O pente, por exemplo. Dar ao pente funções de não pentear. Até que ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou uma gravanha. Manoel de Barros em O livro das igonorãnças

1.

Introdução Definir estratégias de atuação na construção ou transformação do espaço urbano hoje é

uma tarefa capaz de consumir demasiada energia, pois, evidentemente a cidade reúne uma complexidade possível de ser tratada por distintas abordagens. Ironicamente, essa rede tão complexa é quase sempre regida por um único mecanismo – o capital. E se esse sistema é único, parece lógico que a estratégia para sua validação seja a de unificar seus atores para que todos obedeçam a esta mesma ordem. Surge, aqui, o conceito da personalidade tipo, estratégia

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vinda da classe média que justificava sua existência através da criação de uma cultura que glorificava a presença de um mundo individualizado, no qual o ideal produtivo, a eficiência dos movimentos e de gestos, a fetichização e a existência estandardizada foram incorporados como padrões de organização das cidades e funciona va como estrutura das relações e do comportamento humano. Da mesma forma, a organização espacial das cidades segue, obrigatoriamente, tais diretrizes e a arquitetura entrega à cidade um conjunto de formas rígidas com a clara função de disciplinar comportamentos e desejos como forma de manutenção desta estrutura. O desenvolvimento econômico exerceu uma pressão crescente que conduziu a uma concentração de usos, ao distanciamento do indivíduo da escala das intervenções urbanas e à erosão da vida pública. Uma ilusão fabricada da participação do indivíduo na sociedade marca, invariavelmente, seu afastamento das relações envolvidas com o seu habitar a cidade. O capitalismo fez surgir a figura do consumidor-produtor que é, na realidade, uma personalidade construída e única, que uniformizou as identidades, criou um padrão de comportamento e afastou os indivíduos da convivência.

A personalidade flexível representa uma forma contemporânea de governamentalidade, um padrão interno e cultural de coerção “suave” que se relaciona diretamente com as condições de trabalho, com práticas burocráticas que garantam a ordem e co m regimes de fronteira e intervenções militares. (HOLM ES, Brian. “The Flexib le Personality: For a New Cultural Crit ique”, 2006)

O histórico do capitalismo evidencia que a mercadoria não se restringe mais a bens de consumo básicos. O que ocorre atualmente é o fato dessa mercadoria assumir diversas formas e, invariavelmente, expandir-se para a escala urbana, transformando, inclusive, o papel político das cidades naquilo que se refere a conflitos ou lutas urbanas. Um pe ríodo de crise capitalista 2 é capaz de interromper os fluxos mundiais acarretando, portanto, mudanças políticas e sociais. Essa nova face do capitalismo também transforma aquilo que dele se diverge. Se no princípio o foco da luta anticapitalista era trabalhista, hoje ela se dilui em diversos campos da sociedade, fenômeno descrito pelo geógrafo David Harvey como o 1

Arquiteta e urbanista pela Universidade de São Pau lo e aluna no Programa de Pós Graduação em Artes Visuais da Escola de Co municação e Artes da Universidade de São Paulo. 2 Um exemp lo são as mais recentes crises financeiras ocorridas nos EUA e na Eu ropa. 785 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


proletariado num campo expandido, cujas reivindicações abrangem questões econômicas, políticas, sociais e culturais. Essa pluralidade de temas determina também um novo formato de luta, que, normalmente, é pequena, dispersa e efêmera. A pulverização destas lutas desmonta a principal teoria de luta anticapitalista – o marxismo. Se para Marx a possibilidade de transformação só aconteceria por meio de uma luta de classes, a dispersão das lutas faria desaparecer a possibilidade de transformação. Entretanto, para o próprio Harvey essas reivindicações poderiam transformar ou mesmo causar alguma instabilidade na ordem vigente, pois a menor escala não determinaria o caráter da “revolução”, pelo contrário, é justamente pelo fato do cenário de conflito se deslocar 3 para o espaço urbano 4 que novas possibilidades se abrem.

Espaço urbano é produto do conflito. De diversas e incomensuráveis maneiras. Em primeiro lugar, há a ausência de uma fundação social inquestionável. O desaparecimento dos produtores de certezas torna o conflito um aspecto inextrincável e permanente de todo espaço social. Em segundo lugar, a imagem de um espaço público sem d ivisões, construída pelo discurso do urbanismo conservador é, ela própria, produzida por meio da div isão constituída pela criação de u m exterior. A percepção de um espaço como algo coeso não pode ser separada da noção daquilo que o ameaça: aquilo que se procurará excluir. Por últ imo, o espaço urbano é produzido por conflitos socioeconômicos específicos; que não devem ser simp lesmente aceitos, sem reserva ou com pesar, como a ev idência da inevitabilidade do conflito, mas devem, pelo contrário, ser polit izados – abertos à contestação como parte de relações sociais, e, portanto, passíveis de modificação, de opressão social. (DEUTSCHE, Rosalyn. Evictions : Art and S patial Politics, The MIT Press, 1998.)

Se o espaço social é, assim como afirmou Rosalyn Deutsche, produzido e estruturado pelo conflito, então parece pertinente que uma ação que se almeje pública parta de uma política espacial democrática. Esta parece ser a hipótese mais plausível para situar arquitetura e arte dentro de um lugar verdadeiramente democrático no perfil da cidade contemporânea, com a pretensão de formar pontos de resistência a toda visão única da cultura para poder superar as fronteiras da linguagem, das disciplinas culturais, das identidades e de seus valores.

3

Esse deslocamento se refere ao cenário de luta anticapitalista que não se restringe mais à estrutura isolada da fábrica. Essa mudança ocorre pela própria expansão dos temas reiv indicados e em função da nova organizaç ão empresarial fundamentada não mais no flu xo de mercadorias, mas no flu xo – abstrato – do capital. . 786 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


2.

A Contracultura Posteriormente ao movimento moderno e paralelamente ao surgimento da arte

minimalista uma série de propostas artísticas surgia frente a um olhar crítico diante do atual contexto das cidades. Tratava-se de uma resposta acerca deste senso comum, sobre a tecnologia, o progresso, a estandardização de produtos e do comportamento humano e principalmente sobre o histórico da arte e sobre os elementos estéticos em vigor. Embora essas reivindicações sejam análogas às propostas pelos Minimalistas, por exemplo, essa discussão concentra-se em um tipo de arte mais marginal, que não apenas interaja com o espaço da cidade, mas que de alguma forma crie uma situação de estranhamento e desconforto durante sua experiência. A estratégia adotada contra a construção destes estereótipos era a de colocar o próprio sujeito numa situação de redescoberta. A década de 60 marcou, sem dúvida, uma transformação ao menos nos modos de operação das atividades artísticas. Inúmeros artistas estavam certos de que uma transformação na sociedade só se faria possível através da própria transformação da Arte. E o que se assistiu foram cisões com os modos tradicionais de criação na literatura, música, artes plásticas e teatro. Essas teorias pragmáticas tinham, entre algumas de suas origens, o teatro de Brecht, que por sua vez resgatou de Antonin Artaud, em seu Teatro da Crueldade, a ideia de transformação das relações entre artista e público com ê nfase na experiência corpórea e no espírito desconfortável e constrangedor, como tentativa de diminuir a distância entre ambos.

Nós os convidamos a caminhar conosco e a conosco transformar não somente u ma das leis da terra, mas a lei fundamental. Quando vocês tiverem melhorado o mundo, melhorem este mundo melhorado! Abandonem este mundo! Quando, completando a obra, vocês tiverem transformado a humanidade, transformem esta human idade transformada. Desapeguem-se dela! E t ransformando o mundo e a human idade, transformai-vos. Saibam abandonar a si mes mos! (Bertolt Brecht, “Peça Didática de Baden-Baden”, 1929)

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As obras deste contexto possuem uma predileção por elementos visíveis e efêmeros como tentativa de desconstrução da visão do mundo capitalista. E exatamente por isso, há uma aproximação da vida com a própria arte - live art - como numa espécie de resgate de um ritual artístico que tenta tirar a arte dos “lugares mortos” como os museus, as galerias e os teatros tradicionais, bem como, dotar a obra de elementos cotidianos triviais. A contracultura e o movimento hippie dos anos 60 possibilitaram uma profusão de experimentações cênicas como forma de colocar em prática aquelas propostas humanísticas do período. Surge a figura - e pela primeira vez o termo - performer, um tipo de artista que terá seu corpo como seu principal instrumento. Na realidade, a intenção era um certo tipo de dissolução da figura do artista no contexto da obra, uma espécie de não-arte, uma atitude mais espontânea e mais próxima da vida. Esses artistas acreditavam que era a própria sociedade que naquele momento estava imersa numa vida coreografada e maquinal ditada pelo capitalismo, e era urgente libertá- los dessas amarras através do resgate da não intencionalidade, da obra aberta e, portanto, incerta. Essa ruptura teve reflexos nos mais tradicionais campos da arte. Na música, Satie, Stockhausen e John Cage introduziram o silêncio e o ruído como elementos de composição da obra, bem como, a possibilidade do aleatório e de uma arte não intencional. Na literatura, Ulisses, de James Joyce narrou a epopéia de um cidadão comum e o escritor Vito Acconci transgrediu a forma tradicional ao transpor da página para o próprio corpo como suporte de “leitura” de seu poema. No teatro os happenings levaram a ideia do improviso ao extremo ao propor peças, cujos textos estavam “abertos”, obrigando uma interferência maior por parte do ator e consequentemente do público na obra. Além de encenarem fora do circuito das instituições, os atores destas peças eram, muitas vezes, propositalmente amadores dispensando, portanto, a figura do artista profissional. Embora as referências de práticas nesse período tenha sido extensas, este artigo analisará apenas parte da trajetória de dois artistas, Dan Graham e Gordon Matta-Clark, em virtude da proximidade de ambos com a arquitetura. Além disso, a experimentação destes fornecem hipóteses para o exercício de projeto no ambiente urbano atual, como prova a experiência de dois arquitetos contemporâneos, Peter Eisenman e Bernard Tschumi.

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2.1

Vida e arte

Meu corpo, de fato, está sempre em outro lugar, está ligado a todas as outras partes do mundo e para dizer a verdade está em outra parte que é o além-mundo. Pois é em torno dele que as coisas se organizam [...]. O corpo está no centro do mundo, ali onde os caminhos e os espaços se cruzam, o corpo não está em parte algu ma: o coração do mundo é esse pequeno núcleo utópico a partir do qual sonho, falo, me expresso, imagino, percebo as coisas em seu lugar e também as nego através do poder indefinido das utopias que imagino [...]ele não tem lugar, porém, é de lá que se irradiam todos os lugares possíveis. (FOUCAULT, M ichel . “El cuerpo utópico. Las heterotopías” . Buenos Aires: Nueva Visión, 2009, tradução nossa).

A diluição do artista na obra faz emergir o sujeito que passa de mero espectador para participante da obra. Essa trajetória da conduta do espectador representou o cerne para as performances do artista nova- iorquino Dan Graham (1942 -

) nos anos 70. O artista planejou

aglutinar na mesma pessoa a figura do espectador passivo e do artista ativo - performer. Faz uso, para isso, de influências brechtianas, ao colocar o público num lugar de desconforto. No ano de 1970 Graham realiza algumas obras nas quais é recorrente o uso do vídeo como suporte que cumpre uma função simbólica de espelho na interação do corpo com espaço e tempo. Destas, três obras são fundamentais para a compreensão do contexto de seu trabalho e principalmente para situar os rumos que o artista tomaria em futuras experimentações. A primeira delas Roll era uma exibição simultânea de imagens captadas por duas câmeras, uma estava fixa em uma sala e filmava a performance do artista que rolava no chão com uma segunda câmera à mão. A segunda obra, Body Press (1970-1972) foi outra performance gravada novamente sob efeito de duplicidade. Trata-se da presença de dois corpos, um masculino e outro feminino, dentro de um espaço circular espelhado. Cada um possui uma câmera que registra os movimentos e a presença do outro através de sua reflexão no espelho, que em todo momento está representado por uma imgem deformada da realidade. Apesar da proximidade, os dois nunca se tocam ou se olham, estão exclusivamente em posições invertidas um para o outro. O espectador da obra visualiza estas duas imagens simultaneamente ao momento em que elas são criadas, portanto, num plano único e sem cortes. A mais complexa destas, TV Camera/Monitor Performance esboça uma participação mais efetiva do público que é colocado em cadeiras diante do artista sobre uma mesa com

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uma câmera na mão, semelhante a Roll, mas com uma proximidade maior com o espectador que visualiza sua imagem em tempo real sem ser mediado por um objeto. Entretanto, no decorrer da performance, o artista manipula o tempo instantâneo ao gravar o próprio público através de sua câmera que transmite imediatamente aquele filme para monitor posicionado atrás daquelas cadeiras. A situação colocada pelo artista obriga o público a escolher entre ser o espectador do artista ou de si mesmo, já que mais uma vez o monitor surge como uma metáfora do espelho. As três obras representam uma transformação na forma de apresentar uma performance. De fato, introduzir câmeras e monitores modificam a percepção daquilo que inicialmente era puramente uma interação entre o corpo do artista vs. espectador. De alguma forma essa simplicidade de elementos abria margem para o surgimento de questões e embates que inicialmente não estavam dispostos ali. Questões da ordem do tempo e espaço, história e memória, por exemplo, instigam para distintas interpretações. Em texto escrito posteriormente a estas obras, Cinema e Vídeo: Vídeo como Tempo Presente, parte integrante de Essay on Vídeo, Architecture and Television 5 , de 1979, o artista faz uma analogia entre cinema e a performance televisionada que considera tratar de um tempo presente. Para ele o filme é uma reapresentação editada de outra realidade, para a contemplação individual por pessoas sem relação, enquanto o vídeo representa uma temporalidade imediata e real que coloca um espectador numa condição ativa e capaz de ser alimentado por elementos do ambiente. Em A imagem do Espelho | A imagem do Vídeo, integrante do mesmo ensaio, o artista compara os dois suportes evidenciando que, no caso do vídeo, esse tempo pode ser instantâneo ou sofrer interferências relativas à condição espacial do espectador, mas em qualquer dos casos terá uma duração. Por outro lado, o espelho reflete um tempo instantâneo sem duração. A crítica Rosalind Krauss agrupou algumas obras da videoarte, essencialmente aquelas em que o artista é o próprio objeto do trabalho, no propósito de relacionar as principais divergências destas para as demais obras de arte “convencionais”. Para a autora o ponto

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A análise completa deste ensaio em: SANTOS, F. L. S. ; A LM EIDA, R. G. . Dan Graham: Olhar/ corpo, vidro/ espaço, percepção, cotidiano e cidade.. In: VI Encontro de História da Arte, 2010, Camp inas. Anais do VI Encontro de História da Arte - História da Arte e suas fronteiras, 2010, 2010. 790 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


fundamental de crítica é um inerente narcisismo que se tornou recorrente em algumas obras do período da década de 60 e início de 70. Em “Vídeo: a estética do narcisismo”, texto escrito em 1976, Krauss elege a obra Centers (1971) de Vito Acconci como primeiro indício de sua hipótese: o artista utiliza o vídeo como uma metáfora representativa de um espelho. O trabalho se caracteriza por uma performance com duração de 20 minutos em que o artista indica com seu próprio dedo o monitor do vídeo cuja imagem exibida é a do próprio artista, simultânea ao ato. O que a autora considera uma quebra é o fato de não haver algum tipo de diferenciação entre o medium 6 e o artista. Ao analisar uma obra de arte convencional, seja ela pintura ou escultura, por exemplo, essa distinção entre medium e artista é muito mais clara, pois envolve conceitos técnicos práticos: a tela, a tinta, os materiais empregados para a criação de uma obra que terá como elementos mais subjetivos a interpretação e decodificação por parte de quem a observará num momento futuro. Ainda seria preciso confrontar uma performance em si com uma performance “televisionada”: ao pensar nos elementos que constituem as duas, a ausência de um suporte na performance transforma o corpo do artista no próprio objeto, abrindo inúmeras possibilidades de leitura da obra; na outra ponta estaria a performance com a presença do vídeo. Para Krauss era como se ao lançar mão dessa ferramenta o artista estivesse fec hando a obra ao invés de abri- la às possibilidades de leitura. Nasce daí a analogia do artista à Narciso e do vídeo ao espelho e o confronto da obra passa a ser interno e pessoal.

No caso de obras com imagens gravadas, o corpo do próprio artista foi o mais frequente. No caso das videoinstalações, foi mais usado o corpo do espectador participante. Não importa que corpo tenha sido selecionado para a ocasião, há outra circunstância que está sempre presente. Diferente das outras artes visuais, o vídeo é capaz de gravar e transmitir ao mes mo tempo, produzindo imediato feedback . Portanto, é como se o corpo estivesse centralizado entre duas máquinas, que abrem e fecham parênteses. A primeira delas é a câmera; a segunda, o monitor, que reprojeta a imagem do performer co m imed iatis mo de espelho. (KRAUSS, Rosalind. Video: The aesthetics of narcissism. New York, Springer, 1976, p.146)

Embora este não seja um espaço para um aprofundamento nas teorias psicanalíticas, ainda assim, seria pertinente citar a analogia proposta por Krauss ao comparar o artista com o

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A autora opta pela utilização do termo orig inal no latim. 791 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Narciso de Lacan, pois para a psicanálise a auto-reflexão só se inicia quando o sujeito se liberta desta imagem retida no seu próprio “espelho”. Na videoarte, mesmo que de maneira distinta, esse aprisionamento pode acontecer de duas formas: a primeira causada pela não separação entre sujeito e objeto, enquanto a segunda seria uma suspensão da temporalidade. Para Krauss isso colocaria o espectador de videoarte no espaço suspenso do narcisismo. Para o artista Dan Graham “os espelhos refletem o tempo instantâneo sem duração (…) enquanto os vídeos fazem exatamente o contrário, ligando ambos numa espécie de fluxo duracional do tempo”7 que muitas vezes pode representar uma armadilha para a própria compreensão da obra segundo alerta o autor Renato Cohen.

A prisão à míd ia, ao suporte, ao mero referencial leva à exacerbação de corpos sem alma, estátuas sem vida: a ideia de separação / frag mentação é associada às teorias econômicas do século XX que compartimentalizam o homem e m especialização e limites dos quais ele não pode escapar. E os artistas caem nessa armadilha. Caminhamos para uma arte total, para uma transmídia, para a eliminação de suportes que impedem ou que se tornem mais importantes que a própria transmissão da mensagem artística. (COHEN, Renato. “Performance como Linguagem”. São Paulo, Perspectiva, 1989, p. 163)

Essa armadilha da utilização do vídeo como suporte não foi negligenciada pelo artista, capaz de perceber que o fracasso tinha uma relação muito mais próxima com o entorno da obra do que com a ferramenta em si. Se a estratégia era a reflexão do sujeito, era fundamental que seu meio estivesse também visível. Essa aproximação com o espaço da cidade invariavelmente o aproximou da arquitetura.

2.2

Arte e cidade

No texto Art in relation to architecture, também de 1979, Graham traça novamente um paralelo de seus pensamentos com relação ao espaço da cidade. Nele, desenvolve uma série de críticas mais diretas ao contexto político e econômico americano e demonstra um profundo domínio sobre a disciplina arquitetônica ao enumerar uma série de julgamentos à arquitetura moderna. Para ele, os instrumentos de validação da arquitetura moderna agiam dialeticamente sobre a mesma: ao mesmo tempo em que a emancipa – construtivamente – também contribui 7

GOLDBERG, Roselee. “Performance Art”. Madrid, Destino, 1979, p. 152 792 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


para a própria validação do capitalismo. Aquela negação aos estilos históricos representa um rompimento com a própria história, dotando a arquitetura de um purismo formal e temporal. Nos EUA, o Estilo Internacional disseminou e propiciou a sua prática através do ensino nas escolas de arquitetura enquanto que o capitalismo americano o absorveu ideologicamente. Essa racionalidade objetiva, neutra e desenraizada condiz exatamente com o capitalismo de exportação americano. Esse limiar tão tênue entre a revolução e a validação do poder capitalista também fez parte do universo artístico minimalista – de maneira semelhante à arquitetura moderna – assim como da Pop Art. Esta última, entretanto, se diferencia ao emergir dos mesmos elementos da instituição que critica. Essa semelhança é a responsável pela incorporação da pop art pela própria mídia. Obviamente essa duplicidade ora é entendida como crítica, ora é absorvida como produto, sem que haja algum tipo de reflexão, mas ainda assim, atinge de forma muito mais precisa o alvo de sua crítica. Um paralelo com a arquitetura poderia ser apontado pelos trabalhos de Robert Venturi que analogamente constrói suas obras através dos excessos americanos. Seus projetos são marcados tanto por uma ironia à arquitetura moderna com suas formas “limpas”, quanto por uma ironia à própria sociedade americana. Em seu discurso revela ser impossível retratar a realidade em uma obra de arquitetura 8 como forma de contestação e acredita que esta somente possa se feita por meio da contradição. 9

O desafio do trabalho da arte ou de arquitetura não é a resolução de conflitos sociais e ideológicos em u ma bela obra de arte, e também não é a construção de um novo contracontexto; em vez disso, o trabalho de arte dirige sua aten ção para conexões com d iversas representações ideológicas - revelando a variedade conflituosa das interpretações ideológicas. Para fazer isso, o trabalho usa uma forma híbrida, que participa tanto do código popular dos meios de comunicação de massa quanto do código “elevado” da arte e da arquitetura, tanto do código popular do entretenimento quanto da análise política da forma com base teórica, e tanto do código da informação quanto do código esteticamente formal. (GRA HAM, Dan. A Arte em relação à arquitetura. In Escrito de artistas: anos 60 / 70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p. 450)

Retomando um pouco aquelas discussões sobre a intenção que colocam a sociedade/público diante de sua própria realidade, novamente aquela metáfora da obra de arte como espelho - que escancara a contradição e o conflito -, reaparece na trajetória de

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Crit ica direta ao slogan “less is more” do arquiteto moderno Mies Van der Rohe 793 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


experimentações de Graham. O grande salto acontece justamente num momento em que suas experimentações extrapolam o espaço da galeria e do museu e invade e se define no espaço da cidade. É interessante notar que boa parte dos conceitos aplicados naquelas experimentações com vídeos são utilizados em outras obras, nas quais, entretanto, a participação do espectador sofre uma transformação capaz de deslocá- lo de sua posição passiva. Embora fisicamente compostos de elementos simplificados, suas obras se adensam na medida em que o corpo “refletido” não é tão somente o corpo do artista dentro de sua própria natureza, mas o corpo em sentido mais amplo que envolve um sem número de elementos e conflitos presentes na cidade. Metaforicamente era como se ao sair do ambiente privado – do próprio corpo ou da galeria – a obra se aproximasse a uma esfera que é, de fato, pública. Essa invasão do espaço social da cidade englobou inúmeras obras, inclusive em períodos mais recentes da arte. O autor José Miguel Cortés agrupa de forma precisa três obras que resumem os fundamentos que tornariam esse conjunto de obras como mais próximas do universo urbano contemporâneo. A primeira delas é uma série de fotografias feitas na cidade de Nova Jersey em 1966, que simulam muito bem o programa típico de uma obra minimalista. Entretanto, as imagens captadas pelo artista representam uma profunda crítica ao formalismo defendido e praticado pela arquitetura moderna daquele período nos EUA. Ao invés de mostrar as imagens de uma paisagem vazia, 10 suas imagens eram carregadas de cenas do improviso humano numa área tipicamente suburbana. O segundo trabalho se refere a uma série de intervenções realidades num ambiente institucional de uma revista. Destas, a Homes for America, publicada em Arts Magazine de dezembro de 1966 a janeiro de 1967 é a mais importante. Nesse período, uma série de fotografias de subúrbios foi publicada de forma a novamente criar um olhar crítico por parte de seus leitores. O que diferencia esta obra da anterior é que estas fotos vinham acompanhadas por textos escritos pelo artista, portanto, interferindo e modificando a leitura da imagem disposta. O conteúdo representava, novamente, uma crítica ao modernismo, à racionalização e à estandardização das construções.

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Referente ao livro Co mplexidade e Contradição escrito pelo arqu iteto em 1966. Novamente uma crítica à arquitetura moderna e a escultura minimalista qu e forçavam cenários puros e libertos de referências. 10

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A terceira análise, apesar de representar apenas um modelo é a que mais precisamente interfere e critica o contexto americano. Alteration to a Suburban House, de 1978 era uma casa tipicamente miesiana 11 , na qual o artista insere um espelho em seu eixo interno. Quem a observasse em sua face externa estaria, metaforicamente, dentro da mesma. Ironia e analogia à arquitetura moderna e à forma como o próprio sistema capitalista controla e manipula sua sociedade. A estratégia de tornar visível o interior da casa 12 transformou-se em prática na obra do artista americano Gordon Matta-Clark (1943-1978), cujo objetivo principal era o de escancarar as estruturas mais íntimas da arquitetura, através da subversão e transgressão da linguagem tradicional. O artista tem como matéria casas e estruturas de edifícios abandonados ou inutilizados, para ele, os signos presentes em edifícios íntegros era m inferiores aos existentes naqueles edifícios decadentes. Matta-Clark, filho de um pintor surrealista, formouse em arquitetura sem, entretanto, nunca exercer sua profissão da maneira tradicional. Sua breve atuação deixa um conjunto de obras reflexivas sobre o papel da arquitetura na construção dos espaços urbanos – físicos ou simbólicos. Na intervenção Spliting (1974) Clark partiu ao meio uma residência comum de subúrbio Nova Jersey. O corte da casa veio acompanhado de uma alteração na base da estrutura que fez com que as partes ganhassem uma inclinação de cinco graus em s ua cobertura garantindo a entrada de luz por essa fresta. São gestos desconstrutivos que imprimem na arquitetura uma questão dialética, que é a criação a partir da ruína. Estes gestos agressivos destruía consigo o conceito tradicional da casa, que sempre esteve ligado ao conforto, intimidade, refúgio e segurança. Através de sua ótica a casa adquire uma imagem de fragilidade e vulnerabilidade, uma espécie de anti- monumento que retrata a debilidade da própria sociedade. Com semelhantes argumentos realizou em Paris a Conical Intersect (1975), uma série de rasgos circulares feitos em edifícios que seriam demolidos por ocasião da construção do Centro Georges Pompidou. As aberturas funcionavam metaforicamente como olhos diante do arrasamento do centro histórico da cidade em função da nova construção. Esse pan-ótico era uma espécie de denúncia da especulação que acontecia no centro da cidade. 11

Refere-se ao “estilo” de arquitetura defendida pelo arquiteto Mies Van de Rohe e era caracterizada por imensos planos de vidro nas fachadas e quase não havia segmentação de ambientes internos: planta l ivre. 12 A visibilidade desse interior não se limitava às formas físicas ou construtivas, a intenção era claramente evidenciar as contradições políticas ou sociais presentes nas cidades americanas daquele período. 795 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


A ação de evidenciar, desfazer ou desconstruir distintos edifícios refletia uma resposta contra as convenções da prática arquitetônica profissional, por isso, o ato de destruir no lugar de construir equivale a uma inversão da doutrina arquitetônica funcional. Essas intervenções contém em si uma demasiada carga política capaz de penetrar além da superficialidade doméstica a fim de escancarar a lógica burguesa presente em sua estrutura. Em todas elas, há um minucioso controle do artista para não arruinar com o edifício. São feitas cisões no limite de um quase desmoronamento, atitude que desmonta a crença de que a obra de arquitetura seja construída para a eternidade. As transformações que operava na arquitetura poderiam ser lidas simbolicamente como possibilidades de modificação da estrutura e de comportamentos sociais. Em Office Baroque (1977) criou uma série de rasgos nas lajes em diferentes níveis de um edifício comercial. Convidava desta forma, para uma crítica mais interiorizada na qual, o visitante era chamado para uma reflexão acerca da organização econômica da sociedade. O fato de trabalhar com uma estrutura já construída demonstra seu interesse em tratar a arquitetura menos pelo projeto e formas, e muito mais por sua função social. Desta forma, derrubou diversos sistemas de representação urbano e social, desmanchando e superando as fronteiras que estratificam e organizam os espaços e o tempo. A ideia era a de transformar a condição estática e pura da arquitetura moderna a fim de romper com os limites da ordem doméstica e urbana, potencializando uma inversão da doutrina arquitetônica funcional.

3.

Cidade e arquitetura O passado demonstra que houve a procura por uma arquitetura que negasse a forma fixa

e rígida em favor de uma obra em contínua metamorfose e que fosse capaz de se relacionar com as dimensões políticas e culturais da cidade. Entre as inúmeras vertentes daí surgidas, uma delas se caracterizou pelo resgate aos estilos históricos e, obviamente, isso não representaria apenas um retorno ao passado, mas significava uma critica muito mais irônica daquela negação moderna à memória. Arquitetos como Robert Venturi e Aldo Rossi incorporaram esse conceito ao extremo propondo obras de conteúdo quase absurdo. Aquela ausência anterior é substituída por um excesso de signos e imagens de elementos históricos

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representados de maneira estilizada. A ironia recai justamente nas técnica s construtivas que se utilizavam da tecnologia para representar uma forma do passado, que aqui eram reproduzidas de maneira muito mais simplificadas, pois o que interessava, de fato, era um resgate da memória apenas e não uma espécie de volta ao passado. Em duas obras pós- modernas, Duck e em o Teatro del Mondo – de Venturi e Rossi, respectivamente – fica evidente a perseguição pelos símbolos na arquitetura entendendo que um signo deslocado de seu contexto original pode assumir outros significados e interpretações. Julio Plaza identifica isso como um fenômeno de “contiguidade por referência”, onde há o deslocamento espaço-temporal do signo. Venturi em seu discurso revela ser impossível retratar a realidade em uma obra de arquitetura 13 como forma de transformação e acredita que esta somente pode ser conquistada por meio da contradição 14 . Ainda no final da década de 70 surgia uma corrente de pensamento filosófica que também buscava um rompimento com a arquitetura moderna, mas que, também nascia em oposição aos pós- modernistas. Tratava-se do pós-estruturalismo, que consistia num conjunto de ideologias pautadas na desconstrução da linguagem. Para eles, a realidade é uma construção social e, portanto, subjetiva, e exatamente por isso, precisa ser analisada de forma mais ampla e aberta para que haja espaço para seus elementos simbólicos. O pós-estruturalismo rejeita qualquer tipo de sistematização, nele, um fato pode ter inúmeras verdades. Na realidade, esse conceito de verdade não excluiria a possibilidade de uma verdade única; a rejeição se faz sobre as verdades absolutas ou os conceitos universais. Exatamente por isso há uma radicalização do conceito de sujeito do humanismo e da filosofia da consciência e desta forma, o sujeito passa a ser uma ficção, uma invenção social e histórica. A criação liv re de significado, arbitrária e eterna da artificialidade, deve ser distinguida daquilo que Baudrillard chamou de “simu lação": não se trata de uma tentativa de apagar a distinção clássica entre realidade e representação -portanto fazendo, mais uma vez, da arquitetura uma série de convenções simuladoras do real; antes, trata-se de fazê-la apresentar-se mais como u ma dissimulação. Enquanto a simu lação tenta obliterar a diferença entre o real e o imaginário, a dissimulação deixa intocada a diferença entre realidade e ilusão. A relação entre a dissimulação e a realidade é semelhante à significação corporificada no disfarce: o signo no qual se supõe não ser o que é - ou seja, um signo que parece não significar nada além de si mes mo (o signo de um signo, ou a negação do que se encontra atrás dele). Tal dissimulação, em arquitetura, pode ser intitulada provisoriamente de não -clássico. 13 14

Crit ica direta ao slogan “less is more” do arquiteto moderno Mies Van der Rohe Referente ao livro Co mplexidade e Contradição escrito pelo arqu iteto em 1966. 797 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Da mes ma forma que a dissimu lação não é o inverso, o negativo ou o oposto da simu lação, u ma arquitetura "não-clássica" não é o inverso, o negativo ou o oposto da arquitetura clássica. (EISENMAN, Peter “The End of the Classical: the End of the End, the End of the Beginning”. Perspecta: the Yale Architectural Journal, 1984)

Esses conceitos foram incorporados na produção de algumas obras de arquitetura a partir da década de 80. O destaque acontece principalmente em obras do arquiteto Peter Eisenman e Bernard Tschumi, graças à efetiva participação em discussões pós-estruturalistas, pela produção teórica e crítica sobre o contexto contemporâneo - e o passado moderno - e evidentemente por sua bem sucedida transfiguração da teoria em atividades práticas.

O que está sendo proposto é uma expansão além das limitações apresentadas pelo modelo clássico para a realização de arquitetura como u m d iscurso independente, liv re de valores externos – clássicos ou quaisquer outros; ou seja, a interseção do sem-significado, do arb itrário e do atemporal no artificial. (EISENMAN, Peter “The End of the Classical: the End of the E nd, the End of the Beginning”. Perspecta: the Yale Arch itectural Journal, 1984)

Para Tschumi a arquitetura estava livre dessa sua “obrigação” histórica de responder pela utilidade, pela ordem e pelo funcionalismo. Segundo ele, todas essas ordens estavam regidas pelo capital e não pela arquitetura, colocando-as, desta forma, numa condição de inutilidade, de desnecessidade. Ao situar a arquitetura nessa condição, criou-se uma aproximação dela com a arte, colocando-a num sistema aberto, pois para a arte, embora existam inúmeros fatores para sua existência, é praticamente impossível encaixá- la dentro de conceito universal de função, mesmo porque a definição sobre a função da arte envolve conceitos e opiniões muito mais abstratas, especialmente em seu contexto contemporâneo.

A arte, hoje, não pode mais ser pensada em termos diacrônicos, pois a própria velocidade de mudança acabou mudando até as formas de produção. O que vemos agora não é mais u ma sucessão de “ismos”, escolas ou tendências como há bem pouco tempo, mas u ma intervenção sincrônica de eventos artísticos e a-artísticos que explodem precisamente com a ideia linear de tempo, tida tanto pela tradição como pela vanguarda. Pode-se pensar a arte contemporânea como uma formidável bricolagem (passada, recente e presente) em contradição não antagônica. (PLAZA, Julio. Mail Art: arte em sincronia. In Escrito de artistas: anos 60 / 70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p. 452)

A transformação da realidade, do contexto urbano moderno para o contexto contemporâneo é a principal causa para a transformação nos moldes da própria arquitetura. As

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obras emergidas daqui fogem completamente daquela geometria cartesia na, incorporam uma certa “confusão” formal, instabilidade e violência, que são características que habitam a própria cidade. Para Eisenman é a nova realidade urbana que obriga às novas formas de operar a arquitetura. Segundo ele o mundo é regido pelo paradigma eletrônico e isso desafia a arquitetura em termos de mídia e estímulo, já que ele prioriza a aparência em detrimento da existência. A mídia criou ambiguidades que não devem ser ignoradas pela arquitetura que, fundamentalmente, ainda se mantém dominada pela mecânica da visão, especialmente a da perspectiva. As concepções de Eisenman tem a intenção de mudar a relação entre corpo e obra e para isso é necessário transformar também a relação entre projeto e espaço real. Desta forma ele cria uma série de transgressões à forma dobrando planos, desfazendo retas ou qualquer outro elemento tradicional da arquitetura. Segundo ele a possibilidade de transformar a forma como as pessoas enxergavam a obras seria somente através da mudança delas próprias. Se o “usuário” tentasse decodificar a obra através de seu repertório formal convencional ele estaria fadado ao fracasso pois a concepção da obra agrega valores até então ignorados por ele. E essa dificuldade na “leitura” o obriga a se desvencilhar das regras impostas pelo sistema – capital, político e midiático. Essas formas complexas também deslocam sua percepção para além da visão, a noção de perspectiva é quebrada e muitas vezes não é possível captar uma imagem síntese da obra, exigindo-se uma percepção muito mais abstrata. E por fim, a ausência do caráter funcional retira a pré-leitura da obra; a ida ao museu, à escola, ao hospital estabelece no imaginário pessoal uma série de regras de comportamento e uso do espaço que se transfiguram em ações muitas vezes mecânicas por parte de quem o utiliza. Ao desutilizar um espaço essas ações passam a não ser mais tão óbvias, exigindo, novamente, uma nova postura pessoal. Os descosntrutivistas acreditam que a arquitetura não deve ser concebida como uma espécie de texto para ser “lido”, pelo contrário, trata-se de torná- la menos comunicativa, confundindo signos ao limite de não se poder mais diferenciar a composição básica de um edifício. É uma espécie de arquitetura caótica onde os materiais e formas são improváveis, análoga a uma pintura de deixa de ser figurativa para tornar-se abstrata. Em termos piercianos é a possibilidade de percepção sem referência ao objeto, e isso é possível graças à capacidade de auto-representatividade do signo. Nesse sentido, há uma certa proximidade de valores entre 799 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


modernos e os desconstrutivistas, nos dois casos, a transformação seria a de dotar a arquitetura de uma certa autonomia. O que as diferencia é o seu conteúdo que no moderno se esvazia e no descostrutivista vaza. Nos dois casos, novamente, há uma crença de que a carga simbólica do edifício não deve ser buscada no passado, na memória, pois ela faz parte do contexto atual, do momento presente. O momento presente é caótico, não em sentido qualitativo, não se trata de tecer julgamentos sobre o contexto atual, mas é caótico pelos excessos de conteúdo e pela velocidade de transformação deles próprios. E é exatamente por isso que a arquitetura não pode se limitar a responder programas ou a simplesmente exercer o seu papel funcional. As cidades continuam tendo suas necessidades – morar, deslocar, trabalhar, descansar – e o arquiteto continua respondendo por elas. Entretanto, nessa mesma cidade emergem novas categorias de interação que se transformam diariamente e parece claro que o manejo deste contexto não poderá continuar sendo feito seguindo regras tradicionais.

Os frag mentos da arquitetura (pedaços de parede, de salas, de ruas, de ideias) são tudo o que realmente vemos. Esses fragmentos são como inícios sem fim. Há sempre uma cisão entre fragmentos reais e fragmentos virtuais, entre memória e fantasia. Essas cisões não têm nenhuma outra razão de ser senão a de passagem de um frag mento para outro. São mais dispositivos de transmissão do que sinais. São rastros, coisas intermediárias. (NESBITT, Kate(org.). Uma nova agenda para a arquitetura: antologia teórica (1965 – 1995). São Paulo, Cosac Naify, 2006, p. 583).

Assim, o método de projeto se desloca da postura tradicional de simples manejo descritivo da forma e passa a incorporar o lugar filosófico pós-estruturalista que considera o espaço um lugar de leitura. Para Tschumi o espaço se constitui através da escrita e o arquiteto está imerso nela e precisa, por isso, abrir caminhos através da escritura. O contexto atual sugere que essa escritura seja uma espécie de labirinto, não havendo, portanto, início nem fim, mas um constante movimento de transformações. O confronto tempo e espaço não faz mais sentido hoje, pois se vive num espaço da escritura e o ato de escrever é a nova forma de vida. Seu projeto para o Parc de La Villette se transfigura como a transcrição dos conceitos defendidos por Derrida 15 . Aqueles objetos dispostos no parque são escrituras caóticas, desprovidas de função, início ou final. São labirintos por onde, como eventos, se movem os 15

Filósofo pós-estruturalista. 800 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


corpos e segundo o próprio arquiteto, é através desse movimento que são produzidos espaços, “é a intromissão dos eventos nos espaços arquitetônicos”. 16 Esses eventos transformam-se em cenários esvaziados de questões morais ou funcionais 17 , mas são, entretanto, inseparáveis do contexto no qual se inseriu.

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TSCHUMI, Bernard. The Pleasure of Architecture. Architectural Design, 1977 Essa noção de uso do espaço também é quebrada, pois a forma não incorpora qualquer tipo de uso ou função pré-determinada. 17

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A PAISAGEM NA CONTEMPORANEIDADE: uma revisão do gênero pictórico a partir do belo, do sublime e do pitoresco e a atitude da “caminhada” como constituição para uma poética Wagner Leite Viana

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Resumo: Neste artigo levanta-se questões sobre a percepção e representação da natureza no gênero paisagem destacando na observação do natural a presença das ideias estéticas que impulsionam ou alimentam a prática da observação e a importância do conhecimento empírico dos lugares. A constituição do procedimento das “caminhadas” (visita aos lugares) “naturais” torna-se, no século XX, um importante elemento para a composição de uma poética da natureza e formador das categorias cognitivas mobilizadas a partir do conceito de paisagem, donde se alcança um lugar nas reflexões sobre as relações com natureza, e suscita-se o levantamento das ideias sobre a presença da natureza na arte e o caráter desta presença, contribuindo para o debate contemporâneo sobre a percepção e representação da natureza na Arte, assim co mo propõe uma revisão sobre o lugar deste gênero. Palavras-Chave: Percepção da natureza na arte. Gênero paisagem. Caminhada como atitude estética. Poéticas da natureza na contemporaneidade. Abstract: This paper gets up issues about perception and representation of nature in the landscape genre emphasizing on observation of nature and the aesthetic ideas that propel or feed the practice of the observation and of empirical knowledge of places. The const itution of the procedure "walking" (visit to natural places) becomes, in the twentieth century, an important element in to compose a poetic of nature and formation of the cognitive categories mobilized from the landscape concept, from where it reach a space in the reflections on relations between art and nature, and raises up the lifting of ideas about the presence of nature in art, contributing to the contemporary debate about perception and representation of nature in the Art, as well as proposing a revised landscape genre. Keywords: Perception of nature in art. Landscape genre. Walking as aesthetic attitude. Of nature in contemporary poetics.

1. A representação da natureza na tradição europeia: a hie rarquia do gênero pictórico paisagem e os conceitos do belo, do sublime e do pitoresco Na Europa a hierarquia do objeto a ser representado criou uma hierarquia entre os gêneros pictóricos. Na era cristã até o século XIV temos uma pintura narrativa ou icônica representando uma história profana ou religiosa. A partir do XIV – XV e principalmente no XVI vemos a retomada de temas mais específicos como o retrato (principalmente a imagem de doadores), a natureza- morta (evocando o efêmero dos prazeres da vida) e a paisagem (Veneza do século XVI). Esta especialização do trabalho do pintor pode ser contada de um 1

Doutorando do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da ECA-USP, na linha de pesquisa processos de

criação, área de concentração poéticas visuais.

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ponto de vista geográfico e religioso, já que mais ao sul, latino e católico atingido pela contrarreforma tem-se o desenvolvimento de uma pintura de história, principalmente religiosa e ao norte atingido pela reforma, onde os temas religiosos são proibidos, tem-se o desenvolvimento do retrato e natureza- morta, ou ainda a pintura de gênero (evocação da vida cotidiana). Na hierarquia dos temas estabelecia-se um alto posto à pintura histórica, pois lidava com a moral, ou seja, o homem em sua nobre condição; em seguida vinha o retrato, a pintura de gênero, a pintura de paisagem e a natureza- morta. Esta classificação servia como referência para o ensino acadêmico e para o estabelecimento de valores no mercado de arte. O gênero da paisagem irá, no século XVIII, desempenhar uma função importante na reflexão artística, principalmente entre os alemães Philipp Otto Runge ou Caspar David Friedrich, artistas que foram além da simples ideia de imitação da natureza, criando na pintura de paisagem um espaço para a projeção de sentimentos, a partir do recém criado conceito de sublime na filosofia de Kant, privilegiam o sentimento evocado pela paisagem como maneira de comunicar os grandes temas humanos sem recorrer à uma representação histórica exemplar. Goethe foi um dos grandes entusiastas deste gênero, partia de um pensamento clássico e idealista para refletir sobre as relações entre arte, ciência e natureza. O interesse pelo gênero surgiu, durante uma viagem, quando conheceu o pintor de paisagem alemão, residente na Itália, Jacob Philipp Hackert (1737- 1807), tornou-se aluno do pintor aprendendo os princípios da pintura de paisagem. De acordo com Cláudia Valladão de Matos, num texto sobre Hackert, Goethe e a pintura de paisagem: Goethe entende a ciência co mo conhecimento sobre a forma. A lei, a ordem específica que rege um fenômeno na natureza, deveria, portanto, ser buscada na fisionomia do próprio fenômeno. O olhar torna-se o instrumento essencial do cientista, que trabalha fazendo a operação de separar aquilo que lhe parece d iferente e juntar o semelhante. Porém, co mo a essência do fenômeno encontra-se nele mes mo, a exp ressão última da ordem, ou lei natural, revelada nesse processo não poderia caber à ciência, que procede semp re de forma abstrata, mas só poderia ser exposta plenamente na arte, ou seja, nu ma i magem da natureza. (Mattos, 2010: p.33, 34)

O pensamento de Goethe sobre a observação da natureza sugere-nos que a arte pode alcançar instâncias de comunicação, sobre a ordem do natural e suas leis. A imagem da natureza produzida pela arte permite o acesso ao seu significado ligado a uma determinada 804 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


ordem do universal. Esta ânsia de Goethe por uma busca do entendimento da ordem natural através da arte pode-se relacioná- la ao impulso clássico da ordem, harmonia e proporção que serão a base visual das formulações sobre as acepções do belo que o mundo da arte viu reduzir-se em sua validade universal, desde o século XIX e fundamentalmente no século XX. Por outro lado, encontramos no pensamento de Goethe a importância do conhecimento empírico dos lugares, constituído no procedimento das “caminhadas”, um importante elemento para a composição de uma poética da natureza e formador das categorias cognitivas mobilizadas na pintura. O procedimento das caminhadas ingressa definitivamente na arte do século XX como parte fundamental de uma poética da natureza, como se pode perceber nos trabalhos de Robert Smithson que solicitam novas categorias de entendimento sobre as noções clássicas. No plano estético, esta oposição ao belo universal faz necessário ra strear as origens anticlássicas das vanguardas, posto que existem algumas tendências da arte contemporânea que não respondem às categorias do belo e do sublime. Há que se pensar a importância do conceito de pitoresco, publicado em 1794 pelo escritor e aquarelista William Gilpin que o propôs como categoria de beleza aplicada para o gênero da paisagem (que abarca qualidades matéricas como o rugoso, o áspero, o disforme, o irregular, o diverso, o tosco) e permite indagar o trabalho de Smithson que produziu os earthworks a partir de viagens realizadas pelos desertos americanos, tomando notas, realizando fotografias e escrevendo artigos.

2. A atitude da “caminhada” como constituição para uma poética do gênero paisagem na conte mporaneidade Dentro da tradição ocidental das caminhadas encontra-se a figura de Petrarca que no ano de 1336, ascendeu ao cume do monte Ventoux e registrou a primeira impressão escrita do homem ocidental sobre o alto de uma montanha:

Primeiro, contando com a surpreendente qualidade do ar e o efeito da grande extensão da paisagem ao meu redor, fiquei imóvel, deslumbrado. Contemp lei as nuvens aos nossos pés, e o que havia lido sobre os montes Atos e Olimpos me pareceu menos incrível diante das coisas que agora eu mesmo via de uma montanha menos famosa... Os alpes, escarpado e coroado de neve, pareciam erguer-se muito 805 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


próximos, apesar de estarem realmente a g rande distância.(História do montanhismo, 2012)

Neste trecho, o autor revela a percepção da escala humana como referência para a constituição da paisagem, a partir do deslocamento e presença do corpo no espaço dá-se a formação da paisagem como ponto de vista, situação, orientação e distância. O século XVIII na Europa foi marcado pela prática do Grand tour, viagem que formaria parte do processo de aprendizagem de indivíduo culto. Neste século, ainda, pode-se citar o conceito de pitoresco proposto por William Gilpin a partir das viagens pitorescas, atribuindo à viagem o valor de instrumento para a apreensão das experiências vividas pelo viajante. Este conceito foi importante também, para as viagens empreendidas à America e outros continentes, resultando nas inúmeras publicações no século XIX de “viagens pitorescas”, compostas por imagens e textos sobre os lugares, a natureza, etc. O conceito de pitoresco foi revisto e atualizado pelo britânico, Christopher Hussey, especialista em paisagismo, que publicou em 1927 um livro intitulado “The Picturesque”, recuperando o interesse pelo conceito no inicio do século XX. Passamos também pelo período das flanâncias (flânerie) entre meados do século XIX e inicio do século XX (representado na figura do flâneur de Baudelaire). As deambulações dadaístas e surrealistas, caracterizadas pela ida a lugares banais, partindo da ideia de abandono ao inconsciente, formulando o espaço como elemento ativo, organismo vivo que penetra na mente, invocando imagens. Ou ainda, as derivas urbanas nascidas das errâncias voluntárias, propostas pelos situacionistas, principalmente na figura de Guy Debord, constituindo o espaço a partir da ideia de psico-geografias. A revisão destes períodos é feita pelo arquiteto, Francesco Careri no livro “Walkescapes: el andar como práctica estética” publicado em 2002, no qual o autor defende que “as caminhadas” tem produzido ao longo da história, noções para a arquitetura e a paisagem, mesmo quando esquecida pelos arquitetos é reativada pelos poetas, filósofos e artistas. Para este autor o andar pode ser encarado como ferramenta crítica para olhar a paisagem, pois o andar é uma forma simbó lica de transformar a paisagem ao modificar os significados do espaço atravessado. A realização de um percurso guarda um si a ação de

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atravessar, a potencialidade arquitetônica gerada pela marca no espaço atravessado e a narrativa no relato do espaço atravessado. Na arte do século XX estes aspectos foram explorados por escultores como Carl André, Richard Long e Robert Smithson entre as décadas de 60 e 70; e por escritores como Tristan Tzara, André Breton (anos 20 e 30) e Guy Debord nos 50. Estes artistas partem das ações dadaístas, marcadas pela negação e pelo rótulo de antiarte, e procuram superá- las. As incursões dadaístas viam a cidade como cidade da banalidade: ... que ha abandonado todas las utopías hipertecnológicas del futurismo. La presencia frecuente y las visitas a los lugares insulsos representan para los dadaístas un modo concreto de alcanzar la desacralización total del arte, con el fin de llegar a la unión del arte con la vida, de sublime con lo cotidiano. (Careri, 2002, p.73)

Partindo das visitas dadaístas é necessário clarificar as outras propostas de “caminhada” considerando as relações que estes grupos buscaram com outros campos do saber. O conceito de expansão, ou ampliação de campo proposto por Rosalind Krauss no artigo “A escultura no campo ampliado” publicado no número 8 da revista “October” na primavera de 1979, pode ser aplicado ao ato da caminhada e como foi proposta desde as vanguardas artísticas. Neste conceito propõe-se uma ruptura com as condições vigentes no modernismo e a ampliação de campo caracterizaria o território do pós-moderno em dois aspectos: na prática dos próprios artistas e no meio de expressão. Os artistas que passaram a atuar dentro deste registro iniciaram uma práxis, não mais definida dentro de um meio de expressão, como no modernismo, mas relacionada a operações lógicas dentro de um conjunto de termos culturais utilizando vários meios expressivos. Neste artigo a autora discorreu sobre trabalhos produzidos a partir da década de 60, e Francesco Careri se vale desta ideia para interpretar as diferentes formas que a caminhada foi admitida desde as vanguardas. André Breton parte da antiarte Dadá, para o surrealismo por meio de uma expansão para a psicologia, quando utilizava a palavra deambulação, busca enfatizar a ideia de desorientação e abandono ao inconsciente: El viaje, empreendido sin finalidad y sin objetivo, se convertió en la experimentación de uma forma de escritura automática en el espacio real, en el errabundeo literário/campestre impreso directamente en el mapa de território mental. (Careri, 2002, p. 82). 807 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Os situacionistas partem para um urbanismo unitário por meio de uma expansão para a política. Com a ideia de perder-se pela cidade como forma de antiarte e meio estético e político para subverter o sistema capitalista do pós-guerra, propõe a palavra deriva: ...la derive, uma actividad lúdica colectiva que no solo apunta hacia la definición de las zonas inconscientes de la ciudad, sino que también se propone investigar, apoyándose em el concepto de “psicogeografia”, los efectos psíquicos que el contexto urbano produce en los individuos. (Careri, 2002, p. 91,92). A land art transformou o objeto escultórico em construção do território por meio de uma expansão para a paisagem e a arquitetura. Destaca-se a importância do artigo “Talking with Tony Smith” publicado na artforum de dezembro de 1966, que continha uma entrevista concedida a Samuael Wagstaff, nela, Smith, relata um passeio de carro por uma estrada ainda inacabada na periferia de Nova Yorque, a New Jersey Turnpike road: When I was teaching at Cooper Un ion in the first year or two of the fifties , so meone told me how I could get onto the unfinished New Jersey Turnpike. I took three students and drove from somewhere in the Meadows to New Brunswick. It was a dark n ight and there were no lights or shoulder markers, lines, railings or anything at all except the dark pavement moving through the landscape of the flats, rimmed by hills in the distance, but punctuated by stacks, towers, fu mes and colored lights. This drive was a revealing experience. The road and much of the landscape was artificial, and yet it couldn't be called a work of art. On the other hand, it d id something for me that art has never done. At first, I d idn´t Know what it was, but its effect was to liberate me fro m many of the views I had had about art. It seemed that there had been a reality there that had not had any expression in art.( Wagstaff, 1966 Apud: Careri, 2002, p. 121)

Neste relato Smith propõe a suspensão dos valores estéticos tradicionais para o entendimento de novas categorias geradas por novas percepções do espaço, o espaço artificial da rodovia e da paisagem marcada pela presença de colinas, torres e luzes coloridas não podia ser chamada de arte, entretanto, tinha produzido em Smith uma experiência como de uma realidade que ainda não havia tido uma expressão na arte. Para Careri: La calle es vista por Tony Smith como dos possibilidades distintas, que serán analizadas por el arte minimalista y por el Land art: la primeira es la calle como signo y como objeto em el cual se realiza la travesia; la segunda es la propia travesia como experiencia, como actitud que se convierte en forma. (Careri, 2002. p. 120,121) Pode-se destacar da experiência descrita por Smith a tomada de consciência d as 808 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


formulações artísticas que logo depois iriam retirar o objeto e a atitude artística dos espaços tradicionais, galerias e museus, para ocupar o espaço vivido e as grandes dimensões da paisagem.

3. Considerações finais O procedimento da “caminhada” como forma simbólica de transformação da paisagem propõe questionamentos sobre a constituição de uma poética do gênero ligada à apresentação e percepção da natureza na arte contemporânea. No texto “A Invenção da Paisagem”, a crítica de arte, pintora, filósofa, escritora e docente na Université de Picardie, na França, Anne Cauquelin realiza um discussão sobre a ideia de paisagem como equivalente à de natureza, informada por uma prática pictórica ocidental que no curso histórico foi dando forma às nossas categor ias cognitivas e percepção espacial. Formula a ideia de paisagem como uma construção formada por dados perceptuais que mantém um contato estreito com os dados do ambiente físico. Sendo que a noção de paisagem e sua realidade percebida é um objeto cultural, uma invenção. A percepção artística das relações entre arte e natureza produz-se por meio de uma síntese operada no pensamento visual que torna possível o acesso a significações amplas sobre a natureza, figurando como duplo (prolongamento do natural) ou rival (contraposto ao natural), no entanto, constantemente numa relação de transformação da natureza e da paisagem, uma relação tensa e sedutora entre: a arte e a vida, a arte e o real, o artificial e o natural.

A caminhada posta como experiência estética, ao possibilitar modificações nos

significados dos espaços atravessados, permite a elaboração de uma imagem artística informada pela cultura, donde se reenvia o olhar humano ao mundo, ou seja, humaniza-o. A imagem artística figura como artifício que inaugura um tipo de conceituação sobre o campo vivido. Esta conceituação põe à vista as formas históricas de percep ção da natureza, propondo novos entendimentos para a paisagem na arte contemporânea. Neste sentido, o levantamento das ideias sobre a presença da natureza na arte contribui no debate contemporâneo, sobre a ideia que fazemos da natureza, assim como instigam uma revisão sobre as práticas artísticas ligadas ao gênero pictórico paisagem. Construído no 809 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


trânsito entre o dado empírico, do mundo vivido, e o dado artístico que figura ante uma tradição, doadora de conceitos sobre a natureza.

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