O inferno é a pátria do irreal e dos que procuram a felicidade. É um refúgio para aqueles que fogem do céu, que é a pátria dos senhores da realidade, e para aqueles que fogem da terra, que é a pátria dos escravos da realidade. Bernard Shaw, Man and Superman
A paisagem anterior LUÍS PEDRO CABRAL
Há qualquer coisa de gótico na ausência. Uma sombra quieta, um universo retroactivo, uma perfeita imperfeição, a absolescência travestida de nada, uma espécie de heterónimo do tempo, uma hidra numa luta de reflexos com a memória visual. A imagem num blind-date com a realidade. Como se esta procurasse constantemente o seu avatar. Um edital da alma, uma gota de ancestralidade, um caminhar antropomórfico, névoa seminal, simetria assimétrica, as estrias dos nossos desertos, a vida, desolação habitada, olhar, arquétipo de todas as fronteiras, a descoberta, a fuga, o espelho, a prisão, o universo domesticado, profano, a intersecção, a luminosidade, o sagrado, a matéria da memória, a beleza do óbvio, o ciclo, a teia do abandono, a imortalidade, a propriedade, a pureza, o silêncio, o céu, o infinito detalhe, absoluta energia, efémera, a filigrana dos dias, o eterno retorno, o respirar. Sente-se a existência, pressente-se a gente, escorço de vida num vago heterónimo de tempo. Como perduram estas imagens, ondulando entre universos de brilho e de cor, quanto mais negro é o fundo dos nossos dias, entre-espaços, como se levitassem, em lugares hipnóticos de limbo. A vida na sua estação unívoca, multidimensional. Lugares que estão e não estão. Silêncios que não são e são. Pequeníssimos detalhes de eternidade, quase telepáticos, como um augúrio dos dias que passaram e a sinopse de dias por passar. A vida decantada na hermenêutica do vazio e, neste, as suas construções, como se só o espaço as habitasse, com a Humanidade em transumância para os condomínios da solidão, deixando apenas os esquissos da sua desumanização. Na ortodoxia do sossego reside o nosso caos de estimação. Raros os traços em que o que não se vê se vê tão bem. Num beiral, o esboço de um sorriso. Num lintel, uma palavra perdida. Numa pedra, um arrepio feiticeiro. Na esquadria, leveza. Na interrupção, movimento. Na oferta, demanda. Nos ramos, brisa. Na fuligem, paisagem. No contraste, estrada. No padrão, labirintos psicadélicos. Nas lanças, exércitos sem fim. No horizonte, caminho. Nas ruas desertas, a sua gente. Nas sombras, o olhar. Nas folhas caídas, a vida exactamente como é. Nas esquinas, a condição humana. Uma conjugação de harmonias que colidem numa explosão inseparável, implodidas numa circunstância que se desintegra em universos paralelos, sem outro tempo que este. Pode parecer estranha a resolução do invisível, a nitidez do que não está, na razão de uma míriade a preto e branco, como se a ausência não tivesse passado, como se não fosse este o retrato absoluto da sua natureza. Não há um único dia em que a vida não passe. Todos os dias, a morte desce os seus degraus, como uma diva arrivista no plateau de todas as existências, com as suas lantejoulas a reflectir caleidoscópios de cinzas, à luz de uma antropologia perdida. A memória, pura e dura, nesses recantos secos e melancólicos, nesses estranhos sítios tecnicolor, nesses buracos negros nos lapsos de um tempo eternamente seduzido pela sua intemporalidade. Longe, lá longe, onde daríamos tudo para voltar. Nós, a paisagem anterior.
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RISCO BRANCO RISCO Fotografia de Filipe Faria Edição Arte das Musas Em parceria com Mountain Mission Design e Paginação Filipe Faria 1ª Edição Lisboa 2022 Impressão Printer ISBN 978-989-95983-6-2 Depósito Legal 496817/22 Tiragem 1000 exemplares numerados e assinados pelo autor Financiamento Ministério da Cultura Direcção-Geral das Artes Garantir Cultura 2021 © 2022 Filipe Faria
A partir do projecto original de Filipe Faria e Tiago Matias
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MM— MOUNTAIN MISSION
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