"Aqui estão as palavras todas" de Filipe Faria

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AQUI ESTÃO AS PALAVRAS TODAS FILIPE FARIA ENSAIO SOBRE A PAISAGEM

MUSEU DOS SONS PERDIDOS




Paisagem sonora sobre paisagem Idalina Gameiro (n.1974) Penha Garcia Idanha-a-Nova Som sobre fotografia


AQUI ESTÃO AS PALAVRAS TODAS FILIPE FARIA ENSAIO SOBRE A PAISAGEM

MUSEU DOS SONS PERDIDOS


Paisagem Sonora e Fotografia Filipe Faria Edição Arte das Musas Colecção Museu dos Sons Perdidos Em parceria com O Homem ONG Design e Paginação Filipe Faria Recolha de textos cantados gentilmente cedida por Idalina Gameiro Um projecto Arte das Musas Em parceria com Município de Idanha-a-Nova \UNESCO Creative City of Music Com o apoio Ministério da Cultura \Direção-Geral das Artes 1ª Edição Idanha-a-Nova 2022 Impressão Printer ISBN 978-989-95983-8-6 Depósito Legal 500207/22 Tiragem 1000 exemplares Arte das Musas Centro Empresarial de Idanha-a-Nova 6060-182 Idanha-a-Nova www.artedasmusas.com © Arte das Musas 2022 Todos os direitos reservados


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Colhi 1 moio de trigo. Quanto é 1 moio de trigo? São 15 fanegas. Quanto é uma fanega? São 4 alqueires. Quanto é 1 alqueire? São 15 litros. De semente. Às vezes, quando íamos a cozer o pão, quando íamos amassar, as pessoas diziam assim: "Agora tenho cá pessoal a trabalhar, tenho aí a ceifa... tenho que cozer uma fanega de pão". Uma fanega eram quatro alqueires. As pessoas iam receber a maquia. Trabalhavam no campo e a maquia era a paga. Recebiam em semente, não pagavam em dinheiro: "Recebo uma fanega", "Recebo um moio"...



Ensaio: A paisagem tem a sua própria voz, feita de tentativa, vitória, persistência, engano, desistência. Exercício: A paisagem é memória, feita de tempo, de ausência, de presença. É hoje. Experiência: Este é um diálogo entre a voz desta paisagem, Penha Garcia, e a de Idalina Gameiro, nascida, aqui, em 1974. Esboço: É um ensaio sobre a paisagem. Sobre o poder da paisagem. Prova: Som sobre fotografia. Invisível sobre sais de prata. Ensaio: A voz não tem corpo nem cara. O corpo (ou a paisagem) tem esta voz. Tempo a passar. E a paisagem, um veículo. Dizem que Guglielmo Marconi (1874-1937), físico e inventor italiano, padrinho da tecnologia rádio, acreditava que o som não morre. Sonhava ouvir os sons perdidos, tocar nessas frequências eternas. Podíamos ouvir tudo. Ouvir a primeira inspiração dos nossos filhos e dos nossos pais. Ouvir o primeiro grito da Humanidade, cada sermão, conselho sábio ou riso de todas as gerações. Ouvir o som grave da primeira erupção ou o canto agudo daquela ave que escapou para longe. Todos nós podíamos ouvir tudo. Ouvir tudo, para sempre. Depois de produzido, o som não morria mas perdia poder, enfraquecia. Estas ondas sonoras, fracas, sem destino preciso, permaneciam eternamente a flutuar. Qualquer som podia, em teoria, ser recuperado. Ouvido pela primeira ou pela enésima vez. Qualquer som de qualquer lugar ou tempo passado. O primeiro e o último. Um som perdido podia ser ouvido, novamente, com o equipamento certo. Um equipamento poderoso. Um que conseguisse ouvir e escolher. Um por inventar. Todos os sons são sons perdidos… ondas que flutuam, independentes de outras vontades, até que alguém as consiga sentir ou sem destinatário. Persistentes. Frágeis. Mudas. Flutuações brutais ou discretas. Gritos ou sussurros. Ruídos. Vozes. Com todas as histórias do mundo. Ainda não foi possível inventar aquele equipamento poderoso com que poderíamos ouvir todos os sons perdidos, mas inventámos a forma de os guardar. Hoje, conseguimos ouvir o dia de ontem, desta ou de outra geografia. Mais ou menos secreto. Enchemos o planeta de sons perdidos. Sons que, dependendo da nossa vontade, podem voltar a ser produzidos. A construção de um Museu dos Sons Perdidos parte daqui... da tentativa de perpetuar as ondas das memórias pessoais e colectivas de uma comunidade... e o seu potencial criativo. Fundador. Reconfortante. Assustador. A paisagem sonora de todos e de cada um, construída pelas biofonias, geofonias e antropofonias de um território… o mundo silencioso a partir do qual nasceu. E a imagem, um veículo. FILIPE FARIA



Há em cada um de nós tantos silêncios e em cada silêncio tanto de nós. O silêncio não é um corpo estranho que por aí anda a flutuar, não é um pedaço de irrealidade perdida em labirintos de melancolia, não é dor, mas pode ser, não é corpóreo, nem deixa de ser, não é como se fosse a fantasia anatómica de uma alma ou a memória de um exoesqueleto, não é exactamente uma entidade, mesmo que por vezes pareça. O silêncio nem sequer é silêncio como se julga que o silêncio é. O silêncio não é silêncio. Nem ao silêncio o silêncio pertence, embora de vez em quando se estranhe. O silêncio é do vasto território do diálogo. Silêncio é comunicação, sendo o som uma suas características indeléveis. Não há silêncio. É impossível. Há uma composição absolutamente magnífica de silêncios, que às vezes são disrupção e, noutras, simples harmonia, quando não é o mesmo, ao mesmo tempo. Seja como for, não é silêncio. É outra coisa. Talvez seja um quadro sinóptico, perfeitamente caótico, de coerência senoidal, minimal, repetitiva. Ou talvez seja pura e simplesmente a ausência de si próprio, numa subjectividade psicofísica. Ou, então, é a percepção. Silêncio não é. Não é fácil observar o território do silêncio, os seus sons, o movimento ondulatório que há em cada detalhe de detalhe, a linguagem que há numa paisagem, como se fosse a natureza que há em nós, quando o que há em nós é apenas a nossa natureza. Até isto tem a sua sonoridade própria, embora nem sempre seja bonita de se ver. É como dar à natureza a faculdade da memória e a esta uma espécie de motricidade humana. É incrivelmente bonito, voltar ao simples, como faz o Filipe Faria neste ensaio sobre a paisagem, preenchendo-a com a sua sonoridade própria, como se resgatasse os sons de todos os silêncios na voz maravilhosa de Idalina Gameiro, que é de Penha Garcia como é da sua gente, do seu território, dos confins do tempo à contemporaneidade. A sua voz é a voz da terra, a voz de todos, a voz do silêncio, a voz da colectividade. A natureza a expressar-se nas suas múltiplas belezas, no seu poder mágico, trágico, de âmago, na sua pureza, na sua rudeza também, perpetuando as frequências irrepetíveis da memória em museologia de som. Vida, portanto. Nada é tão expressivo quanto a paisagem, o poder de todos os poderes, a sua voz, a sua natureza identitária. O som sobre o olhar, paisagem sobre paisagem, um corpo noutro, num corpo só, um território noutro, num território só, viajando através das suas secretas mutações. É como se na imagem se reconstruísse a sonoridade e nesta se reeenquadrasse a paisagem do olhar, numa inconstante racionalidade, imitando a vida, recriando os seus ciclos, em todas as singularidades da sua estranha sincronia. Tantas, tantas paisagens nesta, nunca diferente, nunca igual. A paisagem é um impulso distópico, um desfile prestímano de memórias, na sua individualidade comunitária. A electromagnética do som numa relação feiticeira com a acústica do olhar. Território em diálogo, na sua inquietude, no seu silêncio. Há em cada um de nós tantos silêncios e em cada silêncio tanto de nós. LUÍS PEDRO CABRAL








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Quando ceifas, aquele bocadinho de pão que agarras é uma gavela. Depois metes num montinho pequenino, é uma paveia. Juntas as paveias todas, atas com o nagalho, e fazes [a faixa e] os rilheiros — onde pões aqueles montinhos todos. Fica com uma abertura, como uma serra, pequenina, [um montinho ou uma casa]. Depois juntas a parte toda da semente para o meio que é para ficar tudo junto, com a palha de volta. Quando se acaba a ceifa, carrega-se aquilo. Primeiro ceifas e apanhas com a mão… aquele bocadinho é uma gavela. Depois pões os montinhos no chão, é uma paveia… Depois juntas três ou quatro paveias e, [com] um nagalho feito da própria palha, acrescentas e fazes um nó. [Depois] pões a amolecer o nagalho e fazes aquela faixa com que fazes os rilheiros — aqueles montes maiores — [no restolho]. [Depois fazes a acarreija] para a eira. [Na eira,] tens que fazer a meda — aquele monte grande de semente, com a parte da semente toda para o meio. Ficam aqueles montes enormes. Quando dizem “fiz o assento à meda” querem dizer que arranjam o espaço, uma laje, uma pedra daquelas grandes, e fazes a meda, aquele [monte] grande. Depois [tiras da meda para a eira] e aí já fazes à máquina (agora já é com máquinas) senão tens que [debulhar], malhar ou trilhar. O trilho é uma coisa de madeira que tem uns ferrinhos lá espetados, [em forma de barco]. Engatas as vacas e passas para lá e para cá… e trilhas aquilo tudo de onde saem os grãos de semente. Senão são os homens — seis ou oito homens, tantos de um lado como do outro —, e vão como um galo, truz, truz, um de um lado e outro do outro, e malham a semente de onde sai o pão. Daí, fazes a palha para a cama dos animais [se for palha centeia] ou para dar a comer durante o ano [se for palha triga ou aveia]. Depende. Estás a ceifar, assim, e fazes aquelas filas. O que está no combro das valas são os surcos. Por exemplo, se fores a agadanhar, fazes assim com a gadanha e fazes aquele surco todo junto. Deixas estar naquelas filas. Depois juntas com um garfo, daqueles de pau. Fazes aquele monte. Se tens tempo para o guardar — por causa das trovoadas e da chuva — deixas ficar ali a secar, senão tens de o juntar. Fazes, assim, um molho e abres a parte do pé com que ele fique de pé, dobras a cabeça e atas com o nagalho. Fazes o boneco. A isso chama-se emburregar feno. Eu fiz muita vez, quando tinha 5 e 6 anos e era da altura dos bonecos. Ia com o meu pai. Ele juntava o feno e eu segurava o boneco para ele atar com o nagalho. Primeiro: Alqueve é a primeira lavoura com o arado de ferro. Segundo: Destravessar é a segunda lavoura para matar as ervas daninhas e pôr mais leveza na terra. Terceiro: Gradear é endireitar a terra com uma grade. Quarto: Velguear é dividir a terra em sortes (velgas) para o semeador se orientar com o terreno que está semeado (ou não). Quinto: Enterrar é passar com um arado mais leve para tapar (enterrar) a semente. O que é uma canga, um jugo…? Quando lavravam tinham de pôr a canga nas vacas — aquela coisa que metes para segurar as duas vacas. Fica aqui, em cima do pescoço. E depois tens as apeaças que eram umas fitas de cabedal para atar os cornos das vacas para elas não andarem à cornada. O jugo, [por outro lado], tem [duas] sogas, tiras de cabedal que também prendem os cornos [para


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ficarem mais seguras]. O arado vem aqui no meio. Aquilo é ali tudo atado e depois vai para trás o arado que é para fazer força para lavrarem. No burro é igual, só que o burro não leva uma canga. Leva uma belfa [no pescoço] e acho que é aí que se prende o arado, porque [pode lavrar] sozinho. Leva o arado para trás. Tem as albardas e depois a cilha — que é aquela fivela que se aperta para segurar a albarda. Depois tem uns bracinhos atrás que são os atafaios. Se eu vir as coisas, sei o nome das coisas. Isto são tudo histórias como aquelas que eu te contei. “— Minha mãe lá vem o Jorge no seu cavalo montado. — Boa tarde, ó Juliana, então como tem passado? — Já me vieram dizer que te vais casar. — É verdade, ó Juliana, venho-te a convidar. Já me vou a casar com a filha da Rainha e venho-te a convidar se queres ser minha madrinha. — Quero sim, ó Jorge, quero. Espera aí um bocadinho enquanto vou ao meu quarto buscar-te um copo de vinho. — Que deitaste tu no copo, que deitaste tu no vinho? Tenho a minha vista turva, já não vejo o caminho. — Quando a tua mãe julgava que tinha o seu filho vivo, também a minha julgava que tu casavas comigo. — Juliana se eu morrer, enterra-me em terra sagrada. Ao fundo do teu jardim, onde foste minha amada. — Enterro-te, sim, ó Jorge, entrerro-te além à sombra, onde fomos namorados e me tiraste a honra." [risos] O que é um cancelão? É um portão. Um cacharro é um pote de barro. “Anda escarrapachado” quer dizer que anda montado. Vais, por exemplo, no burro… Tens de ir escarrapachado. Nâo vais montado no burro, vais escarrapachado no burro [risos], porque. montado. vais, se calhar, sentado com as pernas para o mesmo lado… Escarrapachado vais mesmo assim [risos]... Essas expressões [risos]… “Cigarra cantadeira buscava o seu alimento, em cima de uma parreira todo o seu contentamento”. Esta era gira cantada… Ela é muito grande, tinha de alguém fazer uma melodia… Mas ficou por gravar uma que é a da “galinha dos ovos estrelados”, que punha os ovos estrelados. Acabei por não gravar nem escrever. Ela faleceu e perdeu-se. Isto nunca foi cantado assim… Não vês que as pessoas apreciam é o adufe, e é a festa, e é dançar, e é tudo, mas não… isto é que me enche a mim cá dentro. Eu gosto de fazer parte do resto mas isto é que me cativa, isto é que eu gosto mesmo… e que me toca. Por acaso pus onze ovos, assim ímpar, mas não pus lá foice nenhuma. Da outra vez nasceram três, morreram os outros todos… houve uma trovoada, também. Esta vai nascer agora dia 22, portanto são 22 dias. A gente põe a galinha lá em cima dos ovos e depois espera 22 dias. Essa noite vai lá e ela começa logo a tirar. Começa-se logo lá a ouvir os pintainhos. Então, com estas trovoadas que vieram todas nestes dias, vamos ver quantos tiro, porque eu não pus lá foice nenhuma. Isto é assim, são aqueles ditos que as pessoas acreditavam mesmo e então chamavam "os agouros do mundo".










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Isto depois era, assim, uma lenga-lenga... elas encaixavam tudo. Sabes que eu só comecei a perceber a "vida do lavrador” já era crescida. Eu sabia aquilo tim-tim por tim-tim, as palavras todas que a minha avó me dizia, mas eu não sabia o que queriam dizer. Só comecei a perceber o que era quando já era maior, porque não entendes nada, O meu pai também me dizia “Dá-me lá daí essa gamela” ou “Dá-me lá daí essa porcelana”. Sabia lá eu o que era uma porcelana. Era um alguidar. Uma gamela é uma daquelas gamelas grandes de onde comem os burros. Ou o que era o cabresto? Uma vez, íamos à horta e levava o burro à rédea, ia pela mão. O burro espantou-se e lá ia eu atrás do burro. O meu pai disse: “Agarra-o aí pelo freio!”. O freio é aquilo que ele leva aqui no queixo, aquela chapinha. Quando puxas pela corda — aquilo tem uns picozinhos — magoa o animal e ele trava. Mas eu não sabia… o burro ia-me atropelando. [risos] A vida do lavrador Nas horas de Deus começo, que Ele é nosso Criador, de novo vou começar a vida do lavrador. Mete paixão e terror, ó meu querido irmão, já te vou declarar os traços que passa o pão. Os traços que passa o pão, já tos vou declarar, esta vida da lavoura deixa muito que contar. O primeiro é comprar uma junta de bois ou vacas, para começar a lavrar, quer estejam gordas ou fracas. Em comprando bois ou vacas, esses são os nossos esteios, logo tem de comprar toda a qualidade de arreios. Toda a qualidade de arreios, serão as sogas primeiro. Para o jugo e o arado chamei o carapinteiro. Está a ganhar o seu dinheiro para tudo me fazer, que depois de tudo estar feito já tenho que responder. Depois de tudo estar feito, depois de tudo pronto estar, mandei fazer uma grade para a terra gradear. A junta vou agarrar e porei-lhe um arado leve para começar a lavrar primeiramente o alqueve. Se ela, a terra, estiver leve, de breve acabo de lavrar. Quanto mais depressa melhor, tenho que entrar a ceifar. Tenho muito que pelar para acabar a ceifa toda. Quando for às acarrejas a junta há-de

estar gorda. Já acabei de ceifar e também de enrilharar. Fiz o assento à meda, comecei a acarrejar. Logo ao primeiro caminho o carro se me foi quebrar. Ao descer do escalão, caiu-se-me para além o carro e debulhou-se-me muito pão. Camarada meu amigo, que ali me via sozinho, para acabar de acarrejar vi-me muito atacadinho. Vi-me muito atacadinho para acabar de acarrejar. Fui-me a arranjar algum feno, em tormentos entrava a malhar. Já começava a debulhar primeiramente o trigo, pedi um trilho emprestado a um rapaz muito meu amigo. Foi malha tão afamada que até lá matei um chibo. Colhi um moio de trigo, tudo por Deus determinado. Quis Deus que se me dera bom que eu tinha pouco semeado. Numa lage foi malhado sem nenhuma desavença. Chamei o ferreiro e o barbeiro fui-lhes a medir a sua avença. Eu tive uma grande doença no mês do São Miguel. Ali vendi algum para gastos, outro troquei-o por sal. Só fiquei com uma quarta e trouxe sempre a casa farta.


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[Acerca da Canção da ribeira] Era quando se ia lavar a roupa ao rio. Antigamente ia-se lavar a roupa à ribeira. Não havia água canalizada, tínhamos que ir lavar à ribeira. Era uma moda que se cantava no caso de se estar a lavar. E era cantada, também, noutras alturas. Antigamente, os namoros, em certas famílias, eram muito combinados. Por vezes estavam apaixonados mas não se podiam casar. Era uma maneira dela se exprimir e dizer "vai e casa com quem quiseres”… “Faz favor à tua gente”, faz favor à tua família… era essa a expressão. Eu não me lembro da minha avó lúcida. Estava muito esquecida e queria estar sempre na casa dela. Andava na quarta classe, tinha os meus dez anos. Por vezes [a minha avó] não queria vir dormir a [nossa] casa e eu dormia lá com ela. Um dia não me chamou para ir para a Escola. A casa dela não tinha janela. Era pequenina. A porta da rua tinha um postigo. Só víamos a luz do dia quando abríamos o postigo. Eu acordei e a minha avó não estava. Era tarde e só chegou perto do almoço. — Ó filha, tu estás aqui? — Ó vó, você não me chamou para ir para a Escola. — Ai, filha, tu tinhas Escola? [risos] “Ó filha, a gente temos que nos persignar”. Deitávamos na cama, tapávamos, e saía sempre esta oração… apagávamos a luz: “Quatro cantos tem a casa, quatro velas estão a arder, quatro anjos me acompanham s’eu esta noite morrer. Dois aos pés, dois à cabeceira, Nossa Senhora na dianteira.”. De manhã levantava-me… e quando púnhamos os pés no chão: "Ponho os meus pés em terra, ponho o meu coração em dia. Nossa Senhora me depare uma boa companhia, como Deus deparou à Virgem Maria”. Vestia-me a roupa e depois íamos abrir a janela, o postigo da porta. [Dizia:] “Bendita seja a luz do dia. Bendito seja quem a cria. Bendito seja o filho da Virgem Maria que eu entrego-me ao santo e à santinha deste dia. Bons dias, meu Jesus [abria a porta] que ainda hoje não vos vi. Venho-vos pedir uma coisa que ainda hoje não pedi. Sois Filho da Mãe Santíssima, da Mãe do Pai eterno, livrai a minha alma do fogo e das penas do Inferno”. Sempre, sempre, sempre, todos os dias. Isto tinha que ficar aqui. [risos] Tenho muitas recordações dela. Íamos para casa, à noite, e jogávamos ao pimpelhete. Estava com sono, deitava-me no colo dela. — O que é isto? — Pimpelhete — O que é isto? — Pimpelhete... "Arca serrada, cheia de pão e sabão. Aquele que se deixa rir, leva um cachação”. Eu era pequenina, punha-me em frente a ela. Fazia-me cócegas. Eram assim as brincadeiras dela. Ou então eu deixava-me dormir e ela — Ziqui ziqui zão, quantos dedos aqui estão? — Ó vó, são dois. — “Se disseras três, não perdias nem ganhavas as porradas que levavas” [risos]. Outra vez: “Ziqui ziqui zão, adivinha coração, quantos dedos aqui estão?”. Até que adivinhava. Estas eram as minhas brincadeiras com ela. Eu tinha um sinal na perna e ela, às vezes, ia lá e beliscava-me, assim, como a gente se mete com as crianças. [Canta] “E o raça da pulga é toda malina. E agarrar a pulga nas pernas da Lina”. E eu, já com sono: “Ó vó, não… eu não quero.". Chateava-me com ela... e depois ela contentava-me: [canta] ”E o raça da pulga é toda laró, agarrar a pulga nas pernas d’avó” [risos]. E era assim que a gente brincava.






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Ronda Esta noite sai a ronda Sai a ronda até de dia S'eu fora rapaz solteiro Esta noite não dormia. Venho da Rua do Canto Vou cantar ao pelourinho É uma peça tão bonita Chera a flor do resmaninho Esta noite sai a ronda Quem será o rondador(e) Ai, quem toca é mê primo Quem canta é meu amor(e) Menina que estás a dormir(e) Lá no quarto na cama Escuta se queres ouvir(e) As vozes de quem te ama. Menina que estás a dormir(e) Lá no quarto da sala Se estás a dormir acorda Se estás acordada fala Menina que estás à janela Com os brincos a dar a dar(e) É bonita, gosto dela Ainda a hei-de namorar(e) Deixa-te estar, linda rosa Na roseira fechadinha Eu vou a servir o rei Em vindo hás-de ser minha

A Ronda era cantada. Juntava-se um grupo de rapazes, novos. Uns tocavam e outros cantavam numa noite qualquer (nos fins-de-semana, porque durante a semana estavam a trabalhar). Iam à porta das raparigas que eles gostavam, ou que queriam namorar, e então cantavam a Ronda. Mocinha dos Caracóis A tua saia é redonda Bordada de girassóis Onde queres que eu mal me esconda Se eu hei-de ser a tua ronda Mocinha dos caracóis Mocinha dos caracóis Não me deixes minha querida Vem ouvir os rouxinóis A cantar como heróis História da nossa vida Mocinha dos caracóis Só te quero a ti mais nada Guarda bem esse tesouro Que é vendido a peso de ouro A tua saia bordada Mais um rapaz a pedir para namorar com ela… para não o deixar…


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Ora Adeus a Deus Moda de trabalho E azeitona galeguinha Ora adeus a Deus não a comem os pardais Comem uma e até duas Ora adeus a Deus Comem três não querem mais E azeitona galeguinha Ora adeus a Deus Vai correndo ao lagar(e) E é como a moça bonita Ora adeus a Deus Todos lhe querem falar(e) E azeitona galeguinha Ora adeus a Deus Deita o azeite amarelo E alumia-a todo ano Ora adeus a Deus À Senhora do Castelo E azeitona galeguinha Ora adeus a Deus Deita o azeite mais claro E alumia-a todo ano Ora adeus a Deus À Senhora do Rosário [E azeitona galeguinha Ora adeus a Deus Deita o azeite cor do ouro E alumia todo ano Ora adeus a Deus É o nosso grande tesouro]

Era na colheita da azeitona. Diziam que era a azeitona galeguinha que produzia mais, que era a que dava mais azeite. Era na apanha da azeitona, que era feita a partir do mês de Outubro, em que era colhida a primeira azeitona para o verdeio e para retalhar. Depois é que se colhia a de conserva para guardar naqueles potes de barro (ou de plástico) — para guardar e para terem durante o ano — em que as metiam na salmoura, com sal. Antigamente, metiam-nas no pote e numa altura era escoada aquela água. Então punham-lhe o sal, novamente na mesma água… se tinham ido ao chafariz, iam buscar água do chafariz, se metiam da torneira, era da torneira... para elas não ficarem moles. Agora já se faz de uma maneira diferente. A gente agora mete consoante os litros de água. Metemos o sal e fica já preparada para o resto do ano. O verdeio é a primeira, aquela mais verde, que colhes verde, verde, e depois esmagas. É aquela que adoça primeiro. Mudas a água todos os dias e ela adoça mais rápido. Para retalhar, aquela em que fazes os golpes, tem de ser quando ela está a ficar meia ruça, a mudar só assim um bocadinho a cor porque se já está muito vermelha vai ficar mole. Depois deixas amadurecer. Portanto, a do verdeio é colhida para conserva, aquela que guardam verde. O resto é para azeite.










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Pastorinha Linda pastorinha Que andas na ladeira Tira-te do sol Do sol que te queima O sol não me queima Qu'eu estou calejada Do vento e da chuva Do rigor da calma Linda pastorinha Que fazes aqui Procuro o meu gado Qu'eu aqui perdi No cimo da serra Ouvi berrar gado São três ovelhinhas Que me têm faltado Dai-me a cestinha Também o cajado Que eu as vou buscar Com todo o cuidado Não quero criados Com meias de seda Que se rompem todas Por essas estevas Não quero criados Com meias de linho Que se rompem todas Por os resmaninhos Sapatos e meias Tudo romperei

Esta é linda, esta aqui arrepia a gente. Sabes como é que é a história? São dois irmãos que não se conhecem. Ele está a mandála tirar do sol e está-se a fazer a ela. Vão-se embora e depois descobrem que são irmãos. Ele está a tentar dizer-lhe as coisas e ela pensa que ele está a tentar dar-lhe a volta. “No rigor da calma”... a calma é o sol… é quando tu olhas e está aquela calma. O sol muito forte. É isso. “Ceifeiras que andas à calma ceifando o trigo”, que andas lá longe e vês, assim, aquele calor. Eu, miúda, trabalhei muito no campo e as pessoas usavam muito estes termos. Eu sei o que é porque vivi nessa parte e as pessoas ainda falavam assim… Havia aquelas velhinhas. Houve uma senhora que me cantou uma quadra de uma canção que eu nunca esqueci. Dois meninos ficaram órfãos e ela foi-se sentar à porta do cemitério e era a própria alma da mãe que lhes estava a falar. Porque é que ela estava lá sentada? Eu chorei tanto, tanto, tanto na altura. A sério, porque eu imaginava acontecer aquilo mesmo de verdade. Fiz aquela história tanta vez na minha cabeça, mas é tão bonito, tão bonito. Esta aqui é cantada. A história que ela tem… dos dois irmãos. Cantavam muito. Todos os dias fazíamos o serão. Normalmente fazíamos o serão para os vizinhos. Sem querer cantavam… ao lume. No inverno, com os nossos vizinhos, íamos assar as castanhas, bebíamos uma jeropiga ou comíamos uns figos secos (éramos nós que fazíamos os figos secos). A gente juntava-se a fazer o serão ao lume ou então cá fora, na soleira das portas. Uma dizia uma história, outra contava uma anedota… e assim se faziam os serões…


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Pela pastorinha A vida darei

Pão peleirinho Moda da ceifa

Vá-se daí ó homem Não me esteja a entreter(e) Está p'ra vir meu amo Trazer-m’o comer(e)

Por riba se ceifa o pão Ai, por baixo fica o restolho Menina não se namore Ai, do rapaz que imbisga o olho

Se o teu amo vier(e) Por ti procurava Foi ‘ma nuvem de água Que por’qui passava

Corta minha foice corta Ai, por esse pão peleirinho Quem houver de andar p'ra outra Ai, há-de andar com cuidadinho

Ó gente do povo Acudi ao gado Que abala a pastora Com seu namorado

Trabalhai, quebrai o corpo Ai, logo tendes que comer(e) Do trabalho nasce a honra Ai, da honra o bem querer(e)

Se abala a pastora Deixai-a vós ir(e) Eles são irmãos Logo tornam a vir(e)

E o sono mai a preguiça Ai, mi causam muita perda E o sono diz que me deite Ai, a preguiça que não m’erga

[Logo torna a vir(e) Ou virá ou não Saibas Pastorinha Que somos irmãos

Já o sol se vai pondo Ai, lá pa trás do cabecinho Bem podia o nosso amo Ai, mandá-lo mai ligeirinho

Ó irmão, irmão Irmão da minha alma Eu fico no mundo P'ra sempre difamada






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O lavrador da arada Indo o lavrador da arada Encontrou um pobrezinho E o pobrezinho lhe disse Leve-me no seu carrinho Deu-lhe a mão o lavrador E no seu carro o metia Levou-o p’ra sua casa P'rá melhor sala que tinha Mandou-lhe fazer a ceia Do melhor manjar que havia Sentou-o à sua mesa Mas o pobre não comia As lágrimas eram tantas Que pela mesa corriam Os suspiros eram tantos Que até a mesa tremia Mandou-lhe fazer a cama Da melhor roupa que tinha Por cima damasco roxo Por baixo cambraia fina Lá pela noite adiante O pobrezinho gemia Levantou-se o lavrador A procurar o que tinha Deu-lhe o coração um baque Como ele não ficaria Achou-o crucificado Numa cruz de prata fina Meu Jesus, se eu tal soubera Quem na minha casa tinha

Mandara fazer preparos Do melhor que encontraria Cala-te ó lavrador Não fales com demasia No céu te tenho guardado Cadeira de prata fina Tua mulher a teu lado Que ela também a merecia Por fazer bem a um pobre Quem nem se conhecia Um lavrador, na sua seara, ia para casa no seu carro de bois. Encontrou um pobrezinho e deu-lhe boleia. Esse senhor era Jesus Cristo. O pobre lavrador Ai, sou um pobre lavrador(e) Vivo muito aterefado (aterefado) Ai, de dia ando lavrando E eu à noite estou cansado (estou cansado) Ai, tenho vida de ganhão(o) E não quero desistir(e) (nem desistir(e)) Ai, de dia ando lavrando E à noite quero dormir(e) (quero dormir(e)) Ai, semear e não colher(e) É que atrasa o lavrador(e) (o lavrador) Ai, eu bem atrasada ando De falas ao meu amor(e) (ao meu amor(e)) Ai, na ausência do amor(e) Eu ainda não encontrei(i) (não encontrei(i)) Ai, quem me ajudasse a ceifar(e) O que antes semeei(i) (antes semeei(i))


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Moda de embalar O meu menino tem sono O sono não lhe quer vir(e) Venham os anjos do céu Ajudá-lo a dormir(e) Óóóóóóóó José embala o menino Qu’a senhora logo vem Foi lavar os cueirinhos À fontinha de Belém Óóóóóóóó Vai-te cuca, vai-te cuca Para cima do telhado Deixa dormir o menino Um soninho descansado Óóóóóóóó Vai-te cuca, vai-te cuca Vai-te cuca do terreiro Deixa dormir o menino Qu’está no sono primeiro Óóóóóóóó

São modas que a gente nunca canta. Vais a cantar, fazes uma actuação a tocar o adufe ou a cantar, é música mexida. Estas melodias estão aqui dentro. Se eu não as cantar… é assim, eu já não mexo aqui há não sei quanto tempo. Com a pandemia, fechei os livros, fechei tudo. Eu ando sempre a cantar a que me vem à cabeça, pronto, mas há muitas que eu nem me lembro. Esta é tão linda. Há que tempos que não a cantava. Cantavam lá as velhinhas. À minha avó ainda a ouvir cantar. Algumas quadras não mas esta aqui, sim "O meu menino tem sono, o sono não lhe quer vir(e). Venham os anjos do céu ajudá-lo a dormir(e)” [Acerca da Moda da Paixão] Não sei quem escreveu. São as velhinhas que cantam. A gente depois “Ai esta fica, aquela fica”. Depois é assim… elas cantavam muito. Numa melodias elas falam uma quadra de trabalho, uma quadra de amor, tudo misturado… E depois tu vês “É pá, esta quadra encaixa mesmo bem naquela”. E então depois tens que fazer ali uma pequena alteração e fazeres tu a recolha. Foi assim que fizemos. Tenho montes de quadras soltas, lindíssimas. Depois vais buscar a melhor melodia, ou a melhor canção, para encaixares aquela quadra, e é assim. É tão engraçado porque elas cantavam uma solta… depois vinha outra que cantava outra que se lembrava ou outra que ela fazia, até, na hora… com melodias iguais.


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Cigarrinha No tempo da cigarrinha Ai, todo o bicho sai ao campo Sai o rico e sai o pobri Ai, o senhor do chapéu branco Ceifeiras do trigo loiro Ai, ceifai essi trigo bem(e) Não olheis para o caminho Ai, que a merenda já lá vem(e) Já são horas de merenda Ai, vamos nós a merendar(e) Gaspachinho com vinagri Ai, par’ó peito refrescar(e) O sol quando se quer por(e) Ai, anda de ramo em ramo Alegria pr'a nós todos Ai tristezas pr'ó nosso amo [Ceifeira que andas à calma Ai, à calma ceifando o trigo Ceifa as penas da minh'alma Ai, ceifa-as e leva-as contigo]

Nesta altura, da Primavera, que é altura da cigarrinha, “todo o bicho sai ao campo”... Tem a ver com a parte das searas e a parte da ceifa da altura da Primavera, do Verão. Tem tudo a ver com o trabalhar a terra, do sachar, do mondar, do ceifar… engloba toda a parte do Verão. Quando esta era cantada, estás a ver… tem a parte da merenda, não é? Porque quando vinham as tardes, depois no fim da ceifa, havia sempre a merenda… Faziam o gaspacho, faziam os ovos da malha… Chamavam os ovos da malha na altura que andavam a malhar mas chamamos os ovos de farinha. Comiam-nos com mel. São aqueles fritos, tipo sonhos. São parecidos aos sonhos e eram comidos com mel. Ou isso ou o gaspacho. Era o que se fazia, s tarde, quando acabavam de ceifar, de mondar ou de trilhar… de fazer todos estes trabalhos do campo. As tardes eram grandes portanto tinham que fazer a merenda…


PAISAGEM SONORA EXCERTOS

Adeus altos, adeus baixos Adeus altos, adeus baixos Adeus casa de meu pai Se algum dia morei nela Esse tempo já lá vai Ó ló vai la ri ló lé la Ai, ó ló vai la ri ló ló (o) Se eu tivera meu pai vivo Minha mãe que Deus lá tem Escusava d’aqui andar(e) Aos pontapés de ninguém Ó ló vai la ri ló lé la Ai, ó ló vai la ri ló ló (o) Anda cá se queres ver(e) Como é minha alegria Toda coberta de penas Como anda a cotovia Ó ló vai la ri ló lé la Ai, ó ló vai la ri ló ló (o) Não canto por bem cantar Nem por bem cantar o digo Canto para aliviar(e) Penas que trago comigo Ó ló vai la ri ló lé la Ai, ó ló vai la ri ló ló (o)

Vou-te cantar “Adeus altos, adeus baixos”... Nós cantamos esta moda, tocada ao adufe, muita vez. A primeira quadra é lindíssima e depois temos outras que falam mais de amor, mais de flores, mais dessas coisas assim… Mas eu gostei tanto, tanto, tanto da primeira quadra que fui buscar mais três ou quatro quadras e fiz aquela canção. É aquela que eu canto mais, quando estou sozinha… E às vezes ainda me emociono. Pus-lhe aqui umas quadras. Na altura que fiz esta melodia o meu pai ainda não tinha falecido. E depois custava-me um bocado a cantar… É sempre esta quadra… quando vem, sem querer, às vezes não consigo cantá-la… mas pronto, mas vai sair… Agora já devo ser capaz… Esta, no meio, em cada quadra, eu canto “Ó ló vai la ri ló lé la, Ó ló vai la ri ló ló ó”. Muitas delas têm isto, só que é mais aqui, nesta zona, que se canta isto porque para outros lado não se ouve “Ó ló vai la ri ló lé la”... Tem assim... um sentimento… Gosto muito e canto sempre esta, aqui…






MM— MOUNTAIN MISSION






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