Assentamento Maceió - Uma história de Luta pela terra

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e pediu que eu fizesse a cabeça, aí eu cortei um tecido, fui lá no curral e olhei como é a cabeça do boi e eu desenhei num papel, cortei o tecido, costurei e realmente deu certo. Pra fazer a roupa do boi eu tirei a colcha da minha cama, porque eu não tinha tecido e era grande, tinha que ter a parte de baixo bem rodada. Tirei a colcha da cama, rasguei, costurei na máquina e fiz a roupa do boi. A roupa dos outros nós fizemos com palha de bananeira, a roupa da velha eu levei uma roupa da minha mãe, e aí deu certo, daí em diante começou, pronto. E sábado, como estava marcado, nós fomos apresentar o reisado. No reisado nós temos a Burra, o Lalai, o Jaraguá, as duas Damas... O Jaraguá ele é um cavalo, e a pessoa vai levantando a cabeça do cavalo e avançando sobre o povo, como que quisesse morder alguém. Tem a burra, que é uma pessoa que veste uma cabeça, de madeira mesmo, mas tem as características de uma burra; até as músicas que acompanham falam da burra também. O Lalai é um bonecão de pano, ele dá umas rodadas e vai afastando pra roda abrir. E tem os bois e os Papangus, que são quatro homens vestidos com palha de bananeira que são aqueles que dizem os versos e que dançam, e tem uma Velha, que é um homem vestido com roupa de mulher com um visual de velho, que é pra fazer a graça do reis; aí a velha levanta a saia, e agarra os homens. E aquilo ali é que faz animar e tem o boi que vai rodar ali dentro.

As damas são a dança, vão toda arrumadinha, pintadinha, pra dançar, mas é homem vestido de mulher, no meio tem uma menina também, mas quem faz mais a parte são os meninos. Eu fiz questão de fazer isso pra ver se a gente acaba com preconceito também, porque aqui, quando os meninos vestiam uma roupa rosa, diziam aí isso aqui é de mulher, uma chinela rosa, isso aqui é de mulher. Eu acho isso tão nojento, e eu faço com que eles vistam saia, roupinha, pra nós dançar lá, se apresentar. E assim isso, pra também quando eu faltar isso não morra. Esse senhor hoje, não participa mais, pois já está bem velhinho, e aí eu fui chamando as crianças... fui chamando as crianças, envolvendo e quando iam casando, iam saindo e eu envolvendo outros e até hoje está acontecendo. Acho que está com bem uns vinte anos que eu estou com esse grupo e hoje sou eu quem faço a cabeça do boi, a roupa das damas, faço tudo. Nós temos dois grupos, o das crianças e o dos adultos, só que a gente mistura. Quando vamos apresentar o grupo dos adultos, nós levamos duas crianças, que são as duas damas e quando é o grupo das crianças, nós só levamos às vezes um adulto pra ser o vaqueiro e acompanhar o boi. Nós somos chamados pra muitos lugares, ave Maria! Nós já fomos pra Fortaleza, apresentar lá e nós tiramos o primeiro lugar. Eu fui com muito medo, por ir disputar com três grupos e eu sabia que os figurinos deviam ser muito bonitos e eram mesmo, era uma coisa muito chique e o nosso é mais ecológico. Das palhas da bananeira é que fazemos as roupas pra vestir os Papangus, isso chamou atenção e nisso nós tiramos o primeiro lugar. Tá com mais ou menos uns cinco anos. Eu fiquei muito feliz, porque eu estava tremendo achando que nós iríamos tirar zero, quando vi todos lá brilhando. Eu acho tão bonito, me sinto tão bem quando eu estou dentro, apresentando reisado eu não brinco dentro diretamente no grupo, mas eu fico à parte, eu fico fazendo tudo. É uma noite de felicidade, quando vou apresentar o reisado, eu rio demais, eu acho graça tanto, que aquilo parece que me faz bem sabe, e eu não quero que nossa cultura se acabe.

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Ano 8 • nº1526 Agosto/2014 Itapipoca

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Histórias de luta e afeto no Quintal de Mariana Mariana gasta seus dias a cuidar das plantas, cultivar sementes e produzir inúmeras mudas, na mesma terra pela qual viu seus pais lutar, e que conquistou com suas companheiras e companheiros agricultores do Assentamento Maceió. Além das sementes, ela cultiva a cultura ao organizar todos os anos o reisado. A sua história é contada abaixo com suas próprias palavras, carregadas de afeto tanto pelas plantas, quanto pela cultura sertaneja. Aqui a minha infância não foi nada agradável, nada boa, foi uma época de muito sofrimento, de muita pobreza, vendo meu pai sendo escravo dos outros e... era uma época da ditadura, da escravidão, época que se não obedecesse o patrão todo mundo apanhava, é tanto que eu não gosto nem de comentar isso, porque eu choro... Na época que conquistamos a terra eu já era casada, mãe de filhos. Tá com uns 25 anos que aqui é Assentamento, foi em 1987 que a liberdade chegou pra gente. Mas eu já era mãe quando entrei na luta e tive muito prazer de me envolver no grupo de mulheres pra poder lutar pela terra. Pra mim, aquilo era uma felicidade, eu saber que estava lutando pelo meu direito, pelo direito das outras mulheres e o direito das famílias, não só do grupo de mulheres, mas enfim direito nosso. Nós nascemos e nos criamos aqui, se tinha um pé de


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coqueiro era a gente que tinha plantado. O que nós tínhamos aqui na terra era plantado por nós, não era o patrão. Porque ele queria ser dono? Por que nós tínhamos que plantar um pau de roça, fazer toda aquela farinhada e depois entregar metade? Pra que, se ele não ajudava? O gado dele comia e nós tínhamos que pagar sempre, porque nós pobres não tínhamos dinheiro pra plantar uma cabeça de gado. Quem criava era ele, mas, mesmo assim, se o gado dele entrasse e comesse... por que nós não tinha como comprar um rolo de arame. O arame naquela época era considerado até... tinha até um cântico que nós cantávamos: “Todo arame e porteira merecia corte e fogueira era fruto da maldição”. Então eu saber que estava lutando pela liberdade da minha família, a liberdade do povo que aqui morava, pra mim era tudo. Quando a gente se reunia e dizia “hoje a gente vai passar a noite vigiando, ninguém vai dormir”, nós tínhamos que levar todas as mulheres buchudas, as paridas, com menino no colo, mas tinham que estar lá, fazendo barreira, então aquilo pra mim era tudo. Sempre colocávamos as mulheres na frente, porque nenhum tratorista ia jogar uma máquina por cima de uma mulher grávida ou com criança de colo. E ali era todo mundo armado de pau e nós não tínhamos medo. Eles paravam mesmo e desciam das máquinas correndo porque viam que o negócio era quente. E hoje, eu sinto muita falta das mulheres na palavra dos homens, quando eles dão suas entrevistas sobre a luta da terra. Eles não falam sobre nós, mulheres, como as principais pessoas que lutaram. Porque tinha uma Nazaré, tinha uma Vera, tinha uma Ana, tinha uma Graça, tinha uma Lúcia Rita, tinham várias mulheres, eram muitas mulheres! E quando a liberdade chegou, que nós conquistamos a terra, isso pra mim foi uma grande felicidade, saber que foi pelo meu esforço, pelo esforço das companheiras e dos companheiros, pela nossa fé e pelo nosso advogado, um homem muito competente que era o doutor Pinheiro e eu tenho uma consideração enorme por ele, pra mim ele é um pai, pois ele nunca se vendeu e arriscou a própria vida, pra ajudar a gente. Pois a gente era preso todo dia, inocentes, pegos dentro da sua própria casa.

Eu batalhei. Isso hoje eu repasso pras minhas filhas e pra minha neta e digo: “vão em frente, a luta não parou, a luta continua. Vão e não deixem que o meu suor, que o meu sofrimento, meu e das outras companheiras, se torne nada, porque quem não participa, também não tem parte de nada. E não é por ter conseguido a terra que nós vamos achar que está tudo resolvido, pois não está”. Canteiro de mudas Antes eu fazia as mudas, mas era coisa pouca, não era muito

Articulação Semiárido Brasileiro – Ceará

procurado, o povo não sabia. E o projeto Florestação foi um incentivo muito grande, porque além de eu fazer a quantidade certa que é pra ir pro projeto, houve uma forma de divulgação, que era o que faltava. Já hoje eu vendi umas mudas, por conta dos índios que me conheceram através de um intercâmbio do Cetra e veio gente encaminhada pelos índios que disseram onde tem mudas. É uma coisa que eu não vou mais parar. Aí fora você procura murici pra fazer um suco e não tem mais. Então quando eu planto murici, sabendo que estou distribuindo ela, que alguém vai plantar, que alguém vai reflorestar seus quintais, como eu estou fazendo com o meu, eu sei que futuramente, não vai se acabar, vai permanecer. Foi um grande conhecimento, aprender a lidar com as mudas, saber a época de nascimento, a época que já está bom de sair da sementeira pra vir pro saquinho. É mais uma forma de renda que eu tenho pra minha casa, e eu saber que daqui a alguns anos eu vou ter o meu quintal cheio daquelas plantas que eu não tinha, porque eu mesmo morava aqui, mas não tinha o suficiente. Agora não, eu tenho já plantada Ateira, tenho Sapoti, tenho Acerola tenho muita variedade, que eu sei, daqui a no máximo cinco anos eu já tô tendo elas tudo.

“O nosso reisado é um reisado muito profano, é tipo um teatro, é mais pra animar, é mais pro pessoal rir. Não aquele reisado que faz com coroa com rei e rainha, o nosso é o bumba meu boi, mesmo, mas aqui nós chamamos de reisado”. Reisado Aqui sempre teve reisado nas Comunidades do Maitá, do Córrego Novo, as pessoas mais velhas usavam desse reisado, mas quando elas foram faltando, isso morreu por um tempo. Aí, quando foi um dia, um senhor, já de idade, que morava aqui no Córrego Novo, me convidou pra que nós pudéssemos resgatar essa cultura, um senhor já bem de idade. Eu falei pra ele que era difícil, né? Por que nós não tínhamos ajuda financeira. E ele respondeu que tinha dito a outro senhor que faria um reisado no sábado. Eu disse pra ele: “pois então como é que a gente faz o boi?” Ele disse: “deixe comigo, eu vou lhe ensinar como é que faz um boi”. Aí ele tirou madeira, fez o corpo do boi


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