CRIME
Ano 1 - nº 1 maio/junho - 08
combate ao
ISSN 1983-1080
Revista do Núcleo Criminal da Procuradoria Regional da República da 1ª Região
A FRANÇA E A GARDE À VUE
Detenção policial controlada pelo procurador da República
Pág. 8
TECNOLOGIA NO COMBATE AO CRIME Delegado da PF fala sobre nova arma para combater o crime organizado
Pág.4
TRÁFICO INTERNACIONAL DE DROGAS
Aumento do crime ou da repressão?
Pág.6
Editorial
AO LEITOR Também o sucesso vitima seus eleitos. Contabilizando mais de vinte edições, o Boletim do Núcleo Criminal da PRR - 1ª Região não foi poupado de uma crítica insistente: faltava, na opinião de muitos de seus destinatários, uma versão impressa, que pudesse ser manuseada, transportada, guardada, anotada. Por mais que as novas tecnologias reclamem seu lugar ao Sol - muitas delas irresistíveis e irreversíveis -, o fascínio pelas edições impressas parece ser revel ao próprio tempo: herança de uma civilização que prosperou secundada num livro. A Revista que apresentamos hoje é fruto deste clamor. Afinal de contas, o propósito que animou a gênese do Boletim foi apresentar ao leitor a produção jurídica dos tribunais e da doutrina, de alguma forma relacionada à atuação criminal do Ministério Público Federal. Faltava, contudo, uma publicação que privilegiasse o aspecto ideológico, notadamente quando parece haver uma unanimidade - com todas as suas características - no insistir em prerrogativas e mais prerrogativas em favor de quem não as merece, em ostensivo detrimento da sociedade e da cidadania. O discurso monocórdio e anacrônico da liberdade como valor incontrastável - e ab-rogante de outros valores - de tal forma contaminou mentes e espíritos pretensamente devotados ao Direito que a bela polifonia constitucional inclusiva da segurança como direito fundamental restou terrivelmente sacrificada. Mas novos tempos exigem precursores. A Revista dará voz prioritária à idéia de que Estado de Direito pressupõe equilíbrio, e atuação eficiente dos órgãos públicos em prol de todos; tão injusto quanto punir alguém que não o mereceu é deixar de fazê-lo, no uso das medidas e instrumentos jurídicos especialmente concebidos para este fim, se resultou patente o cometimento do crime. Um Estado que abdica sistematicamente de fazer Justiça, patrocinando a impunidade e estimulando um individualismo sombrio, desserve à paz social e trai sua destinação autêntica, que é de ser a própria sociedade organizada. A heterogeneidade da composição dos membros do Ministério Público Federal justifica que se encontrem diversas tendências e percepções relativas ao crime e à necessidade de sua repressão. Entretanto, e para além dessa induvidosa qualidade, certo é que cada procurador da República jurou, na investidura, honrar a Constituição; a persecução penal, nesse rumo, deve ser cumprida com diligente rigor, na firme convicção de que o acusador deve, sem descurar dos direitos e garantias individuais, proteger a sociedade, cabendo a outros a tutela do criminoso. Se o Ministério Público é o senhor da ação penal, como determinou a Constituição, Combate ao Crime é a expressão mais simples e exata deste nosso dever.
Alexandre Camanho de Assis
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combate ao
CRIME Ano 1 - nº 1 ISSN 1983-1080
Expediente Combate ao crime Revista do Núcleo Criminal da Procuradoria Regional da República da 1ª Região*
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Entrevista Emmanuel Balduíno, delegado da Polícia Federal.
Procurador-chefe Ronaldo Meira de Vasconcellos Albo
Coordenador do Núcleo Criminal e editor-chefe Alexandre Camanho de Assis
Pauta e Redação Carolina Pompeu Mariana Stancioli Tatiana Pereira Almeida
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Capa TRÁFICO DE DROGAS: Pesquisa aponta aumento significativo no número de processos que passam pela Procuradoria.
Estagiária Bárbara Ferreira
Diagramação Carlos Vinícius A. de Oliveira Carlos Eduardo S. Duarte
Revisão
Alexandre Amaral
Fale conosco secretarianucrim@prr1.mpf.gov.br
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A França e a Garde à Vue Detenção policial controlada pelo procurador da República.
Co-edição
*A Procuradoria Regional da República da 1ª Região (PRR1) é a unidade do Ministério Público Federal (MPF) que atua no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, a segunda instância do Poder Judiciário para as seguintes Unidades da Federação: Acre, Amapá, Amazonas, Bahia, Distrito Federal, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Piauí, Rondônia, Roraima e Tocantins.
Artigo
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Doutrina
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Entrevista
Tecnologia no combate ao crime Delegado da Polícia Federal coordena implantação de sistema que promete agilizar o trabalho da Polícia Federal, Ministério Público e Poder Judiciário no combate ao crime organizado.
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Como se identificou a necessidade do sistema? mmanuel Henrique Balduíno de EB - A necessidade do Centro Integrado de InOliveira é delegado da Polícia Federal e teligência Policial e Análise Estratégica baseia-se hoje coordena o setor de treinamento no aumento da eficiência de operações que exigem da Diretoria de Inteligência Policial do órgão. técnicas de inteligência policial. Antigamente, nós O grupo organiza a implantação de um sistema tínhamos em Brasília um grupo de policiais que que promete agilizar o trabalho da Polícia Featuava em conjunto com o Ministério Público, com deral, Ministério Público e Poder Judiciário no a Receita Federal e com todos os órgãos que intecombate ao crime organizado. gram forças tarefas para o combate ao crime orgaO Centro Integrado de Inteligência Policial nizado. Contudo, era uma ação dentro da Polícia e Análise Estratégica reúne diversos bancos de Federal segmentada na Diretoria de Inteligência dados para cruzar informações e garantir inPolicial, que servia às outras unidades. Haverá vestigações cada vez mais eficientes. Um prouma disseminação dessa doutrina para todas as jeto piloto já está em fase de testes e, segundo superintendências. Cada superintendência da Emmanuel Balduíno, as Operações Furacão e Polícia Federal terá um grupo de 20 a 30 policiais Navalha já mostram os resultados positivos do preparados para usar as mesmas novo sistema. Nesta entrevista, o detécnicas, os mesmos equipamenlegado explica como funciona o Cen“O centro interage tos e as mesmas ferramentas de tro e como ele deve contribuir na luta com toda a força análise usadas pela Diretoria de contra o crime. A expectativa é que o policial para que Inteligência Policial. Isso facilita novo serviço já esteja disponível ainda as provas fortaleçam o tratamento de informações, de no primeiro semestre deste ano. a denúncia do cruzamento de ligações telefôniMinistério Público.” cas, transações financeiras, elo Como funciona o Centro Integrado de entre organizações criminosas e Inteligência Policial e Análise Estratéainda possibilita uma análise congica? junta do crime organizado no Brasil. Emmanuel Balduíno - O Centro está sendo criado para que integre e interaja com vários Como o Ministério Público terá acesso a essas insistemas. Hoje, o Departamento de Polícia Feformações? deral tem 16 bases de dados que serão integraEB - No início desse trabalho, o grande pulo de das para acesso e coleta rápida de dados. Os tecnologia da Polícia Federal foi dado durante a policiais vão dispor de mais tempo no trataOperação Anaconda. Nós utilizávamos uma memento dos dados para aproveitamento nas todologia que já provou a sua eficiência, mas o que operações policiais e, no final, para a produção nós queríamos era padronizar a utilização dessas de prova que servirá para a denúncia do Minismetodologias e fornecer ao nosso policial mais setério Público. A idéia é que o Centro interaja gurança e tranqüilidade. A outra questão é que a com os sistemas da PF, do Ministério Público, do Polícia Federal trabalha com equipe de policiais Judiciário e de outros órgãos públicos. Vai atuar especializados para as atividades de interceptação também junto com o sistema de interceptação de telefone, escuta ambiental, vigilância, além de de sinais do DPF. Isso aumenta a eficiência e o uma autoridade policial encarregada de congrecontrole de toda a atividade da Polícia Federal. 4
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CLEITON ANDRADE
que são as operações gar todos esses eleem andamento que mentos para a elaboestão sob segredo ração de relatórios de justiça. Essas são quinzenais. Isso era acompanhadas sofeito no decorrer de Delegado Emmanuel Balduíno conta como funciona o mente pela equipe Centro Integrado de Inteligência Policial Estratégica. uma operação de um cadastrada. ano e oito meses. Ao final, feita a busca e apreensão, a coleta de todo o material, a exploração de todo material apreenEsse Centro, portanto, deve agilizar também o dido, tudo era entregue ao Ministério Público ao processo judicial? mesmo tempo. Os procuradores provavelmente EB - Exatamente. Porque já se tem a coleta de sentiam o peso de receber um material coletado toda a prova. Um perito da Polícia Federal vai ao longo de um ano. A vantagem do sistema interagir no Centro Integrado produzindo os laué que o procurador da República vai acompados necessários quando forem demandados: launhando, numa linha de tempo, o desmembrar do de reconhecimento de voz, laudo fonográfico, das operações. Então ele vai poder acompanhar laudo de valor de materiais, laudo balístico. É um as ações da Polícia Federal e já preparar a sua Centro que interage toda a força policial para denúncia com os elementos que serão fornecique as provas atendam e fortaleçam a denúncia dos durante a coleta das provas, da interceptado Ministério Público. ção, da escuta, da vigilância, dos relatórios que serão elaborados. Ele também poderá interagir Em termos práticos, como o senhor acha que o com essa equipe da força tarefa durante as inCentro vai ajudar na interação do trabalho do vestigações. Ministério Público e da Polícia Federal? Todos os procuradores terão acesso integral ao EB - O Centro virtualiza o software e o hardsistema? Ou a disponibilidade de informações é ware. Os documentos não ficam tramitando. Ao seletiva? inserir um documento no sistema, o procurador EB - O Centro é inteligente. Temos os policiais e o Judiciário têm acesso ao mesmo tempo. O que trabalham numa área administrativa e pre- procedimento é agil. Outra vantagem relaciocisam ter acesso a sistemas de passaporte, siste- na-se com a maneira que o MP prepara a sua mas de procurados e perdidos, Interpol e outras denúncia numa linha temporal. Ele acompanha bases de dados. Nós vamos dar aos membros um evento criminoso do início, desde a hora do Ministério Público que trabalham, por exem- em que a Polícia começa a investigar, até o fim plo, na área de meio ambiente, oportunidade de do evento. Ele pode até ajudar a Polícia dizendo: acessar os sistemas do governo, do Ibama. “A denúncia sobre este evento criminoso já está Existem bases de dados que são de consulta pronta. Vamos explorar o outro evento pois pree que não estão sob segredo de justiça. Essas ciso reforçar as provas”. Dessa maneira vamos bases de dados que são de consulta – se eu quero interagir muito mais rápido. A gente não vai mais saber se uma pessoa tem uma arma registrada ficar perdendo tempo com um evento criminoso, na Polícia Federal, qual veículo ela utiliza, qual uma vez que o Ministério Público disse que já propriedade que ela tem, são acessíveis a todos está satisfeito com as provas produzidas para o os integrantes do sistema. E tem a outra parte, oferecimento da denúncia. maio/junho de 2008
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Capa
Tráfico de drogas: aumento do crime ou da repressão? Pesquisa do Núcleo Criminal da PRR1 aponta crescimento de quase 50% no número de processos sobre tráfico internacional de drogas que passam pela Procuradoria. Carolina Pompeu
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CLEITON ANDRADE
o último dia 25 de janeiro, a Justiça Feprocessos sobre os temas que passam, diariaderal negou habeas corpus a um traficante mente, pelos gabinetes da Procuradoria. Hoje, preso em flagrante com mais de 700 quilos esses dados já mostram resultados da atuação de maconha em Minas Gerais. No Pará, um intedo MPF. Em dois anos, o aumento no número grante de quadrilha responsável por tráfico de code processos sobre tráfico internacional de caína desde a Colômbia também está preso – seu drogas é evidente. Em 2006, foram 435; em pedido de liberdade provisória foi negado em 29 2007, 645 – 48,3% a mais. O número de saíde janeiro. Esses casos representam uma das de processos com maniparcela da atuação do Ministério Públifestação da PRR1 aumentou co Federal (MPF) no combate ao tráfico proporcionalmente – de 408 internacional de drogas – uma atuação para 598. “Quem é pego tracrescente, se levados em conta dados Também é possível coficando drogas norcolhidos pela Procuradoria Regional da nhecer os estados que mais malmente faz disso registram processos sobre o República da 1ª Região (PRR1). sua profissão.” Desde 2006, a Coordenadoria de Trátema. Entre as 14 unidades fico Internacional de Entorpecentes, da federação que integram parte do Núcleo Criminal da PRR1, coa primeira região judiciária leta e analisa informações a respeito dos (Acre, Amapá. Amazonas, Bahia, Distrito Federal, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Piauí, Rondônia, Roraima e Tocantins), Amazonas, Goiás e Mato Grosso somam aumentos mais significativos entre 2006 e 2007: 102%, 56% e 32%, respectivamente. Segundo o estudo, a maior parte desses processos são habeas corpus ou apelações criminais em que o MPF teve que se manifes-tar. Em 2007, só de habeas corpus, foram 321 processos – quase metade de todos os que passaram pela PRR1. Dois deles são os casos de Pará e Minas Gerais. No Pará, uma quadrilha trazia drogas da Colômbia até Marajó e, depois, na região metropolitana de Belém, manipulava e comercializava o produto. Investigações do MPF e das Polícias Federal e Civil levaram à apreensão de 129 quilos de cocaína e à Oswaldo José Barbosa : “Soltar o traficante é colocá-lo novamente no comércio.”
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LUIZ ANTÔNIO SILVA
Carlos Alberto Vilhena organizou a pesquisa da Coordenadoria de Tráfico Internacional de Entorpecentes da PRR1. rápida do Poder Judiciário em prisão de boa parte do grupo. No processos sobre o tema; ou, simpedido de liberdade provisória, plesmente, aumento no número a manifestação da PRR1 foi pela de crimes desse tipo cometidos manutenção da prisão. A Justiça no Brasil. “O aumento de caFederal acolheu o pedido do MPF e Carlos Vilhena explica que a sos pode ter diversas manteve os acusados presos. resposta para a questão está no causas, entre elas Em Minas Gerais, a história se desenvolvimento da pesquisa, maior eficácia da PF e com coleta de mais dados e enrepetiu. Os 700 quilos de maconha encontrados estavam em uma araresposta mais rápida trecruzamento das informações. dora carregada por um caminhão do Poder Judiciário” “Este é apenas o início do trana estrada. O habeas corpus tambalho”, afirma o procurador: “A bém foi negado a pedido do MPF. O tendência é que seja feito em procurador regional da República cada gabinete, com o trabalho de Oswaldo José Barbosa Silva, autor cada procurador, para que assim do parecer da PRR1, afirma que a Lei 11.434, de possamos avaliar a efetividade do nosso tra2006, proíbe a liberdade provisória em caso de balho na área criminal.” tráfico de drogas. “Quem é pego traficando drogas normalmente faz disso a sua profissão.” exProcessos sobre 2006 plica o procurador: “Soltar o traficante é colocá2007 Diferença tráfico de drogas lo novamente no comércio.” O aumento de casos como esses identificados pela pesquisa da Coordenadoria de Tráfico 435 Entraram na PRR1 48% 645 Internacional de Entorpecentes pode ter diversas causas, segundo o coordenador da área, Carlos Alberto Vilhena, procurador regional da Repúbli408 Saíram da PRR1 598 47% ca. Entre elas estão: maior eficácia da Polícia Federal no combate ao tráfico; resposta mais maio/junho de 2008
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Artigo
A FRANÇA E A GARDE À VUE: DETENÇÃO POLICIAL CONTROLADA PELO PROCURADOR DA REPÚBLICA Alexandre Camanho de Assis
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edida constritiva excepcional, prevista nos artigos 63 a 65 do Código de Processo Penal francês, a garde à vue é a detenção1 provisória, feita por um oficial da polícia judiciária (gendarme ou funcionário de polícia), nas dependências da polícia ou da gendarmeria e durante um período legalmente previsto, de alguém que, por necessidades do inquérito, deve ficar à disposição dos serviços da polícia. Esta detenção deve ser imediatamente informada ao procurador da República2. Uma pessoa pode ser detida para ser interrogada, seja por ter cometido um crime3 ou um delito, seja por existir contra si uma ou várias suspeitas plausíveis de que ela cometeu ou tentou cometer uma infração. Somente suspeitos podem ser detidos; testemunhas não podem, a princípio, gardes à vue no curso de um inquérito. Quando não existe qualquer razão plausível para suspeitar que uma testemunha cometeu ou tentou cometer uma infração, ela somente pode ser instada pelo oficial de polícia judiciária a permanecer na repartição policial (mas não detida) o tempo estritamente necessário à sua oitiva. Todavia, uma testemunha pode acabar sendo detida, frente à suspeita de que ela cometeu ou tentou cometer uma infração. Ela deve, então, comparecer, prestar juramento e depor. Seu não-comparecimento injustificado induz a uma
detenção pode estender-se por 4 dias. Dada a evidente exiguidade de tais prazos, a legislação já previu a possibilidade da detenção ser prorrogada pelo procurador da República. O detido deve permanecer nas dependências da Polícia ou da gendarmeria durante toda a detenção, e, de acordo com o caso, terá ou não que ser apresentado àquele antes que este decida sobre a prorrogação. No caso de inquérito, esta prorrogação pode ser decidida, excepcionalmente, sem a apresentação do garde à vue ao procurador da República; nessa hipótese, a decisão deve ser escrita e motivada. Tendo havido flagrante, a autorização de prorrogação sujeita-se à apresentação prévia do detido ao procurador da República: findas as 24 horas da detenção, a pessoa detida deve ser obrigatoriamente apresentada àquele4.
multa de 3 750 euros.
3 Crime, no Direito francês, é uma infração de maior gravidade – e portanto vinculada a penas mais duras –, sendo de menor gravidade o delito e a contravenção a mais branda.
A detenção dura 24 horas, podendo ser prorrogada em 24 horas segundo autorização escrita do procurador da República; todavia, nos casos de tráfico e de uso de drogas e de terrorismo, a
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1 A tradução do termo Garde à Vue é áspera, à falta de uma figura equivalente exata no Brasil. Geramente, traduz-se por “Custódia”; aqui, utilizar-se-á “Detenção”, porque a pessoa fica detida, sem que isso se confunda com a detenção-pena. Além disso, um formulário da polícia francesa, vertido para o Português especialmente para os detidos lusofônicos, registra “Detenção Provisória”. Tampouco o instituto francês se identifica com a antiga “Prisão para Averiguação”, cujo uso viu-se desautorizar pela Constituição de 1988, desde logo pela falta de previsão legal, de que não se ressente o instituto francês. 2 Na França, o procurador da República é um magistrado do parquet – o Ministério Público – que atua perante o Poder Judiciário, encarregado de ações públicas e destacadamente as penais, embora não sujeitas ao princípio da indisponibilidade.
4 A partir de 1º de junho de 2008, o procurador da República ou o juiz de instrução terá a possibilidade – de ofício ou a pedido do oficial de polícia judiciária – de determinar o registro audiovisual dos interrogatórios dos detidos por crime, realizados nas dependências da polícia ou da gendarmeria.
Artigo
Direitos do detido tada de observações suas decorrentes de sua enA pessoa5, detida deve ser imediatamente trevista. informada de seus direitos, das disposições Em caso de prorrogação da detenção, esta relativas à duração da detenção, das razões de entrevista pode ter lugar quando do início sua prisão e de todas as acusações contra si, da prorrogação (ou seja, a partir do fim das bem assim a natureza da infração sobre a qual 24 horas). Para as detenções relativas a fatos se investiga6. A pessoa quando detida, tem o direito como participação de quadrilha, proxenetismo de inormar este fato à sua família, ou a uma grave7, extorsão, destruição ou roubo cometido pessoa com quem vive habitualmente, ou a seu por grupo organizado, a entrevista não pode ocorempregador, o mais tardar em um rer senão após 48 horas, cheganprazo de três horas a contar do do a 72 horas para as detenções momento da detenção; entretanto, relativas a casos de terrorismo e “Expirando o prazo de acordo com as necessidades da tráfico de entorpecentes. máximo de 48 horas, a investigação, o oficial de polícia Expirando o prazo máximo garde à vue deve ser judiciária pode se opor a tal diordinário de 48 horas, a garde à imediatamente posto reito de comunicação. Neste caso, vue deve ser imediatamente posem liberdade ou apreé o procurador da República, sento em liberdade ou apresentado sentado ao procurador do imediatamente comunicado ao procurador da República, que da República.” disto, quem deve decidir. decidirá do seguimento a ser O detido pode pedir para dado. ser examinado por um médico Superado o período de seis durante as primeiras 24 horas de sua detenção. Se não o fizer o in5 Menores podem ser detidos, de acordo com as circunstâncias. teressado, pode fazê-lo um membro da família, Menores de 10 anos não podem ser detidos ou retidos em nenhuma circunstância; dos 10 aos 13, não podem ser detidos mas sim retidos o oficial de polícia judiciária ou o procurador da em dependências policiais, de acordo com as necessidade da invesRepública. Quando seja indispensável para as tigação a após autorização de um magistrado (e sob seu controle) e necessidades do inquérito proceder as perícias caso de crime ou de delito punido com a pena mínima de 5 anos de prisão, por um período de 12 horas renovável uma vez. corporais invasivas de uma pessoa detida, elas Menores de 13 aos 16 anos podem ser detidos inicialmente por 24 não podem ser realizadas senão por um médico horas, se existirem indícios de crime ou de sua tentativa. Informa-se o procurador da República desde a efetivação da medida, e há posespecialmente requisitado para este fim. sibilidade de prorrogação por mais 24 horas no máximo se a pena da Em louvor à presunção de inocência, a Lei infração for ao menos de 5 anos de detenção. O menor de 16 a 18 anos também pode ser detido – por 24 horas Guigou, de 2000, permitiu à pessoa detida prorrogáveis por no máximo mais 24 horas –, se houver indícios de entrevistar-se com um advogado já a partir do cometimento ou tentativa de cometimento de uma infração penal; início de sua detenção. Se o detido não tem aqui, o procurador da República deve igualmente ser avisado no momento da efetivação da medida. condições de designar um defensor ou não 6 Os investigadores devem informar ao detido de seus direitos em consegue contactá-lo, pode pedir à Ordem dos um idioma que ele compreenda. Há um “formulário de notificação” Advogados que o nomeie. A entrevista – cuja traduzido em diversas línguas, notadamente em alemão, inglês, espanhol, italiano, flamengo, português, árabe e russo. Deficientes auditiconfidencialidade é assegurada – pode durar vos devem ter seus direitos notificados por um intérprete, mediante somente meia hora; embora o advogado não comunicação de sinais. 7 Ou seja, com recurso à violência contra as prostitutas. possa ter acesso ao inquérito, pode pedir a junmaio/junho de 2008
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Artigo
meses a contar do fim da detenção, toda pesdetenções. Com efeito, os policiais viram nas soa detida e que não viu prosperar persecução mudanças legislativas – às quais, inicialmente, penal contra si pode indagar ao procurador se opuseram – uma autorização para seu uso da República sobre o seguimento dado, ou en masse. Embora a cidadania proteste, fato suscetível de ser dado, ao procedimento. é também que o tráfico de drogas e os crimes Esta demanda deve ser endereçada cometidos por imigrantes clandestinos (os mediante carta registrada e com “sans-papiers”) se agravaram, aviso de recebimento. Esta possiforçando a polícia a se valer do bilidade não diz respeito a pessoas instituto; isso, fora o medo do “A discussão sobre a detidas por fatos como a participagarde à vue passa pelo terrorismo. ção em quadrilha, proxenetismo A discussão sobre a garde à vue recrutamento e formagrave, extorsão, destruição ou roupassa hoje pelo recrutamento e ção dos agentes públibo cometido por quadrilha. pela formação dos agentes públicos e pela impunidade Há uma histórica indulgência jucos, e pela impunidade que o exque o excesso de poder cesso de poder alegadamente lhes dicial em relação à garde à vue. Por mais de trinta anos (1960-1992), a alegadamente lhes dá.“ dá. Mas não parece haver perspecCorte de Cassação recusou-se a detiva de que se abra mão de seu uso clarar a nulidade de certas detenenquanto certas tendências sociais ções aparentemente viciadas, ao não mudarem na França – o que argumento de que se as ilegalidades cometidepende, acima de tudo, de políticas públicas das ensejavam a responsabilidade pessoal do eficazes, e não de distensão legislativa. agente de polícia, tanto não conduzia a uma contaminação da “busca e estabelecimento da verdade”8. Todavia, e provavelmente por conta *Alexandre Camanho de Assis é procurador regional de sua condenação na Corte Européia de Direda República e coordenador do Núcleo Criminal da 9 itos Humanos em 1992 , a França reviu a legisProcuradoria Regional da República da 1ª Região. lação da medida. Já em 1993, inovações legais proclamaram os até então inexistentes direitos do garde à vue. Desde então, a Corte de Cassação debruça-se mais e mais sobre o instituto, à luz dos direitos do detido. Parece não haver questionamento acerca da 8 constitucionalidade deste instrumento policial: Mais que isso, a Câmara Criminal da Corte constantemente disse que a legislação do Garde à Vue era compatível com as disposições da a garde à vue tem uma expressiva jurisprudênConvenção Européia de Direitos Humanos, e notadamente com seu cia da Corte de Cassação, limitada, contudo, à artigo 5, § 3 – que, nada obstante, diz que toda pessoa presa ou detida deve o quanto antes ser conduzida perante um juiz. sua legalidade em casos concretos, e às hipóte9 Affaire Tomasi contre France, CEDH, 12850/87, arrêt du 27 août 1992. ses de sua nulidade. Nada obstante, a medida Suspeito de ter participado de um atentado perpetrado em Sorbovem se tornando cada vez mais controvertida Ocagnano (Córsega) na noite de 11 de fevereiro de 1982, o requerente na França; com as adaptações recentes da foi detido. Ao longo de sua Garde à Vue, Tomasi sofreu « traitements inhumains et dégradants ». Neste caso, a Corte Européia de Direitos legislação, a Polícia passou a utilizá-la já não Humanos estabeleceu que a gravidade, mesmo excepcional, dos fatos mais como medida excepcional, mas sistemátinão pode constituir um motivo de detenção a não ser que existam indícios suficientes contra a pessoa detida. ca. Denuncia-se, hoje, a banalização de tais
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Doutrina
ANOTE AÍ O que é crime federal? A competência da Justiça Federal é expressamente descrita pela CF/88, em seu art. 109. Aquilo que não couber a ela nem às outras Justiças Especializadas caberá, por exclusão, à Justiça Estadual. Ressalte-se que essa competência é numerus clausus – o legislador infraconstitucional não pode criar novas situações ensejadoras da competência da Justiça Federal sem a devida e prévia previsão constitucional. Além das hipóteses expressas, há a competência criminal genérica da Justiça Federal, delineada no inciso IV do art. 109 da CF. Comumente, para que reste configurada essa competência, são necessários três requisitos: 1) a presença de ente federal privilegiado no pólo passivo da lide criminal; 2) o reflexo do delito em bem, interesse ou serviço de ente federal; e 3) a ocorrência de prejuízo ou dano a ente federal. Como é genérica, essa competência abarca todos os tipos de condutas criminosas, de qualquer natureza, estejam elas descritas no Código Penal ou em leis extravagantes – ressalvadas as competências criminais da Justiça Eleitoral e da Justiça Militar. É irrelevante o sujeito ativo, bem como se o crime é consumado ou tentado, doloso ou culposo. No mesmo contexto estão os crimes praticados por ou contra servidor público federal: parte-se da premissa de que são infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas. Para firmar a competência da Justiça Federal nesses casos, a jurisprudência pacificou o entendimento de que são necessários dois requisitos: 1) o delito deve ser praticado contra servidor público federal no exercício de suas funções; e 2) deve ter relações com as funções exercidas pelo servidor1.
Conclui-se, portanto, que a competência criminal da Justiça Federal é fixada pelo interesse da União, que pode ser direto ou indireto, imediato ou mediato. Assim, possível ser vista sob dois aspectos: ratione personae (competência criminal geral); ratione materiae (competência criminal específica). Na competência criminal genérica, o interesse do ente federal é direto e imediato, visto que a U-nião, autarquia federal ou empresa pública fede-ral é atingida pela infração e dela se torna vítima. Já na competência criminal específica, a União, apesar de não ser diretamente atingida, tem interesse em apurar e julgar delitos que se propõe a combater. Seja geral, seja específica, a competência criminal da Justiça Federal é absoluta. Algumas súmulas destinam-se a determinar aspectos específicos da competência da justiça federal: Súmula 38 STJ – “Compete à Justiça comum Estadual comum, na vigência da Constituição de 1988, o processo por contravenção penal, ainda que praticada em detrimento de bens, serviços ou interesse da união ou de suas entidades.” Súmula 42 STJ – “Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar as causas cíveis em que é parte sociedade de economia mista e os crimes praticados em seu detrimento.” Súmula 140 STJ – “Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar crime em que o indígena figure como autor ou vítima.” Súmula 115 do extinto TFR – “A Justiça Federal julga apenas os crimes contra a organização do trabalho quando tenham por objeto a organização geral do trabalho ou direitos dos trabalhadores considerados coletivamente.” 1 É o que se infere da leitura da súmula 98 do extinto TFR: “Compete à Justiça Federal processar e julgar os crimes praticados contra servidor público federal, no exercício de suas funções e com estas relacionadas”, e Súmula 147 do STJ: “Compete à Justiça”.
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PROCURADORIA GERAL DA REPÚBLICA Telefone: (61) 3105-5100 http://www.pgr.mpf.gov.br/ PROCURADORIA REGIONAL DA REPÚBLICA DA 1ª REGIÃO Telefone: (61) 3317-4500 http://www.prr1.mpf.gov.br/ ESCOLA SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO DA UNIÃO Telefone: (61) 3313-5165 http://www.esmpu.gov.br/ DIREÇÃO GERAL DA POLÍCIA FEDERAL Telefone: (61) 3311-8501 http://www.dpf.gov.br/ Para ler o boletim eletrônico do Núcleo Criminal da PRR1, acesse: http://www.prr1.mpf.gov.br/boletimcriminal/