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combate ao

CRIME

ISSN 1983-1080

Ano 1 - n. 3 setembro / dezembro 2008

Revista do Núcleo Criminal da Procuradoria Regional da República da 1a Região

História roubada MPF combate crimes contra o patrimônio cultural

Sistema penal brasileiro

Wagner Gonçalves explica problemas e propõe soluções

Cooperação internacional

Delegado italiano conta como seu país enfrenta o crime organizado e a lavagem de dinheiro


Editorial

Ao leitor Quinze anos de reclusão solitária deram ao prisioneiro de “A aposta” – conto de Tchecov – uma sabedoria sobre-humana, que o fez desdenhar até mesmo os milhões que receberia após o cumprimento da pena; tornara-se, afinal, melhor que o homem ordinário. Em quinze anos, o apostador viu-se cercar apenas de bons livros e boa música; bastaram-lhe a informação e a sensibilidade para a iluminação. História excepcional que, no entanto, seria um conto fantástico no Brasil – ninguém cumpre quinze anos, não há preocupação formativa do recluso, a superlotação prospera, o rico não cumpre pena alguma, o pobre é depositado, a prescrição e a progressão jamais lhe favorecem. Algo está errado no sistema penal brasileiro – tudo. Nosso coordenador da Câmara Criminal, Wagner Gonçalves, aborda o assunto com ênfase naquilo que nos toca de perto: o papel do Ministério Público Federal nessa grande desconstrução em curso, cujo resultado ainda é incógnito. Certo é que, enquanto isso, a criminalidade atravessa fronteiras: provam-no os tráficos de obras de arte – aqui abordado, numa entrevista exclusiva com o expert Noah Charney, diretor da Association for Research into Crimes against Art (Arca) –, de drogas, de seres humanos, de armas, a lavagem de dinheiro. Ministérios Públicos de diversos países cooperam no enfrentamento de problemas e o Brasil entrou decididamente nesse assunto, como explica o subprocurador-geral Eugênio Aragão. Mais que cooperar, aprender com experiências alheias pode ser muito enriquecedor. Renato Peres, delegado de polícia da Itália e adido no Brasil, conta como seu país encaminhou suas questões criminais e como Ministério Público e polícia acertaram-se, o que só contribuiu para maior efetividade no combate ao crime. Pelo visto, ainda há muito a aprender. É necessário cooperar, também, com os órgãos de fiscalização. A PRR1 associou-se aos membros do Ministério Público no Tribunal de Contas da União para buscar maior celeridade na punição dos prefeitos que dilapidam o patrimônio, apropriando-se das verbas federais cuja destinação só poderia ser em favor da coletividade municipal. Para encerrar, Combate ao Crime apresenta dois temas que orbitam nosso cotidiano: a prisão preventiva – segundo a legislação alemã – e os limites temporais da interceptação telefônica. Refletir sobre a eficácia dos instrumentos legais é, afinal, imprescindível em um país onde, aqui e ali, Estado de Direito é tratado como sinônimo de irresponsabilidade e de liberdade a qualquer custo para uns e de danação eterna para outros.

Alexandre Camanho de Assis

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04 CRIME 07 combate ao

Wagner Gonçalves

Coordenador da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF

Entrevista

Ano 1 | n. 3 | ISSN 1983-1080

Expediente

Combate ao crime

Revista do Núcleo Criminal da Procuradoria Regional da República da 1a Região*

Procurador-chefe

Ronaldo Meira de Vasconcellos Albo

Coordenador do Núcleo Criminal e editor-chefe Alexandre Camanho de Assis

Pauta e Redação

Carolina Pompeu Tatiana Pereira Almeida

Projeto Gráfico Toscanini Heitor

Diagramação Reinaldo Dimon

Ilustrações

André de Sena

Revisão

Cecilia Fujita Lizandra Nunes Renata Filgueira Costa

Fale conosco

secretarianucrim@prr1.mpf.gov.br

Co-edição

*A Procuradoria Regional da República da 1a Região (PRR1) é a unidade do Ministério Público Federal (MPF) que atua no Tribunal Regional Federal da 1a Região, a segunda instância do Poder Judiciário para as seguintes Unidades da Federação: Acre, Amapá, Amazonas, Bahia, Distrito Federal, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Piauí, Rondônia, Roraima e Tocantins.

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História roubada

Desafios enfrentados pelo MPF no combate aos crimes contra o patrimônio cultural

Capa

Renato Peres

Delegado de polícia e adido italiano no Brasil

Entrevista

Trabalho conjunto MPF e MP/TCU atuam em conjunto contra desvios de verbas em prefeituras

Reportagem

Aspectos legais da prisão preventiva na Alemanha

Alexandre Camanho de Assis

Artigo

Limites de atuação das polícias legislativas José Robalinho Cavalcanti

Artigo Interceptação telefônica e limite temporal

Alexandre Camanho de Assis e Tatiana Pereira Almeida

Doutrina

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Entrevista

Wagner Gonçalves

O sistema penal está completamente falido Em entrevista, o subprocurador-geral da República Wagner Gonçalves comenta os problemas do processo penal no Brasil Desde maio deste ano, o subprocurador-geral da República Wagner Gonçalves é coordenador da 2a Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (MPF), órgão que tem o papel de coordenar a atuação dos membros do MPF em matéria criminal e naquelas relacionadas ao controle externo da atividade policial. Wagner Gonçalves foi entrevistado pelo procurador regional Alexandre Camanho de Assis para a Combate ao Crime. Na entrevista, os procuradores criticam a falta de efetividade do processo penal e propõem melhorias para a atuação do Ministério Público. Alexandre Camanho de Assis – A minha impressão é que a persecução penal no Brasil vive momentos difíceis hoje em dia. O que Wagner Gonçalves, coordenador da 2a Câmara de Coordevocê acha? nação e Revisão do MPF, é entrevistado pelo procurador Wagner Gonçalves – Enfrentamos atualmente uma regional da República Alexandre Camanho de Assis. profunda crise do sistema penal porque os crimes tradicionais do patriO sistema penal está completamente mônio, aqueles crimes de ladrão de falido porque quem pode pagar pelos galinha, estão sendo apenados e o proadvogados nunca vai para cadeia: são “Na prática, o cesso anda rápido. Agora, com os crimuitos recursos e nenhum limite para habeas corpus mes mais sofisticados, que envolvem o habeas corpus. Na prática, o habeas corrupção, lavagem de dinheiro, descorpus está servindo para quase tudo, está servindo vio de recursos públicos, sonegação uma espécie de revisão criminal. Isso para quase fiscal, passa a haver uma complexidaé profundamente desastroso porque, de de penalização que decorre da didessa maneira, não há segurança tudo” ficuldade de apuração, inerente a esse jurídica. Afinal, a pena também tem tipo de crime. Nós vamos mexer com um aspecto social, tem um aspecto contabilidade sofisticada, paraísos fisretributivo para a família da vítima e cais, com transações bancárias às vepara a própria vítima. Se voltarmos para zes muito complexas e, ao mesmo tempo, com bons o “olho por olho, dente por dente”, nós regredimos. advogados. Eles utilizam de tal maneira o processo O que estamos vendo no sistema penal hoje é penal, além de abusar do habeas corpus, que esses impunidade, não para os pobres coitados, mas para casos acabam não tendo condenação. E, se há condequem tem condição econômica: este dificilmente nação, acaba sendo menor, porque praticamente será será punido. impossível executar essa pena, dado o arcabouço peDe outro lado, o sistema cria uma situação esnal que temos hoje. drúxula para todos os agentes. Mesmo tendo em

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vista a materialidade de um crime e a sua autoria, muitas vezes não há possibilidade de execução, o que dá um sentimento de desânimo em todos nós, principalmente em juízes de primeira instância, promotores e procuradores. Critica-se muito o Judiciário por excesso de prisões temporárias e preventivas. Contudo, para acabar com as prisões temporárias e preventivas, é preciso haver execução da pena. Há um sentimento inato da polícia judiciária, do Ministério Público e do juiz de que a única coisa que vai acontecer é o recebimento da denúncia e a eventual prisão temporária ou preventiva, porque o resto não segue adiante. AC – Hoje o Judiciário age preocupado em enumerar prerrogativas, franquias, benefícios e direitos em prol dos acusados e dos criminosos como se ainda estivéssemos na ditadura. Passados 20 anos da Constituição Wagner Gonçalves: “O que estamos vendo no sistema penal de 88, o Judiciário ainda não se deu conta hoje é impunidade para quem tem condição econômica”. de que um pilar do Estado de Direito é a segurança jurídica, o sentimento de justiça. Eu corpus e as prisões arbitrárias. Os seus “descendenvejo que o Judiciário empenha-se em enutes” são aqueles que hoje se utilizam de todo ideário merar mais e mais benefícios e, com isso, de esquerda para defender os bens aquinhoados. Nós produz mais e mais regalias para o acusado. não queremos tirar o contraditório, o legítimo direito No entanto, não existe um movimento do Jude defesa, mas não podemos transformar o processo diciário em prol de tornar efetivo o cumpriem culpa, em culpa inclusive de quem denuncia. É mento da lei penal, do processo penal. impossível um processo sem contraditório, mas pareWG – É comum ter-se uma sentença ce que, às vezes, a gente chega ao pontransitada em julgado e, em seguida, to de estar conduzindo o sistema para vir um habeas corpus, às vezes com haver contraditório no inquérito. uma questão processual, e anular “Não se pode o processo. Essa situação ilustra a AC – O Ministério Público fazer o controle insegurança jurídica que nós temos, tem papel de relevância na externo da a insegurança jurídica da vítima, dos persecução penal. Temos essa atores desse processo. interface com a polícia e temos atividade Sobre essa situação da defesa consas responsabilidades perante o policial de uma tante dos direitos preventivos indiviJudiciário. De alguma forma, duais, todo Estado Democrático de a persecução penal no Brasil maneira formal Direito deve fazê-lo. A questão é que, parece que não vai bem. Como e inócua” na verdade, nós viemos da ditadura. você vê o Ministério Público Aqueles que “mamavam” no Estado, nesse momento atual? que faziam as corrupções, foram aqueWG – Eu acho que a primeira atitude les que apoiaram a ditadura, que apoiarelevante seria dar proeminência ao ram o AI-5 em 68, inclusive suspendendo o habeas princípio da unidade. Essa é uma instituição que tracorpus. Essa criminalidade, na época contra o dinheibalha coesa. Ninguém quer tirar a independência funro público, é mais difícil de ser apurada. Todo esse cional de ninguém, mas o Ministério Público tem de pessoal tem uma mentalidade ligada ao Comando de ter como linha mestra a unidade de atuação. Nós teCaça aos Comunistas, ligado a essas organizações de mos várias responsabilidades nesse processo. Eu citadireita que defenderam a não existência do habeas ria uma falta de corregedoria. Se nós não temos uma setembro / dezembro 2008


corregedoria, é porque nossa lei é orgânica, profundamente corporativista, mais corporativista que o Judiciário. Eu acho também que precisamos ter um trabalho com a polícia. E aí vem o problema do controle externo, uma questão recorrente em nossa atuação. Eu acho que é necessário um trabalho de cúpula conjunto. Também não se pode fazer o controle externo da atividade policial de uma maneira formal e inócua. A Câmara está debruçando-se no tema. Já temos uma comissão para estudar isso. Quando eu fui presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), em 93, um dos temas do primeiro encontro que eu organizei em Blumenau foi o controle externo da ação policial – e essa questão não está resolvida até hoje. A idéia é estabelecer um programa de atuação em que determinadas investigações sejam feitas pela polícia e outras necessariamente com a participação do Ministério Público. Isso porque os membros do Ministério Público, que convivem com o Judiciário, vão saber melhor em que nível deve-se dar a prova e quais cuidados precisam ser tomados para que não haja o risco de nulidade nos tribunais. AC – Sempre considerei que na grande maioria dos casos a atuação da polícia é fundamental. Não há como substituirmos a expertise da polícia. Entretanto, há alguns casos em que os relatórios do sistema financeiro e de determinados órgãos técnicos estão de tal forma completos que é perda de tempo você entregar o material para polícia para que esta capeie aquilo como um relatório. Na verdade, quem acha que isso é produtivo desconhece que a unidade de polícia está abarrotada de inquéritos para relatar. Então isso é colocar a briga entre o Ministério Público e a polícia em primeiro plano e esquecer que as instituições estão juntas querendo também esta efetividade: a prisão, o cumprimento da pena. Em relação à responsabilidade do Ministério Público e às mudanças necessárias à instituição, você vê que poderia haver uma boa aceitação por parte dos colegas se a Câmara de Coordenação Criminal emitisse pautas de atuação mais seguras? Eu, por exemplo, sempre fui muito cioso da minha independência funcional, mas fui muito mais cioso da unidade da instituição. Tenho muita boa vontade como coordenador criminal na PRR1 para acatar

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Alexandre Camanho: “Hoje o Judiciário age preocupado em enumerar prerrogativas em prol dos criminosos como se ainda estivéssemos na ditadura”.

aquilo que vem da Câmara, porque historicamente falta uma coordenação criminal. Cada colega pode ter suas convicções acadêmicas, pessoais, de vida, de escola, de teoria, mas a Casa poderia dar um balizamento. O que você acha disso? WG – Eu sinto que há uma grande demanda pela atuação da Câmara. E não só nos processos internos, mas nessa articulação, nessa presença. É lógico que a Câmara tem limites para sua atividade de coordenação. Agora, eu creio que ela deva estabelecer balizas, enunciados, definir questões jurídicas para orientar os colegas a enfrentar temas espinhosos. A idéia principal é criar um planejamento estratégico da área criminal. Nós temos metas de ação anuais. Outra tarefa nossa é transformar a atuação do Ministério Público mais coesa; por exemplo, supomos que haja uma investigação grande que envolva quadrilha de tráfico, crime organizado. O colega precisa sempre se reportar ao procurador regional antes do habeas corpus. Esse regional, por sua vez, deve reportar-se ao colega do STJ. Em alguns lugares essa dinâmica funciona bem; em outros, nem tanto. Isso porque essa questão ainda não está amarrada como deveria. Esse acompanhamento dos tribunais superiores precisa ter uma estrutura melhor para que o procurador, quando vá para a sessão, saiba o que está sendo julgado sem ter a desculpa de que o habeas corpus entrou na última hora. Estas são questões fundamentais: tanto o revezamento quanto o entrosamento das diversas instâncias para uma grande máquina da unidade.


Capa

História roubada Os desafios enfrentados pelo Ministério Público no combate aos crimes contra o patrimônio cultural

Nos anos de 1960, a imagem de Nossa Senhora das Mercês feita por Aleijadinho foi furtada de uma igreja em Ouro Preto, Minas Gerais. Durante mais de 30 anos, a peça ficou sumida, até que se identificou a santa na coleção de um paulista. Depois de um longo caminho entre laudos técnicos e decisões judiciais, a imagem foi recuperada e devolvida à cidade. Esse é um exemplo da atuação do Ministério Público Federal (MPF) contra um tipo de crime que dificilmente consegue ser desvendado: o roubo de bens culturais. Desde falhas nos sistemas de segurança dos museus e igrejas até a falta de cooperação entre polícias internacionais, os problemas que levam ao furto de quadros, esculturas, jóias e outros bens culturais são muitos. Hoje, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) tem registradas quase mil peças tombadas furtadas, a maioria exemplares de arte sacra. Contudo, o número real de obras roubadas e levadas para fora do Brasil é incalculável; o motivo pode ser a falta de catalogação das peças. Para o subprocurador-geral da República Eugênio Aragão, as obras protegidas pela notoriedade dificilmente são roubadas, mas falta controle para aquelas que não são muito conhecidas da população. Os problemas no sistema de segurança abriram as portas para alguns crimes recentes contra bens cultu-

Alan Madrilis

Carolina Pompeu

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Além do quadro no museu Quando se fala em bem cultural, lembra-se imediatamente do quadro no museu, da escultura na igreja. Parte desconhecida dessa categoria de bens são os fósseis, as obras pré-colombianas sem registro e até mesmo os conhecimentos tradicionais. “Fósseis brasileiros são vendidos em toda a Europa, conhecimentos farmacológicos indígenas são traficados – esses também são casos alarmantes de furto de nossos bens culturais”, explica Eugênio Aragão.

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rais. Em dezembro de 2007, um quadro de Portinari e outro de Picasso foram levados do Museu de Arte de São Paulo (Masp). Esse crime foi desvendado, porém o furto de pinturas de Dali, Monet, Picasso e Matisse do Museu Chácara do Céu, no Rio de Janeiro, em 2006, nunca foi solucionado. “Essas fragilidades dos museus facilitam a ação dos criminosos e dificultam sua identificação”, alerta o procurador regional da República José Adércio. Para amenizar o problema, a Polícia Federal (PF) avaliou os sistemas de segurança de vários museus no Rio de Janeiro e sugeriu melhorias em cada instituição. Segundo o delegado Álvaro Palharini, essa estratégia faz parte do esforço da PF para prevenir esse tipo de crime. Essas iniciativas, contudo, encontram obstáculos na falta de recursos dos órgãos que deveriam ser responsáveis pelo resguardo de bens culturais no País. A procuradora Ana Cristina Lins, coordenadora do grupo de trabalho de membros do MPF que atuam no tema, destaca que instituições como o próprio Iphan, além dos Correios, do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) e outros, não têm pessoal qualificado nem recursos financeiros suficientes para conter esses furtos. O grupo de trabalho procura garantir esse aparelhamento, além de acompanhar as mudanças legislativas sobre o tema. Os procuradores do MPF parecem fazer coro quando se trata da falta de uma legislação brasileira efetiva sobre o furto de bens culturais. Eugênio Aragão explica que o problema não é a impunidade, mas as lacunas na lei, que não garantem prevenção nem repressão para esse tipo de crime. José Adércio acrescenta: “esse tipo de negócio acaba se tornando muito lucrativo e até menos arriscado que traficar armas ou drogas”. Hoje, segundo a Interpol, o Brasil já é o 4o colocado no ranking mundial de furto de obras culturais – só fica atrás dos Estados Unidos, da França e do Iraque.

José Adércio: “O MPF deveria tomar a iniciativa de fazer termos de cooperação para termos um inventário do que está lá fora”.

O patrimônio subaquático brasileiro é outro exemplo de prejuízos diários ao patrimônio cultural público. Ana Cristina explica que a autorização pela sua exploração é dada pela Marinha e que a maioria do material é coletada sem qualquer método arqueológico, “o que tem reflexos graves na pouca informação sobre o que foi explorado”. Além disso, quase metade do patrimônio arqueológico coletado acaba ficando nas mãos de quem o retirou do mar e nunca chega aos museus brasileiros. Desafios O caminho para resolver o problema do desvio do patrimônio cultural brasileiro é complicado e vai além dos simples alarmes nos museus e igrejas. José Adércio cobra uma atuação proativa do MPF: “Nós do Ministério Público devemos nos articular melhor com o Iphan, os Ministérios Públicos Estaduais, os institutos estaduais de proteção, a PF e mesmo a Receita Federal, os Correios e a própria Igreja, para enfrentarmos o problema e superar eventualmente zonas grises de atribuições”. A cooperação internacional também foi citada como uma saída pelo procurador: “o MPF deveria tomar a iniciativa de fazer


Fonte: www.noahcharney.com Alan Madrilis

Noah Charney: diretor da Association for Research into Crimes against Art (Arca) Eugênio Aragão, subprocurador-geral da República, membro da Assessoria de Cooperação Jurídica Internacional do MPF.

termos de cooperação com organismos internacionais e com os MPs, fiscais e demais autoridades estatais de outros países, além das respectivas polícias, pelo menos para termos um inventário do que está lá fora”. A Assessoria de Cooperação Jurídica Internacional do MPF (ACJI) preparou uma reunião entre membros dos Ministérios Públicos de países ligados ao Mercosul para tratar do tema no último mês de novembro. Além do Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai, Venezuela, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador e Peru estiveram em Brasília para debater, entre outros assuntos, formas de cooperação contra o tráfico internacional de bens culturais. Eugênio Aragão, membro da ASCJI, lembra que a cooperação entre diversos países, principalmente os de fronteira, é o melhor caminho para evitar que os bens culturais brasileiros continuem a parar nas mãos de traficantes ou colecionadores criminosos. “Num país com tantos problemas, tende-se a deixar a proteção dos bens culturais para segundo plano, o que é um equívoco”, afirma José Adércio, “os bens culturais são testemunhos do que fomos e somos. Somos, em grande parte, resultado dessa memória. Se ela habita apenas os âmbitos mais remotos de nossa mente, tende a desaparecer, fazendo com que percamos o eixo de nossa identidade, do que somos e queremos como indivíduos e como povo”.

Tráfico ilegal de bens culturais rende pelo menos US$ 6 bilhões ao ano Noah Charney é diretor da Association for Research into Crimes against Art (Arca), uma instituição estadunidense não-governamental de consultoria sobre crimes contra a arte. A Arca não tem fins lucrativos. Policiais, governos, museus, igrejas e outras instituições públicas informam à Associação a ocorrência de crimes não-resolvidos contra a cultura mundial. A partir daí, um grupo de consultores especializados procura desvendar o caminho percorrido pelos objetos de arte traficados e seus traficantes. A Arca também publica um jornal acadêmico e mantém um programa de mestrado sobre crimes contra a arte na Itália. Em entrevista exclusiva à Combate ao Crime, Noah Charney fala sobre os lucros do tráfico internacional de bens culturais e as formas de prevenção. Para Noah, os Estados têm falhado na proteção de seus bens e no controle do comércio mundial. Combate ao Crime – Você pode estimar o lucro do mercado gerado pelo tráfico internacional de obras de arte no mundo? Noah Charney – A estimativa oficial é de US$ 6 bilhões por ano, mas com certeza está subestimado, porque só podemos contar com as perdas reportadas e crimes de arte conhecidos. A maior parte dos crimes envolvendo obras de arte, particularmente saques de antigüidades, nunca é reportada ou descoberta. Ensetembro / dezembro 2008


tão, o número total real é muito maior. Todos os anos, esse tipo de crime é listado pela Interpol como o terceiro mais alto montante de tráfico criminal durante os últimos 40 anos. Combate ao Crime – Por que esse tipo de crime acontece e como os governos podem se prevenir? NC – O crime acontece porque existe grande demanda por obras artísticas e antigüidades e é muito difícil fazer parte do mercado de arte legal – é o mercado multibilionário legal com menos regulamentação do mundo. Recibos não são guardados, obras são vendidas em dinheiro, a documentação é rara mesmo com objetos legítimos e existe uma demanda tão grande por novas peças no mercado que até negociadores legítimos e colecionadores facilitam a atividade criminal devido a grande vontade de tê-los – querendo que um lindo objeto se torne legítimo e não observando com rigor sua origem. Todos são beneficiados se uma obra de arte é vendida: o dono, o mediador, o colecionador; até os estudiosos, que podem ter agora um novo objeto para estudar. Mas o mundo da arte tende a não perceber, ou tenta esquecer, que a maior parte dos crimes de arte desde 1960 tem sido perpetuada por, ou em nome de, sindicatos do crime organizado, como o tráfico de armas e drogas. O governo precisa proteger sítios arqueológicos não escavados (provedor de grande parte da arte ilegal), regular a exportação da arte cuidadosamente e ter certeza de que os museus estão mais seguros que já estiveram no passado. O governo pode ainda instituir requerimento legal para compradores de arte, para provar que a obra em questão não tem qualquer herança ilegal. Hoje em dia, na maioria dos paí-ses existe uma lei mais passiva, segundo a qual você deve estar apto a provar, se questionado, que, quando comprou a peça, você não estava ciente de nenhum passado ilegal. Ao contrário disso, você deve provar ativamente que não existe nenhum passado ilegal, antes de comprar a obra – o fardo deve estar na responsabilidade dos negociadores, casas de leilão e compradores. Mas isso seria extremamente impopular no mercado da arte. Combate ao Crime – Qual é o papel do Ministério Público dos Estados Unidos no combate ao tráfico de bens culturais? NC – O FBI (Federal Bureau of Investigation – órgão estadunidense de inteligência contra o crime) tem uma unidade de crimes contra a arte, fundada em 10

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2002, e tem sido efetiva. Mas há relativamente poucos crimes de arte nos Estados Unidos. Os Estados Unidos têm poucas centenas de roubos registrados por ano. No entanto, a Itália tem por volta de 20 mil registros. Os Estados Unidos, tirando a equipe do FBI, têm feito pouco ou nada para prevenir os crimes de arte. Eles tendem a não levar a sério qualquer coisa que envolva a arte. A equipe de arte do FBI tem trabalhado muito bem, mas a melhor polícia de arte no mundo é o Carabinieri, na Itália, comandada pelo vice-comandante Coronel Giovanni Pastore. Eles têm mais de 300 policiais de arte em tempo integral, em comparação aos doze dos Estados Unidos e aos seis do Reino Unido. A maior parte dos países não tem nenhum, porque o governo e a polícia não entendem como os crimes de arte funcionam e, na maioria das vezes, porque não foi conduzido quase nenhum estudo. É onde entra a Arca, estudando crimes de arte pela primeira vez e informando o público geral e oficial. Confira o sítio da Arca em <www.artcrime.info>


Renato Peres

Entrevista

Cooperação internacional no combate ao crime Delegado de polícia italiano fala sobre como seu país enfrenta o crime organizado, a lavagem de dinheiro, os problemas do sistema penitenciário e a internacionalização dos crimes Renato Peres é adido civil da Embaixada da Itália no Brasil. Ele é delegado de polícia desde 1989 e, em quase 20 anos de experiência, especializou-se em ações contra terrorismo e tráfico de drogas. Há oito anos no Brasil, Peres trabalha em investigações sobre o tráfico de entorpecentes à Europa. Em entrevista à Combate ao Crime, Renato Peres conta como funciona o sistema penal na Itália e o que o país vem fazendo para melhorar sua atuação contra diferentes tipos de crime.

me organizado. Também existe em Roma a Direção Nacional Anti-Máfia, composta por procuradores cujo papel é coordenar as atividades investigativas de todas as Direções Distritais Anti-Máfia. O trabalho dessas Direções é importante porque um crime de máfia não pode ser investigado como um crime comum. Um crime cuja origem pode ser passional ou vingativa, por exemplo, deve ser investigado de forma diferente de um homicídio de máfia. Isso porque, claramente, por trás desse homicídio há todo um histórico de investigações já Combate ao crime – Como feitas. A metodologia investigativa é funciona o relacionamento entre diferente. Nosso código de processo a polícia e o Ministério Público penal na Itália prevê também limite “O código de na Itália? temporal para as investigações. Uma processo penal Renato Peres – Pelo novo código de investigação para um crime comum processo penal italiano, publicado nos não pode durar mais que seis meses. na Itália prevê anos 90, foi criado o Ministério Público O Ministério Público pode pedir uma limite temporal investigador. Por lei, o Ministério Públiprorrogação de seis meses, mas nada co é o dono da investigação. A polícia além disso. Se você investiga um crime para as trabalha sob delegação do Ministério de máfia, tráfico de seres humanos, lainvestigações” Público. Esse é o relacionamento prevagem de dinheiro, tráfico de drogas, visto por lei, mas é claro que há tamtráfico de armas, este limite pode chebém um relacionamento pessoal entre gar a até 24 meses – dois anos de inas duas instituições que, pela minha vestigação. Essa é uma diferença básica experiência profissional, é ótimo. Os dois órgãos saentre a investigação do crime comum e do crime de bem que têm papéis diferentes na condução da inmáfia ou crime organizado. vestigação. O trabalho apresenta um sentido de colaboração. Combate ao crime – E em relações aos meios de prova? Como a Itália vem conseCombate ao crime – Existe alguma diferenguindo provar a lavagem de dinheiro? ça entre a atuação do Ministério Público RP – Encontrar meios de prova é sempre um desafio nos crimes comuns e nos crimes da máfia? seja para polícia, seja para o Ministério Público. Isso RP – Sim, há. As Procuradorias da República na Itália porque são claramente os meios de provas que dão são organizadas em relação à atuação nas áreas crimipossibilidade de condenação posterior. Quanto mais nais. Há Procuradorias da República que se chamam contundentes são as provas, maior, hipoteticamente, Direção Distrital Anti-Máfia. Trata-se de um grupo de é a possibilidade de condenação do réu investigado. procuradores que trabalha nas maiores cidades da Um dos crimes com meios de prova mais difíceis Itália e se ocupa somente de crimes ligados ao crié a lavagem de dinheiro, principalmente por causa setembro / dezembro 2008

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da evolução do sistema bancário e da Internet. A Hoje, por roubo ou assalto uma pessoa pode pegar legislação italiana a respeito de lavagem de dinheiro oito, dez anos de prisão. Mas essa pena, com o passar foi-se atualizando e aproveitou experiências de outras do tempo, vai diminuindo em razão dos benefícios. legislações. Agora, em 2008, podemos dizer que a Na verdade, cálculos matemáticos possibilitam que legislação italiana em matéria de busca de meios de uma pessoa não chegue a cumprir nem um terço da provas sobre o crime de lavagem de dinheiro está pena que foi prescrita. O movimento ideológico na bastante atualizada, porque permite dois tipos de Itália é, portanto, de diminuir a pena para cada crime. meios de provas muito contundentes, a possibilidade Isso, é claro, a depender da gravidade do crime. de infiltração policial para coletar provas e aquela que Contudo, aquela pena diminuída será cumprida na a gente chama de investigação preventiva. sua totalidade. Normalmente começamos uma investigação a partir de um crime comprovadamente já cometido. Para desA cooperação internacional ajuda a comvendar esse crime, você coloca uma série de atividades bater os crimes que ocorrem dentro da investigativas em ação, entre as quais interceptações teItália? E como o país vem lidando com a lefônicas. Com a lavagem de dinheiro, não se tem a certransnacionalidade do tráfico de pessoas, teza de que o crime foi cometido. Há, no máximo, uma drogas e armas? suspeita, porque provavelmente aquela RP – Eu creio que o único jeito de enpessoa que está sendo investigada tem frentar os crimes transnacionais é a copadrões de vida incompatíveis com seu operação internacional, seja entre polísalário ou sua declaração de imposto de cias, seja entre os Poderes Judiciários. “O único jeito renda. Portanto, a lei contra a lavagem Essa cooperação funciona, mas poderia de dinheiro permite a interceptação tefuncionar melhor porque nem sempre de enfrentar lefônica sem que a execução do crime é fácil implementar formas eficazes de os crimes tenha sido efetivamente comprovada. cooperação jurídica com todos os paChamamos esse sistema de interceptaíses. Nenhum Estado quer abrir mão transnacionais ção preventiva. da própria soberania porque acha que é a cooperação Temos também outra medida para mudar uma lei pode comprometê-la. desvendar a lavagem de dinheiro. Eu acho que a União Européia é um internacional” Quando você faz uma investigação exemplo do sucesso da possibilidade e detecta que o patrimônio de uma de deixar de lado um pouco da soberapessoa não bate com seu salário, com nia nacional para fazer leis que possam seu estilo de vida, você pode pedir o ajudar a combater crimes. Isso porque seqüestro desse patrimônio e pedir justificativas para há alguns crimes que necessariamente envolvem mais sua aquisição. Se a pessoa, em um tempo razoável, Estados, como, por exemplo, o tráfico de pessoas: não não justifica como comprou uma empresa ou carros, há tráfico de pessoas dentro de uma só nação. Geralo patrimônio automaticamente vai do seqüestro para mente, o tráfico de pessoas é um fenômeno social em o confisco – e pode ser devolvido ao Estado. que os cidadãos de países mais pobres vão para países mais ricos, normalmente burlando as leis. No caso do Como são as regras de progressão do regitráfico de armas e drogas, há países que produzem, pame penitenciário no país? íses de trânsito e países que compram e consomem. A RP – Na Itália, o regime penitenciário tem o objetivo cooperação nesse tipo de crime é, portanto, necessária. de, como todo regime penitenciário do mundo, Em alguns casos ela funciona, mas enfrenta problemas redimir o réu e de deixar que ele, uma vez cumprida em outros em razão de leis diferentes e sistemas judisua pena, possa se reinserir na sociedade de forma ciários diversos. Há também sempre uma espécie de plena. Por isso, é previsto que um condenado obtenha vaidade pessoal, que infelizmente complica a atuação algum desconto de pena se o comportamento dele da lei. Mas o futuro, para mim, é a cooperação. Se quena cadeia for legal. Pessoalmente, sou favorável a remos enfrentar esse problema seriamente, devem ser outro tipo de princípio, que o governo da Itália está feitas leis que sejam ferramentas de trabalho úteis para estudando. Ele prevê a redução das penas para cada a polícia e o Poder Judiciário. crime, e o efetivo cumprimento da pena. 12

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Reportagem

Trabalho conjunto contra o crime Procuradores da Procuradoria Regional da República da 1a Região e do Ministério Público junto ao TCU planejam novas formas de atuação contra irregularidades em prefeituras Carolina Pompeu

Procuradores regionais da República e membros do Ministério Público junto ao TCU (MP/TCU) se reuniram no dia 29 de agosto para definir novas formas de trabalho conjunto. A idéia é garantir agilidade nas investigações para que o Ministério Público Federal (MPF) consiga mais efetividade na sua atuação. O tema em destaque no encontro foi o desvio de verbas pelos prefeitos por meio dos convênios assinados com a União. Os convênios são aplicações voluntárias de dinheiro em projetos nos municípios. O sistema oferece serviços relevantes para a população, como construção de escolas, hospitais e redes de saneamento básico. No entanto, muitas prefeituras aproveitam brechas na fiscalização para desviar os recursos recebidos. Os procuradores explicam que, na maioria das vezes, os crimes acontecem por acordos entre as prefeituras e as empresas contratadas para executar as obras. Muitas vezes os prefeitos atestam o recebimento de serviços que sequer foram iniciados. Também são comuns o superfaturamento nos contratos e as fraudes em licitação para favorecer as empresas de conhecidos. O dinheiro desses crimes pode parar na conta bancária dos prefeitos para garantir o caixa da próxima campanha eleitoral. Para o procurador regional da República Alexandre Camanho de Assis, ainda há muita impunidade nesses casos. Segundo ele, os processos de investigação costumam demorar, o que dificulta a possibilidade de condenação dos prefeitos e das empresas envolvidas em fraudes: “Se não agilizarmos a persecução penal durante o mandato dos prefeitos, as chances de condenação diminuem muito”. Ele acrescenta: “Nós acabamos correndo contra o tempo do mandato e contra a lentidão usual para decidir do Poder Judiciário nesses casos”. No encontro, procuradores da Procuradoria Regional da República da 1a Região (PRR1) e do

Da esquerda para direita: procuradores Ronaldo Albo, Alexandre Camanho de Assis, Oswaldo Barbosa e Osnir Belice

MP/TCU concordaram em implementar algumas medidas que, segundo eles, devem ajudar a diminuir a impunidade. Entre elas está a formação de uma agenda temática que priorize a atuação dos dois órgãos em temas específicos a cada espaço de tempo. A idéia é oferecer uma atuação mais rigorosa e completa em cada caso. Além disso, a partir de agora, os procuradores do MP/TCU devem enviar diretamente ao MPF qualquer indício de irregularidade encontrado durante suas investigações. Dessa maneira, fica mais rápida a ação do Ministério Público Federal e as possibilidades de condenação aumentam. Participaram do encontro o subprocurador-geral Paulo Bugarin e os procuradores Júlio Marcelo e Marinus Marsico, do MP/TCU. Da PRR1, estiveram presentes os procuradores regionais da República Alexandre Camanho, Alexandre Espinosa, Eliana Torelly, Elizeta Maria Ramos, Elton Ghersel, José Adonis Callou, Osnir Belice, Oswaldo Barbosa, Paulo Jacobina e Ronaldo Albo. setembro / dezembro 2008

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Artigo

Aspectos legais da prisão preventiva na Alemanha Alexandre Camanho de Assis

As decisões relativas à decretação e à manutenção da custódia preventiva são sempre judiciais; a decretação, especificamente, compete ao juiz do inquérito. Tudo quanto se decide nesse domínio é invariavelmente judicial e recorrível. O controle dos motivos e da duração da prisão preventiva pode ser feito a pedido do preso ou de ofício: vige o princípio de que toda pessoa detida preventivamente tem o direito de requerer ao juiz, a qualquer momento, que controle a subsistência dos motivos de sua manutenção no cárcere. O juiz decide após ouvir, em audiência, as ponderações do preso e de seu advogado , mas pode determinar medidas investigatórias úteis a uma melhor compreensão da espécie . Além desse controle provocado, o juiz do inquérito deve, de ofício, fazer um controle da prisão preventiva a cada três meses, salvo no caso de o preso ser assistido por um advogado . Como regra, todas as custódias preventivas de mais de seis meses são objeto de um controle sistemático, que não é feito pelos juízes que as decretaram, mas pelos tribunais regionais, que são a jurisdição de segundo grau na Alemanha: Artigo 121 – Prisão preventiva de mais de seis meses Enquanto um julgamento que ordene uma pena de prisão ou medida de segurança não ocorra, a manutenção de uma prisão preventiva para além de um período de mais de seis meses não pode ser determinada senão no caso em que um número significativo ou a dificuldade particular de medidas investigatórias, ou qualquer outro motivo grave, o justifique. A pessoa detida deve imediatamente ser posta em liberdade quando da superação de seis meses, salvo no caso em que o tribunal regional determine a manutenção de sua prisão.

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Artigo 118 do StPO. Artigo 117 do StPO. Idem.

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Artigo 122 – Controle da prisão preventiva (besondere Haftprüfung) pelo tribunal regional No caso do artigo 121, o juiz do inquérito comunica o feito, por intermédio do procurador da República, ao tribunal regional, quando estimar necessário manter a pessoa presa ou quando o procurador da República o requer. O tribunal regional toma sua decisão mediante ordem motivada, após a oitiva prévia do preso e de seu advogado. As decretações de prisão preventiva são suscetíveis de recurso. Primeiro perante o próprio juiz que ordenou a medida, se não prospera ali a irresignação, postula-se a soltura ao tribunal de grande instância, que delibera sobre a manutenção da custódia. Essa decisão pode igualmente ser contestada perante um tribunal regional. As únicas disposições de índole federal relativas às condições do cumprimento da prisão preventiva constam do artigo 119 do StPO, que são complementadas por regulamentações específicas no âmbito dos Länder: Artigo 119 – Execução da prisão preventiva (1) O preso preventivamente não deve ser colocado na mesma cela que outras pessoas encarceradas. Na medida do possível, ele deve ser separado das pessoas condenadas a penas de prisão. (2) Todavia, ele pode ser posto na mesma cela que outros detidos se o requerer expressamente por escrito. O preso preventivamente pode igualmente ser posto na mesma cela que outros encarcerados quando seu estado físico ou mental assim o exigir. (3) O preso preventivamente não pode ser submetido a certas restrições ou penalidades particulares senão quando a finalidade da prisão preventiva ou a manutenção da ordem no estabelecimento o exigirem. (4) O preso preventivamente pode usufruir de um regime de custódia mais favorável ou participar


das atividades no âmbito do estabelecimento, sob a condição de que as medidas sejam compatíveis com a finalidade da custódia e que elas não prejudiquem o funcionamento interno do estabelecimento. (5) O preso preventivamente pode ser acorrentado quando: - existir risco de que ele cometa atos de violência contra pessoas ou bens, ou que ele oponha resistência aos agentes penitenciários; - ele tente fugir ou que haja risco de fuga; - exista risco de suicídio ou de mutilação, sem que haja meio vário, menos severo, de afastar este risco. Todavia, o preso pode ser desacorrentado durante a audiência perante o tribunal. (6) Tais medidas são ordenadas pelo juiz do inquérito. Em caso de urgência, elas podem igualmente ser determinadas, a título provisório, pelo procurador da República, o diretor do estabelecimento penitenciário ou por um agente deste estabelecimento especialmente encarregado de vigiar o preso. Estas medidas provisórias devem ser confirmadas posteriormente pelo juiz. Inexiste uma obrigação de as autoridades judiciárias alemãs visitarem regularmente os estabelecimentos prisionais para a verificação física das condições da detenção. Contudo, os detidos podem provocar diretamente a Câmara de aplicação das penas do tribunal de grande instância: Artigo 109 – Provocação da autoridade judicial Toda pessoa encarcerada tem direito de contestar uma medida relativa às modalidades de execução de sua pena no âmbito do estabelecimento penitenciário perante a autoridade judicial. O interessado pode notadamente pedir ao tribunal que determine à administração tomar uma medida que lhe tenha sido negada anteriormente. A provocação da autoridade judicial não é recebível senão mediante a comprovação do requerente de que a decisão tenha sido ofensiva a direito seu. Os Länder podem submeter o exercício deste direito à realização de um procedimento administrativo prévio . O controle administrativo da execução da prisão preventiva é feito pela administração penitenciO processo judicial não poderá, portanto, ter curso senão após uma decisão denegatória tomada pela administração penitenciária no âmbito de um procedimento gratuito.

ária, subordinada aos Ministérios da Justiça dos Länder (direção da administração penitenciária e da aplicação das penas). Tais controles são regularmente efetuados segundo as disposições próprias a cada Land: não existe, para essa matéria, legislação federal uniformemente aplicada em todo o território alemão. Na prática, o controle é do próprio diretor do estabelecimento e da direção da administração penitenciária do Ministério da Justiça do Land, que tutela aquele; tal sistema de controle se inscreve no âmbito do disposto no artigo 108 da Lei de Execuções Penais alemã: Artigo 108 – Queixas e Reclamações Toda pessoa encarcerada tem direito de endereçar demandas, propostas e queixas sobre assuntos que dizem respeito diretamente ao diretor do estabelecimento penitenciário. As audiências devem ocorrer regularmente dentro do estabelecimento. As pessoas encarceradas têm igualmente o direito de se encontrarem com os representantes da autoridade encarregada de controlar o estabelecimento penitenciário quando elas visitam o estabelecimento . O controle das condições da custódia preventiva também pode ser feito por parlamentares e pela sociedade civil. Membros do Parlamento Federal e dos Parlamentos regionais têm acesso aos estabelecimentos penitenciários, podendo vistoriá-los a todo momento. Na prática, essas inspeções são feitas por parlamentares dos Länder; existe, aliás, em cada Parlamento Regional, uma comissão que recebe as queixas e as petições de quaisquer dos cidadãos do Land. Já a sociedade civil atua mediante Conselhos de Estabelecimento, que são objeto de algumas disposições genéricas em nível federal. Tais órgãos compõem-se de representantes da sociedade civil – sindicatos, igrejas, serviços sociais, associações e outros – escolhidos em função de sua representatividade, competência profissional e particular engajamento no âmbito da aplicação das penas, e devem produzir um relatório anual das atividades que lhes são cometidas pelo Ministro da Justiça do Land.

Na prática, será o diretor de administração penitenciária do Ministério da Justiça do Land.

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Artigo

Limites de atuação das polícias legislativas Impossibilidade de condução de inquéritos policiais. Uma interpretação constitucional

José Robalinho Cavalcanti*

Tem sido objeto de dissídio em inquéritos e processos penais o papel das polícias da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Defendem os procuradores da República e todos os juízos federais criminais do Distrito Federal que não detêm as polícias legislativas, a partir da Constituição Federal, atribuição de polícia judiciária. Trata-se de questão cuja abordagem primeira é obrigatoriamente constitucional , sendo esse o foco do presente artigo. Em apertada síntese, não há dúvidas ou debate sobre a previsão constitucional de uma polícia da Câmara dos Deputados e outra polícia do Senado Federal, bem como sobre a competência privativa de cada uma das Casas do Congresso para dispor sobre estes entes policiais . Não obstante, a mesma Carta de 1988, ao tratar “Da Segurança Pública” (art. 144, §1o, inciso IV), determinou que a Polícia Federal tem como uma de suas atribuições exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União. Logo, uma leitura sistemática da Constituição tem de obrigatoriamente concluir que podem, sim, as Casas do Congresso instituir e regular, privativamente, órgãos de polícia que ali atuarão, mas com o limite necessário, imposto no próprio texto constitucional, de que tais entes NÃO avancem na função de polícia judiciária da * José Robalinho Cavalcanti é mestre em Direito e Estado pela Universidade de Brasília, professor de Direito Penal e procurador da República, ex-coordenador da área criminal da Procuradoria da República no Distrito Federal, em que milita desde 2004 Muito embora tenha reflexos também em outras ordens, que aqui não serão abordadas, como, por exemplo, referentes à falta de recrutamento e de treinamentos específicos das forças de polícia do Congresso, em contraste com os impostos e existentes na Polícia Federal – com deletérias conseqüências aos interesses da Justiça e à garantia dos jurisdicionados –, e à inexistência prática (por resistência) de controle externo da atividade policial por parte do MP sobre as polícias legislativas. Respectivamente, art. 51, inciso IV, e art. 52, inciso XIII, da Constituição Federal.

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União, atribuída pelo constituinte com exclusividade à Polícia Federal . De fato, é postulado basilar que normas constitucionais não podem se anular, senão que, ao contrário, deve o intérprete e aplicador concretizá-las de forma compreensiva, ajustando-as, com razoabilidade e proporcionalidade, diante do caso concreto. De se ver ainda, por relevante, a diferença existente entre regras e princípios, estes normas de otimização, de menor teor de concretude, em oposição às normas diretas e de aplicação imediata, que são as regras. o . A norma sob lume – art. 144, §1 , inciso IV, da Constituição Federal – subsume-se à espécie das “regras”, visto que não contém mandado de otimização a ser concretizado; ao inverso, impõe, direta e já concretamente, diretriz administrativa. Assim sendo, a partir da vigência da Constituição de 1988, a norma em questão passou a ter aplicação imediata, revogando as até então existentes de extrato inferior e sobrepondo-se às normas outras constitucionais, de forma a limitar sua eficácia direta, vale dizer, impedindo qualquer interpretação ou aplicação que contrariasse a diretriz ali exposta. Por conseqüência, qualquer norma infraconstitucional editada em data posterior, e que contraria sua disposição, há de se ter por nula e não aplicável no que e na medida em que contraria o texto constitucional. É o caso, portanto e notadamente, das Resoluções da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, quando prevêem às polícias de cada Casa atribuições específicas de polícia “que se dirige ao Judiciário” . Um dos limites postos ao intérprete advém do significado da palavra/da linguagem. Não é possível, portanto, aceitar uma interpretação qualquer que leve a expressão “exclusividade” a ser entendida como seu oposto, vale dizer, “não exclusividade”. Não há espaço aqui para a discussão do conceito de “polícia judiciária”, mas deriva da literatura jurídica e das próprias interpretações possíveis (semântica, histórica e sistemática) que se trata de ente policial que executa os atos preparatórios para o processo penal e que, portanto e para tanto, dirige-se à Justiça, e executa, de ordinário, as medidas constritivas ali autorizadas.


E não se argumente que tal conclusão seria contrastada, ou contrastável, com posição histórica, sumulada pelo Pretório Excelso. De fato, a Súmula 397 do Supremo Tribunal Federal ainda afirma que o poder de polícia da Câmara dos Deputados e do Senado Federal compreenderia a prisão em flagrante do acusado e a realização do inquérito. Contudo, é fato inconteste que a referida Súmula foi editada na sessão de 3.4.1964 do Supremo Tribunal Federal. Foi, portanto, exarada sob a égide da Constituição então em vigor, vale dizer, a Carta de 1946. Ocorre, porém, que, na Constituição de 1946 – como na de 1967 e na Emenda de 1969, que lhe seguiram, ou em todas as anteriores –, não havia disposição alguma que fixasse à Polícia Federal atribuição, muito menos exclusiva, de polícia judiciária da União . Especificamente, nada havia ali semelhante à norma fixada – com originalidade, portanto – pelo Constituinte de 1988 no art. 144 da Constituição Federal em vigor. Sob esse prisma, por conseguinte, e diante de tudo que aqui foi exposto, se antes de 1988 era possível uma interpretação da autonomia das Casas Legislativas na regulação de suas polícias (prevista constitucionalmente) até o ponto de permiti-las conduzir inquéritos e lavratura de flagrantes – precisamente o texto da Súmula 397 do Pretório Excelso –, isso foi afastado do ordenamento, a partir da expressa vedação imposta pelo constituinte originário de 1988. De outra banda, veja-se que não se argumenta aqui em favor da impossibilidade, muito menos absoluta, de as polícias legislativas investigarem crimes ocorridos nas dependências do Congresso Nacional. Longe disso. Não existe monopólio da investigação criminal e esse postulado não guarda qualquer eventual relação com a discussão acerca do papel das polícias legislativas na persecução criminal em juízo ou da condução de inquéritos policiais, que são apenas alguns dos vários instrumentos válidos, legais e constitucionais de investigação. Nessa linha, investigam – com fins criminais mediatos ou imediatos, dentro de suas atribuições, e com os meios próprios que lhe são garantidos por lei e pela Constituição, sendo comum e comezinho que essas investigações sustentem, por si sós, ações penais, sem necessidade alguma de inquérito policial – as diversas polícias ostensivas e/ou especializadas, os vários órgãos administrativos, como, apenas por exemplo, a Secretaria

José Robalinho Cavalcanti é mestre em Direito e Estado pela Universidade de Brasília e procurador da República.

da Receita Federal do Brasil e a Controladoria-Geral da União, e o próprio dominus litis, o Ministério Público, em papel que deriva inerente e inafastavelmente de sua atribuição de destinatário das provas, como titular privativo da ação penal pública. Igualmente estão previstos no ordenamento – apesar de tal se dar ao arrepio do princípio do acusatório e, portanto, exigir interpretação restritiva do que seria “condução” pelo Poder Judiciário, sob pena de inconstitucionalidade – inquéritos dos tribunais, em casos de persecução criminal em desfavor de pessoas com privilégio de foro. Porém, esta difundida e regular capacidade de investigação não se confunde com o manejo do inquérito policial como instrumento próprio preparatório da persecução criminal em juízo previsto em lei. Nenhum desses entes pretende conduzir, ou conduz, o específico instrumento “inquérito policial”, pois este, o inquérito, é próprio da polícia judiciária, que, no caso da União, como visto aqui, é, por direta ordem constitucional, exclusivo da Polícia Federal. Em conclusão, por conseqüência e continuidade lógica, tendo em vista a falta de previsão em norma válida, e por vedação constitucional, são insanavelmente irregulares quaisquer procedimentos investigativos judicialiformes, inaugurados e conduzidos, à guisa de “inquéritos policiais”, pelas polícias legislativas, impondo-se seu encerramento imediato e transferência das eventuais investigações necessárias à Polícia Federal, exatamente como vem sendo proposto pelo Ministério Público Federal e determinado pelos juízos criminais da Seção Judiciária do Distrito Federal.

Em verdade, não se encontra referência à polícia judiciária.

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Doutrina

Anote aí

Interceptação telefônica e limite temporal Alexandre Camanho de Assis e Tatiana Pereira Almeida

A criminalidade revela-se, crescentemente, complexa e organizada. Conta, inclusive, com a participação de membros do Poder Público, influenciando e direcionando as políticas ao serviço de atividades ilícitas. As últimas eleições – para prefeitos e vereadores – ilustram a progressiva “marginalização” dos agentes públicos, a face clientelista do Estado perante o crime, bem como a inversão na supremacia dos interesses – o privado sobre o público. Visualizar essa evolução na atividade criminosa permite aferir a imensa dificuldade na obtenção de provas hábeis a desmantelar gigantescos estratagemas fraudulentos, responsáveis por aumentar a desigualdade social e transformar os cidadãos em eternos reféns. Crimes como lavagem de dinheiro, evasão de divisas, tráfico de drogas, fraudes fiscais e outros, em razão da estrutura múltipla e articulada das relações pessoais, do alto nível de instrução e do grande aporte de capital – característico do crime organizado –, exigem da polícia e do Ministério Público expertise, ao menos, equivalente na persecução penal, a fim de gerar resposta estatal proporcional à gravidade dos ilícitos perpetrados. Nesse cenário, avulta a importância das interceptações telefônicas. A Lei n. 9.296/1996 surgiu com a finalidade de regulamentar a norma constitucional de eficácia limitada constante do art. 5o, XII. Assim, as interceptações telefônicas tornaram-se provas lícitas, desde que realizadas em observância às exigências legais: autorização deferida pelo juiz da causa, de forma fundamentada, após representação da polícia ou do Ministério Público, no prazo de até quinze dias, renováveis por igual tempo, uma vez comprovada a sua indispensabilidade. Desse modo, a quebra do sigilo das comunicações telefônicas é perfeitamente válida: considera-se o princípio da proporcionalidade, segundo o qual o direito à segurança, à proteção a vida, ao patrimô18

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nio, enfim, à proteção penal eficaz não pode ser restringido pela prevalência do direito à intimidade do criminoso e ser invocado como excusa ou forma de garantir a liberdade daqueles que praticam condutas ilícitas, desestabilizam a ordem pública e o direito fundamental à segurança. Muitas vezes discutiu-se a respeito da possibilidade de prorrogação do prazo legal das interceptações. A impossibilidade de se predeterminar o tempo necessário a toda e qualquer elucidação de fatos delituosos revestidos de complexidade conduziu a majoritário entendimento – doutrinário e jurisprudencial – favorável à renovação dos prazos, a cada quinze dias, demonstrada a necessária continuidade das investigações. O Supremo, em sessão plenária, chancelou a viabilidade de múltiplas renovações das autorizações por quinze dias ante as circunstâncias do caso concreto, devendo a interceptação telefônica perdurar o tempo necessário à conclusão das investigações . As prorrogações, nesse rumo, devem ser avaliadas pelo juiz da causa, considerando os relatórios apresentados pela polícia. Pacificou-se que o importante é a correta limitação da finalidade da interceptação e – sendo meio de prova capaz de afrontar a proporcionalidade/ razoabilidade – a impossibilidade de escutas sem fundamentação. Por essa razão, frise-se, não se discute, aqui, a possibilidade de grampos telefônicos preventivos. Recente julgamento do Superior Tribunal de Justiça, contudo, reinaugurou a discussão . A sexta turma firmou entendimento segundo o qual o monitoramento de interceptações por prazo superior a dois anos é irrazoável e, portanto, produz prova ilícita.

HC 83.515/RS – Pleno – STF HC 76.686/PR – Min. Nilson Naves – 6a Turma – DJ 9.9.2008 – STJ


Conseqüência: o trabalho de três anos da polícia e do Ministério Público Federal contra os donos do grupo Sundown, acusados de sonegação fiscal e lavagem de dinheiro, baseado em interceptações telefônicas devidamente autorizadas pela 2a Vara Criminal Federal da Curitiba, foi perdido. Em outras palavras, anulou-se a condenação imposta a empresários corruptos que haviam sido flagrados fazendo negociatas ao telefone com auditores fiscais, pretendendo engavetar processo fiscal que apurava dívida de sessenta milhões de reais destes perante o fisco. Indiscutível e ostensivo disserviço à repressão criminal. O legislador, ao regulamentar a matéria, não limitou o número de renovações do prazo para interceptação. Ao contrário, apenas delimitou que eventual continuidade das investigações deve ser analisada pelo juiz da causa de quinze em quinze dias . Assim, situa-se no prudente arbítrio do magistrado, diante do acompanhamento das investigações, deferir – de forma fundamentada e com base em relatório da autoridade policial – a continuidade das escutas. Em verdade, a norma que permite a quebra de sigilo das comunicações telefônicas importa restrição à liberdade e à intimidade, devendo sua interpretação ser restritiva. Contudo, aferir a razoabilidade/proporcionalidade de determinada medida exige análise do caso concreto: havendo indícios de autoria e de materialidade, sendo possível, durante a realização da medida, a coleta de informações idôneas ao embasamento de acusação, não há ilegalidade a ser constatada. Irrazoável, assim, é interpretar norma constitucional em favor do criminoso, desestimulando a produção de prova hábil a evidenciar a ilicitude. Reduzir a possibilidade de abstenção de determinada prova a um mero lapso temporal – de resto, exíguo – constitui ululante desapreço à função estatal de tornar efetiva a lei penal, além de demonstrar desconhecimento das rotinas e métodos tanto do criminoso quanto do agente da lei. Com efeito, torna-se cada dia mais urgente a necessidade de compatibilizar a proteção genérica dos direitos fundamentais com o dever do Estado de reprimir a criminalidade. Por seu turno, viver Lei n. 9.296/1996, art. 5o: “A decisão será fundamentada, sob pena de nulidade, indicando também a forma de execução da diligência, que não poderá exceder o prazo de quinze dias, renovável por igual tempo uma vez comprovada a indispensabilidade do meio de prova”.

sob a égide de um Estado Democrático de Direito não deve traduzir-se em ônus para a coletividade, invocando-se a proporcionalidade tão-somente em benefício do acusado. Viver no Brasil tem sido assistir à distribuição judicial de franquias em benefício do criminoso, em incrível abstração de que todo bônus para o criminoso é simultâneo ônus para a sociedade. É certo que o processo penal não pode despir-se das garantias que resguardam o investigado/acusado; entendimento contrário significaria retrocesso ao Estado de arbítrio. Entretanto, na esfera penal, podem ser identificados, ao menos, três titulares de interesses distintos: acusado, vítima e coletividade, sendo do equilíbrio desses interesses que resulta a complexa prestação do dever de proteção penal. Em outras palavras, o processo penal – em sua perspectiva proporcional – não deve ser reduzido a garantias que assegurem apenas o respeito ao indivíduo investigado contra a arbitrariedade punitiva, a pretexto de um garantismo penal. O verdadeiro garantismo, frise-se, não se exaure na proteção ilimitada do indivíduo, mas também deve compatibilizar a necessidade de proteção da coletividade: do contrário, engendra um garantismo caricatural e pernicioso, como costumam ser as doutrinas importadas com ligeireza. O atual entendimento do Superior Tribunal de Justiça deu ensejo à discussão ainda maior, porém, burocrática, dada a recente aprovação – já contestada pela Procuradoria Geral da República – da Resolução n. 59 pelo Conselho Nacional de Justiça. Embora a regulamentação do Conselho nada tenha dito sobre o prazo de duração das interceptações telefônicas, o Procurador-Geral da República ajuizou a ADIN 4145 em razão da incompetência do Conselho para inovar em regras sobre a atividade-fim do Judiciário. Portanto, mais um embate infrutífero sobre a questão. O momento, assim, é oportuno para enfatizar a necessidade de fundamentação das interceptações telefônicas, dentro do caso concreto, bem como bater-se contra a restrição temporal imposta às interceptações. Do contrário, muitas investigações e condenações terão por fim a nulidade, em virtude de alegada devassidão da vida privada dos criminosos: já não bastasse a monumental indulgência de certas mentes, agora também o simples – mas infatigável – passar dos dias passará a conspirar contra o cada vez mais árduo combate ao crime.

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Procuradoria Geral da República Telefone: (61) 3105-5100 http://www.pgr.mpf.gov.br/

Procuradoria Regional da República da 1a Região Telefone: (61) 3317-4500 http://www.prr1.mpf.gov.br/

Escola Superior do Ministério Público da União Telefone: (61) 3313-5165 http://www.esmpu.gov.br/

Direção-Geral da Polícia Federal Telefone: (61) 3311-8501 http://www.dpf.gov.br/

Para ler o Boletim Eletrônico do Núcleo Criminal da PRR1, acesse http://www.prr1.mpf.gov.br/boletimcriminal/

A versão eletrônica da Revista Combate ao Crime está disponível em http://www.pr1.mpf.gov.br/combateaocrime


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