Número 19 – Dezembro de 2010
Investigação e
Debate SERVIÇO SOCIAL
Neste número:
- “O Silêncio é cúmplice da Violência” - “Interculturalidade e Interdisciplinaridade” - “O Serviço Social em Equipe Interdisciplinar no âmbito Policial”
- “Carta Aberta aos Profissionais e Docentes de Serviço Social”
Associação de Investigação e Debate em Serviço Social
Associação de Investigação e Debate em Serviço Social
Ficha Técnica: Investigação e Debate – Serviço Social Ano 14/Numero 19 – DEZEMBRO/2010 Director: Miguel Ângelo Valério Sub-Director: Joaquim Paulo Silva Equipa Editorial: António André Cristina Quinteiro Daniel Seabra Isabel Pinto da Silva Joaquim Paulo Silva José Álvaro Santos Maria José Barbosa Colaboradores Neste Número: Maria Helena Pedro Braga Joaquim Paulo Silva Michael Hermann Garcia Teixeira
Colaboradores Internacionais Mario Calarco (Docente na Universidad Nacional ComahueArgentina) Neuza Farias de Araújo (Docente na Universidade do Rio Grande do Norte-Brasil) Raquel Martínez Chicon (Docente na Universidade de Granada-Espanha) Richard Hugman (Docente na Universidade de New South Wales-Austrália) Conselho Editorial Prof.ª Dr.ª Fernanda Rodrigues (Docente na Universidade Católica) Profª Drª Maria da Conceição Ramos (Docente na Faculdade de Economia do Porto) Mestre Manuel Meneses (Docente no Instituto Superior Miguel Torga) Profª Drª Neuza Farias de Araujo (Docente Universidade Rio Grande do Norte- Brasil) Editor Associação de Investigação e Debate em Serviço Social Proprietário Associação de Investigação e Debate em Serviço Social Sede da Redacção: Rua da Constituição nº 814, 5º Andar, sala 29 4200-195 Porto Tel/fax: 225 093 289 E-mail: revista.aidss@gmail.com ERC Nº Inscrição: 119114
de 7/06/1995
1
e
ditorial
Miguel Ângelo Valério
Este é o “número zero” da nova realidade da revista “Investigação e Debate”. Uma realidade com presença virtual, gratuita, como forma de promover a acessibilidade à informação dentro das ciências sociais e humanas em geral e ao Serviço Social em particular. Aqui, desejaremos manter a tradição deste projecto. Uma tradição com saber, conhecimento, e forte em rigor. A expressão “número zero” não é aqui meramente “pró forma”. Isto, porque para além de ser um novo arranque, pretendemos ir mais além. Mais além na disponibilidade da revista (com a continuação e promoção da sua internacionalização), mas também mais além nos números publicados. O objectivo para o ano de 2011 é ambicioso, mas acreditamos que é possível. Esse objectivo passa pela presença em plataformas online de revistas científicas, mas também na edição de mais números, quer generalistas quer temáticos. Tudo a acompanhar em primeira mão na página da Internet da AIDSS em http://aidss.paginas.sapo.pt Uma última palavra muito pessoal para o anterior director, o Mestre Joaquim Paulo Silva: Tentarei ao máximo, no mínimo, manter a força e a vitalidade que esta revista teve nos últimos anos, sabendo que (como sempre) este “tentarei” será um “tentaremos”. Até 2011…
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O SILÊNCIO É CUMPLICE DA VIOLÊNCIA Violência Doméstica e Saúde Pública
MARIA HELENA PEDRO BRAGA1
A violência sofrida pelas mulheres no seu cotidiano e seus rebatimentos na saúde pública; os números desta violência no mundo e no Brasil; a violência emocional, pouco percebida e tão presente na vida das mulheres e suas conseqüências; a falta de dados estatísticos no Brasil com relação as mulheres que sofrem a violência, em todas as suas formas, no âmbito da saúde. Violência tratada apenas como uma questão judicial, quando deveria ser tratada também como uma questão de saúde pública.
1
Assistente Social 3
O Silêncio é Cúmplice da Violência » Maria Helena Pedro Braga
A Violência atinge uma em cada três
passadas na vida da mulher agredida, só assim
mulheres, diz o relatório da ONU de 2000.
se
Segundo o documento, a violência contra a
agressões e de se obter dados mais precisos
mulher esta “fortemente enraizada” no
para que se possa tomar medidas para
mundo inteiro.
prevenção coletiva, esclarecendo e dando
Sendo assim, o silêncio ainda é cúmplice da
apoio.
violência. O silêncio das mulheres que sofrem
As informações que dispomos são pesquisas
a violência, o silencio dos serviços de saúde, o
de outros países, como a Sociedade Mundial
silencio que permite esta violência.
de Vitimologia (Holanda), que pesquisou a
Rompe-lo e desmistificar a cultura da
violência domestica em 138 mil mulheres de
submissão, que remete a aceitação desta
54 países, entre eles o Brasil, e concluiu que
violência é nosso objetivo, assim como tratar
23% das brasileiras estão sujeitas a violência,
esta questão, como uma questão de saúde
na América Latina ela incide sobre 25% a 50%
pública, pois mulheres agredidas física e
das mulheres, a cada 4 minutos uma mulher é
psiquicamente, são tratadas quase sempre
agredida em seu próprio lar, pôr uma pessoa
como polissintomáticas nos serviços de saúde
com quem mantém uma relação de afeto.
ou tem seus ferimentos externos curados,
(Relatório da Casa de Cultura da Mulher Negra
mas as feridas invisíveis, permanecem sem
- 05/06/2000-06-14.)
terá condições
de prevenir futuras
nenhum tratamento, levando-as muitas vezes a terem sua sanidade mental seriamente
O Brasil é o país que mais sofre com violência
comprometida.
doméstica, perdendo de 10,5 % do seu PIB,
É preciso tratar a violência, não apenas como
porém o tamanho das conseqüências desta
uma questão de justiça, mas também como
violência no Brasil, na economia, nos custos
uma questão de saúde pública, com serviço
para o sistema de saúde, a policia, o poder
qualificado e especifico, documentando em
judiciário, os órgãos de apoio á mulher, não
fichas médicas, a história de violências atual e
podem ser medidos com precisão pois as
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Investigação e Debate (19) estatísticas necessitam de dados importantes
sofrem o abuso emocional que não é
que não são coletados, sobretudo nos serviços
identificado.
de saúde.
Nas delegacias 90% das denuncias, vem de
(Banco Interamericano de Desenvolvimento -
vitimas pobres, mulheres de maior poder
BID – Relatório da ONU – 20/09/2000)
aquisitivo raramente denunciam o parceiro
Eis uma das conseqüências da falta de
violento.
diagnóstico
Ë com esta atitude, que a mulher torna-se
de
violência
doméstica
nos
prontuários médicos.
refém da dominação masculina, favorecendo
A violência doméstica existe em todas as
a violência psicológica e física.
culturas, classes sociais e níveis de educação,
O Banco Mundial estima que a violência
os números são alarmantes, no Japão
contra a mulher é causa de uma em cada
59% das mulheres sofrem algum tipo de
cinco
violência pôr parte de seus parceiros, no
Universidade de Western Ontario, no Canada,
México, elas somam 30%, nos Estados Unidos,
calcula que a violência custa em média aquele
28%.
país U$ 4,2 bilhões de dólares pôr ano em dias
No Brasil, uma pesquisa coordenada pela
de trabalho perdidos e custos hospitalares.
socióloga Saffiotti, da PUC/SP, em 22 capitais,
(Dados do Banco Mundial – Relatório da ONU
vai analisar 170 mil boletins de ocorrências de
– 20/09/2000 )
todas as delegacias da mulher, ao logo de 5
Nos Estados Unidos, as mulheres que
anos. Os resultados preliminares mostram que
precisam
lesões corporais são a principal queixa.
companheiros contam com 1.500 abrigos
Mesmo com aumento das denuncias nas
públicos. No Brasil existem apenas 26 casas
delegacias um grande numero de mulheres
abrigos, delegacias da mulher, somam 275,
ainda prefere esconder um olho roxo a
presentes em 5% dos municípios, no Rio
denunciar o agressor, sem contar as que
Grande do Sul existem postos especiais nas
faltas
ao
fugir
trabalho,
dos
maus
pesquisa
tratos
da
dos
5
O Silêncio é Cúmplice da Violência » Maria Helena Pedro Braga
delegacias comuns para atender mulheres que
objetiva-se obter, com um trabalho de
sofrem agressões.
pesquisa, direcionados a área de saúde, dados
Segundo o Relatório do Instituto Italiano
reais da violência doméstica, para que se
Innocenti,
possa mostrar que é uma questão de saúde
ligado
a
UNICEF,
mulheres
agredidas, física e psicologicamente pôr seus
pública e assim deve ser também tratada.
companheiros,
(Relatório da Conferencia Nacional de Saúde
são
mais
propensas
ao
suicídio, 40% das americanas espancadas
– 20/03/2000)
tentam se matar. Cerca de 70% das agressões são julgadas nos
Breve Volta ao Passado e a Aceitação
tribunais de pequenas causas, a punição, em
Histórica da Violência
geral, é uma multa ou uma cesta básica à ser
A mulher ao ser integrada na atividade
doada a instituição filantrópica, com R$ 50.00
privada dentro do casamento, perde o valor
0 agressor limpa sua barra e a mulher sai
do seu trabalho. Perdendo o valor social mais
humilhada.
amplo, ela vive dentro da família uma relação
Mulheres que sofrem violência vão Ter algum
de dominada, onde o homem determina tudo,
problema de saúde a curto ou longo prazo,
dentro e fora de casa.
pôr isto a violência de gênero é também um
Estes séculos de opressão social, política,
problema
econômica, familiar e cultural que recai sobre
de
entendimento
saúde é
um
publica, grande
este
passo,
o
a mulher, constitui um obstáculo a sua
reconhecimento feito pela OMS ( Organização
participação e organização. Mesmo assim, ao
Mundial da Saúde ) que a violência contra a
longo da história a mulher lutou para romper
mulher afeta sua integridade física e saúde
as cadeias de dominação.
mental.
O início do século XX foi marcado pelas lutas
De posse deste conhecimento, e buscando
grevistas. As operárias participaram exigindo
ainda informações que mostre o quadro real
redução da jornada e proibição do trabalho
do que esta sendo feito em relação a questão,
nocturno.
6
Investigação e Debate (19) E em todos os momentos em que se precisou
Para
da sua atuação, lutando pelos seus direitos,
independência diante do marido, sustentando
ela esteve presente.
a casa em muitos casos, cumprindo dupla ou
A reflexão em torno das conquistas feministas
tripla jornada.
dos últimos 100 anos se faz necessária, pois
(dados do periódico - Presença da Mulher - nº
no início do séc. XX as mulheres não tinham
- 27 - 28 - 36)
liberdade. A família patriarcal no Brasil era a
“Existem a fêmea e o macho, enquanto o
base de um sistema mais amplo que
homem e a mulher são gêneros criados
estimulava a dependência e a subordinação
culturalmente. A posição submissa da mulher
da mulher ao chefe da família e está
perante o homem é estabelecida por ordem
caracterizada
“Pai
do inconsciente(...) Essa posição é o ponto de
filho
partida para toda a desigualdade que
aterrorizado.” (Feminismo e Cidadania -Alves,
culmina na sociedade de classes”. (Muraro in
José Eustáquio, Minas Gerais, 08/03/00)
Kramer e Sprenger, 1991).
taciturno,
da mulher
seguinte
forma:
submissa
e
muitos
a
mulher
conseguiu
sua
Em 1916 o Código Civil igualou o status civil da mulher casada ao dos menores silvícolas e
Mesmo com conquistas, ainda está presente a
alienados, tornando-a incapaz. Sendo assim
submissão e obediência, esta submissão e
ela não tinha as mínimas chances de
obediência é cultural, econômica, histórica;
encontrar trabalho remunerado.
Romper estas amarras é um processo gradual.
A educação e trabalho foram conquistadas de
Hoje as mulheres já tem consciência de seus
forma lenta e gradual, com muita luta. Porém
direitos, querem igualdade de condições,
a consolidação de direitos se deu na
relações eqüitativas, querem amar e serem
Constituição Federal de 1988 - Se hoje as
amadas.
conquistas são qualitativamente superiores
Querem ser respeitadas na sua integridade
aquelas da metade do século, não podemos
física e emocional, no seu trabalho.
dizer que exista pleno exercício da cidadania.
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O Silêncio é Cúmplice da Violência » Maria Helena Pedro Braga
As
mulheres
contribuem
no
Brasil
52% das mulheres economicamente ativas, já
não
sejam
foram assediadas sexualmente (Estimativa da
valorizadas. Estão ausentes das posições de
OIT /98). (Dados CFMEA - Março/99- Brasília
poder e de decisões das esferas públicas. Elas
DF)
representam 50,7% da população brasileira
Estes dados sobre a violência e uma breve
(IBGE/96), 49,2% do eleitorado (TSE/98),
retrospectiva histórica, servem para mostrar
totalizando
a luta e sofrimento a que são submetidas a
significativamente,
embora
40,1%
da
população
economicamente ativa (PNAD/96-97), 20,8%
grande maioria das mulheres.
das famílias são chefiadas por mulheres
A violência ou abuso emocional, foram
(IBGE/96).
perpetuados dentro da cultura humana,
A representação das mulheres no Congresso
quando
Nacional é de 6,1% e nas Assembléias
submissão para a mulher, em nome do poder
Estaduais é de 10%.
e de ideologias anti - feministas.
foram
impostas
as
regras
de
E por último a violência psicológica, física e sexual permeia a vida das mulheres. As
Abuso Emocional: A violência Invisível
mulheres constituem 63% das vítimas de
O
agressões físicas cometidas por parentes no
considerado pior que o físico, pois atinge a
âmbito doméstico. (PNAD/88).
essência básica da mulher.
Em 1996, companheiros ou ex -companheiros
“A violência física em toda a sua enormidade
foram
e horror não é mais um segredo. Entretanto,
responsáveis
por
72,3%
dos
abuso
emocional
ou
psicológíco,
é
assassinatos de mulheres. (MNDH)
a violência que não envolve dano físico ou
Por ano pelo menos 2.500 mulheres são
ferimentos corporais continua num canto
mortas, vítimas de crimes passionais, e cerca
escuro do armário, para onde poucos querem
de 500 mil sofrem algum tipo de violência
olhar.
doméstica ou sexual. (Estimativa da União
pesquisadores e escritores não exergam as
Brasileira de Mulheres - SP/98)
feridas que não deixam cicatrizes no corpo, e
O
silencio
parece
indicar,
que
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Investigação e Debate (19) que as mulheres agredidas não fisicamente,
todo ato baseado no fato da pessoa pertencer
tem medo de olhar para as feridas que
ao sexo feminino, que tenha ou possa Ter
deixam cicatrizes em sua alma.” Miller.
como resultado um dano ou sofrimento,
P.20.1995
físico, sexual e psicológico (conceito extraído
Esta violência que atinge a mulher é pouco
do parágrafo 38 da declaração de Viena
percebida mas causa problemas psicológicos
p.04.1993), consequentemente, violência de
com conseqüências sérias, que podem Ter fins
gênero é tudo que tira os direitos humanos
trágicos, se não tiverem tratamento.
numa
Buscando
desvendar
de
manutenção
de
vivências
desigualdades hierárquicas existentes para
silencio,
garantir obediência, subalternidade de um
revelando os desejos ocultos, é que se dá a
sexo a outro. Trata-se de forma de dominação
emancipação da mulher que sofre abuso, a
permanente e acontece em todas as classes
interiorização da dominação sofrida pelas
sociais, raças ou etnias.
mulheres, deve ser decomposta, incentivando
A maioria das agressões a integridade física e
sentimentos
psíquica,
particularizadas,
as
perspectiva
rompendo
que
o
supere
diferenças,
se
da
dentro
do
ambiente
preconceitos e idéias arraigadas.
domestico, esta inversão de expectativas
Esta procura de caminhos, dentro dos
provavelmente
questionamentos
situação
internacionais, aponta, a violência domestica
vivenciada pela maioria das mulheres, amplia
como fator determinante no crescimento de
a luta pôr liberdade, pôr condições dignas,
doenças mentais, com acentuada maioria de
respeito
mulheres entre suas vitimas.
e
inerentes
tantos
outros
a
fatores
que
compõem a cidadania. A
violência
tem
diferentes
explica
porque,
estudos
O assassinato costuma ser o ultimo grau de significados,
uma escala de violência conjugal, que muitas
dependendo da cultura do grupo e do
vezes começa com o abuso psicológico, que
momento histórico na qual se insere. Como
gradativamente, vai tornando-as vulneráveis e
violência contra a mulher entende-se, hoje,
instáveis emocionalmente, levando-as muitas
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O Silêncio é Cúmplice da Violência » Maria Helena Pedro Braga
vezes a serem violentas com seus próprios
economica, no significado dos papeis sociais
filhos, como forma de dividirem a dor.
impostos a homens e mulheres reforçados por
Na verdade, a violência domestica é a mais
culturas patriarcais, que estabelecem relações
brutal e eloqüente metáfora da exclusão das
de violencia entre os sexos.
mulheres
dos
direitos
humanos.
Este
desrespeito frontal a dignidade das mulheres
Violência doméstica e a saúde pública
se alimenta da impunidade dos agressores,
No Brasil não há registos hospitalares com
facilitados, pôr sua vez, pelo silencio e
relação aos atendimentos a mulheres vítimas
conivência da sociedade. Esta impunidade só
de violência, que possam nos fornecer dados
se explica pela persistência de um decreto de
concretos desta violência.
fundo escravagista, que ainda liga homens e
Os dados de outros países são assustadores,
mulheres.
nos Estados Unidos uma pesquisa, em 1980,
“se quisermos reverter este quadro de
revelou que no período de um ano, os casos
violência contra a mulher é preciso encarar
de violência doméstica e sexual provocaram
de frente o núcleo da questão, ou seja, de
30000 atendimentos em pronto socorros,
que este tipo de violência é decorrente,
40000 visitas médicas, 21000 hospitalizações,
principalmente de uma postura em que as
100000 dias de internação hospitalar e mais
diferenças
mulheres,
de 1 milhão de mulheres, por ano, procuram
naturais e relevantes, são vistas sob uma
atendimento médico em razão de ferimentos
ótica
provocados por espancamentos e tentativas
de
entre
homens
hierarquia,
e
e
não
como
contemplação natural e necessária para
de homicídio.
procriação e harmonia do planeta”. (Solange
Em Londres, anualmente, 100000 mulheres
Jurema, Conselho Nacional dos Direitos da
buscam tratamento médico devido a lesões
Mulher, 1995!99)
graves recebidas em casa.
Esta questão social se alicerça na cultura da
Os fatos incluem:
submissão,
no
medo,
na
dependencia
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Investigação e Debate (19) Lesões por faca e tiro, traumatismo craniano,
raro este episódio ocorrer uma única vez, com
queimaduras, lesões graves na área genital,
o tempo a violência torna-se mais freqüente e
contusões, fraturas, hematomas nos olhos,
aumenta a gravidade dos ferimentos.
ferimentos
Uma
nos
ouvidos,
ferimentos
resposta
positiva
por
parte
do
abdominais, aborto provocado por trauma na
profissional na acolhida à estas mulheres,
área abdominal. ( Folha de São Paulo-
pode ajuda-la a dar um passo para terminar
01/06/00).
uma reação violenta e escolher um modo de
A área médica limita-se a tratar as lesões
vida alternativo para si e seus filhos.
físicas, e tende a culpar a vítima pela violência.
Assistentes Sociais, médicos, enfermeiras e
A inadequação das respostas por parte destes
outros profissionais de saúde, são os indicados
profissionais, se dá pela falta de preparo nas
para
questões de violência contra a mulher.
espancadas, se forem ouvidas e tiverem
Nesta questão o papel estratégico do serviço
alguém disposto a ajuda-las, sentir-se-ão mais
de saúde é ter políticas públicas voltadas para
seguras e amparadas. Elas precisam também
o combate a violência doméstica, nos países
saber quais são os seus direitos legais e devem
onde
ser encaminhadas para orientação e casas de
já
existem
estas
políticas,
os
fazer
a
mediação
com
mulheres
profissionais são treinados para aplicar um
abrigo.
questionário às pacientes com suspeita de
Nesses atendimentos à mulher vítima de
espancamento
ou violência sexual. Isto
violência, é da maior importância também,
permite uma intervenção mais cedo no caso,
documentar a história do incidente abusivo
encaminhando-a para os serviços de apoio.
atual e violências passadas.
Este procedimento é fundamental, pois esta
Essas medidas vão identificar as mulheres
mulher, com baixa auto estima, por si só, não
espancadas e as reincidências, possibilitando
buscará ajuda.
um acompanhamento mais eficaz.
O espancamento de uma parceira íntima é um
É entre quatro paredes do “lar doce lar” que
problema social que ocorre diariamente. É
existem as maiores ameaças à vida mulher. As
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O Silêncio é Cúmplice da Violência » Maria Helena Pedro Braga
marcas visíveis da violência são tratadas nos
Violência no Contexto Atual
serviços de saúde, para, em seguida, as
Contextualizando a violência, no momento
mulheres retornarem ao mesmo ciclo de
atual, expressada nas mais variadas formas,
espancamento, abusos e, muitas vezes, morte.
não importando a condição social, econômica
Portanto, violência doméstica é qualquer ação
nem faixa etária, buscamos explicações e
ou conduta cometida por familiares ou
encontramos uma sociedade doente e carente
pessoas que vivem na mesma casa, que cause
de tudo, trabalho, saúde, bem-estar.
morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou
As soluções particularizadas não dão espaço
psicológico à mulher. É uma das formas mais
para conquistas coletivas, que propiciam o
comuns de manifestação da violência e, no
exercício da cidadania.
entanto, uma das mais invisíveis, sendo uma
São
das violações dos direitos humanos mais
asseguram direitos sociais. Estando assim
praticadas e menos reconhecidas do mundo.
revestidos deste caráter, as políticas sociais
Trata-se de um fenômeno mundial que não
não priorizam as questões importantes como
respeita fronteiras de classe social, raça/etnia,
segurança, educação, saúde entre outras.
religião, idade e grau de escolaridade.
Neste contexto, refletindo a miséria, a
(Relatório
violência se instala e atinge tudo e a todos.
da
Conferência
Nacional
–
práticas
individualistas
que
não
20/03/2000)
Sendo assim, temos uma população composta
Sendo assim, reforçamos nossa convicção de
de indivíduos amargos, revoltados e frustados,
que se faz necessário agilizar políticas
na sua busca de cidadania, reproduzindo a
públicas, que possam dar conta desta questão
violência imposta pela sociedade capitalista
social, proporcionando mais segurança às
em que vive, sendo excluído do fruto do seu
mulheres, vítimas históricas desta violência.
trabalho e do trabalho propriamente dito. “A desigualdade social, econômica e política na sociedade brasileira chegou a tal grau que se torna incompatível com a democratização
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Investigação e Debate (19) da sociedade. Pôr decorrência, tem se falado
socialmente tolerada. As formas como a
na existência da apartação social. No Brasil a
violência doméstica se expressa são diversas,
discriminação é econômica, cultural e política,
e as causas, múltiplas. Porém existem cenários
além de étnica.
facilitadores, como a pobreza, fruto da
Este processo deve ser entendido como
exclusão, o patriarcalismo, o sexismo, o
exclusão, isto é, uma impossibilidade de poder
alcoolismo, a drogadição a ausência do
partilhar o que leva à vivência da privação, da
diálogo e a falta de solidariedade entre os
recusa, do abandono e da expulsão inclusive,
membros do núcleo familiar.
com violência, de um conjunto significativo da
Mas, mesmo sendo a conjuntura atual um
população ...
propiciador da violência, ela não é privilégio
Esta situação de privação coletiva é que se
só das classes menos favorecidas. Se faz
está entendendo pôr exclusão social.
presente entre todas as culturas e classes
Ela
sociais, em todos os níveis de educação e
inclui
pobreza,
subalternidade,
não
discriminação, equidade,
não
capacidade econômica.
acessibilidade, não representação pública”.
As causas, segundo o relatório do Instituto
(Aldaisa Sposatti 1996 - apud, Mariangela B.
Innocenti, ligado a UNICEF são: “divididas em
Wanderley - Artimanhas da Exclusão, 1999,
quatro
p.20)
Culturais,
A
tensão,
presentes
os na
conflitos vida
são
social,
elementos
que
grandes
grupos:
Legais
e
Econômicas,
Políticas.
Estão
relacionadas, questões como crença na
podem
superioridade masculina, a dependência
exacerbar-se a qualquer momento, gerando a
econômica, a falta de leis para punir a
violência. As vítimas históricas desta violência,
violência
são mulheres, crianças, a família, que é a
representação feminina na política”. ( Artigo
primeira a sofrer as conseqüências deste
– O direito de ser Mulher – Ana Luiza Santos
tensionamento, é dentro dos lares que ela se
– 08/03/2000)
doméstica
e
a
falta
de
desenrola. É contínua e velada, sem registo,
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O Silêncio é Cúmplice da Violência » Maria Helena Pedro Braga
Portanto a violência é uma questão ampla e
psiquicamente procura muito esses serviços,
complexa, merecedora de atenção, que
mas como não temos dados de hospitais nem
necessita de leis mais rígidas, e programas
de
educacionais e principalmente de atenção a
atendimentos feitos como causas diversas,
população, através de políticas públicas
não há encaminhamentos, nem diagnósticos,
eficazes.
nem registros, só um caminhar sozinha e
pronto
socorros,
pôr
ser
estes
retorno garantido, pois certamente ela sofrerá Considerações Finais
mais agressões e retornará ao hospital ou
A mulher é inferiorizada diariamente, no seu
pronto socorro. Mas não será identificada,
trabalho, pois mesmo estando em igualdade
será apenas mais uma mulher que sofreu um
de condições tem rendimento inferior, é
acidente
discriminada mais ainda se for pobre e negra,
descontrolada que precisa de um calmante.
é tratada como histérica, muitas vezes, nos
Sairá com os machucados externos tratados e
serviços de saúde, quando necessitaria de
humilhada,
apoio e encaminhamento.
continuarão sangrando até que alguém
Reverter a lógica da exclusão, da violência, faz
acredite nelas e se mostre disposto a ajudar,
parte do nosso objetivo. Buscar na prevenção
profissionais de saúde treinados podem ser
a diminuição da violência domestica, através
decisivos no rompimento com uma relação
de ações concretas que visem o resgate da
violenta.
cidadania, com políticas publicas na área de
Romper o silêncio, denunciar, buscar ajuda,
saúde e violência, viabilizando o uso de
sentir-se cidadã, estes são fatores importantes
protocolos nos serviços públicos de saúde.
que ajudam no caminho da liberdade e da
Sabemos que a mulher agredida, física e
não violência.
doméstico
pois
as
ou
uma
feridas
mulher
invisíveis
14
Investigação e Debate (19) REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS: CÓDIGO de Ética Profissional dos Assistentes Sociais. Aprovado em 15 de Março de 1993. Resolução CFESS nº273/93 de 13 de Março de 1993.
SANTOS, Ana Luíza. O direito de ser mulher (artigo). M.G., 08/03/2000. SAWAIA, Bader (Org.). As Artimanhas da Exclusão. Petrópolis/RJ: Vozes, 1999.
CONSELHO NACIONAL DOS DIREITOS DA MULHER. Relatório geral sobre a mulher brasileira na sociedade gestão 95/99 – Memória. DEL PRIORE, Mary (Org.); BASSANEZI, Carla, coordenadora de textos. História das Mulheres no Brasil. São Paulo: ed. Contexto, Ed. UNESP- Fundação - 2º edição, 1997. FALEIROS, Vicente de Paula. Estratégias em Serviço Social. São Paulo: Cortez, 1997. FOLHA de São Paulo (de 01/06/2000). “Sexo Frágil”. Violência e preconceito cultural causam morte de mulheres, segundo estudo encomendado pela ONU. Relatório da Casa de Cultura da Mulher Negra - o5/06/2000-06-14. Relatório da Conferência Nacional de Saúde 20/03/2000-06-14. KRAMER, Heirich e SPRENGER, James. O martelo das Feiticeiras - Malleus Maleficarum. Tradução Paulo Fróes. 2º edição. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1991. LOAS – Lei Orgânica da Assistência Social. Lei 8.742 de 7 de dezembro de 1993. MILLER, Mary Susan. Feridas Invisíveis – abuso não físico contra mulheres. São Paulo: Summus, 1995. PONTES, Reinaldo Nobre. Mediação em Serviço Social. 2ª Ed. (revisada). São Paulo, 1997. Relatório 2000 – Organização das Nações Unidas – 20/09/2000 - GMT RELATÓRIO da IV Conferência Mundial sobre a Mulher. Pequim. 1995. RÚDIO, Franz Vixtor. Compreensão Humana e Ajuda ao Outro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Petrópolis, 1993.
15
OBJECTIVOS DO PLANO DE FORMAÇÃO A Formação Profissional Contínua surge num mundo em constante mudança, em que existe cada vez mais a necessidade de um entendimento das problemáticas actuais numa perspectiva sistémica e holística, de modo a que toda e qualquer intervenção social seja realizada de forma consciente e responsável. É neste sentido, que é reconhecida à Formação Profissional Contínua uma importância fundamental e estratégica, pois, enquanto espaço privilegiado para aquisição e desenvolvimento de conhecimentos esta permite atingir objectivos qualitativos e diferenciados do saber-fazer.
Associação de Investigação e Debate em Serviço Social
Aos Profissionais de Serviço Social, assim como, aos Profissionais de outras áreas das Ciências Sociais, que plena natureza do seu trabalho se encontram inseridos em contextos sócioprofissionais de grande exigência ética, técnica, científica, cultural e de dimensões humanas limite, é continuamente reivindicada uma actualização dos seus conhecimentos teórico-práticos, na medida em que, da constante mudança do meio social destaca-se a necessidade premente destes profissionais se dotarem de competências técnicas e pessoais que permitam um desempenho profissional adaptável, eficiente e actualizado para uma intervenção social responsável. A AIDSS e o IFHS tendo em consideração esta necessidade de uma formação sólida, coerente e que reflicta as preocupações específicas de cada área de intervenção profissional, propõe para o ano de 2011 um plano de formação profissional contínua multidisciplinar que promove acções de formação diferenciadas e coerentes com o espírito de universalidade, transversalidade e paz humana, num espaço em que é possível confrontar, debater, crescer e ampliar o conhecimento teórico-prático das diversas áreas das Ciências Sociais.
__________INFORMAÇÕES / INSCRIÇÕES__________ Associação de Investigação e Debate em Serviço Social Rua da Constituição n.º 814, 5.º andar, sala 29 4200-195 Porto Tlf./Fax.: 225093289 E-mail: ifhs.porto@gmail.com Internet: http://ifhsocial.webnode.com.pt/
Curso “ Perspectiva Humana nas Ciências Forenses -12h 15, 16 e 17 18h às 22h Professor José Pinto da Costa Curso de Desenvolvimento Infantil - 20h
10, 11, 12, 13, 17 e 18 18h às 21h30m Dr.ª Carla Teixeira
Curso Básico de Criminologia - 12h 21, 22 e 26(sábado) 18h às 22h e das 14h às 17h Dr. Miguel Valério
Curso de Mediação Escolar - 12h
24, 25 e 26 18h às 22h Dr.ª Ana Paula Monteiro Curso “Idade em Movimento: a importância do exercício físico na terceira idade” - 12h 27, 28 e 1, 2 de Fevereiro 18h às 21h Dr.ª Diana Machado
Curso de Violência Doméstica - 12h
7, 8 e 9 18h às 22h Dr.ª Teresa Rosmaninho
Gestão de Instituições Sociais Gestão de Lares de Idosos Economia Social Gestão de Reclamações e conflitos Gestão de Projectos de Intervenção Social
Curso “ A Paralisia Cerebral na Criança e Jovem - 12h 1, 2, 3 e 5(sábado) 18h às 21h e das 14h às 17h Dr.ª Carla Teixeira
Intervenção com Crianças, Jovens e Famílias em risco - 12h 114, 15, 16 e 17 Dr.ª Isabel Silva
Mediação de Conflitos
Curso de Introdução à Musicoterapia – 18h 12, 19, 27 Prof. Nuno Barreira
Intervenção Sócio educativa
Mediação Familiar
Bullyng
(DATAS SUJEITAS A ALTERAÇÕES)
Curso “Trabalho Social e Intervenção Comunitária: conhecimento dos fenómenos de exclusão social e pobreza na planificação sistémica de mudança social em territórios específicos” 12h - Professor José Morais
(DATAS DE FORMAÇÃO RELATIVAS AO MÊS DE ABRIL, MAIO, JUNHO E JULHO A CONFIRMAR POSTERIORMENTE).
INTERCULTURALIDADE E TRANSDISCIPLINARIDADE Mudança Social e Saber no campo das teorias e práticas do Serviço Social
Joaquim Paulo Silva1
RESUMO O texto ora presente aos leitores, analisa a mudança, no âmbito do social (das interacções sociais, instituições, mediações, estatutos e grupos), bem como no âmbito do saber (articulação das disciplinas científicas e com outros saberes), e sua influência no campo disciplinar e profissional do Serviço Social. As implicações deste movimento de mudança, conceptualizado como de desmodernização, abrange numa linha primeira, os indivíduos isolando-os
e
comunidades, em
desconstruindo
ilhas/culturas/subculturas,
identidades, com
ênfase
particular para aqueles que se situam numa escala social
1
Licenciado em Serviço Social pelo ISSSP; Mestre em Relações Interculturais pela Universidade Aberta
18
Investigação e Debate (19) próxima, ou no centro das exclusões sociais, criando verdadeiras barreiras à comunicação, à solidariedade, à cooperação, à inclusão social, que não seja pela via de opostos: consumo e mercado-versus-comunidades fechadas, tornando hermético o diálogo intercultural. Simultaneamente, o saber científico, apesar dos seus sucessos tecnológicos, não consegue disfarçar o mal-estar relativamente ao seu próprio avanço enquanto conhecimento, nos seus limites, astrofísica e as partículas elementares, que põem em causa princípios que pareciam estabelecidos, leis positivas, oriundos do início do século XX. Interculturalidade e Transdisciplinaridade são dois conceitos, pequenas chaves com que tentamos abrir as portas de um novo paradigma em construção, para um novo Serviço Social em Edificação.
1. Desmodernização. As duas Culturas. O Sujeito Dilacerado. Existe,
hoje,
mecanismos
de
liberalização
dos
mercados e forçada pelas dinâmicas da clara
que
acumulação das super-forças económicas e
de
crise
tecnológicas, acelerou um movimento, que já
antropológica global: crise do conhecimento,
vinha caminhando desde o fim da primeira
espelhada numa crise social e por fim
guerra mundial, mas se tornou mais claro
disseminada pelo sujeito ou actor social.
após a Segunda guerra mundial e em
A globalização, ou processo de “ governação
particular,
económica-financeira-tecnológica
desmodernização (Touraine, 1998).
atravessámos
a
pelos
um
convicção período
e
no
fim
dos
anos
60:
a
comunicacional”, à escala planetária, liderada
19
Interculturalidade e Transdisciplinaridade » Joaquim Paulo Silva
Como o termo indica, significa a retirada do modelo, ou paradigma global de organização
O início da queda, ou “princípio do fim”,
dos
deste modelo, inicia-se nos anos 30 do século
diversos
sectores
da
sociedade,
denominado de modernidade.
XX, pelo aparecimento em força do que
Um modelo que acreditava, em latu senso, no
Tourainne(1998: p. 41) designa como a
progresso humano baseado na organização
“(...)autonomia
racional da sociedade, onde o Direito, a
económicas que escapam cada vez mais às
Economia, as Ciências, seriam o seguro desse
regulamentações e às prioridades impostas
capital de risco, representado pelo livre
pelos
desenvolvimento de todas as necessidades e
crescente” coloca, a partir da década de 70 do
pelo equilíbrio entre o individual e o
mesmo século em causa os equilíbrios do
colectivo(ou social). Uma comunidade de
modelo
cidadãos livres, governada pela razão(oposta à
moderna.
paixão),
Primeiro, porque põe em causa o Estado
dirimidos
os
conflitos
pelo
crescente
Estados”.
clássico
A
das
referida
da
forças
“autonomia
organização
direito(oposto ao caos e ou à exploração),
enquanto
gerida pela política(através dos Estados
garantística,
Democráticos de Direito), e «impregnada até
securizante.
ao
do
Segundo, porque põe em causa, também, a
progresso(oposta à ignorância e sinónimo de
ideia de Estado como centro das relações
regressão às primevas de exploração da
sociais, da unidade das mesmas, pelas
crença humana).
mediações
Todo o modelo, equilibrado, como numa
colectivos(Estado-Nação)
«balança», por um Estado Social, ou de
individuais (identidades); da unidade entre
“Providência”, regulador do processo de
espaço público e privado.
acumulação
Terceiro, porque destrói o mito do Estado
cerne»
proletárias.
pela
ciência,
capitalista
e
das
mola
ambições
instância,
social
simultaneamente
reguladora,
equilibrada
entre
os e
os
e
interesses interesses
como correspondência a uma ideia política, ou
20
Investigação e Debate (19) melhor, ao que se convencionou denominar
produção - o público e o privado, a economia
como “metanarrativas da modernidade”, que
e a cultura, as trocas e as identidades - o
no imaginário dos cidadãos, permitia manter
status e a liberdade de escolha; em suma
intacto o núcleo identitário, apesar de
dissocia dois universos, ou as duas culturas:
expurgadas
comunitárias,
das trocas e mercado - do das culturas e
tradições, ritos e influências da religião na
identidades(espaço quotidiano e vivencial do
regularidade da vida profana. O progresso
sujeito). Dissociando, rompe os elos sociais,
económico estava unido à cultura pelos
antes unidos pelo projecto da modernidade.
vínculos
Ausentes,
as
heranças
das
mediações
político-
as
mediações,
o
sujeito
vê
ideológicas(proletariado, socialismo, social-
rapidamente afastarem-se, dentro de si, as
democracia,
identidades antes unidas, do mundo da
liberdade,
igualdade,
fraternidade, livre-mercado, etc.,).
produção e consumo, do contexto político-
É tão avassaladora, global, a autonomia da
cultural em que se integram.
força das trocas, do mercado e do mundo
O sujeito, ou actor social, situa-se, não mais,
financeiro, que ultrapassa a barreira dos
dentro de um corpo, ou sistema social, mas
Estados Nacionais, destruindo as mediações
num “campo de acção do mercado” (Touraine,
sociais e políticas, abrindo um fosso entre
1998: p. 45), onde a forma como se situa no
economia e cultura, que antes permitia a
«jogo» social deve ser perspectivada, em
integração na vida social.2
função das possibilidades de estabelecer
A
supra
referida
autonomização
dos
algum
controle
sobre
mudança,
numa
mercados, da economia, concretizada pelo
sociedade em mudança3, ou ser triturado por
seu carácter global, opõe-nos, consumo e
ela e fique imerso numa situação de crise. Crise do sujeito.
2
A integração de todos estes elementos políticoideológicos na vida social era efectuada pelas instâncias integradoras e ou de socialização clássicas da modernidade, nomeadamente o trabalho, a educação,
a formação, a justiça social, a família, o acesso à saúde, a habitação(exponentes concretos das mediações sociais).
3
Realçamos que neste contexto de desmodernização a mudança é a palavra chave, em simultâneo com as palavras «ordem e desordem» como podemos perceber em Touraine(op. Cit., 1988: p. 45) “(...)ordem é substítuida pela mudança como quadro de análise e de acção social, porque o campo de acção estratégica é um
21
Interculturalidade e Transdisciplinaridade » Joaquim Paulo Silva
Crise, tanto mais complexa, quanto, conforme
pobreza, a insegurança e a rejeição social
supra
tornam difícil a comunicação entre estes dois
verificamos,
o
sujeito,
enquanto
cidadão, não se define já pela família, pelo
universos”(Idem,
p.
83),
trabalho e ou pela educação, instâncias
mercantilista e da tradição.
do
consumo
clássicas de socialização, mas oscila entre a rede complexa do mercado e das tecnologias
2. Da Sociedade Multicultural à Resposta
de informação, onde necessita de mais e mais “inputs”, e a trama da tradição numa
Intercultural e Transdisciplinar 2.1 A Sociedade Multicultural
amálgama, entre a comunidade de pertença, a etnia, a religião, o género e os costumes. É o
Face ao descrito no anterior capítulo, surge
drama “em acção”, de uma busca do sujeito,
evidente uma fragmentação identitária, com a
da sua identidade, de uma quase impossível
deriva da modernidade, das suas instituições e
formação,
pela
mediações sociais. Tão mais perigosa, quanto
dissociação dentro de si destes dois mundos:
assistimos, como subproduto da globalização,
dilacerado
à
pela
entre
divisão
o
interna,
mercado
e
as
“sociedade
multicultural”.
Isto
é,
a
comunidades de pertença.
aceleração das economias do “Norte e
O sujeito está em luta, em movimento, é ele
Ocidente” mundiais, com relação às demais
próprio o cerne do “Movimento”, tentando
economias
resistir, em sofrimento; sofrimento que pode
regiões(asiáticas; africanas; leste europeu;
aparecer sobre diversas formas : depressão -
América latina;), impulsionou uma nova e
pauperização
forte vaga de migrações, na exacta medida em
material
e
espiritual
-
de
outros
continentes
e
agressividade - violência gratuita - revolta
que a “mundialização da exclusão”,
organizada( ex: movimentos anti-globalização)
acumulação
e não organizada - angústia, etc. Um
pertencentes ao primeiro grupo, colocou
sofrimento “(...)tanto mais vivo, quanto mais a
milhões de seres humanos entre a “Espada de
conjunto que muda constantemente de possibilidades, de
hipóteses, de riscos...”.
de
riqueza
nos
e
países
22
Investigação e Debate (19) Damócles”, nos seus países ou regiões de
dos direitos dos emigrantes, das minorias
origem «ficar ou morrer na lenta agonia da
étnicas, das identidades culturais específicas,
pobreza e da fome».
ora outras, que se fecham sobre as suas
Num universo social onde a s questões da
comunidades, num perigoso de defesa de um
cultura e das identidades são fulcrais, para a
fundamentalismo cultural, religioso, nacional,
própria
étnico.
existência
civilizacional,
estes
emigrados da “terceira vaga”4, da economia
Aos emigrados, na linha transversal de duas
global de mercado, são confrontados, por um
culturas, juntam-se outras exclusões, também
lado, com processos de exclusão “naturais”,
elas
advindo do desconhecimento das ferramentas
marginais(os sem trabalho, sem abrigo,
educacionais, profissionais, burocráticas e
toxicodependentes, os gangs de jovens, os
institucionais do país que os acolhe, em
diferentes, as mães solteiras, os idosos).
simultâneo
O risco que refere Touraine(1998), de
com
processos
de
exclusão
constituindo-se
“encerramento
que são votados pelas comunidades onde
experiência particular e incomunicável(...)num
aportam;
vez,
mundo de seitas e à recusa de qualquer
inseguras, no seio de um processo de
norma social”, é real, fruto da dessocialização
mudança global.
e da incapacidade, nos Estados Democráticos
Os sujeitos destas diversas comunidades
Ocidentais, de passarem da mera enunciação
confrontam-se,
de um conjunto de leis e Instituições sob os
também,
por
quotidianamente,
sua
e
nas
organizações que aparecem ora em defesa
princípios
da
cada
subculturas
culturais, de hostilização ou de indiferença a
elas,
da
em
tolerância
cultura
cultural
numa
e
da
participação multicultural, para uma prática 4
Toffler (2000), associa a Segunda vaga tecnológica á Revolução Industrial, com as migrações de colonização, e a terceira vaga a uma aceleração tecnológica informacional, global e social imparável, que transformam o mundo e pressionam, quer as culturas da modernidade, quer as culturas remanescentes da modernidade, produzindo migrações inversas, dos ex-países colonizados, ou em «vias de desenvolvimento»,
efectiva político-cultural concomitante com estes enunciados.
para os países ditos desenvolvidos, criando, também, uma nova vaga de migrações. 23
Interculturalidade e Transdisciplinaridade » Joaquim Paulo Silva
As Instituições políticas já não surgem com a
portanto,
capacidade de intervenção e reconhecimento
corresponder a um sistema unitário
simbólico suficiente para articular o “mundo
total, ao nível cultural, porque em
força
permanente
dos
mercados”,
com
o
“mundo
nunca
poderão
construção
e
fragmentado dos sujeitos e das culturas”.
reconstrução do seu “pathos” e do
Situam-se numa encruzilhada de caminhos,
seu “ethos”, através da integração de
“(...) entre uma democracia cultural que
novos
reconhece o pluralismo cultural (e os direitos
culturais, oriundos da uso da Língua,
das minorias) e o integrismo comunitário que
dos costumes, tradições e culturas
identifica um poder com uma sociedade e
que interagem no seu seio, ou pelos
uma cultura.”(Idem: p. 223).
próprios
elementos,
ou
“outputs”
média(informática
integrada), que introduzem no seio Um conjunto de equívocos enferma este
das comunidades, escolas, famílias,
processo de relacionamento intercultural na
padrões “hiper mundiais”, formatados
nossa sociedade, comuns às da Europa
para caber em todas as culturas, sub-
Ocidental.
repticiamente ou em força,
que
Primeiro, sociedades abertas como as
modificam
que
nossas, funcionalmente abertas pelo
geralmente são “outsiders” culturais.
-
mercado, e ideologicamente abertas
-
padrões,
mas
Segundo, a ideia de retorno a uma
pela democracia política, têm de
identidade de valores, ou culturas
funcionar
sistemas
comunitárias arcaicas, tradicionais, é
“autopoiêticos”5, i.é., capazes de se
assaz perigosa, porque põe em causa
renovarem,
os fundamentos democráticos e de
como
restabelecerem,
e,
liberdade das Nações que se regem 5
Cit. In Lazlo (1994), este conceito que “migra”, no nosso texto, das teorias biológicas do “terceiro estado”, sobre a forma como a vida se organiza, retomando as ideias de Humberto Maturana e Francisco
por estas padrões, como as da União
Varela(citados no mesmo texto) sobre os sistemas
abertos, em particular, as células, os órgãos, os 24
Investigação e Debate (19) Europeia, e claro Portugal, dado que
existência, enquanto democracia política e
pressupõe “a existência de um poder
luta pela defesa da liberdade e identidade do
absoluto, que impõe normas jurídicas,
sujeito,
o
respeito
colectivas
das e
regras um
com a “libertação” deste da
de
vida
dilaceração cultural, que vive, entre o
sistema
de
mercado e a tradição(seja esta qual for,
educação”(Touraine, 1998: p. 225).
mesmo a herdada da modernidade).
De todo, quer o apelo às identidades e
Livre construção da vida pessoal, sem apelos à
culturas nacionais, quer a imposição de uma
razão, ou à transcendência mas na resistência
tradição
à colonização cultural de um modo de vida de
comunitária(religiosa,
mística,
ideológica), não podem ser respostas sócio-
mercado,
politico-culturais em sociedades multiculturais
globalização, relegando a fractura entre
como as nossas, abertas às inferências e
sociedades, mundo e vida pessoal. Como
interferências de todos os sujeitos em acção e,
refere Touraine( 1998, p 228)“A comunicação
em particular,
intercultural só é possível se o sujeito
sem as mediações sócio-
ideológicas-institucionais da
modernidade,
conseguir
consumista,
previamente
imposto
desligar-se
pela
da
sob o risco da aniquilação do “outro”, quer na
comunidade.”.
real acepção do termo, quer de um modo
podemos compreender o “outro”, enquanto
subjectivo, pela anulação da sua cultura, pela
«sujeito outro», sem medo, sem receios ou
sua amorfização, ou pelo empurrão para as
inseguranças.
margens,
a
revolta,
o
fanatismo
Só deste modo, libertos
e
fundamentalização de simbólicos identitários.
Uma
A
existir
deficiências nas relações interculturais; uma
confusão
sociedade onde os sujeitos vivem dilacerados
fragmentária, ou num pretenso “melting-pot”,
entre as trocas, o consumo, em suma o
deverá combinar a própria essência da sua
Mercado e a sua identidade, a sua cultura, o
sociedade
enquanto
tal,
multicultural, e
não
para
numa
Sociedade
Multicultural
mas
com
seu cerne pessoal, a sua intimidade; uma organismos, e os grupos e as sociedades!... 25
Interculturalidade e Transdisciplinaridade » Joaquim Paulo Silva
sociedade sem mediações, onde cresce o
interpenetrada
fosso entre os cidadãos integrados e os
Transdisciplinar.
dos
diversos
saberes,
excluídos - os não cidadãos - ou como Dahrendorf (1996) intitula os “underground”, uma
percentagem
cada
vez
maior
2.2 A
da
população mundial que perdeu o contacto
Resposta
Intercultural
e
Transdisciplinar 2.2.1
com a esfera da cidadania; é uma sociedade
Uma Metodologia de Aproximação Intercultural - Conceptualização
ferida. A
resposta,
ou
melhor,
as
potenciais
a) O Intercultural e o Serviço Social
respostas, consistem sobretudo em religar,
As questões colocadas pelas Sociedades
reunir o espelho poliédrico
Multiculturais, Pós-Industriais, aos regimes
transformamos,
se
em que nos
transformaram
as
políticos democráticos, só nas últimas décadas
sociedades, :
principiaram a Ter eco, na forma de produção
(...) reunir o que foi separado, em reconhecer
intelectual,
o que foi recalcado e reprimido, em tratar
trabalhadores sociais os mais diversos, e na
como parte de nós mesmos o que havíamos
intervenção política reorientada para padrões
rejeitado por ser estrangeiro, inferior ou
sociais pluri-culturais(Lynch, 1986: 3).
tradicional.”(Tourraine, Op. Cit.: p. 240).
Em
E tudo isto exige uma nova Intervenção Social,
Cardoso(1996: 22), a percepção mais vincada
nomeadamente aquela que se fundamenta
sobre a importância das questões inerentes à
num campo profissional tão vasto como o
multiculturalidade,
Serviço Social,
fundada numa estratégia
relações entre culturas, foram insípidas até à
simultaneamente requalificante e dignificante,
década de 90, “ Só em 1991 foram tomadas as
com a inserção fundamental de metodologias
primeiras medidas legislativas com carácter
de carácter Intercultural, e numa lógica
multicutural”(Idem:
dos
Portugal,
investigadores,
como
nos
técnicos,
afirma
nomeadamente
23),
Carlos
das
particularmente
focalizadas no sistema educativo. Apesar de,
26
Investigação e Debate (19) desde os fins dos anos 80, a emigração
pobreza/exclusão social, marginalidade,
proveniente das ex-colónias, assumir já o
promoção de condições que permitam o
carácter de problema de integração social,
exercício autónomo da cidadania, no melhor
nomeadamente no concerne à fixação de
acesso às Instituições do Estado Providência,
bolsas urbanas compostas por estas minorias,
situações onde por norma se encontram os
vivenciando
grupos, os indivíduos e as comunidades
situações
de
exclusão
e
na
marginalidade social. Em simultâneo com a
migrantes, ou minorias étnicas e raciais.
ocorrência de fenómenos sociais concretos de
Envolvidos, também, os Assistentes Sociais, ao
racismo,
nível
esporádicos,
mas
resistentes,
da
sua
«práxis»,
em
múltiplas
denunciadores de uma necessária atenção ao
instituições públicas e privadas, desde a
nível das políticas, das investigações e práticas
educação, saúde, justiça, trabalho e segurança
técnicas
social,
de
intervenção
nas
relações
interculturais.
projectos
comunitário,
de
acessoria
desenvolvimento técnica,
gestão,
promoção e desenvolvimento de programas A definição de metodologias de Intervenção
de política social, são a primeira linha de
Intercultural como instrumento, simultâneo,
contacto,
de integração das culturas migrantes e de
relacionamento
aproximação entre culturas(autóctones e
"diferentes”, em termos culturais.
migrantes; e entre as diversas culturas
Apesar de munidos, no plano ético e teórico
migrantes), é transversal às várias formas e
de métodos e técnicas de ajuda, apoio,
ou disciplinas que se reclamam do Trabalho
intervenção planeada, , baseados nos valores
Social, mas relevam da máxima importância
do “(...) respeito pela pessoa , sua visão do
para os profissionais de Serviço Social,
mundo, seu sistema
historicamente
numa
necessidades...”(Émerique, 1990), e de “(...)
intervenção multissectorial ao nível social,
promover a faculdade de autodeterminação,
mas de comum situada em processos de
adaptação e desenvolvimento das pessoas(...)
«engajados»
muitas com
das as
vezes,
no
comunidades
de valores, suas
27
Interculturalidade e Transdisciplinaridade » Joaquim Paulo Silva
facilitar a informação e ligações sociais com os
multiculturais, não só actuam aos níveis
organismos
sócio-
macro sociais, das comunidades e dos grupos,
económicos...”(Caparrós, 1994), no entanto,
como nos níveis micro sociais, das relações
as
das
interpessoais, nomeadamente nas relações
de
mudança
mediações
e
recursos
societais
fragilizantes
elos
sociais,
obrigam
os
que se estabelecem entre os Assistentes
a
uma
readequação
Sociais e os utentes que os procuram no
metodológica e técnica, face aos novos
quotidiano do exercício da sua actividade num
desafios teóricos, reais, metodológicos e
contexto
técnicos colocados pela “dilaceração do
comunidades, em grupos, ou no «confronto»
sujeito”, pelos “cortes sociais”.
individual.
Dignificar, juntar as peças de um espelho
A estes equívocos, Emérique (1990: 9), define-
social poliédrico, onde os sujeitos, quer
os tecnicamente como filtros culturais de
enquanto indivíduos, quer enquanto grupos e
distorção
ou comunidades, estão mergulhados, num
relações interculturais, geradores de “mal
libelo acusatório mútuo, que as narrativas
entendidos, incompreensões e percepções
monolíticas da dialéctica, do construtivismo, e
unidimensionais do outro”.
de um vago apelo à participação pura e
No contexto de uma “perspectiva situacional”
simplesmente não resolvem.
(Ibidem)6, a relação entre o profissional e os
profissionais
institucional,
comunicacional,
técnico,
existentes
em
nas
utentes dos diversos serviços, provenientes de b) Pressupostos Para Uma Metodologia de Aproximação
Intercultural
-
Conceptualização
uma cultura, ou sub-culturas diferentes, não se
inscreve
num
vazio
cultural,
num
espaço/tempo neutros. Está ancorada em
6
Os equívocos, sobre os quais escrevemos, no início deste capítulo sobre as relações interculturais,
nas
nossas
sociedades
A Perspectiva Situacional remete-nos para o facto de uma relação entre duas pessoas nunca partir de um zero absoluto, ao nível sócio-cultural, mas terá que ser situada em função da situação que os actores possuem no momento, nomeadamente nos contextos familiares, culturais, históricos, económicos, estatuto, funções sociais, riqueza/pobreza, etc. 28
Investigação e Debate (19) situações e contextos, marcados pela história,
níveis
economia, política e pelas conjunturas, onde
desnivelados, herméticos(muitas vezes de
os actores se inscrevem numa interacção, não
modo não perceptível) originando os “ditos”,
só onde estão presentes dois seres humanos,
filtros culturais e distorções que podem
duas pessoas de culturas ( “ad principium”)
arrasar a validade de qualquer Intervenção
diferenciais, mas partindo de uma ante
Social em contextos multiculturais.
valorização social sobre
Emérique(Ibidem), define três, os níveis de
maior ou menor
comunicacionais/relacionais
importância, atribuída pela sociedade a cada
filtros e distorções que poderemos encontrar:
uma das culturas de que são expoentes e
1º- De ordem cognitiva e afectiva: As
portadores.
actor,
representações, os estereótipos, os a- priori
estratégias e dinâmicas mais ou menos,
que nos envolvem relativamente a um grupo
defensivas e ou ofensivas, onde se inscrevem
étnico, a um país, a uma região, e que se
situações
situam no plano das nossas representações
Criando,
de
poder
em
e
cada
dominação,
de
inferioridade e superioridade.
interiorizadas, pela história e cultura das
Tudo o descrito surge em simultâneo com a
relações entre as duas culturas, estão na
própria
à
origem de incompreensões, mal-entendidos,
personalidade do(s) indivíduo(s) que se
mau grado toda nossa ampla disponibilidade
apresentam
de abertura e tolerância que pensamos ser
subjectividade
numa
relação
inerente
de
ajuda,
aportando as suas próprias ansiedades,
possuidores.
expectativas, e mesmo uma interiorização
2º- De ordem pessoal e ou institucional: São
muito própria da relação entre o seu contexto
as representações
cultural e a relação com o contexto cultural
próprios modelos elaborados de “motus
exterior.
individualis”, depois do crivo da socialização, e
Uma Relação Intercultural, mesmo aquela
dos
com origem numa actividade profissional,
Instituições
como a do Serviço Social, poderá assentar em
profissional, e com as quais, muitas vezes, nos
próprios
advindas dos nossos
modelos
onde
imanados
exercemos
pelas
actividade
29
Interculturalidade e Transdisciplinaridade » Joaquim Paulo Silva
identificamos, anulando a elaboração critica
por base que, o “processo de ajuda no
necessária, e que ordenam a nossas relações
Trabalho Social deve ser entendido como um
interculturais com os cidadãos que apelam
conjunto de acções(objectivas e subjectivas)
nos serviços: os modelos familiares, os papéis
de reconhecimento do outro nas suas
masculino e feminino, a educação das
identidades múltiplas e complexas”(Emérique,
crianças, uma certa imagem do que se
11), numa atitude de abertura completa, de
considera a “boa inserção social”. Conduzem-
Aproximação intercultural.
nos, na avaliação das situações em concreto, a «olhar os outros pelo olhar de cultura
Metodologia de Aproximação Intercultural
ocidentalizada, institucional, padronizada, ao
Esta
nível dos comportamentos culturais, sexuais,
proposto
educacionais, entre outros.
desenvolve-se em três níveis, como etapas de
3º- Modelos Técnico-Profissionais: O terceiro
Aproximação Intercultural, permitindo, no
grupo de filtros concerne com os próprios
final do desenvolvimento de um processo de
modelos técnico-profissionais, derivados de
Intervenção Social Intercultural:
Metodologia, por
seguindo
Emérique
o
projecto
(Ibidem:
12),
um saber científico do campo das Ciências Humanas e Sociais. Isto é,
uma certa
1º- A descentração : A descentração consiste
absolutização, universalização destes saberes,
num distanciamento sobre nós próprios, dos
impondo-os sobre outros saberes e outras
nossos valores, dos nossos costumes e hábitos
culturas, que menorizamos simplesmente
culturais, tomando consciência, ao mesmo
porque não utilizamos os mesmos parâmetros
tempo, por confronto com o outro, quais são
de avaliação.
as minhas referências ideológicas, assumindo uma atitude crítica e descentrada de si.
O
reconhecimento,
destes
obstáculos
E esta descentração tem de começar a
reconduz-nos para a definição de uma
funcionar no primeiro embate com o outro,
Metodologia que vise esta superação, tendo
com os seus comportamentos “estranhos á
30
Investigação e Debate (19) nossa identidade”, ajudando-nos a reflectir e
charneira nos processos de mudança social
enquadrar a relatividade dos nossos quadros
que envolvem as populações migrantes em
culturais, por comparação com os do outro.
situação de exclusão e que necessitam de
É um esforço de rotação sobre nós, no sentido
quadros de resolução dos problemas, de
de sairmos para fora, de passar para o ponto
participação na vida social no país de
de vista do outro, que, também, nos analisa
acolhimento.
com os seus instrumentos e ferramentas
O Assistente Social assume, então, um papel
culturais, conduzindo-nos à segunda etapa
decisivo de negociação entre as normas do
metodológica.
migrante e do país de acolhimento, na medida em que elas se chocam e confrontam,
2º A penetração no sistema
cultural do
gerando os tais processos de exclusão e
outro/ apropriação da sua cultura: Ou seja,
marginalização social do migrante.
um processo de penetração e descoberta dos
A negociação consiste em procurar um
sistemas de referência do outro. Um sistema
mínimo de consenso, um compromisso entre
composto não só pela cultura de origem, mas
estes dois pólos, preservando as identidades
também, por uma dinâmica evolutiva ligada à
da estrutura minoritária.
própria migração (de interconexão cultural), e pela dimensão individual de assimilação deste
Só possuindo, nos seus quadros referenciais,
processo de mutação.
as duas atitudes anteriores, descentração e
Penetrar no seu sistema de referência para
apropriação cultural, é que o Assistente Social
ver o mundo do ponto de vista deste.
poderá evitar impor modelos, pensando que está a actuar do modo mais técnico/científico
3º A negociação : Precisamente porque é
possível, dado que na sua relação se situa
capaz de se descentrar e de penetrar no
nitidamente como pertencente ao grupo
sistema cultural do outro é que o Assistente
sócio-cultural dominante e, portanto, assume
Social poderá assumir uma posição de
um posicionamento superior na relação de
31
Interculturalidade e Transdisciplinaridade » Joaquim Paulo Silva
ajuda com
o indivíduo da comunidade
Esta situação é tão mais urgente, quanto, a
migrante.
fragmentação do conhecimento “(..) em mais
Uma atitude de mudança social que pretenda
de três mil disciplinas e umas oitocentas
impor modelos - como hábitos alimentares,
interfaces” (Weil, 2002), criou uma verdadeira
educativos ou outros – porá o outro na
torre de babel do conhecimento, um espelho
defensiva e não permitirá estabelecer uma
poliédrico onde o saber se perde nos
relação
nem
interstícios desse espelho, numa justaposição
possibilitará o cumprimento dos objectivos do
de conhecimentos, como se o cosmos, o
Serviço Social, no combate à diversidade de
planeta,
situações de marginalidade e exclusão social.
correspondessem não a um todo orgânico,
de
ajuda e proximidade,
a
natureza,
o
ser
humano,
mas exactamente a uma montagem fusional, 2.2.2- A Resposta Transdisciplinar
capaz de ser discernível pela divisão e
À introdução de instrumentos metodológicos
especialização disciplinar ilimitada.
interculturais,
deve
a
Perdeu-se a visão global do homem, num
reformulação
da
a
mundo, por oposto, em plena globalização, e
“Modernidade”, hierarquizou, ou diferenciou
num “universo” do saber científico, que
os diversos saberes/conhecimentos, i. é., é
apesar do seu sucesso tecológico-genético-
necessário transformar a atitude técnica,
bioquimico, e em resultado do mesmo pôs em
pura, vinculada, muitas vezes a um excesso de
causa a maior parte das teorias científicas
ciência, cientifismo, para uma atitude de
herdadas do século XIX, grosso modo,
abertura e correlação entre as diversas
positivistas e mecanicistas, multiplicando-se
disciplinas científicas e como as demais e
no
diversas formas de conhecimento humano,
epistemológicos, paradigmáticos e teóricos
como as humanidades, os estudos culturais,
demonstravam incapacidade em resolver,
éticos, da história espiritual e até do
presos a esse olhar do saber, funcional,
corresponder forma
um
como
seu
seio
anomalias,
cujos
campos
conhecimento do próprio senso-comum.
32
Investigação e Debate (19) mecânico, a que algum dia o sócio/cultural
sobre o saber, o conhecimento, importante e
haveria de chegar.
complementar da abordagem metodológica intercultural, e, para além, introduz noções
As questões sociais, multiculturais, a procura
que podem permitir ultrapassar as dicotomias
de respostas integradas, necessárias a uma
da
nova visão, a uma nova intervenção face a
sujeito/objecto; natural/social; conhecimento
novos problemas, que supere dicotomias, que
científico/outros
impele
ciência/cultura.
esse
novo
“olhar”
adaptado
à
Ciência
Moderna,
como,
p.e.,:
conhecimentos;
complexidade e simultaneamente a um entendimento dos problemas como micro e
Transdisciplinaridade é um termo introduzido,
macro, locais e globais, conduziu à busca de
em meados do século XX, por Jean Piaget e
novos paradigmas, que possam dar uma certa
adoptado por Janch (Nicolescu, 2000), como
unidade a teorias diferentes, ultrapassando
forma de se distinguir e superar os termos
divisões disciplinares artificiais, e conduzam a
pluridisciplinaridade, interdisciplinaridade, já
uma
o
então utilizados, como prática comum entre
conhecimento, nomeadamente o científico,
cientistas e nas academias universitárias,
retirando-o do pedestal a que se alcandorou,
cônscios da necessidade de ultrapassar a
tão longe dos Cidadãos-Sujeitos, que no início
excessiva disciplinarização da ciência, e como
pretendia servir, devolvendo-o exactamente
tentativas de abarcar a complexidade do
às pessoas, capaz de oferecer sentido, valor e
conhecimento que ia avançando com as
comunidade, elementos chave para sair da
sucessivas
dilaceração quotidiana, e unir tecnologia e
biotecnologia, da astrofísica, da ecologia, da
cultura, reconstruindo a “humanidade da
neuropsicobiologia, etc.
humanidade” (Morin, 2003).
Para compreendermos a abrangência do
A
nova
resposta
forma
de
entendermos
transdisciplinar
aparece,
exactamente, como um novo entendimento
termo,
revoluções,
melhor,
dos
do
quanta,
da
“movimento
transdisciplinar” (Idem), devemos primeiro
33
Interculturalidade e Transdisciplinaridade » Joaquim Paulo Silva
perceber o significado dos complementares,
em, programas de substituição de órgãos
pluridisciplinaridade e interdisciplinaridade.
humanos debilitados).
Segundo
Num
B.
Nicolescu
(Idem:
34),
segundo
grau,
a
transferência
pluridisciplinaridade, concerne ao estudo de
metodológica e a lógica formal, poderão
um determinado objecto, de uma mesma e
produzir análises interessantes e diversas,
única disciplina, por várias disciplinas ao
num
mesmo
epistemológico.
tempo.
Por
exemplo,
um
campo
disciplinar,
ao
nível
comportamento humano pode ser objecto de
Num terceiro e último grau a transferência
estudo, em simultâneo, pela antropologia,
metodológica poderá dar origem a disciplinas,
pela sociologia, pela etnologia, pela biologia,
ditas híbridas, como, a título exemplar, a
pela psicologia, e até pela história. A
astrofísica,
interdisciplinaridade
sociobiologia, a psicossociologia.
diferente,
possui
direccionando-se
um
escopo
para
a
a
cosmologia
quântica,
a
No entanto, quer a pluridisciplinaridade, quer
transferência de métodos de uma disciplina
a
interdisciplinaridade,
para a outra. Esta transferência poderá
ultrapassarem
ocorrer em três graus de aplicação, segundo
disciplinar, contudo continuam inscritas numa
B. Nicolescu (Ibidem: 34). Um grau de
finalidade de análise particular, sendo, até,
aplicação, um grau epistemológico e um grau
que a interdisciplinaridade, no seu último
de geração de novas disciplinas híbridas.
grau, cria uma verdadeira explosão entre a
No primeiro grau, a transferência de métodos
clássica divisão disciplinar, natural e social,
de uma disciplina para outra poderá conduzir
pela quantidade de híbridos onde se juntam
a novas tecnologias, como por exemplo as
disciplinas
tecnologias médicas, com um campo de
divisórias da ciência moderna.
a
destas
apesar
análise
duas
de
meramente
grandes
áreas
aplicação médica (como a utilização da cibernética e da teoria dos sistemas, aplicados
A transdisciplinaridade pretende ultrapassar esta crise do conhecimento pela imersão e
34
Investigação e Debate (19) superação. Isto é, e como o seu prefixo
Pensamento que situa entre aquele que
“trans” indica, porque “(...) diz respeito àquilo
“esmaga a diferença reduzindo-a à unidade
que está ao mesmo tempo entre as
simples” (Morin, 2001: 26)- os dogmas da
disciplinas, através das diferentes disciplinas e
modernidade - e o “outro que oculta a
além de qualquer disciplina”. O objectivo é a
unidade porque só vê a diferença”(Ibidem)-
busca da unidade do conhecimento, na
pensamento positivista.
procura de respostas à complexidade imposta
Ora,
pela evolução do mesmo sobre as diversas
Renascimento nos escombros dos diversos
faces realidade (natureza, o cosmos, o físico e
conhecimentos
metafísico) e da humanidade, hoje organizada
Humanidades etc.), reduzindo, quantificando,
numa
sociedades
isolando a realidade observável (cosmos,
globalizadas nos aspectos fundamentais da
natureza, humanidade), pela diferenciação
tecnologia
mas
dos elementos, não relacionáveis numa
simultaneamente localizadas nas diferentes,
unidade, ou em unidades simples, numa
mas próximas, crises culturais e comunitárias.
simplificação do processo do conhecimento.
O movimento transdisciplinar procura dar
Para percebermos o Pensamento Complexo,
consistência a este objectivo, através de três
nas palavras de Morin (2001), o “Paradigma
conceitos fundamentais:
da Complexidade”,- entendendo-se aqui por
complexa
e
rede
de
informação,
a
ciência
fundou-se,
(Mitos,
desde
o
Religiões,
-
Os níveis de realidade;
paradigma (Idem, 1991) uma noção lógica
-
A lógica do terceiro incluído;
entre noções, conceitos, e princípios chave,
-
O pensamento complexo.
que definem uma forma de pensar e organizar o conhecimento (teorias e métodos), nos
Vamos analisar, então, estas bases do que
diversos domínios de que ele se ocupa
designamos por movimento transdisciplinar,
(ciência, filosofia, ideologia, política, etc.)-
começando pela ordem inversa da supra
devemos compreender que existiu e existe um
referida, isto é, pelo pensamento complexo.
outro Paradigma, o da Simplicidade.
35
Interculturalidade e Transdisciplinaridade » Joaquim Paulo Silva
A Simplicidade enquanto Paradigma baseia-se
numa inversão, intervêm na natureza e
num conjunto de procedimentos excludentes,
consequentemente no cosmos, num processo
nomeadamente
subjectivamente
circular. Dividiu-se, ordenou-se, criaram-se
determinado como ilusório, tendente a criar
leis numa simplificação de um universo
leis ou princípios universais, que determinam
observável. Mas à medida que os factores
o funcionamento do cosmos, da natureza
aleatórios penetravam nas teorias que a
terrestre, do biológico, e mesmo da própria
ciência permanentemente ia criando, para
acção humana. Identifica um princípio geral
tentar resolver as instabilidades encontradas,
ordenador
em
mais difícil era suportável um paradigma que
mecânicas,
não comportava, o subjectivo, o acaso, a
organizadas em unidades simples, cuja súmula
desordem, o indeterminismo. Cravam-se aqui
mecânica permitiria ao homem tudo perceber
as brechas epistemológicas que vão abrir
pela simplificação dos procedimentos, na
caminho ao Paradigma da Complexidade.
investigação e intervenção em unidades
Quanto mais se aprofunda nos dois extremos
retiradas de contextos globais, por eliminação
do
dos acidentes, do acaso, da indeterminação,
macrofísico, mais se caminha para um terreno
pela não consideração da desordem e do caos.
inexplicável à luz das teorias científicas
Este
clássicas.
relações
do
do
Universo,
deterministas,
paradigma,
como
alicerçado
dissemos,
para
simplificar separa; e para separar divide-se em
conhecimento,
-
o
A macrofísica
microfísico
e
o
destrói os conceitos
tantas disciplinas, quantas são exigíveis para a
clássicos e estáticos de espaço e
concretização de unidades simples ( a
tempo, unindo-os numa desordem
biologia, a física, a psicologia, a antropologia,
cósmica,
a história, a sociologia, para só designarmos
negros para além da velocidade da
algumas). Esqueceu, esta forma paradigmática
luz, de mundos paralelos, em teorias
de conceber o conhecimento, que o cosmos
das cordas ou do Tao da Física.
onde
coabitam
buracos
contêm a natureza e esta o homem, e este,
36
Investigação e Debate (19) -
A microfísica, na busca da matéria
respostas, nas três áreas supra referidas. Isto
elementar, encontrou na composição
impõe
última desta, uma entidade tão vaga e
pensamento/conhecimento a partir não da
tão complexa (os quanta), que não
redução dos problemas, escondendo para
consegue fixar-se enquanto matéria,
canto um outro mundo que compõem os
sendo definida como movimento ou
mesmos problemas, mas de uma lógica da
energia
complexidade,
com
a
agravante
da
que
se
passe
afirmada
a
organizar
em
o
Paradigma
interrelação dos seus movimentos
alternativo, que remete a desordem como
com o sujeito que observa, ou tenta
campo potencial de criação de ordem, e vice-
observar, contrariando a máxima
versa, num jogo permanente de contrários
positiva de separação entre sujeito e
onde o universo se consubstancia e a própria
objecto.
vida é parte desse jogo, e parte dessa premissa essencial, revelada pela entropia,
A complexidade é a tónica global do
negentropia, teorias sistémicas, a auto-
funcionamento das “coisas”, das mais ínfimas
organização a quântica, etc.
às cósmicas. A ordem e a desordem
Aceitar
colaboram
na construção do universo, da
contradição no conhecimento, não podendo
matéria e da anti-matéria, da vida e da morte.
construir-se o mesmo pela exclusão de partes
Tal como o sujeito e objecto, o natural e o
do conhecimento. Esta contradição pode ser
social, o acaso e a necessidade, a emoção e a
entendida, que não superada, pelas noções
razão.
subsequentes, de Terceiro Incluído e de Níveis
Simplificar significa reduzir. A ordem dos
de Realidade, ou Multidimensionalidade do
problemas colocados por esta forma de
Real.
a
complexidade
é
aceitar
a
organizar e pensar, primeiro a ciência, depois a política e a sociedade, enfraqueceram o
O paradigma da simplicidade não aceitava, em
Paradigma
simultâneo, a validade de uma coisa e o seu
e
capacidade
de
oferecer
37
Interculturalidade e Transdisciplinaridade » Joaquim Paulo Silva
oposto: A e não-A. Por exemplo, que a noite é
termo T, que concilia, por superação, os
dia, o céu é a terra, etc. (Nicolescu, 2000).
anteriores, fazendo a síntese, e criando um
Ora a quântica (desde a sua constituição
novo
definitiva, por volta de 1930), introduziu uma
consequentemente de validação. Na quântica,
nova, ou novas lógicas de validação, as lógicas
onda e corpúsculo parecem contraditórios,
quânticas,
mas
que
tentavam
resolver
os
patamar
se
de
introduzirmos
conhecimento,
o
conceito
de
problemas gerados pela nova concepção
dinamismo, este une-os num outro nível de
global da física, que alteravam a física clássica.
realidade,
As novas lógicas entroncam com a relação
coexistindo, no entanto, em simultâneo, e só
directa sujeito e objecto, e destes com o meio
entendidos nessa simultaneidade (Nicoslecu,
ambiente
2000).
físico,
químico,
biológico,
diferente
daquele
anterior,
psicológico, micro ou macro sociológico (Idem,
A lógica do terceiro excluído continua válida
2000: 23). Estas lógicas implicam uma noção
para situações relativamente simples, mas,
relativa do conhecimento, em função das
quando se complexificam os elementos em
circunstâncias e do tempo em que se
presença e os fenómenos daí resultantes, num
produzem,
nível diferente, teremos de trabalhar com a
do
alargamento
consciência/conhecimento sobre
da
as mais
lógica do terceiro incluído.
diversas coisas, relativas ao ser, ao mundo, ao universo. Esta nova visão da ciência, alterou a
Esta noção é particularmente válida para o
lógica do terceiro excluído, que desde o
campo social, onde coexistem fenómenos de
renascimento
particular complexidade, e onde a mudança é
dominava
o
princípio
da
validação da verdade científica.
uma constante que baralha a consciência de
Cria-se uma nova condição de validação, a do
uma ciência positiva, e a lógica do terceiro
terceiro incluído, uma lógica simultaneamente
excluído, em paralelo com a subjectividade
de não-contradição e multivalente. Aos dois
inerentes aos comportamentos humanos e às
termos de uma lógica A e não-A, junta-se o
38
Investigação e Debate (19) formas
de
organização
social
e
de
Implica esta lógica a existência de níveis de
socialização.
realidade diferenciais, consoante a situação, o
As análises sociais dificilmente são validadas
status, o conhecimento, a consciência, a
em forma de lei científica, tendo em conta a
cultura e a sociedade em que os Sujeitos se
diversidade de premissas paradigmáticas,
movem. Uma realidade multidimensional e
teóricas e metodológicas, de onde podem
não unidimensional, onde cada salto para
partir, como as culturais, as etnocêntricas,
outro nível de realidade representa um
sobre os valores e comportamentos humanos;
ruptura com os conceitos fundamentais de um
de
consoante
dos níveis de realidade ( daqui que os
analisamos políticas económicas e sociais; são
processos de integração cultural, assimilação
aproximações
de
por vezes, conduzam a percas identitárias, em
realidade em que nos situamos e se situam os
resultado de rupturas não compensadas com
cidadãos-sujeitos, integrados, num sistema
a adesão a novos referenciais).
complexo, bio-psico-sócio-político-cultural.
Ao analisarmos um qualquer fenómeno social
A aplicação da lógica do terceiro incluído à
multidimensional
análise científica humano-social, junto dos
comportamento), poderemos analisá-lo a
indivíduos, grupos e comunidades e suas
partir de unidades disciplinares simples -
culturas e formas de interacção social, podem
como a biologia, a psicologia, a antropologia,
exemplificar-se deste modo:
a sociologia, etc. - que podemos designar
A vivência (V) do real (R) é função do estado
como níveis de realidade, que, quando juntos,
consciência (EC), no momento em que
através da partilha de teorias, métodos ou
entramos em contacto com indivíduos, grupos
aplicações de vários desses níveis, estamos a
e comunidades; ou seja, fruto de uma relação
conduzir a percepção do fenómeno para um
complexa entre mecanismos bio-psico-sócio-
outro nível, ajudando a compreender a sua
culturais.
complexidade que a redução a unidades
direita
ou
de
esquerda
consoante
os
níveis
(por
exemplo
o
simples não permite. Esta complexificação do
39
Interculturalidade e Transdisciplinaridade » Joaquim Paulo Silva
processo de conhecimento, pelo caminho
imediato do Serviço Social nas palavras de
inter/pluri e transdisciplinar, é a obra ao nosso
Balbina Ottoni Vieira (1989: 57):
alcance, visando
religar os saberes, para
Quando surgiu o nome Serviço Social
compreender a realidade e melhor intervir na
ou Social Work, deu-se o reconhecimento de
e com ela, uma realidade globalizada,
que ajudar não era apenas uma emoção, um
mundializada, complexa, religando as partes
gesto, mas um autêntico processo, uma
excluídas do conhecimento humano, pela
operação com base racional sem no entanto
lógica amputatória do terceiro excluído.
perder o seu interesse humano. A par destas ideias comungantes nos círculos
3. O Serviço Social no Campo das Mudanças –
intelectuais
e
científicos,
onde
a
das Teorias e das Práticas
profissionalização e a integração académica
3.1- O Serviço Social na Encruzilhada de uma
do serviço social se realiza, Estados Unidos,
Nova Era
Inglaterra e França, até á década de trinta, convive uma filosofia social, de influência
O
Serviço
sua
Iluminista, Filantrópica e de matriz positivista,
profissionalização, se “comprometeu” com o
que, principalmente nos países de religião
projecto da Modernidade. Nascido em plena
protestante,
era da modernidade, finais do século XIX e
consubstancia a acção do Assistente Social
início do século XX, vinculando-se às ideias de
num
preponderância da razão experimental, do
positividade
humana,
método científico, do progresso, e do
postulados,
afirmados
desenvolvimento humano como meta, onde o
Conferências de Serviço Social realizadas a
papel funcional do Serviço social, começou
nível internacional até década de 50 do século
desde
XX, como: o respeito pela dignidade humana;
logo
Social,
a
ser
desde
a
equacionado,
em
concomitância com a “Questão Social”. Podemos
perceber
este
a
ou
na
compromisso
sua
liberdade
França
republicana,
com os valores
e
assumidos nas
da em
diversas
responsabilidade;
a
engajamento
40
Investigação e Debate (19) aceitação do cliente; o desenvolvimento total
superáveis num conceito de evolução humana
do ser humano.
em direcção a um progresso infinito, de
Estes princípios suportavam a acção de ajuda
perfectibilidade; alteráveis pelo espírito do
do Assistente Social, ao nível filosófico; o
positivismo social, por uma física social, na
empirismo-positivismo
paradigma,
qual o serviço social era a mola do reajuste, o
dominante até aos anos 60 do século XX, que
catalisador de uma engrenagem que se queria
balizava acção racional, processual e metódica
perfeita. Retomada, à posteriori, com nova
do Serviço Social. Inicialmente este paradigma
roupagem, através das influências estruturo-
influenciou o Serviço Social, naquilo que se
funcionalistas da sociologia Durkheimiana no
pode designar como o encontro entre o
Serviço Social.
positivismo
o
Um Serviço Social que buscou sentido na
desenvolvimento das disciplinas psicológicas,
filosofia social - porque faz -, e no método
com ênfase para a psicanálise, resultando no
científico no empirismo/positivismo - o que
primeiro método de serviço social, o Case
faz, como faz (Vieira, 1989). As personagens
Work, ou Serviço
do Serviço Social entre as décadas 20, 30, 40 e
observação
era
sociológico
de
o
Comte
Social de
metódica
Casos. A o
50 do século XX, que enformam as teorias e
isolamento dos elementos constituintes do
metodologias do Serviço Social, enquadradas
fenómeno,
das
no processo eufórico da Modernidade foram
particularidades, numa atitude empirista:
várias, mas salientamos: Mary Richmond
“...o primado da observação sobre a teoria e a
elabora o método privilegiado de Serviço
relatividade do conhecimento que impede
Social, “Social Diagnosis”, o Diagnóstico Social,
generalizações a partir do particular” (Mouro,
sistematizando práticas e conferindo-lhes uma
et all, 1987: 41).
perspectiva técnica/científica; Jane Adams,
A questão social, os fenómenos de pobreza e
parte de uma filosofia humanista, para uma
marginalidade,
como
intervenção nas comunidades, orientada para
inadaptações do indivíduo á sociedade,
a mudança social; Virgínia Robinson, Gordon
em
a
e
e
detalhada,
detrimento
sua
extensão,
41
Interculturalidade e Transdisciplinaridade » Joaquim Paulo Silva
hamilton e Florence Hills sedimentam a
Os
influência
psicologia
Ciências Sociais, e do próprio Serviço Social, a
experimental e da psicanálise, quer no case
partir de meados década de 50, do século
work, quer na metodologia de Serviço Social
passado, enunciam uma necessidade de
de Grupos, começando a definir aquilo que o
aproximação de duas perspectivas, que
Serviço Social tomou como muito seu, a
compartilhavam o campo empírico/positivo
intervenção
indivíduo
da modernidade, englobando a perspectiva
interagindo com o meio, a personalidade
diagnostica e relacional, no campo das
social. Metodologias individuais e grupais, que
metodologias do Serviço Social, cujo carácter
fundamentam a escola diagnóstica: estudo-
busca cada vez mais uma validade científica,
diagnóstico e tratamento.
que o compele quase a uma tecnologização
A partir da década de quarenta, simultâneo
disciplinar e profissional, dando corpo a uma
com
a ênfase promovida nos estudos
visão política/estadual de intervenção directa
culturais, comunitários, e com o aparecimento
no social, na protecção, na difusão dos
do
direitos
das
escolas
da
psicossocial,
Serviço
Social
de
o
Comunidades
-
desenvolvimentos,
e
de
posteriores,
regulação,
das
buscando
perspectivando a importância de intervir junto
compatibilizar Estado de Direito Democrático
do meio onde o indivíduo se insere, de
com economia de mercado.
reorganizar
Resultando
e
integrar
as
intervenções
daqui,
necessidades
de
diferenciais dos vários serviços, de mobilizar
investigação/intervenção social racionalizada
recursos comunitários - surge a escola
e cientificidade na organização do Estado-
funcionalista que baseava os processos
Providência, tornando os diversos organismos
interventivos como centrados na acção do
governamentais os grandes empregadores de
cliente para a mudança, e não no Assistente
Assistentes Sociais, exigindo, destes, um
Social, e na relação estabelecida entre ambos,
know-how técnico e metodológico de raiz
cliente-assistente social, assim como com o
científica, capaz de assegurar credibilidade às
meio.
práticas institucionais e corresponder aos
42
Investigação e Debate (19) modelos
e
sociedade on progress inlimited. Ou seja,
planeamento, apregoados no advento da era
cumprir o ideal da Modernidade, mesmo nas
redistributiva,
aos
sociedades comunistas onde não existia
sectores liberais que não olhavam com “bons
economia de mercado mas de Estado, mas
olhos”, esta intervenção alargada e directa do
cujos
Estado na área social.
cientificidade e progresso são semelhantes.
A
de
fundação
eficácia,
como
do
estabelecimento
racionalidade
contrabalanço
Estado
o
definitiva institucionalização do Serviço Social,
partir da década de 50 com força, ocorrer
que surge engajado directamente, com a
num duplo quadro, face às exigências de
perspectiva de um Estado Social. Aonde o
racionalização e tecnicização dos processos de
direito, o acesso igual, a justiça social, a
ajuda, da tentativa de desenvolvimento de
solidariedade mecânica, a mediação das
teorias e quadros conceptuais próprios,
Instituições Estaduais e o papel de ajuda,
partindo dos desenvolvimentos das ciências
desenvolvimento e mudança, assente em
sociais e humanas, no quadro da formação
metodologias diversas e técnicas adquiridas a
académica, e aqui destaca-se o esforço de
partir dos avanços das Ciências Sociais -
definir com rigor os processos metodológicos,
teorias psicossociais - só existem porque,
dos clássicos - caso, grupo e comunidade -, até
razão,
económico
às tentativas, de definir um método básico
estabelecem uma aliança mediada pela
(Harriet Bartelett, 1993), um modelo único de
política,
intervenção,
que
progresso
visava
a
conduz
racionalidade,
O desenvolvimento do Serviço Social vai, a
e
pactos,
de
á
ciência
de
Providência,
princípios
instauração
de
um
método
integrado,
sociedades de progresso, eliminando os
consubstanciado a montante por processos
problemas sociais, como a pobreza,
a
teóricos, de base científica. A este quadro de
marginalidade e as carências globais, no
desenvolvimento, corresponde uma espécie
âmbito da saúde, da habitação, da justiça, da
de domínio privilegiado dos académicos,
educação, da alimentação, do emprego, uma
criando-se uma dicotomia com os práticos
43
Interculturalidade e Transdisciplinaridade » Joaquim Paulo Silva
(profissionais envolvidos na intervenção de
tentativa de o manter no campo das
terreno e nas Instituições de Bem-estar
metanarrativas da modernidade.
social),
maior
Questionar o Serviço Social como reprodutor
das realidades
de conceitos político/institucionais, produtos
sociais e um domínio de saberes processuais,
de uma cultura ocidental, baseada numa
atitudes e habilidades técnicas, modelos de
organização
intervenção na práxis, o uso das mesmas, bem
acumulação capitalista, dificultando a sua
como do seu funcionamento,
adaptação
reclamando
estes,
proximidade da prática e
processos
e
técnicas
escolhidas
pelas
uma
objectivos,
preferencialmente
simultaneamente,
outras
mercado,
de
realidades,
funcionando
e
como
tecnologia social, não produtor de teoria,
Assistentes Sociais exercem a sua actividade
critica social, e portanto, marginalizado, no
profissional, em função dos objectivos de
concurso das disciplinas das ciências sociais,
redistribuição
referenciado apenas como utilizador de
regulação
onde
a
de
os
e
organizações,
social
social,
que
orientam essas instituições.
conhecimentos e operador num quadro de
Esta dicotomia, que se prolongará até aos
funcionalidade do Estado de Bem - Estar Social
nossos dias, originou a partir de meados dos
em funções de reabilitação e ou reparação.
anos 60 um questionamento da prática
Ora para recentrar o Serviço Social, no seio
profissional, dos métodos profissionais e das
das Ciências Sociais, os modelos que se
finalidades profissionais (crise epistemológica,
cruzam, optam pela vinculação ideológica,
teórica e metodológica), em função do
uma nova e última etapa no quadro do
engajamento
estes
paradigma da modernidade. A uma visão
obedeciam, desfasados, no que parecia então,
estritamente psicossocial, substitui-se uma
quer dos objectivos fundamentais do Serviço
visão político/económico-social. O Serviço
Social – quer das necessidades sociais, o início
Social deve agir sobre as causas dos
de uma crise profunda no Serviço Social, que,
problemas sociais, na versão do Serviço Social
à época, não foi percepcionada como a última
radical - revolucionar a organização social,
institucional
a
que
44
Investigação e Debate (19) para uma sociedade sem classes (influência
estes sectores de ideologia no serviço social,
socialista) -, na versão de um Serviço Social
confundindo
reformista - implicar as pessoas na resolução
objectivos de militância política partidária,
dos problemas, reformar as instituições e a
conduz a uma visão unívoca sobre o
organização
desenvolvimento
dos
Estados,
objectivando
contudo o consenso social. Estes
debates
e
mudanças
objectivos
profissionais
humano
–
e
político-
económica-social – e excessos de discursos ocorrem,
marcados
por
conteúdos
sobretudo, na América Latina e nos países
racionalistas/materialistas, e de terminologias
Anglo-saxónicos, Portugal, só chega a este
como crítica e dialética, cujo fuso social, do
debate, já após 1974, na modernidade tardia,
saber,
o que traduz, uma desadequação entre as
funcionamento mundial, começou a deixar de
teorias e as práticas e as realidades sociais em
fazer sentido a partir do fim dos anos 70. As
constante mutação, nos últimos trinta anos
metanarrativas ideológicas que alimentavam
em Portugal.
este modelo, fortemente impregnado de
Esta crise permite ao serviço social incluir: a
ideologia,
uma função assistencial, depois reabilitadora,
culminando na queda do muro de Berlim,
acrescenta-se uma função preventiva e
símbolo da derrocada da ideologia mais forte,
construtiva no plano da organização político-
no
social (Egg, 1995); a uma função aplicativa, no
ideologia marxista, que por paradoxal, vê,
campo das disciplinas Sociais, o Serviço Social
também, ser posto em questão o modelo
tenta assumir uma função crítica, de produção
ocidental reformista-social democrata, pela
teórica
libertação
e
fundamentação
na
das
plano
organizações,
esboroam-se
do
nos
da racionalidade
das
forças
próprio
anos
80,
material, a
económicas,
pela
investigação/acção.
mudança tecnológica, pela passagem de um
No entanto, se permite acrescentar estes
mundo industrial, para um mundo pós-
vectores nas teorias e práticas, o excessivo
industrial, alterando a composição social, a
engajamento e combate ideológico entre
45
Interculturalidade e Transdisciplinaridade » Joaquim Paulo Silva
organização dos Estados, das políticas, da
suporte teórico-metodológico adaptável às
interacção social, dos valores.
novas exclusões sociais.
A ideologização do Serviço Social, pelo seu
O que passou a estar em jogo, é muito mais
carácter
visão
complexo que a busca de uma “..igualdade na
unívoca, distorceu os objectivos da profissão,
satisfação das necessidades básicas e na
enquanto profissão de “ajuda”, no âmbito do
procura
desenvolvimento do homem e da sociedade,
necessário promover “..a reconciliação da
vinculada doutrinariamente, dificultando a sua
sociedade consigo mesmo” (Albuquerque,
flexibilização
e
1999: 17), oferecer sentido e comunidade ao
metodológica face a um tempo de profundas
Sujeito, dilacerado, entre o mercado que
mudanças sociais, culturais, do conhecimento
exclue, sem humanização, e identidades que
(científico nomeadamente) e das ideias.
se agarram a qualquer cultura, ou sub-cultura,
Um fosso entre o universo das realidades e
de
práticas sociais e dos modelos teórico,
(marginalidade/delinquência;
embebidos em discursos ideológicos. Uma
seitas/exploração
prática que mergulha na aplicação das
comunidades totalitárias/oferecer pertence
tecnologias
em nome de raça e ou religião).
finalista,
dogmático,
paradigmática,
sociais,
para
de
teórica
esquecer
a
do
desenvolvimento”,
características
da
hoje
é
dissociatórias
falta
de
sentido;
divergência sobre os dogmas da intervenção social
e
o
necessidades
confronto das
com
as
novas
populações-sujeitos
da
3.2- Uma Nova Visão do Serviço Social – Um Novo Paradigma
nossa acção. A par do desespero da
Como pudemos observar, no ponto anterior,
manutenção
existe, portanto, a necessidade de uma nova
de
burocráticas,
práticas
não
visão sobre o papel do Serviço Social na
profissionais
sociedade, de um novo paradigma, que sem
parecem aprisionados entre o receio de as
anular os conhecimentos progressos, abra
mudar e a não existência de uma rede de
caminhos para o futuro, e perspective
descentralizadas,
não
organizacionais
onde
flexíveis, os
46
Investigação e Debate (19) respostas mais adequadas do Serviço Social,
Neste contexto, a função principal do Serviço
enquanto disciplina científica e profissional, às
Social consiste em
necessidades da intervenção social actuais.
comunidade ao Sujeitos,
Quer ao nível micro, quer ao nível macro.
àqueles que vivem em situação de pobreza,
Conforme contextualizamos no capítulo inicial
insegurança, precarização, menorização e
do
rejeição social, onde a ferida é tanto mais viva
texto,
perante
um
mundo
onde
oferecer
sentido
e
principalmente
desaparecem as formas de mediação social, os
e exposta.
seres humanos, considerados no seu todo,
O que pretendemos dizer com oferecer
confrontam-se, por um lado, com a força
sentido e comunidade, é afirmar uma
global do mercado e do consumo, como
necessidade de oferecer aos sujeitos da nossa
motor da existência social, e por outro,
intervenção a requalificação de si mesmos,
exactamente como reacção a identidades
pela restauração da dignidade como seres
dilaceradas, de Sujeitos dissociados - entre
humanos,
duas culturas - com um apelo de reforço
sociabilidades e da participação cívica, pelo
comunitário, essencialmente organizado em
que não basta actuarmos e proclamarmos a
culturas
particulares,
satisfação dos Direitos já clássicos (emprego,
despojadas de visão cosmopolita e humanista,
saúde, habitação, justiça, educação, formação,
mas centradas em valores estreitos, ou não
à diferença...), mas temos de aduzir outras
valores (como as sub-culturas marginais
dimensões essenciais, como do sentido de
juvenis), que exploram a debilidade do
pertença, da auto-estima, da participação na
Sujeitos, as suas feridas abertas por uma
vida familiar, grupal, comunitária, nacional e
sociedade de vertigem competitiva, sem
mundial, da dinamização de redes de afecto e
tempo para curar chagas ou feridas bio-psico-
solidariedade,
socio-culturais e espirituais, chagas ou feridas
individual, dos grupos, das culturas diferentes,
que necessitam de reconciliação.
como património de uma nação, do mundo.
e
ou
sub-culturas
religando-os
da
ao
mundo
valorização
das
criativa
47
Interculturalidade e Transdisciplinaridade » Joaquim Paulo Silva
Este são os novos horizontes, de onde emerge
comunidades
o novo paradigma. Paradigma este, que á falta
(Fromm, s/d):
de outro nome, daremos: Em Nome do Sujeito.
Assenta
em
três
-
patamares
dissociadas.
confiança no seu ser, no que é, e pelo interesse,
Valores do Sujeito – Para Uma Intervenção
solidariedade
Edificante.
representados
Como projecto filosófico, o Novo Paradigma,
isoladamente,
deve assentar num Projecto do Ser (de, no e
comunidades.
o
ser
humano),
na
sua
-
multidimensionalidade, como fenómeno total, independente de ideologias, que não sejam
como
Segurança e sentido de pertença, pela
interligados: Um Projecto do Ser – Nos
para
Valores
recíproco, com
amor o
por
e
outro, indivíduos
grupos
e
ou
Respeito pela vida, em todas suas manifestações.
-
Dar, participar, cooperar, receber da
aquelas cujo centro do movimento social seja
mesma forma, contrário às leis do
o ser humano, enquanto Sujeito, em torno da
mercado, baseadas no acumular e
sua edificação enquanto ser humano total,
explorar.
unificando os mundos que a sociedade da
-
Desenvolvimento
das
capacidades
modernidade dissociou(das trocas e das
emocionais, em conjunto com a
identidades).
capacidade crítica e racional.
Para que este projecto tenha sucesso, temos
vida:
auto-
de identificar os valores inerentes ao Sujeito, a
desenvolvimento/ajudando
o
todos
desenvolvimento dos outros.
os
Sujeitos,
-
considerados
individualmente, ou nas suas comunidades e
-
Objectivo
de
Desenvolvimento da imaginação e
grupos culturais, que visem a sua dignidade,
criatividade como forma de participar
livre-escolha, em contraponto com a ditadura
no desenvolvimento da sociedade.
consumista,
ou
do
isolamento
em
-
A Liberdade como meio de atingir a forma mais próxima e plena da
48
Investigação e Debate (19) individualidade, simultâneo
com o
estratégias
reforço das comunidades, das nações,
quantificadas,
ou
a
números.
da humanidade. -
-
-
-
-
-
O sujeito primeiro que qualquer teoria
Tendo por base um novo paradigma, O
económica; que qualquer mercado;
Projecto do Ser, construído a partir dos
que o mundo das trocas.
Valores do Sujeito, o Serviço Social deve
O Sujeito é um cidadão comunitário,
desenvolver
um
nacional, transnacional, planetário, no
intervenção:
-
pleno gozo dos Direitos Humanos, em
Edificante.
qualquer lugar do mundo.
Com o
O Sujeito faz parte de uma família,
intervenção, para a “edificação” do ser
grupo, comunidade, história e cultura,
humano, interpretando-o globalmente, nas
que são património civilizacional,
suas necessidades totais, simultaneamente
portanto mundial.
como ser uno, da mesma forma bio-quimica-
O Sujeito é um valor em si mesmo,
quantica organizado, mas múltiplo, na sua
independente do estatuto, classe,
diversidade genética, antropo-cultural, social,
religião, opções sexuais ou outras.
nas experiências individuais, espirituais, de
O Sujeito participa e coopera na
criatividade, sociabilidade etc.
definição de políticas locais, regionais,
Uma intervenção que se organiza em torno,
sociais, nacionais, e mundiais, visando
primeiro, do sentido da acção, ou seja de uma
o seu desenvolvimento e dos outros.
interpretação ética da intervenção, o carácter
O Sujeito é um nome, é um grupo, é
valorativo da acção, retomando o percurso do
uma comunidade, é uma nação, um
Serviço Social, onde o tínhamos abandonado,
conjunto de nações, a humanidade no
na
seu valor absoluto, não redutíveis a
intervenção,
novo Para
conceito
uma
de
Intervenção
próprio termo indica, orienta-se, a
busca
de
significados
dividida
para
uma
a
acção
entre
técnica/administrativo-burocrática
e
49
Interculturalidade e Transdisciplinaridade » Joaquim Paulo Silva
dissociada
do
real
e
das
ideologias
modernidade. Estes significados, encontra o
Como podemos observar estes princípios
Serviço Social no sentido ético da acção,
adequam-se à filosofia inerente ao Projecto do
historicamente desde a sua profissionalização,
Ser, e ao Valores do Sujeito, sem abdicar da
como princípio primeiro de ajuda ao “outro”,
perspectiva crítica do Serviço Social, e do valor
no respeito pela sua dignidade e identidade, e
fundamental da autodeterminação, sendo
desenvolvido
diversas
ambos colocados, não numa plataforma anexa
conferências das nações Unidas e da FIAS(
ao eixo a teoria/acção - que, aliás, as
Federação
Assistentes
separava, pela diferença entre a ideologia e
Sociais), num conjunto de princípios básicos
prática ideológica, e as mudanças no campo
da acção, que podemos resumir, a partir dos
social - mas no eixo da teoria/acção,
documentos da FIAS (Egg, 1995: 234)):
centrando estes valores em torno do Sujeito.
-
-
-
-
-
à
posteriori,
Internacional
em
dos
Respeito pela pessoa humana como
Balizada por estes princípios, finalidades da
valor absoluto na sua dignidade e
própria
liberdade.
Intervenção Edificante, o serviço Social não
Participação activa do indivíduo no
pode de deixar de credenciar e oferecer rigor
seu próprio desenvolvimento.
à sua actividade, pelo que deve forrar esta
Autodeterminação como respeito pela
mesma Intervenção edificante, pelas práticas
decisão de cada um sobre a própria
científicas, numa perspectiva de abertura
vida.
àquilo que Morin (2001), definiu como Nuova
Igualdade
de
oportunidades
diferenças
de
religião,
acção,
primeiro
patamar
da
sem
Scienzia (termo que foi retirar a Vico7): -
ou
aberta, inter e transdisciplinar, num processo
raça
convicção política.
de
Individualização: é cada um ser
consciente da complexidade fenomenológica ,
tratado
como
insubstituível.
um
ser
único
síntese
entre
níveis
de
realidade,
e 7
Giambattista Vico (1668-1744), autor, à época incompreendido de uma obra genial, que se 50
Investigação e Debate (19) consciente do seu progresso não como
certo
verdades absolutas, mas como um caminho
conhecimento empírico relativo a processos
de descoberta, em conjunto com outras vias;
de interacção social, comuns a uma cultura,
consciente do seu impacto individual e social,
ou sub-cultura, numa forma de arte de
nomeadamente pelas tecnologias, sejam elas
comunicação
bio, informáticas, ou até sociais.
humanístico.
Mas a Intervenção edificante é também
Daqui nascendo uma série de habilidades,
alimentada por outra das dinâmicas que o
atitudes, processos, saberes do fazer, próprios
Serviço Social historicamente incorpora, os
do exercício profissional, mas que podem
modelos da práxis. Visto de outro modo, o
configurar modelos válidos, e objecto de
lugar
reflexão e organização teórica/metodológica.
onde,
do
encontro
entre
seres,
na
relação
agente/utente,
intercultural,
Podemos
estatuto e comunicacionais diversos, se
Intervenção Edificante, é sempre um processo
produzem
regulação,
de comunicação, e toda a comunicação é
processuais,
intercultural, porque cada pessoa desenvolve
saberes
uma identidade multicultural, nos contextos
simbólicos de utilização instrumental (das
mundializados actuais, em função de todos os
relações de poder e identidade/ e das relações
sistemas em que vive, sendo cada um dos
nos
burocracias
sistemas caracterizado por uma cultura
organizacionais), que determinam formas de
própria; pelo que a Intervenção Edificante é
saber fazer, modelos de intervenção, que
também, uma Intervenção Intercultural.
balançam entre estratégias reflectidas e
Neste quadro contextual a velha dicotomia
perspectivas em função de análises teóricas, e
entre Teoria e Prática em Serviço Social perde
de outro modo estratégias baseadas na
qualquer sentido. Partindo das premissas
experiência intuitiva, emocional, no que deu
referenciadas e da análise transdisciplinar
pretendia como uma Nuova Scienzia, uma espécie
de história comparativa universal.
de
organização, dependência/independência,
interstícios
das
então,
que
encontro
posicionados em pontos relacionais/ de
dinâmicas
inferir,
de
no
toda
a
51
Interculturalidade e Transdisciplinaridade » Joaquim Paulo Silva
(complexidade e multidimensionalidade), a
macro, a primeira regra metodológica do
Teoria poderá ser um caminho para extrair
Serviço Social pode resumir-se em duas
sentido da experiência concreta; e por outro
frases:
lado, esta só pode ser percebida na relação
- Agir e Pensar Localmente
com o contexto do real. Poderemos, talvez,
- Pensar e Agir Globalmente (Advirta, 2001).
ensaiar falar de um processo do Serviço Social
Podemos partir do indivíduo, da comunidade
unificado,
-
local (autarquia, bairro, etc.), podemos partir
processo
de políticas regionais, nacionais, ou até de
como:
Sentido-Teoria/Acção
Investigação-Avaliação;
um
integrado, em todas as fases estes níveis estão
organismos que desenvolvam políticas
presentes, e holístico, total.
características internacionais, mas o cerne é
Neste âmbito, e apesar da continua validade
sempre o mesmo, o Sujeito confrontado com
das metodologias tradicionais, caso - grupo e
a dissociação entre consumo/mercado e
comunidade,
identidades/culturas.
bem
como
dos
trabalhos
Resultando
que
de
as
posteriores que definiram um método único
respostas têm de subir níveis, nos diversos
para a intervenção social (Egg,1995: 133):
patamares. Procurar a Integração de níveis
-
o estudo/pesquisa que culmina em
diversos de intervenção, criar redes o mais
diagnóstico;
alargadas
-
a programação;
(empowerment) as capacidades de inclusão
-
a execução;
do(s) Sujeito(s), pelo alargar dos laços que o
-
a avaliação;- um processo sobreposto
liguem ao mundo das sociabilidades, num
e inter-retroactivo entre todas estas
processo crescente ou decrescente – familiar-
fases.
comunitário-local-regional-nacional-global-
possíveis,
reforçando
Conforme vimos avaliando, no momento de
ou na ordem inversa, na procura de sentido e
globalização actual, de aldeia planetária, em
comunidade.
que o macro é decisivo nas opções micro, e o
pessoas, comunidades, culturas, religiões,
que acontece no micro pode transformar o
raças, aspirações, ambições, anseios, numa
Articular
serviços,
saberes,
52
Investigação e Debate (19) rede crescendo em espiral, de parceria, local e
nos saberes, nomeadamente na ciência, no
global.
social, nomeadamente nos novos contextos
Para além das diversas técnicas, de entrevista,
onde se reorganizam as relações e se
motivacionais, de diagnóstico social, de
transforma a natureza dos grupos sociais, em
intervenção comunitária, específicas em áreas
tempos de dissociação dos Sujeitos, em
diversas,
tempos de choque, mudança, desafio e acção,
devemos
instrumentos
e
incorporar tecnologias
novos sociais,
coadjuvantes de uma Intervenção Edificante:
que
o
Serviço
reorganizando
Social e
deve
unindo
enfrentar,
os
campos
-
Empowerment;
fundamentais das Teorias e das Práticas,
-
Trabalho Social em Rede;
unificando-o, com o Sentido da Acção, e a
-
Técnicas de auto-ajuda/ técnicas de
necessidade contínua de Investigação.
meditação e descoberta de si; -
Advocacia social;
-
Mediação e gestão de conflitos;
-
Formação, educação e comunicação
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
interculturais. São alguns dos processos que assumem importância e mereceriam um capítulo à parte, para o desenvolvimento de novos modos de Trabalho Social, para o Serviço Social.
Finalizando, este trabalho, que muitas pontas do véu da mudança das Teorias e das Práticas levantou, é contudo apenas um esboço de uma reflexão sobre os processos de mudança
53
Interculturalidade e Transdisciplinaridade » Joaquim Paulo Silva
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55
INTERDISCIPLINARIDADE NO ATENDIMENTO ÀS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: A prática profissional do serviço social nas delegacias de polícia
1
Michael Hermann Garcia
Resumo: Este estudo foi desenvolvido durante a experiência de uma prática profissional e estudos exploratórios dentro de uma delegacia de polícia em três unidades federativas no Brasil – instituição esta que, no final da década de 90, passou por várias reformas não só dentro do seu aparato administrativo, mas na sua concepção de como a mesma vê a violência e suas causas. Os novos profissionais policiais capacitados e preparados vêm com esta concepção, porém ainda maculada com as velhas práticas repressoras e burocráticas da própria instituição. Com
1
Assistente Social graduado na Universidade Federal de Juiz de Fora (Estado de Minas Gerais), especializou-se em Violência Doméstica e Urbana (com ênfase em Atendimento em Crianças e Adolescentes) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (Estado do Rio de Janeiro). No momento, o autor de encontra em três funções como: (a) docente universitário na Faculdade UNIME Salvador e na Faculdade UNIME Itabuna; (b) coordenador técnico de pesquisa e extensão do NEPSSI – UNIME (Núcleo de Estudos e Pesquisas em Serviço Social e Interdisciplinaridade); aluno regular do Programa de Pós Graduação Stricto Sensu Modalidade Mestrado em Políticas Sociais e Cidadania da Universidade Católica do Salvador. asmichael@uol.com.br 56
Investigação e Debate (19) esta mudança vêm à inclusão dos profissionais não policiais, constituídos em sua maioria por assistentes sociais, que primeiramente não são incorporados nos quadros da polícia estadual, mas fazem parte de um projeto que gerou tais modificações dentro do aparato da segurança pública no Estado do Rio de Janeiro. Tal projeto se denomina Programa Delegacia Legal, onde o grupo gestor do mesmo não quer que o projeto seja passageiro, fruto de um momento conjuntural e político, mas quer que ele faça parte do organograma que constituí o sistema de segurança pública de fato. Dentro da “delegacia legal” há a constituição de uma equipe de profissionais – policiais ou não – prontos para atender a população que necessita de demandas que ultrapassam a natureza criminal. As demandas que fogem ao objeto do inquérito
policial
são
ainda
desprezadas
por
muitos
profissionais policiais, e gera conflitos com os demais profissionais não policiais – que são capacitados a atenderem tais demandas. Este trabalho expõe as formas de inserção dos assistentes sociais – como profissionais não-policiais – nas delegacias especializadas de polícia, constituindo em equipes de trabalho coletivo ou não, antes no RJ, e atualmente em MG e BA; fazendo-se comparações e análises sob a perspectiva crítica deste espaço sócio-ocupacional instigante e cheio de conflitos.
57
O Serviço Social em Equipe Interdisciplinar no âmbito Policial » Michael Hermann Garcia
Legal3,
1. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA COMO OBJETO DO
Delegacia
SERVIÇO
profissionais não-policiais4, que veio em um
SOCIAL
NO
COTIDIANO
EM
com
a
inclusão
de
DELEGACIA DE POLÍCIA2.
momento político vertical e pontual para dar
A violência em si como objeto, deve-se
maior qualidade operacional e organizacional
entender como uma refração da questão
dentro dos quadros da PCERJ5. A pesquisa
social
–
atual está alocada nos estados de MG e BA,
potencializado por seus meios e instrumentos
analisando a inserção de assistentes sociais
– gere como produto (em termos de políticas
em equipes primárias locadas em delegacias
públicas) um contexto de não-violência. Parte
de polícia. O tema sobre violência doméstica,
do trabalho a ser descrito foi feito durante
durante a preparação do corpo policial,
entre os anos de 2004 a 2005, onde foram
dentro da Academia de Polícia6, é visto como
observadas
e
um fato atípico, diferente dos processos e
interdisciplinares no atendimento às vítimas
flagrantes mais corriqueiros que envolvem
de violência doméstica no âmbito policial. A
homicídios, seqüestros, crimes contra o
inserção deste breve estudo nas delegacias de
patrimônio e tráfico de entorpecentes.
polícia
Embora nos últimos anos, nota-se o despertar
cuja
ação
várias
(DP´s)
foi
do
Serviço
experiências
feita
pelo
Social
multi
Programa
de consciência e de disposição da sociedade 2
Tal artigo foi resultado de um estudo monográfico para a obtenção de título da Especialização em Atendimento a Criança e Adolescente Vítima de Violência Doméstica pela PUC – Rio de Janeiro, em 2004. O trabalho foi desenvolvido durante a inserção do autor, como profissional não policial, no Programa Delegacia Legal, lotado em uma das DP´s situadas na Baixada Fluminense, no Estado do Rio de Janeiro, no período compreendido entre 2004 a 2005. 2 Tal estudo está tendo continuidade em um projeto de pesquisa e extensão coordenado pelo NEPSSI – Núcleo de Estudos e Pesquisas em Serviço Social e Interdisciplinaridade – sob a chancela da UNIME Salvador. O projeto se intitula “Serviço Social e Interdisciplinaridade presentes no Campo Sócio-Jurídico no Estado da BA”, que tem por objetivo não só levantar e analisar o processo de trabalho dos assistentes sociais inseridos neste campo sócio-ocupacional, mas de tentar visualizar a concepção de trabalhos de natureza interdisciplinar na resolução das demandas materializadas pelos usuários que recorrem a este espaço já mencionado.
em reagir à violência infanto-juvenil, através
3
O Programa em questão foi colocado na gestão do Governo de Anthony Garotinho no ano de 1999, que modificou a estrutura administrativa das antigas delegacias com um sistema moderno de informatização, interligando as Delegacias Policiais, fornecendo maiores informações para elaboração de um Registro de Ocorrência – RO, mudando o meio, o modo e a prática diária de um plantão policial, interligando com a rede de atendimento sócio-assistencial presente em todo Estado do Rio de Janeiro. 4 Compostos por assistentes sociais e psicólogos, contratados por tempo determinado pelo grupo gestor do Programa “Delegacia Legal”, não fazendo parte do organograma oficial da SESP-RJ (Secretária de Estado de Segurança Pública do Rio de Janeiro). 5 Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro. 6 ACADEPOL.
58
Investigação e Debate (19) dos meios de comunicação, um grande
mais distante e difícil o transporte, que é uma
contingente
sente
das carências em algumas regiões no Estado
preparado e sensível para lidar com o tema. O
do RJ.12 Quando tal demanda chega até o
preconceito, o medo e o não – preparo fazem
Balcão de Atendimento, onde se alocam os
do processo interrogatório e investigativo de
profissionais
um abuso cometido, para formalizar o
abusadas manifestam no seu discurso uma
inquérito policial uma nova (re)vitimização da
série de conflitos familiares que traduzem um
criança/adolescente abusada. Se os policiais,
ambiente de alto risco para a mesma e a sua
durante o seu processo de formação na
prole. Muitas vezes são encaminhadas para os
Academia de Polícia estudam o ECA7, e os
policiais
sistemas de proteção voltados a tais vítimas,
formação específica, desqualificam o seu
não
tais
discurso, encaminhando a mesma ou para
de
uma DEAM ou de volta para a sua residência.
de
policiais
implementam
encaminhamentos
na
não
se
de
fato
sua
rotina
não
policiais,
responsáveis
que,
as
mulheres
não
tendo
formulação do inquérito.8
Não se configurando o RO – Registro de
Embora haja a existência de DEAM´s9 e de
Ocorrência. Subseqüentemente, isto acarreta
DPCA´s10, há uma resolução que a violência
na existência do subregistro, que compromete
perpetrada contra a mulher, ou a criança e o
a base para a formulação de novas políticas de
adolescente
em
ações na área de Segurança Pública dentro do
qualquer DP11 mais próxima da residência da
Estado do Rio de Janeiro, ou seja, não
vítima. Na prática, a vítima – sobretudo a
demonstram a realidade de fato, acarretando
mulher – é “bicada” para a delegacia
na ineficácia destas ações. Em notas e
especializada, que na maioria das vezes fica
noticiários de jornais dos Estados de Minas
pode
ser
denunciada
Gerais e Bahia, tal subregistro é denotado 7
Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº8069/90). Apenas a parte criminológica que conta dentro de um inquérito, segundo Foucault(1977). 9 Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher. Concepção de combate legal e institucional à violência cometida contra a mulher. Iniciou-se nos anos 80, quando as primeiras DP especializadas foram inauguradas em São Paulo. 10 Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente. 8
11
Delegacia de Polícia. Durante o período da pesquisa dentro do Programa “Delegacia Legal”, observou-se que o tão famoso “bico”jargão utilizado pelos profissionais policiais – possui como vítimas preferenciais as mulheres vítimas de violência doméstica. Muitas até desistiram de fazer a denúncia depois de passaram por esse descrédito. 12
59
O Serviço Social em Equipe Interdisciplinar no âmbito Policial » Michael Hermann Garcia
devido a localização e a acessibilidade de tais
e o pobre. E, ao contrário, o detentor do
delegacias especializadas. Com o advento da
poder é branco, macho, rico e adulto. Assim, a
Lei Maria da Penha (Lei nº 11340/06) tal
menina pobre e negra é considerada como a
subregistro é evidenciado pela incapacidade
criatura “menor” da sociedade, e assim, é a de
de não haver a renúncia, ou seja, a retirada de
todas a mais discriminada.
queixa
pelas
A violência contra a mulher, neste sentido, é
requerentes – mulheres vítimas de violência
muito ampla, e vai além das paredes de sua
conjugal
vítimas
casa. Ela começa a ser discriminada como
procuram o serviço muito mais para ter
cidadã por práticas institucionais presentes
aconselhamentos e orientações de como
em nossa sociedade. Ao longo do tempo isso
suportarem tais ações violentas de seus
vem sendo disseminado, passando de ser
companheiros que responsabilizá-los; embora
considerado comum, para se perceber como
há uma tentativa do trabalho imaterial feito
problema social. No Brasil, no final dos anos
pelas assistentes sociais e demais operadores
70, a partir de movimentos feministas contra
do direito lotados nestas delegacias –
assassinatos cometidos contra a mulher em
principalmente no Estado da Bahia – na
nome da “defesa da honra”, vieram à tona
responsabilização criminal dos agressores.
questões como a opressão da mulher na
A violência contra a mulher é a expressão
sociedade brasileira, em vários aspectos, além
clara e cruel de discriminação que vem
da violência conjugal, como a discriminação
sofrendo ao longo dos tempos. Discriminação
no trabalho e o desrespeito ao corpo da
essa que se traduz em tudo aquilo que é visto
mulher.
pela sociedade como “menor”. É o fenômeno
A violência conjugal é um hábito no cotidiano
da “Síndrome do Pequeno Poder”, que atua
do casal, que garante ao homem, a cada
sobre as pessoas que não se enquadram no
passo, a cada atitude, um pouco mais de
modelo de poder: a mulher, o negro, a criança
poder sobre a sua mulher. E tal fato é
de
violência
doméstica
principalmente.
Tais
legitimado – mesmo que nebulosamente –
60
Investigação e Debate (19) pelo corpo que constitui a instituição policial
policiais ficam no final do processo, ou seja,
quando se desqualifica a queixa da mulher
não fazem o papel no acolhimento, deixando
vítima de violência dentro do espaço policial.
tal função à cargo de um profissional de nível
Há a necessidade de se mudar a banalização
médio; logo após feito o registro de
de tal violência do cotidiano dos lares.
ocorrência, as vítimas são encaminhadas para
Além disso, há alguns fatores importantes que
tais
são relevantes como a finalidade e a
essencialmente “terapêutica”.15 Fato este que
disponibilidade de dos assistentes sociais
reforça uma visão conservadora – das
dentro do espaço – conflituoso – da delegacia
protoformas da profissão – quando se via a
de
do
violência doméstica como algo “privado”,
“acolhimento” no espaço policial, sendo os
além de uma disfunção presente dentro da
primeiros a atenderem tais vítimas, buscando
família, em que o elemento que apresentasse
a não continuidade do processo de re-
a “situação social-problema” fosse não só
vitimização, subsidiando no resgate de seus
responsabilizado
direitos mais fundamentais, para – depois –
natureza do problema, mas que o mesmo
procurar a subsequente resolução da parte
fosse o responsável pela sua solução; cabendo
criminológica de fato, cujo a responsabilidade
ao Serviço Social da orientação para que o
são dos profissionais policiais, terminando
indivíduo,
metamorfoseado
com os posteriores encaminhamentos para a
chegasse
a
rede sócio-assistencial existente; (b) Dentro
socialmente (Calvacante, 1977).
polícia:
(a)
como
profissionais
profissionais
ser
com
pela
a
finalidade
caracterização
funcional
da
de
“cliente”
e
ajustado
do fluxograma do atendimento à tais vítimas, em comparação com os outros Estados da federação analisados neste breve estudo – Minas Gerais13 e Bahia14 – os profissionais não
13
Nas delegacias especializadas no atendimento à vítimas de violência doméstica – crianças, adolescentes e mulheres nos municípios de Juiz de Fora, Belo Horizonte
e Uberlândia – via formulário de entrevista por email, respondidas por assistentes sociais, entre 2004 a 2005. 14 Fruto de uma pesquisa feita sob chancela do NEPSSI (Núcleo de Estudos e Pesquisas em Serviço Social e Interdisciplinaridade) da graduação em Serviço Social da UNIME Salvador – Kroton Educacional (ibidem 2). Os campos sócio-ocupacionais pesquisados foram DEAMSalvador e DECA (Delegacia Especializada em Criança e Adolescentes) situado também em Salvador-BA, cujo sujeitos foram os assistentes sociais lotadas nestas unidades. 15 Dados retirados dos respectivos portais: www.sesp.mg.gov.br e www.ssp.ba.gov.br .
61
O Serviço Social em Equipe Interdisciplinar no âmbito Policial » Michael Hermann Garcia
2.
O
SERVIÇO
SOCIAL
INTERDISCIPLINARIDADE
NO
E
Delegacia de Polícia – é um dos aparelhos
COTIDIANO
executores, repressores e ideológicos do
POLICIAL.
Estado, e que faz parte da estrutura do
A interdisciplinaridade tem sido considerada
mesmo.
como componente-chave na constituição de
metodológico
muitos campos que envolvem profissionais de
althusseriana construída durante o processo
diferentes
e
de Reconceituação do Serviço Social, entre as
problemáticas pluridimensionais. A crítica à
décadas de 1960 e 1970, durante o regime
fragmentação das ciências contemporâneas,
autocrático-militar brasileiro, quando houve
da pulverização e verticalização dos saberes
uma apropriação da tradição marxista de
especializados e de suas implicações, vem
forma ideopolítica, com o uso do marxismo
sendo construída por várias perspectivas.
estrutural
Sendo a Delegacia de Polícia um campo de
assistentes sociais, bem como para os demais
atuação onde o Direito positivo está muito
operadores do direito, mesmo depois do
impregnado desde a primeira formação do
processo de redemocratização.16
aparato público de vigilância e de segurança –
O campo policial percebe-se uma espécie de
vale lembrar Foucault (2003, p.68) quando o
imperialismo
mesmo
do
historicamente tal espaço sócio-ocupacional
inquérito, que tornam as especialidades
fez parte de um dos projetos institucionais
subalternas
não
áreas
expõe
e
frente
sobre
a
auxiliares
a
temas
concepção
diante
do
conhecimento e interpretações das leis, sob o
Tal
e
pensamento é
fruto
empiricista
não
herança
só
pelos
epistemológico,
democráticos,
identidades
da
teórico-
sociais
que
pois
interpelam
“compactas”
e
as não
poder magno do Direito. Algumas publicações como Saraleque(1977, p.14) que tratam das políticas de segurança pública e a inserção da profissão de Serviço Social, colocam que que tal campo sócio-intervenção – no caso da
16
Herança do marxismo estrutural deixada por Louis Althusser e do marxismo empiricista (vulgar) por Mao TséTung, entre às décadas de 60 a 70, e que influenciou – e muito – às ciências sociais no Brasil na autocracia burguesa que imperou de 1964 a 1985. Tais referências foram importantes para a construção do 3º e última fase da Reconceituação do Serviço Social – ocorrida entre 1972 a 1975 – denominado de “Método Belo Horizonte”, construídos pelos acadêmicos da Universidade Católica de Minas Gerais, com a finalidade de superar o conservadorismo tradicional presente na atuação sócioprofissional dos assistentes sociais.
62
Investigação e Debate (19) pluralistas. É visto o conflito entre os que denotam o poder no ápice desta hierarquia –
Fonte: Seiblitz (1995)
os Delegados de Polícia – e os demais policiais
(b) As práticas pluridisciplinares podem ser
subalternos e
caracterizadas por uma justaposição de
colaboradores. Nota-se que
com a renovação dos quadros dentro da
diversos
Polícia Civil, tal conflito tem diminuído, mas
geralmente em um mesmo nível hierárquico e
ainda é muito presente.17
agrupados em um modo em que existam
Para prosseguir o estudo fez-se uma síntese
relações entre elas. É um sistema de um só
sobre os níveis de cooperação e coordenação
nível e de múltiplos objetivos. Há cooperação,
possíveis
porém nenhuma coordenação (SEIBLITZ, 1995,
em
diferentes
espaços
sócio-
ocupacionais, inspirado na literatura (Japiassu,
campos
do
saber
situados
p. 37);
1976, p.71; Sá, 1995, p.42; Seiblitz,1995, p.32; Vasconcelos, 2001, p.56). Logo em seguida, faremos algumas relações com outros dados
Fonte: Seiblitz (1995)
coletados perante os profissionais policiais e
(c) As práticas pluri-auxiliares que podem ter
não-policiais inseridos no Programa Delegacia
sua configuração descrita como a utilização de
Legal da PCERJ.
contribuições de um ou mais campos de saber
Nas definições gerais, temos: (a) As práticas
para o domínio de um deles já existente, que
multidisciplinares podem ser caracterizadas
se
por uma gama de campos do saber que
coordenador dos demais. Neste caso há uma
propõe-se simultaneamente, mas sem fazer
tendência ao imperialismo epistemológico.
aparecer as relações existentes entre eles.
Descrito a grosso modo como um sistema de
Pode-se dizer que há apenas um só nível,
dois níveis cuja a coordenação e objetivos são
múltiplos objetivos e nenhuma cooperação
hegemonizados
(SEIBLITZ, 1995, p.36);
encampador (VASCONCELOS, 2001, p. 60);
17
Isto é visto na PCERJ – Polícia Civil do Estado do Rio
posiciona
como
pelo
campo
campo
receptor
de
e
saber
de Janeiro; tal fenômeno nas demais como nos estados
63
O Serviço Social em Equipe Interdisciplinar no âmbito Policial » Michael Hermann Garcia
Fonte: Seiblitz (1995)
Fonte: Elaboração do próprio autor inspirado
(e) Os campos transdisciplinares podem ser
segundo
descritos como campos de interação de médio
a
concepção
descrita
por
Vasconcelos(2001).
e longo prazo que pactuam uma coordenação de todos os campos de saberes individuais e
(d) As práticas interdisciplinares podem ser
interdisciplinares de um campo mais amplo,
descritas como interações participativas que
sobre a base de uma axiomática geral
inclui a construção e pactação de uma
compartilhada. Há a tendência à uma
axiomática comum a um grupo de campos de
estabilização e criação de um campo de saber
saber
nível
com autonomia teórica e operativa própria.
hierarquicamente superior, introduzindo a
São descritos como sistemas de níveis e
noção de finalidade maior que redefine os
múltiplos objetivos, coordenados com vistas a
elementos internos dos campos originais.
uma finalidade comum dos sistemas com
Pode-se dizer que tais práticas podem ser
tendências à horizontalização das relações de
configuradas em um sistema de dois níveis e
poder (SEIBLITZ, 1995, p. 38).
conexos,
definida
no
objetivos múltiplos, onde a coordenação procede-se de um nível superior, mas a tendência é de horizontalização das relações de poder (SEIBLITZ, 1995, p. 38);
Fonte: Seiblitz (1995) de São Paulo, Minas Gerais, Paraná e Bahia.
64
Investigação e Debate (19) preliminares19, e que resulta no auto de prisão em
flagrante20
e
seu
subseqüente
Tal “olhar disciplinar” (SÁ, 1995, p. 56) vem da
encaminhamento ao Ministério Público e à
tentativa, não só dos gestores (presentes nas
Vara Criminal correspondente.
três unidades federativas pesquisadas – RJ,
Analisando a bibliografia que acerca sobre o
MG e BA), mas de um grupo de profissionais
tema
comprometidos em solucionar, dinamizar e
Vasconcelos (2001, p. 66), Sá (1995, p. 45) e
compartilhar
mais
Seiblitz (1995, p.32), observam-se que as
diversos campos do saber, com a finalidade de
práticas mais correntes dentro de uma DP são
alcançar um objetivo em comum. No caso em
as práticas pluri-auxiliares. Tais práticas são as
questão, o objetivo no âmbito policial, é a
configurações construídas dentro de um
configuração final do “inquérito ou flagrante
espaço sócio-ocupacional onde a investigação
fechado”, ou seja, o processo do atendimento
inquisidora, a vigilância e o poder estão muito
conter
bem articulados, e que se transformam de
conhecimentos
dados
da
tríade:
dos
vítima(s),
“interdisciplinaridade”
descrita
por
acusado(s,as) e evidências materiais18.
acordo com as conjunturas apresentadas no
As evidências materiais são aquelas que dão a
cotidiano.
concretude e o caráter positivo do Direito
interdisciplinares surgiram neste contexto,
Criminal, ou seja, a configuração do objeto
quando o sistema de segurança pública foi
penal. Se tais evidências fecham o inquérito
colocado em xeque pela sociedade que
policial, isto pode determinar se é preciso ou
passou a exigir resultados rápidos e objetivos.
não de outras verificações investigativas
Nessa conjuntura o sistema abre as portas
As
práticas
multi
e
19 18
As evidências materiais são aquelas que dão a concretude e o caráter positivo do Direito Criminal, ou seja, a configuração do objeto penal. Se tais evidências fecham o inquérito policial, isto pode determinar se é preciso ou não de outras verificações investigativas preliminares, e que resulta no auto de prisão em 18 flagrante e seu subseqüente encaminhamento ao Ministério Público e à Vara Criminal correspondente.
Tais procedimentos sem as evidências materiais são denominados como VIP – Verificação Investigativa Preliminar, neste caso o inquérito não está fechado ou concluído, para seu posterior encaminhamento para o MP e para a autoridade judiciária do foro competente. 20 No auto de prisão em flagrante, o acusado fica na sala de custódia na Delegacia Legal correspondente a circunscrição do delito penal em poucas horas até a sua condução à Casa de Custódia intermediária ou Unidade Penitenciária.
65
O Serviço Social em Equipe Interdisciplinar no âmbito Policial » Michael Hermann Garcia
para novas metodologias de organização do
para os canais superiores da justiça.23 A
trabalho.21
relação de poder existe nesta prática, e não
Tais práticas pluri-auxiliares são as mais
existirá uma co-responsabilidade, e sim toda a
corriqueiras,
e
supremacia e total responsabilidade do saber
configuração do inquérito policial estão
encampador, ou seja, do Delegado, sem
centradas na figura do Delegado – que detém
compartilhar com demais saberes abaixo do
a palavra final do dueto saber-poder do qual é
campo
mandatário – no qual o mesmo “delega” as
delegacias de polícia mineiras e baianas, nota-
atribuições e poderes aos seus subalternos
se que nas DEAM`s há evidências de práticas
hierárquicos. O imperialismo epistemológico
pluri-auxiliares, onde tanto o Serviço Social
já dito anteriormente é tão somente a
como a Psicologia, são setores subalternos,
subordinação de outros campos do saber
tendo
diante de um campo hegemônico que se
eventualmente pela figura “imperialista” do
apropria de suas contribuições. Neste caso, o
delegado
Delegado se apropria dos outros saberes de
responsável pela DP. No caso das delegacias
seus subalternos –inclusive dos supervisores
especializadas na área de proteção à infância
de atendimento social22 - para fechar o
e a adolescência, tanto nos contextos
inquérito policial em um “pacote” já pré-
mineiros e baianos, há evidências de práticas
fabricado e pré-determinado, encaminhado
pluridisciplinares,
pois
toda
a
confecção
hegemônico
as
suas
ou
do
já
instituído.
funções
profissional
cujo
trabalho
Nas
delegadas
policial
coletivo
possui vários objetivos e finalidades, e nenhuma 21
Com o descrédito do sistema de segurança pública no Estado do RJ, com altas taxas de criminalidade e de pouca resolutividade dos crimes, o Programa Delegacia Legal foi uma das respostas para reverter tal quadro – que está ainda muito longe de ser solucionado. Nos Estados de MG e BA, as delegacias de polícia seguem as estruturas arcaicas do aparato policial, sob o poder imperialista do “Direito”. 22 Há delegados – os que recorrem a tal prática pluriauxiliar – que desconhecem a atuação dos Supervisores de Atendimento Social. Para os mesmos tal profissional só tem a sua atuação no atendimento ao público apenas. E muitos (não generalizando) depreciam o trabalho deste profissional não policial.
coordenação,
porém
tanto
a
triagem como o acolhimento das vítimas de violência doméstica são feitas tanto por
23
Segundo o MP, o inquérito em “pacote” é aquele que não contém ligação dos fatos com o delito propriamente dito, fazendo com que o mesmo seja questionado e que a lavratura seja refeita na DP de origem. Passando desapercebido pelo MP e pelo Poder Judiciário, pode ser questionada pela defesa do(a) acusado(a) em questão – prática que ocorre bastante.
66
Investigação e Debate (19) assistentes sociais, psicólogos e demais
era como lidar, e como fechar os inquéritos de
profissionais policiais.24 .
forma mais completa possível e concisa, para que não houvesse impunidade, e que a(s)
3.CONCLUSÃO:
“O
INTERDISCIPLINAR”
OLHAR –
UMA
–
FAZER
REALIDADE
vítima(s) fosse(m) bem encaminhada(s) aos serviços de referência.
PONTUAL.
A
Embora a presença do campo hegemônico do
centralidade na figura do delegado, definia
Direito positivo já descrito, há casos pontuais
apenas os procedimentos e não o resultado,
vivenciados dentro de uma DP, em que pode-
pois o mesmo deveria ser construído por
se visualizar o “olhar interdisciplinar”, retirado
todos, além de buscar possíveis resoluções ou
de Sá(1995), e apropriado nas discussões
ramificações. A horizontalização das relações
entre o profissional não policial25 e os demais
de
policiais de uma determinada equipe de
intervenções, cujo objetivo primordial era a
plantão,
de
identificação de um axioma em comum, ou
Plantão, dois Inspetores de Polícia, dois
seja, o inquérito fechado e sem falhas, com
Oficiais de Cartório e um Investigador de
desdobramentos que não ficassem apenas nas
Polícia. Nos casos crescentes e corriqueiros de
muralhas do Direito Penal. A questão da
violência intrafamiliar na região chegada à DP,
punição legal e a obtenção inquisidora da
foram feitas várias reuniões, que foram frutos
verdade tornam-se importantes, mas não
de conversas ocasionais do delegado com o
centrais. A vítima, o seu contexto sócio-
supervisor de atendimento social (SAS),
familiar,
depois
demais
específica e o sistema de proteção social
profissionais policiais. O objetivo em comum
tornaram-se parte dos saberes construídos
constituída
socializadas
pelo
com
Delegado
os
coordenação
poder
o
era
do
plantão
notório
conhecimento
tendo
durante
da
a
tais
legislação
por esta equipe. A não re-vitimização destas 24
No contexto fluminense (Estado do RJ), nenhuma delegacia especializada na proteção da infância e adolescência fez parte da pesquisa. No Programa Delegacia Legal eram denominadas de DPCA´s (Delegacias de Proteção da Criança e Adolescente).
vítimas também tornou-se ponto central,
25
O profissional não policial em questão é o autor deste
67
O Serviço Social em Equipe Interdisciplinar no âmbito Policial » Michael Hermann Garcia
embora
houvesse
a
Nos contextos mineiros e baianos, a postura
preocupação era eminente. No caso de
interdisciplinar não está presente nem nos
vítimas abaixo dos 12 anos de idade, o papel
assistentes
do supervisor de atendimento social (SAS) era
profissionais policiais. Há uma subalternidade
de suma importância na confirmação e na
sócio-técnica e profissional, que segundo
coleta dos dados sobre o fato ocorrido.
Netto (1998) tais profissionais, possuem
Este saber construído rendeu resultados
apenas uma auto-imagem subalterna, que
expressivos para esta equipe, onde não só o
executam
delegado, coordenador desta edificação, é o
determinado pelas instâncias e campos do
responsável
saber
pelo
dificuldades,
inquérito,
mas
mas
os
sociais,
nem
terminalmente
superiores,
nos
aquilo
construindo
demais
que
a
é
sua
profissionais policiais e o profissional não-
imaterialidade a favor do status quo vigente,
policial – responsável pelo Atendimento
balizado pela estrutura arcaica e policialesca
Social26 – assinam o corpo do documento final
do
que era encaminhado (sem retorno) para o
instrumentalidade baliza a imaterialidade da
Ministério Público (MP) e à Vara Criminal
profissão a favor das classes subalternas, que
correspondente.
materializam o objeto fundante da profissão
A experiência interdisciplinar nesta DP era
de Serviço Social (Iamamoto, 1998 e Guerra,
mais recorrente nos casos extremados de
2000); o que não foi evidenciado nas
violência
delegacias de polícia pesquisadas em MG e
cometida
contra
crianças
e
Estado
brasileiro.
Logo,
a
adolescentes. Nos casos de violência contra a
BA.
mulher, em sua maioria, não eram resolvidas
Fecha-se este trabalho após a exposição sobre
de
descrita,
as experiências relatadas não só pelo autor,
excetuando nos casos onde a violência
mas pelos profissionais envolvidos nos casos
doméstica respingava na prole.
relatados. Tratou-se da atuação dentro do
forma
interdisciplinar
já
âmbito policial, que neste estudo é um espaço trabalho que ocupava o cargo de Supervisor de Atendimento Social dentro do Programa Delegacia Legal. 26 Geralmente ocupados por assistentes sociais.
em microescala do que o Estado e o meio
68
Investigação e Debate (19) societário concebem sobre o tema Violência
há a ponte necessária e nem tempo
Doméstica.
os
necessário para se fazer o elo para se chegar a
possuíam
este saber novo, embora as experiências, na
profissionais
Mesmo
notando-se
envolvidos
que
conhecimentos específicos dessa temática
escala
micro,
resultaram
em
avanços
dentro dos campos de saber os quais
importantes, que não podem ser desprezados.
pertencem, o “olhar e o fazer interdisciplinar”,
O que se pode colocar como principal fator
não seguiu o seu percurso integral; não se
que obstrui o caminho é a presença da velha
conseguiu construir e resultar um saber novo
estrutura arcaica da Polícia Civil ainda
e autêntico, pois mesmo com todo o apoio do
presente nos três estados da federação
grupo gestor do Programa “Delegacia Legal”, a
citados (RJ,MG e BA), demonstrada que ainda
organização e a prática adotadas ainda
perdura a cultura do estado de exceção bem
impedem que os novos caminhos cheguem à
presente em nosso país: “até que se prove o
sua conclusão. Em casos pontuais e focais não
contrário, você é culpado!”
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PELA AIDSS Carta Aberta aos profissionais e docentes de Serviço Social
1. O Serviço Social Português enfrenta na actualidade um momento de transformação. E, nestes momentos a transformação deve ser discutida, debatida e nunca esquecida ou escondida em valores, à partida, mais elevados; 2. A adequação das licenciaturas em Serviço Social ao denominado “Processo de Bolonha” trouxe novos desafios e novas realidades, das quais é exemplo maior a redução das licenciaturas de cinco para três anos (180 ECTS) ou três anos e meio (210 ECTS); 3. A criação de uma Ordem dos profissionais de Serviço Social é uma necessidade e um projecto estruturante da profissão. Tal, contudo, não pode nem deve permitir que, enquanto a mesma não for criada, se continue a não olhar (ou a fazer de conta que não se olha) para a
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Carta Aberta aos Profissionais e Docentes de Serviço Social » Pela AIDSS
realidade da formação e da prática do Serviço Social;
4. Sendo certo que, sem a Ordem, não é possível oficialmente “ordenar” a profissão de Serviço Social, não será possível um entendimento, entre as associações representativas dos profissionais e as instituições formadoras que, pelo menos, lance as bases para essa ordenação? 5. Face ao exposto, pensamos ser necessário abrir um debate, verdadeiro e integrador, da situação actual da formação em Serviço Social em Portugal. Que estruture a formação e as competências dos profissionais de Serviço Social; 6. Existem quatro diferentes tipologias de formação superior em Serviço Social: os CET’s, os primeiros ciclos (licenciaturas), os segundos ciclos (mestrados) e os terceiros ciclos (doutoramentos); 7. Considerando o doutoramento como um ciclo de estudos especialmente direccionado para a investigação científica e para o crescimento do corpo teórico da profissão, será deixado de parte (embora manifestando a sua importância e relevância para a afirmação do Serviço Social em Portugal) neste documento; 8. Consideramos assim que importa reflectir sobre as competências que um profissional de Serviço Social deverá ter. Não deverá ser criado um curriculum mínimo para as formações de primeiro ciclo em Serviço Social, que estruture, pelo menos 90 a 120 ECTS? 9. Consideramos assim que importa reflectir sobre as competências que um profissional de Serviço Social deverá ter: O que poderá fazer um licenciado ou um mestre em Serviço Social e, principalmente, o que distingue um do outro? 10. Isto significa reflectir sobre a duração da formação necessária para que um profissional possa exercer a profissão no pleno e total gozo das suas competências; 11. Em 2006 a AIDSS, em conjunto com a APSS, o CISSEI, o CPIHTS e o SPSS assumiram como necessário um ciclo de estudos com a duração de quatro anos. Tal não foi, e não é, como já acima referimos, a realidade actual. 12. Desde logo importa assim assumir a nova realidade, debater e decidir: Que competências, poderão desenvolver os estudantes que concluam CET’s em Serviço Social? 13. Importa assim assumir a nova realidade, debater e decidir: Serão os três anos (180 ECTS) ou três anos e meio (210 ECTS), suficientes para a aquisição dos conhecimentos e das competências necessárias para o exercício global das competências dum profissional de Serviço Social?
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Investigação e Debate (19) 14. Importa assim assumir a nova realidade, debater e decidir: Se não, que competências deverão ser permitidas aos licenciados em Serviço Social? O que os distinguirá dos mestres em Serviço Social? 15. Importa assim assumir a nova realidade, debater e decidir: Neste formato, deverão os mestrados em Serviço Social serem construídos para uma prática generalista ou, pelo contrário, assumir que as exigências actuais do Serviço Social obrigam a práticas especializadas? 16. Importa assim assumir a nova realidade, debater e decidir: Deverão então ser criados mestrados de especialidade, mesmo que com um semestre (30 ECTS) de formação generalista, onde os profissionais aprofundem os conhecimentos numa área profissional? 17. Importa assim assumir a nova realidade, debater e decidir: Nesta lógica, não será necessário também, a criação dum curriculum mínimo, definido por grupos de profissionais e docentes de Serviço Social com formação e prática profissional reconhecida na área? 18. Estes grupos poderiam ser o esboço dos colégios de especialidade da futura Ordem dos Profissionais de Serviço Social, responsáveis também pela acreditação dos ciclos de mestrado para a prática profissional de Serviço Social; 19. Importa assim assumir a nova realidade, debater e decidir: E, a assim ser, o que distinguirá os licenciados em Serviço Social dum mestre em Serviço Social que, embora com especialidade numa área, exerça a profissão em outra?
20. Algumas notas complementares, mas não menos importantes, para um debate necessário e para o futuro da profissão e dos seus profissionais: os numerus clausus; 21. Será possível corresponder às expectativas dos estudantes em Serviço Social, se se manter o actual número de alunos que todos os anos entram nos primeiros ciclos de Serviço Social? 22. Não terão as instituições de ensino superior que formam licenciados em Serviço Social, a responsabilidade de controlar o número de acessos e, consequentemente, o número de alunos que, todos os anos, concluem as suas licenciaturas?
23. Algumas notas complementares, mas não menos importantes, para um debate necessário e para o futuro da profissão e dos seus profissionais: um código deontológico da profissão; 24. Todos os anos, serão centenas o número de novos profissionais que concluem os estudos sem terem durante a formação, conhecimento sobre o código deontológico nacional; 25. Todos os anos, serão centenas o número de profissionais que se deparam com conflitos éticos cuja resolução deontologicamente sustentável é impossível; 73
Carta Aberta aos Profissionais e Docentes de Serviço Social » Pela AIDSS
26.
Tal acontece, simplesmente, porque não existe um código deontológico para o
Serviço Social em Portugal. O que existe é apenas uma tradução duma declaração de princípios, emanada pela IFSW que assume a necessidade de cada associação membro, em conjunto com os seus profissionais, definir e estruturar um código que corresponda às especificidades de cada país. 27.
Não será possível, na mesma lógica do apresentado no ponto quatro deste
documento, estruturar-se um documento global (ou porque não de especialidade – na lógica dos grupos apresentados no ponto dezassete?
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