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Orson Welles a dama de Xangai, 1950
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Breves (in) confidências ou as tarefa s do encontro
Notas sobre a economia do Ceará: nosso percurso
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E s ta tutos da Pa d a ria Espiritual
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O Ceará em primeira pessoa
Sob as luzes da cidade a invisibilidade dos indígenas em Fortaleza à sombra de uma epistemologia estética colonialis ta
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Quando a gente era verde
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remissões
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AMPUTAPUNHALC ORA ÇÃO
Os Monumentos de Forta leza, Ceará
Arte em trânsito
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AMPUTAPUNHALC ORA ÇÃO
Jac ks on Arau jo
Cortei meus braços!!! Feito o bestiário indolente do Fratura Exposta. Em homenagem à acidental amputação de um dedo, mutilei meus monstros. Entre roxos e dourados, parti. Foi dolorido. Sem bússola, naveguei pra longe do Mucuripe. De velas soltas, como os lençóis freudianos de Mário de Andrade, balançando nu(m)ar, estendido no arame farpado, feito carne de bode salgando ao sol de setem-b-ro-bró, querendo fugir da Messejana, de masjana, cárcere das arábias. Ao longe, com longarinas mutiladas, olhei o horizonte. Marejado, rabisquei lenços de papel, abstraí marinhas. Era Antônio Bandeira, partindo para longe de paisagens regionais. – Eita mundão! Ali, imerso em umbigos e mercenários merceeiros, me perdia. Autorreferente, negava o estado periférico, devorando os próprios braços a saborear o lenço de cambraia bordada em labirinto salgado, com as iniciais dg. D de Dodora, G de Guimarães, a mulher que ensinou o díptico Arte-Galeria, num retângulo branco da Barão de Aracati, passarela-palco de nossa arrogância juvenil sob a sombra da mangueira-rosa do quintal. No porto, a visagem de um guerreiro branco, que chegava e partia. “Era disso que eu tinha medo: do que não ficava pra sempre”. – Arriégua, mansh, issé complexo d’Iracema! – Que nada, é arte efêmera. Em vestidos alheios, costurei pássaros exóticos, alinhavando pinceladas de um Chico da Silva embriagado por pavões. No Juazeiro, enchi o matulão com peles cabeludas de bode a imaginar alegorias de inverno em plúmbeas nuvens. Densas que nem barras de aço, cortando o ar em feição abstrata. Que nem Sérvulo Esmeraldo, queria me afastar do figurativismo das formas puras. O diabo do minimalismo chegara para desconstruir tudo aquilo que até então eu entendia como belo. O enfeitado. – Ô corrafeia... Contaminado, fui ficando. No marejado dos olhos, desfoquei o Tauape, a 13, o Estoril, a Ponte, o Benfica, o Pici, o Aquiraz, o Choró, o Alpendre, a Aldeota e seus limites: a leste, a rua Frei Mansueto e avenida Desembargador Colombo Sousa; a oeste, a rua João Cordeiro; a norte, a rua Pereira Filgueiras e avenida Dom Luís e, ao sul, as ruas Beni de Carvalho e Padre Valdevino.
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– Num tô achando a bússola... Cadê?! Perdi a chave de casa e num tem mais voo de volta. Tempo Condição Humana. Que é de Augusto Cesar, Pedro Boaventura, Ricardo Avelar? Cadê Izabel Gurgel, Izaira Silvino, Diogo Fontenelle. Que é de Violeta, a Rosa de Paris? De Augusto Pontes? Uma rabissaca. Não gosto do passado. Sou do presente, desejo o futuro e me deslumbro com esse Novo Ceará, longe das fortalezas, navegando em barquinhos de papel lotérico, mimetizado em árvores e muros, de cabeça pra baixo em saias de chita, esfacelando o tríptico Arte-Arquitetura-Design. Outra rabissaca. Era uma vez. Nascemos todos a 4º do Equador. “Cidades que nunca vi... Se o calendário acabar... O tempo... Tudo outra vez”. Desbussolado, vou aprendendo: “Há um gosto de grandeza e encanto na condição de ser simples; não é preciso muito pra ser muito”. Sou de maió no túmulo do samba. Mar-num-quero-voltá-não.
capa Massafeira em 1979, o carneiro cearense foi gravar de ruma na CBS do Rio de Janeiro. Voltou em capa colorida.
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Notas sobre a economia do Ceará: nosso percurso
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O Ceará foi ocupado a partir do interior. Tudo começou com a expansão da atividade da cana de açúcar na Zona da Mata, ocupando as melhores terras para esta cultura. A produção de alimentos ocupou o Agreste e o gado foi literalmente empurrado para os sertões, isto é, o oeste pernambucano e o sul do Piauí, do Rio Grande do Norte, do Ceará. Assim, nossa economia passou dois séculos e meio atrelada à atividade pecuária e agrícola de subsistência. Grandes fazendas com pecuária extensiva moldaram nossa cultura. Coronéis com tipo de produção feudal (os meeiros, que dividiam a produção conseguida com o dono das terras), sem indícios de economia monetizada de trocas. Nossas primeiras cidades estão pelo interior: Icó, Crato, Quixeramobim, Crateús, o Vale do Jaguaribe, Sobral, para citar as mais conhecidas. Fortaleza, como centro político e entreposto comercial apenas se firma no século xix, com seu porto, para exportação de cera de carnaúba (extrativa), algodão (em parceria com a criação do gado) e, mais recentemente, castanha de caju. A década de 1950 marca o início de mudanças estruturais na organização econômica do Ceará; contudo, elas não são exclusivas para nossa terra. Decorrem da transição da visão do Estado — comandada por Celso Furtado e seu aprendizado na cepal — dos anos 1950 para os anos 1960, em que medidas foram adotadas no sentido de integrar a economia nordestina ao contexto econômico nacional; ao invés da ótica assistencialista de remessa de recursos governamentais para curar efeitos de secas e outras deficiências, passa-se a criar mecanismos que tragam investimentos de capital para o Nordeste. O Nordeste foi alvo de processo objetivando seu desenvolvimento econômico através de programas de Estado baseados em transferência de recursos inter-regionais, apoiados em incentivos fiscais (Sistema 34/18, finor e, mais recentemente, fne), que deram início à integração econômica do Nordeste, de seus estados e de suas cidades principais com a economia nacional, agora através de investimentos, troca de fatores econômicos, recepção de tecnologia, novos canais de distribuição de produtos, enfim, integração baseada na criação de parques industriais: chegava a Fortaleza a indústria de transformação. Acompanhando a modernização nacional, o Ceará passa a ser economia de caráter monetizado, substituindo estruturas fundiárias de produção ainda quase feudais. No governo jk se consolida a presença do Estado indutor dessa integração econômica através de órgãos que se transformaram na cara do Nordeste, do Ceará, de Fortaleza, enfim: chesf — 1948; sudene — 1959; e, principalmente para Fortaleza, bnb — 1954; que se juntaram a um dnocs — 1909, revitalizado para investir em infra-estrutura aquífera e não mais para atacar a seca e seus efeitos, buscando-se uma economia nordestina essencialmente integrando-se ao país.
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Neste período continuou predominando no Ceará a sociedade utilizando o setor público menos como regulador e predominantemente como ator principal do processo econômico, sendo capturado pelos setores produtivos; com a presença dos órgãos governamentais, estes recrutaram a inteligência do estado que passaram a ser atores técnicos na ação de desenvolvimento econômico, concentrados, é claro, em Fortaleza. Esse modelo não teve grande influência quantitativa nos números da economia cearense em relação à economia brasileira, como veremos em seguida; em números absolutos a renda e o produto cresceram, mantendose, entretanto, na mesma proporção em realidade ao produto nacional. O método histórico não autoriza inferências comparativas sobre o que teria sido em outras circunstâncias. Mas comentaremos adiante a mudança qualitativa visível neste meio século e decorrente do modelo econômico dirigido através do setor público capturado para tal fim. Em 1960, a população do Ceará era de 3,3 milhões de pessoas, que viviam em uma economia com baixa integração, prevalecendo em suas cidades, o informal, os pequenos negócios, sendo a capital cearense não mais que entreposto comercial para o escoamento da produção basicamente agrícola; também era forte a presença dos gastos públicos como criador de mercado consumidor, consumo local defasado em relação ao desenvolvimento de bens mais sofisticados já presentes no sudeste e internacionalmente. Também não se tem notícia de nenhuma atividade autônoma que regulasse, estudasse formalmente ou até planejasse os negócios do estado, integrando os parcos recursos com a economia nacional. A br-116 e a br-222 eram projetos muito bem acalentados; a ligação com o sertão central cearense, então, apenas iria se consolidar pelos idos da década de 1970 com a estrada do algodão. Nesta primeira década, digamos, da era contemporânea cearense, uma escassa geração de riqueza se concentrava em sua grande maioria no setor primário e no comércio; as indústrias e negócios advindos do setor público não eram ainda substanciais na formação interna dos negócios cearenses. E pontualmente naquele momento, no caminho do crescimento do estado, ganha-se o Porto do Mucuripe — escoadouro natural de nossa pauta de exportação, essencialmente primária (carnaúba, castanha, algodão) —, tendo iniciada sua construção nos anos 1930 e em 1952 foram construídos os primeiros armazéns e inaugurado oficialmente pelo governo federal; também em 1952 a pista de pousos e decolagens do Alto da Balança datada da década de 1930, passa a ser chamada Aeroporto Pinto Martins. Um setor financeiro pouco ou nada desenvolvido, com pequenos bancos acumulando as poupanças locais e financiando em escala local o capital de giro e o consumo era outra característica desta década de transição; não havia poupança de longo prazo, privada ou externa, que financiasse a formação bruta de capital fixo. Vale citar os principais bancos da época: União, dos Proprietários, da Indústria e Comércio, Mercantil e Comércio, Popular de Fortaleza, dos Importadores, bancesa, centralizados em Fortaleza, além da região do Cariri. Não existia rede nacional de agências em um só banco; imperavam os correspondentes bancários e as ordens de pagamento. Claro que existia a presença marcante do Banco do Brasil — em todo o Estado — e uma Caixa Econômica trabalhando eminentemente com penhores pessoais e sem interligação com o sistema nacional de caixas econômicas. O início de nossa história, por motivos não aleatórios significa mesmo uma quebra em padrões de qualidade da economia cearense. Vamos ver isto em números e fatos, mostrando que, quantitativamente, mudou pouco. Considerando o indicador atual e mundial de medição da economia, o pib — Produto Interno Bruto —, pode-se estimar com base em indicativos da época na cidade que o pib anual do Ceará nos anos 1960 era de algo como R$150 milhões1. Hoje esse número anda em torno de R$ 70 bilhões2. Este e vários dos números aqui apresentados carecem do rigor econômico e estatístico em sua medida, já que não havia órgão que apurasse ou anotasse as grandezas referentes à atividade econômica; porém sua metodologia de estimativa nos autoriza a crer em que seja uma aproximação satisfatória. Reconheça-se e registre-se que o Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (ipece) está desenvolvendo pesquisas e estimativas mais acuradas para acompanhar a economia cearense. 2 Está-se falando de valores correntes. 1
Ou seja, nosso pib cresceu nos sessenta anos, nominalmente, 450 vezes (10% a.a. em média). Como a população do Ceará triplicou no mesmo período (hoje tem algo como 8,9 milhões de habitantes), a uma taxa média de 2% a.a., tem-se que a renda per capita anual do cearense cresceu mais que proporcionalmente (lembrando sempre: em termos nominais, sem descontar os efeitos inflacionários) no período. Comparando com o Brasil: A população do Ceará sempre representou (considerando 1960 como base) cerca de 4,5% da população nacional;O pib do Estado também, no mesmo período, manteve uma participação de cerca de 2% do pib do Brasil;Por outro lado, a renda per capita do Ceará passou nesse período de R$ 700,00 para R$ 7.200,00; no Brasil, esta variável oscilou de R$ 1.500,00 (1950) para algo em torno de R$ 16.000,00 (2008); Portanto, as chamadas políticas compensatórias do Governo para o desenvolvimento do Nordeste (et pour cause, do Ceará) apenas manteve a relação histórica do pib estado/país; em outras palavras não crescemos mais que o resto do país. Também não se apresentam diferenças marcantes, ao longo desse tempo, nas medidas de concentração de renda, caindo consistentemente para o Brasil e para o Ceará Neste arcabouço, caminhemos no tempo destacando os impactos, digamos idiossincráticos, da formação e da modelagem econômica do Ceará de hoje. Característica marcante no período são as famílias de imigrantes estrangeiros, de várias nacionalidades, chegados antes e que se estabeleceram na galeria de personagens que contribuíram na evolução do estado e na geração de suas riquezas. Hoje, a metade dos maiores grupos econômicos do estado originou-se desses imigrantes. Em meados da década de 1960, destaca-se a ação do governo Virgílio Távora, priorizando investimentos na educação, elevando substancialmente o número de matrículas nos níveis básico e médio; iniciando a aceleração do desenvolvimento via política de construção de obras públicas para sustentar as ações de incentivos fiscais e liberação de recursos para investimentos advindos dos agentes do governo. Este período foi marcado por um plano de metas progressista que incluiu a ampliação do Porto do Mucuripe, a ampliação da transmissão e distribuição de energia elétrica, e ainda a criação e instalação do Distrito Industrial de Maracanaú, do bec — Banco do Estado do Ceará e da Companhia Docas do Ceará. Em 1974, surge o primeiro centro comercial de Fortaleza fora do perímetro urbano central: o Shopping Center Um abre suas portas sendo o supermercado Jumbo a loja âncora; e em 1982, com a inauguração do Shopping Iguatemi, os dois considerados responsáveis pela expansão dos bairros nos seus arredores, Fortaleza entra na era que o comércio sai para os bairros e formam-se vários polos comerciais distribuídos por todas as zonas da cidade. Os anos 1970 representam mudanças no percurso deste desenvolvimento; forma-se a Região Metropolitana de Fortaleza. A Grande Fortaleza, como conceito administrativo, foi criada em 1973 para favorecer o desenvolvimento econômico e social e integrar os municípios. Após quatro novas leis ao longo dos últimos quarenta anos, foi estabelecida a composição atual de quinze cidades que se encontram e se misturam na geografia do Ceará e tendo as estradas como principais ligações entre estes municípios. A Região Metropolitana de Fortaleza funcionou como núcleo das migrações internas, epicentro do destino das partidas do polígono das secas e eixo das br-116 e br-222 que começam em Fortaleza e cortam o sertão, ligando a cidade ao resto do país. No final da década de 1970, na evolução econômica do Ceará, Virgílio Távora retorna ao governo e resgata seu plano de desenvolvimento, e o setor industrial, evoluindo para a colocação de segundo principal ramo da economia do Ceará. Nesse governo, consolidam-se as balizas das políticas de desenvolvimento adotadas para o estado: política de incentivos fiscais a nível estadual, contribuindo para a atração de mais indústrias para o Ceará.
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Na década de 1980, o governo de Tasso Jereissati — denominado Governo das Mudanças — que com um choque de racionalidade econômica, moderniza a administração pública e promove a austeridade fiscal, ampliou o foco das políticas públicas visando aumentar a rentabilidade e produtividade do estado. Já no início dos anos 1980, as ações do Estado que visam o planejamento econômico, são direcionadas para o processo de interiorização da indústria com a modernização de parques industriais e implantação de novas indústrias, principalmente nos polos de Sobral e Cariri; o entendimento do turismo como negócio: com o surgimento de comunicação e equipamentos para inserção das áreas de litoral na rota nacional e resultando na expansão do comércio e serviços; e com a modernização da agricultura pelo agronegócio. Outra característica dessa época é o fortalecimento de entidades de classe empresariais, com destaque para o cdl e a fiec, representando a ascensão dos empresários, de forma pública e atuante na discussão das questões econômicas estaduais. A década de 1990 apresenta profundas transformações no contexto econômico nacional e internacional, e se continua sob o Governo das Mudanças, cuja prioridade é aumentar os investimentos públicos e privados em infra-estrutura e setorialmente na indústria e nos serviços. O segmento industrial se beneficia atraindo várias novas indústrias com o início da guerra fiscal entre os estados e a mão de obra barata. Nos anos 1990, o turismo se consolida e Fortaleza começa a despontar acompanhando a tendência do litoral nordestino, como um forte polo de turismo no país. Vale destacar do período, a atuação do setor público no apoio ao turismo, com a implantação de vias de acesso ao litoral cearense (estradas estruturantes) e a construção do Centro Cultural Dragão do Mar, revitalizando área vinculada a antigos armazéns portuários na Praia de Iracema. E o desempenho econômico sustentado também pelos esforços dos empresários locais, continua sendo determinado por incentivos das instituições governamentais, notadamente o bnb, após a instituição do fne na constituição de 1988. E no final da década, a terceira parte do governo das Mudanças inicia as obras do Metrofor e do novo Aeroporto Internacional de Fortaleza, racionaliza os investimentos e privatiza empresas estatais alterando a estrutura dos negócios fonte de renda do município. Nos anos 2000, consolidando o mercado de Fortaleza, esta contava com mais de 150 agências de instituições financeiras, e se consagra como o destino turístico mais procurado do país. Também nesta década, se solidificam os segmentos mais fortes da indústria na cidade: são os polos de calçados, têxteis, couros, peles e alimentos, com foco nos derivados de trigo e a extração de minerais. Nestes anos, existia mais de 7.500 unidades industriais na grande Fortaleza; citando a diversidade de fábricas de vários segmentos: M. Dias Branco, J. Macedo, Ypióca; Inace, Indaiá, Nacional Gás, Expresso Guanabara, que têm consistente participação no desenvolvimento econômico do Ceará. A Região Metropolitana de Fortaleza conta nos dias de hoje com 3,6 milhões de residentes, chegando a quase 2% da população do país e continua sendo o local com maior concentração de indústrias do Ceará. Somente a cidade de Fortaleza, representa 70% não só da população como da produção de renda da Região Metropolitana. E no caminho da evolução do estado, atualmente no Aeroporto Internacional Pinto Martins passam mais de quatro milhões de passageiros por ano, com o aeroporto regional do Cariri despontando com voos diários para vários destinos regionais e nacionais; o Porto do Mucuripe gera mais de 1.500 empregos, abrigando um dos maiores polos de trigo do país, com atracação exclusiva para petrolíferos e por ele passando os produtos e culturas geradas na cidade. Outro destaque é o nascimento do Porto do Pecém, desafogando o fluxo de cargas de Fortaleza; neste polo econômico se prevê para breve a instalação de uma siderúrgica e de uma refinaria de petróleo, integrando-se ao porto nascente. O Ceará, do seu jeito, com seus personagens e seus negócios, cresceu, se desenvolve, produziu e gerou riquezas nos últimos cinquenta anos acompanhando a trajetória nacional; sem grandes destaques na área
econômica; qualitativamente, contudo, passa de simples região espraiada de criação de gado e de agricultura de subsistência, com capital caracterizada por ser entreposto comercial para escoamento da produção agrícola do estado, para estado com forte presença industrial — sem destaques em produtos ou mercados — e com forte vocação para movimento turístico. Outra característica é a gradativa capacidade de se comunicar e se integrar economicamente com o resto do país. Falta se integrar ao mundo. Nossa relação além fronteiras é muito tímida: importação de trigo e exportação de castanha de caju são os grandes itens ainda neste contacto.
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Yuri Firmeza A Fortaleza, 2010 fotografia-performance
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Florinda Bolkan
(foto divulgação)
florinda sereia do mar bravio bolkan, de uruburetama à roma. quem tem bolkan vai à roma?
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Exatos dez anos depois de ter chegado para viver em Fortaleza realizei meu primeiro curta metragem durante o carnaval de 2002. Intitulado Parque de Diversões, baseado num conto homônimo da escritora cearense Ana Miranda. O filme acompanha em dez minutos o trajeto de um pai que leva dois filhos para um “parque de diversões” possível, no caso uma escada rolante. Com uma realização bastante simples o filme teve uma repercussão em Fortaleza que foi uma grande surpresa pra mim, até mesmo desproporcional à sua singeleza. Era comum depois das exibições perceber as pessoas tentando reconhecer os lugares da cidade por onde os personagens haviam passado e eu me perguntava por que a necessidade de identificar as locações era tão recorrente no público. A crítica especializada dos jornais insistia em falar do filme a partir do que ele provocava de reflexão sobre a cidade e embora eu entendesse e aceitasse essa apreensão, via tudo isso com um certo desconforto, afinal não tinha sido essa minha intenção original. Formado pelo Colégio de Dramaturgia do Instituto Dragão do Mar, eu tinha como maior investimento criativo naquele trabalho as questões humanas que ele podia refratar. Todo o meu empenho era na construção de personagens com desejos latentes e obstáculos evidentes com os quais teriam que lutar, vencer ou sucumbir. Não que tenha sido pego totalmente de surpresa pela forma como as pessoas receberam o trabalho, sabia que nele a cidade com seus precários transportes urbanos, seus becos, escadas, roletas etc. configurava um obstáculo para um pai pobre e morador da periferia que leva seus filhos para se divertirem. Mas a proporção com que isso aconteceu me surpreendeu, assim como a euforia de quem vinha perguntar após uma exibição se determinada rua onde os personagens passavam era de fato aquela rua, ou se as escadas rolantes eram mesmo as do prédio da Receita Federal. Evidentemente que se comparada a reação do público de Fortaleza à reação do público de outros lugares o filme toma dimensões e sentidos muito distintos. Porém aqui ao longo dos anos esse filme tem sido continuamente usado em seminários, conferências, reuniões, aulas e fomentado debates que têm como interesse discutir questões ligadas ao uso do espaço público, a sentimento de pertença entre os habitantes de um lugar e demais assuntos desse tipo. Temas que me passaram a léguas de distância enquanto eu produzia o filme. E embora eu não tenha feito um filme para ou sobre Fortaleza, me deixa feliz que Fortaleza se utilize dele para se ver de um modo crítico. Claro que esse não foi o primeiro filme a ser feito em Fortaleza, outros de abordagem muito mais clara com relação a certos aspectos da cidade já tinham sido ou foram feitos depois de maneira mais contundente. Acredito que a reação ao meu trabalho deriva do fato de que o filme originalmente não quer falar de Fortaleza, quer falar de uma família que vive em Fortaleza, que transita por suas ruas, que usa seu transporte público, que ocupa sua paisagem e subverte a utilização de seus espaços. O filme não é
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sobre Fortaleza nem se dirige somente à sua comunidade. É um filme sobre o humano, sobre como essa humanidade está inserida no contexto Fortaleza. É dramaturgia. O que a minha história remonta é que é relativamente recente a experiência de vermos a cidade em que vivemos dentro de um contexto cinematográfico ficcional. Essa “confusão” entre usar Fortaleza como cenário para uma história que poderia acontecer em qualquer grande cidade do mundo e usar essa história para falar de questões da cidade que lhe serve de cenário para mim soou como curiosa e instigante. Tradicionalmente a nossa imagem se construiu a partir de paisagens, histórias, personagens e uma linda e rica matriz cultural sertaneja. Mais recentemente e principalmente com finalidade publicitária as belezas naturais do nosso litoral também passaram a nos representar imageticamente. Poderíamos elucubrar infinitamente sobre o assunto, levantando questões históricas ligadas à forma de como fomos representados pelas imagens ao longo do tempo, chamarmos ao centro da discussão nossa ancestralidade ou apelarmos para saídas fáceis como achar que as imagens de nossa urbanidade devidamente (re)decodificadas pelos truques da dramaturgia nos cause estranhamentos. A minha intenção não é dar resposta as essas questões, pelo motivo simples de que não as tenho, nem sequer me interesso por elas. O que quero dizer é que minha experiência, por assim dizer acidental, proporcionada pela realização do Parque de Diversões, me indicou um caminho estético pelo qual não sabia ainda que iria me interessar àquela altura. O exercício de ver e ouvir o mundo com olhos artísticos — prontos a sentir e poetizar o cotidiano mais comezinho, mais banal, mais “invisível” que a esquina da minha própria rua, que o jeito de dar bom-dia da minha vizinha ou que as idiossincrasias da minha família — virou meu jeito de fazer cinema. Esse jeito sem dúvida não é uma particularidade minha, nem um caminho novo para as artes de uma maneira geral, inúmeros artistas de diversas linguagens produzem seguindo criativamente esse percurso, mas no cinema feito no Ceará me parece um movimento recente. Falo de mim por pura comodidade, e felizmente é fato que poderia encher as quatro páginas desse texto com exemplos de títulos dos meus pares de geração. Se antes tínhamos autores falando à sua maneira sobre um único tema, hoje temos autores falando à sua maneira de vários temas. Essa prática contamina e inverte o modo de fazer cinema de quem veio antes e de quem veio depois de nós. Parece atrasado se pensarmos na história do cinema de autor em outras partes do mundo, estarmos sendo descobertos por nós mesmos somente agora por uma via de trânsitos pessoais e coletivos, com uma marca claramente afetuosa de influências e contaminações de toda ordem, desde os conteúdos até as formas de realização de um filme. Arrisco algumas possíveis explicações: o acesso à produção de diversos autores que tem se tornado cada vez mais fácil; à informação, aos meios de produção; o descompromisso com o mercado e a indústria como vulgarmente são entendidos; às novas alternativas de circulação e exibição de produtos audiovisuais etc. Mas no caso cearense acho que fundamentalmente as mais recentes experiências e processos de formação, diferenciadas e livres de academicismos engessados, proporcionaram encontros e liberdades aos artistas, forjando essa movimentação. Evidentemente as relações entre as coisas postas são muito mais complexas do que eu poderia descrever. Digo isso pensando no fato de que quando fui fazer outro filme, atendendo ao chamado de um edital da prefeitura da cidade, elaborado para que sua história e personagens de algum modo traduzissem dramaturgicamente Fortaleza, acabei por fazer um filme considerado prioritariamente sobre mulheres. Ousaria dizer mulheres no contexto Fortaleza. Cidade que é muito mais que meia dúzia de obviedades e propagandices e a meu ver deve ser representada com profundidade, sem necessariamente deturpar ou refundar mitos e arquétipos, mas sempre fugindo de uma imagem clichê, na busca de uma imagem reflexiva sobre o lugar e sua própria estética, que na minha opinião passa diretamente pela verdade íntima e pessoal do artista.
Preciso confessar que não sou de Fortaleza, venho de fato de outro sonho feliz de cidade, que sempre me estimulou e emocionou mais do que aqui, mas esse foi tão somente o caminho que achei para me relacionar e aprender a gostar desse lugar. Um caminho meu, menos cerebral, mais interessado na vida que aqui segue do que no mero fato cinematográfico em si.
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Estava eu numa padaria perto de casa em Fortaleza, no entrebairros AldeotaMeireles-Varjota, quando adentraram duas belas garotas conversando: “Menina, já inauguraram uma loja nova aí na frente?” “Pois é, essa avenida está ficando igual à Visconde de Pirajá, em Ipanema.” Criando a comparação direta, as duas jovens dialogam sobre similitudes entre o espaço da cidade de Fortaleza e o do Rio de Janeiro. Entusiasmadas, mostram-se contentes com o caminho tomado pelo processo do movimento espacial da cidade que habitam: a avenida Senador Virgílio Távora, em Fortaleza, teria na avenida de Ipanema uma boa perspectiva a seguir. Se pensarmos no uso e ocupação do solo de propriedade privada, as duas garotas têm toda razão no que dizem: assim como Ipanema, este entrebairros de Fortaleza é uma área habitacional verticalizada de alto padrão e com grande quantidade de lojas do comércio de grifes locadas em shoppings e galerias abertos para a rua. No entanto, se cobrarmos um pouco mais de acuidade na percepção espacial das duas jovens e pensarmos no uso e apropriação do espaço público pelo corpo que usa a cidade — o corpo delas, talvez — veremos disparidades gritantes entre a tal área de Fortaleza e o afamado bairro da capital carioca. Imortalizada pela garota que vem e que passa no doce balanço a caminho do mar, Ipanema é lugar onde se anda a pé. O caminho do mar também é caminho das compras, do trabalho, da igreja, da ida ao parque infantil na praça Nossa Senhora da Paz ou à feira livre, da terça-feira pela manhã, na praça General Osório. Caminho do desocupado que flana e admira vitrines, do mendigo que dorme sob alguma marquise e durante o dia perambula, caminho dos que param em um banco qualquer para ver o fluxo e a vida passar... Caminhos múltiplos que cotidianamente se cruzam e estruturam um espaço público rico em relações sociais, construídas não necessariamente por afinidades e apreços, mas pela possibilidade de construção de um plano onde o encontro, mesmo que conflituoso, acontece: a calçada. Uma caminhada nos arredores do cruzamento da avenida Senador Virgílio Távora com a avenida Dom Luiz, região da tal padaria onde encontrei as duas garotas, deixa explícito a relação diferente do fortalezense, usuário desta área, com o espaço público de sua cidade. Com comércio direcionado a uma clientela de alta renda, como o de Ipanema, os trajetos, em sua maioria, são percorridos por veículos particulares que se deslocam para os estabelecimentos comerciais desejados. De preferência, esta travessia deve ser perpendicular ao sentido da calçada: estacionar em frente à loja em que se vai entrar é sempre mais almejado. O ato de caminhar no sentido do passeio, duas, três, quatro quadras até o shopping desejado não é costume para os que por ali vivem, o trânsito congestionado das ruas grande parte do dia só confirma o fato. Entre o corpo e a cidade existe uma “armadura” metálica com vidros escurecidos e fechados
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pelo conforto térmico do ar-refrigerado. Mesmo ladeado de luxo e requinte, como em Ipanema, o espaço público da área nobre de Fortaleza se constrói pobre de encontros, fraco em sociabilidade e, portanto, pouco acolhedor ao seu usuário.
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Vitor Cesar sem título (modern architecture), 2011 caixa de papelão, grama sintética, mármore e barbante.
Entre 2004 e 2007, morei no Rio de Janeiro e em Ipanema existia uma calçada que me chamava bastante atenção sempre que por ela passava. Na rua Garcia d’Ávila, quase esquina com a avenida Visconde de Pirajá, era onde se instalava o churrasquinho do Zé: uma churrasqueira, uma pequena mesa lateral onde em cima ficava um depósito de plástico com carne, linguiça e frango já em espetos, dois isopores, muitas cervejas e alguns refrigerantes. Nas noites claras de sexta-feira e sábado a festa era garantida. Não tardava a chegar um com um violão, outro com um pandeiro e um cavaquinho para logo as vozes acompanharem a melodia e o samba tomar conta da ambiência sonora daquele trecho da rua1. Locada sobre a calçada da loja Louis Vuitton, ao lado de restaurantes e bares badalados da noite carioca e de frente aos seguranças da Joalheria H. Stern, a fumaça e o calor que emanavam da churrasqueira do Zé abriam uma brecha naquele ambiente criada e sustentada por encontros diversos que, mesmo com diferenças bem marcadas, construíam um “comum”, possível pela partilha do espaço público urbano. Jane Jacobs2, crítica ferrenha do urbanismo dos anos 1960 pela desvalorização desenvolvida por este pensamento técnico às relações humanas construídas no espaço público, releva como um atributo da sociabilidade urbana a “responsabilidade pública de convivência” de um cidadão, que, segundo ela, é uma responsabilidade recíproca construída ao longo do tempo pela comunhão e proximidade dos corpos no espaço das calçadas; sendo na “ambiência relacional” onde se estrutura a segurança pública do cidadão, que não decorre do “olhar vigia” da polícia, mas sim do “olhar transeunte” do estranho. Quanto à segurança, em Ipanema isso fica claro, a diversidade de gente que perambula por aquelas ruas faz de cada um mais um, lota suas calçadas e inibe bastante os possíveis malfeitores que conosco cruzam. A sensação de estar sozinho no espaço público, pelo vazio de transeuntes a pé, vivenciada nos bairros habitados pela população de classe alta de Fortaleza3, faz de suas calçadas ambientes extremamente desconfortáveis, pois pouco habitado por convivências habituais que criam redes de relações concisas e passageiras, legitimadoras do espaço enquanto lugar do encontro e das trocas afetivas, mesmo que conflituosas. Atento à desvalorização do pedestre neste entrebairros de Fortaleza, em 2002, o coletivo de artistas cearenses Transição Listrada furou a correnteza de carros que circunda a Praça Portugal e se alojou em cima de uma de suas árvores para jogar conversa fora e ver o tempo passar4. Uma ação simples, premeditada e de grande potência crítica ao fato deste espaço público ter se transformado em um espaço inacessível ao público pelo trânsito de automóvel que o circunda e o total desinteresse de priorização do caminhante no processo de re-estruturação física desta área da cidade, hoje repleta de Polos Geradores de Tráfego (pgt) — como são chamados os shoppings na linguagem técnica do urbanismo. O Zé é conhecido de muitos dos rapazes que andam pelas calçadas de bar em bar, nas noites de Ipanema, interpretando músicas em troca de moedas. Quando cansados do trabalho, eles passam no Zé para tocar a saideira em troca de outros prazeres. 2 Morte e Vida de Grandes Cidades, São Paulo, Martins Fontes, 2000. 3 Estando os shoppings e as galerias comerciais locados nas avenidas, são nas ruas menores e residenciais desta área, geralmente com calçadas estreitas ladeadas pelo asfalto e por um muro alto ou uma grade de proteção da casa ou do edifício de apartamentos, onde é comum acontecer assaltos a pedestres e a condutores de automóveis, quando estes param para estacionar ou enquanto aguardam os porteiros abrirem as garagens de suas moradias. Alguns condomínios estão instalando homens com cachorros ferozes em suas calçadas para garantir a segurança dos moradores. 4 Árvore – intervenção urbana do coletivo artístico Transição Listrada publicada na terceira edição da revista Urbânia. 1
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Assim como os rapazes da Transição Listrada, atualmente um grupo numeroso de jovens invadem o trânsito do entorno da Praça Portugal, nos finais das tardes de sábado, em ondas de meninos e meninas com roupas estranhas e identidades andróginas, que, deitados na grama, em cima das árvores, encostados no monumento central ou nas palmeiras imperiais, questionam, sem prévia concepção enquanto ação artística, a dimensão pública do espaço urbano desta área de Fortaleza não só por se apropriarem do “deserto” criado pela dificuldade estrutural de acesso à determinada praça, mas também pela livre expressão de uma sexualidade coletiva fora do padrão heterossexual normativo. A barreira física do trânsito parece pouco expressiva diante de outras barreiras que este grupo de jovens se mostra disposto a furar com as suas presenças ativas no espaço público urbano. Como começar a desarraigar costumes e desconstruir hábitos urbanos num processo de reconstrução de si na relação com o espaço da cidade de Fortaleza? Esta é uma questão que sempre me faço, quando caminho por lá. Entregar-se à vulnerabilidade do habitar a calçada é abrir o corpo para produzir encontros, colocar-se em risco, vivenciar conflitos, provocando fissuras na construção do espaço e da subjetividade, possibilitando que a cidade e o corpo se reformulem — ou se ressignifiquem — conforme as relações aconteçam, mais frequentes, habituadas, acolhedoras e reconhecidas em um breve piscar de olhos que se cruzam numa calçada qualquer. Revertermos a nossa experiência urbana do dia a dia para vermos (re)vitalizada a cidade em que vivemos, é um interessante e potente (re)posicionamento político do corpo perante o espaço público que o envolve. Nós, os citadinos, usuários e atores principais da cena urbana, precisamos assumir a responsabilidade pelo que a cidade é, linkando a nossa ação sobre ela ao seu movimento, percebendo no nosso agir a política do nosso ato, capaz de transformar não só o nosso entorno imediato como toda uma política pública de investimentos em reestruturação urbana, pela necessidade concreta de (infra)estrutura que o uso do espaço gera. Caso contrário, estaremos sempre no papel secundário de vítimas e de dependentes do outro — o Estado, a polícia, o urbanista — para o simples fato de caminharmos tranquilos e confortáveis nas calçadas do entorno dos nossos lares.
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Sob as luzes da cidade a invisibilidade dos indígenas em Fortaleza à sombra de uma epistemologia estética colonialis ta
Edileu sa Santiago do N as cimento 1
Em Fortaleza, as luzes da cidade iluminam a “índia Iracema”: no bairro Edson Queiroz, no Palácio Iracema, ela reluz em resina e revestida de cristais; no centro, na Praça José de Alencar, em relevo no granito branco; na praia do Mucuripe, sobre uma jangada, imóvel junto ao colonizador Martins Soares Moreno, ao seu filho mestiço Moacir e ao cachorro japi; na Praia de Iracema, esculpida em ferro com seu arco retesado; sobre a Lagoa de Messejana, com uma cuia a banhar-se. À sombra de uma epistemologia estética colonialista, os indígenas encarnados e moventes no Pirambu, Mucuripe, Serviluz, Santa Tereza, Genibau, Padre Andrade, Conjunto Ceará, Messejana, Palmeiras, só para citar alguns bairros nos quais vivem Tremembé de Almofala e outros indígenas de diversas comunidades indígenas. Na Aldeota e em outros bairros de classe alta e média, mulheres e meninas indígenas trabalham em serviços domésticos, servem à mesa, embalam crianças; os homens constroem edifícios e casas, protegem os portões de condomínios e cuidam dos jardins. 1 Os Tremembé, até o século xvii, ocupavam o litoral do Ceará ao Maranhão; em 1702, foram aldeados em torno da igreja em Almofala (Itarema-ce), 270 km distante de Fortaleza2, onde vêm resistindo com a memória dos seus antepassados nessa terra a qual se referem como “terra dos índios”,“terra do aldeamento”, “terra da santa”. Apesar de, desde o início da colonização até hoje, a invisibilidade dos indígenas ser reproduzida por imagens de índios alegóricas, para deleite da estética colonialista, enquanto os corpos e a força do trabalho indígena foram e continuam sendo explorados e seus territórios usurpados. Em Iracema, de 1865, José de Alencar se pretende criador de um mito de origem do Ceará “mestiço”, a serviço da construção de uma identidade nacional mestiça pela ideologia de miscigenação de três raças — branco, índio e negro —, na qual predomina a imagem alegórica de índio relegado ao passado. A personagem é apresentada como “filha da floresta”, pura inocência sedutora: “a virgem de lábios de mel”, que entrega ao colonizador Martins “a flor do seu corpo” e o segredo dos sonhos com a bebida sagrada do seu Povo Tabajara3. Iracema, em Guarani significa “lábios de mel” (ira-mel e tembe-lábios). A “virgem” é atribuição de Alencar. Esta personagem trai a confiança de seu povo, o abandona e foge com o colonizador, este lhe abandona grávida. Sozinha e isolada, dá à luz ao filho Moacir — “filho da dor” — e morre de fome e melancolia. nascimento, Edileusa Santiago do. Identidade e memória de habitantes de Fortaleza-CE originários da comunidade Tremembé de Almofala-CE: ramos de raízes indígenas em trânsito. Tese de Doutorado em Psicologia Social na Pontifícia Católica de São Paulo. São Paulo, 2009. 301 p. 2 sobrinho. Thomaz Pompeu. Índios Tremembés. Revista do Instituto Histórico do Ceará. Fortaleza-Ceará. v. 65. p. 257-267, 1951. 3 Atualmente, os Tabajara vivem em Poranga e Crateús, no Ceará. Organizados, apoiam os Tremembé e são apoiados por estes. Em Poranga, ouvi as jovens narrarem a memória das avós e bisavós sobre a perseguição dos fazendeiros às moças indígenas, que, para não serem violentadas, passavam noites no meio da mata amedrontadas e escondidas. Também ouvi histórias semelhantes em Almofala, contadas pelas Tremembé. 1
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Martins leva o filho mestiço — “o primeiro cearense” — para Portugal; depois retorna com a criança e “refunda” o Ceará sob o signo da conquista: espadas erguidas e uma cruz fincada na terra. É com a imagem de campo vazio de presença indígena no Ceará que, a ser preenchido pelo mestiço Moacir sob o comando de seu pai colonizador, o pretenso “mito de origem do Ceará” é assim encerrado por José de Alencar4: “Tudo passa sobre a terra”. A Iracema, pintada por José Medeiros em 1884, está de pé numa praia a esperar pelo colonizador; a Iracema, pintada por Antônio Parreiras em 1909, está debruçada sobre o próprio corpo e chorando por ter sido abandonada por ele; nas duas os corpos pintados nus se fundem com a terra. Já no século xvi, foram as imagens de “gentios” (índios associados aos povos “pagãos” aos quais se impunha o catolicismo), “brasis” (índios usados na extração do pau brasil), “negros da terra” (índios escravizados associados ao negros já escravizados na Europa). No século xvii, as de “bárbaros” e “tapuias” (índios que resistiam pela luta armada no Nordeste associados aos mouros que resistiram às cruzadas) em contraste com as imagens de “Tupi,” “aliados” e “índios mansos” (índios já aldeados e recrutados para a guerra contra os Tapuia, associados aos povos convertidos nas cruzadas). Sob a mesma legislação portuguesa, que regulamentou as “guerras justas”, desde as Cruzadas contra até as Bandeiras Paulistas. O pintor holandês Albert Eckhout reproduz essas representações, destacando o contraste entre “civilizados” associados ao urbano e “bárbaros” associados à natureza, em quatro telas pintadas: duas de mulheres, uma Tupi e outra Tapuia, de 1641; duas de homens, um Tupi e outro Tapuia, de 1643. A mulher Tupi é representa parcialmente vestida e carregando uma criança no colo e acessórios de trabalho; no fundo, céu claro e uma povoação com sinais de urbanização indicando a acessibilidade ao trabalho indígena para servir aos brancos. A mulher Tapuia é representada nua segurando uma mão humana decepada, um cesto com um pé para indicar que eram antropofágicos5; com um céu ao fundo carregado de nuvens que anunciam o perigo de uma tempestade de raios e trovões. Durante o xvii, com o mercado voltado para agropecuária, os indígenas foram sendo expulsos de suas terras para serem ocupadas pelo gado; não sem resistência, o que culminou na “Confederação dos Cariri”, mais conhecida por “Guerras dos Bárbaros”, da Bahia até o Ceará, de 1612 até 1679. O líder indígena Canindé negociou as condições de paz com Portugal, o acordo foi quebrado pelos portugueses. A escravização de indígenas pelos bandeirantes se alastrou pelo sertão, queimando aldeias, degolando guerreiros já rendidos, escravizando mulheres e crianças; os sobreviventes que fugiam, passaram a se deslocar de um lugar para outro, enquanto continuavam sendo caçados6, inclusive os Quixelô, quando esses bandeirantes chegaram pelo rio Jaguaribe, onde hoje estão os municípios Quixelô, Iguatu e Acopiara. Foi nesse mesmo século que se popularizou na Europa o imaginário de índio antropofágico e “bárbaro”, que precisava ser dominado a ferro e a fogo pelas “guerras justas”. Essa popularização se deu principalmente através de folhetins recheados de relatos sensacionalistas vendidos nas praças europeias e apreciados pelos consumidores, muitos com as reproduções das gravuras de Theodor de Bry, que traziam índios esquartejando, assando — cópia da técnica usada nos “churrascos” portugueses — e devorando seres humanos. Estes desenhos foram encomendados originalmente pelo aventureiro Hans Staden7, para ilustrar seu relato do tempo em que esteve prisioneiro dos Tupinambá em Ubatuba (sp) no século xvi. Na época, isso lhe rendeu algum dinheiro; e hoje, a fama de mentiroso entre os que estudam a questão indígena. alencar, José de. Iracema: Lenda do Ceará. Fortaleza: Editora ufc, 2005. Os Tapuia não tinham a tradição de antropofagia, diferente de alguns outros povos que a praticavam como parte de rituais sagrados, nada que se compare a um hábito alimentar ou a um churrasco. 6 pompeu sobrinho, 2003:273 in oliveira & freire, 2006: 41. 7 staden, Hans. Viagens ao Brasil — texto integral. São Paulo: Martin Claret, 2006 (primeira publicação1557). Coleção: A obra prima de cada autor. Tradução Alberto Löfgrer. 4
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O Regimento das Missões de 1º de abril de 1680, sob influência do jesuíta Antônio Vieira, proibia a escravização de indígenas inclusive por “guerra justa” e visava disciplinar a distribuição da mão-de-obra indígena nos aldeamentos entre os missionários, colonos e sustento das famílias indígenas aldeadas8. Quatro anos depois, sob a pressão dos os colonos, os Jesuítas foram expulsos; dois anos depois, retornaram juntos com os Franciscanos e Carmelitas, ficando obrigados a promover os deslocamento de indígenas e instalar missões também no Sertão para suprir a demanda dos colonos de mão-de-obra indígena; agora, em vez de um terço, seria metade dos índios aldeados que serviriam aos colonos. Enquanto os colonos mantinham os indígenas sob seu domínio e domicílio, promoviam casamentos entre os indígenas de serviço e os negros escravizados, como estratégia de escravizar seus filhos “mamelucos” e reter também seus pais. Esse novo Regimento das Missões do Estado do Maranhão e do Grão-Pará se estendeu até 1755. Quanto mais próximo os aldeamentos de povoações de brancos, ou seja, os primeiros núcleos urbanos, maior a pressão dos colonos para explorarem e usurparem a força de trabalho dos indígenas no atendimento de sua subsistência e segurança. No século xvii, a política Pombalina impõe disciplina militarizada e laicizada aos indígenas nas vilas erigidas sobre os antigos aldeamentos, impõe a língua portuguesa e vestimenta aos modos dos brancos (Alvará de 04/04/1755), substitui os nomes indígenas dos indivíduos e de suas aldeias para nomes europeus; também impõe treinamento em ofícios domésticos para servir aos brancos e trabalho na agricultura para responder à demanda por algodão, no comércio colonialista de exportação. Alguns indígenas conseguiam fugir para suas antigas aldeias, mas o controle e vigilância militar tentavam impedir a todo custo essa mobilidade. A imagem de índio construída durante a política pombalina era de “vadio”, “preguiçoso” e “incapaz”. Nessa fase, o lugar de índio era pra ser nas áreas de urbanização e suas presenças necessárias enquanto mão-de-obra para garantir os projetos de progresso e urbanização da política pombalina. Muitos indígenas resistiam e tentavam manter-se distantes dos centros urbanos. Por exemplo, em 1742 e 1746, os fazendeiros queixaram-se, por duas vezes, ao governador do Ceará, de que índios Quixelô tinham “roubado” gado de suas fazendas. Em 1764, Ouvidor Geral do Ceará ordenou que esses índios, aldeados na Telha e dispersos, fossem levados para a Antiga Missão de Nossa Senhora da Palma na Serra de Baturité. Até 1938 mantinha-se o nome Bom Jesus dos Quixelô; na década de 1980, eu ouvia minha avó materna se referido assim ao nosso lugar. Em 1958, padre Couto relata que a população de Quixelô mantinha “aquele modus vivendi primitivo, recebido de seus maiores, qual uma tradição sagrada, não se altera. Donde, quem quer que se abalance a contrariálos em seus seculares hábitos e costumes, verá, de frente, insatisfeita, uma população, que se julga ferida em bens etnológicos, herdados”9. Esta política de fixação de índios nas vilas e povoados para exploração de sua força de trabalho imperou até o final do século xix; nesse momento, muitas comunidades indígenas foram transformadas em trabalhadores sem terra, identificados como “caboclos” e “sertanejos pobres” e “moradores agregados”, explorados por fazendeiros.10 Quando vinha a seca, migravam para as cidades, onde passavam a ser identificados como “retirantes” e “flagelados da seca”. No período de seca de 1877 a 1879, centenas de migrantes da zona rural chegam à Fortaleza, tentam sobreviver, trabalhando nas grandes obras de urbanização e embelezamento da cidade; seus corpos exauridos vão cair em repouso nos abarracamentos construídos pelo governo longe do centro de urbanização, como no Mucuripe, juntando-se à comunidade de “descendentes de índios” daquela região. A toponímia Mucuriba é de origem tupi, significa beozzo, 1983 in oliveira, freire, 2006: 43 couto, Francisco de Assis. Gênese de Iguatu (Desde 1682 a 1767). Monografia n0 2, Tipografia “A Ação”, Crato, 1960 10 oliveira, João Pacheco de. freire, Carlos Augusto da Rocha. A Presença Indígena na Formação do Brasil. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade: laced/Museu Nacional, 2006. 268 p. (Coleção Educação para Todos; 13) 8 9
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“caminhos dos Mocós”, assim designado porque era território dos índios Mocós. Muitos ficarão habitando os arredores da cidade, particularmente próximo à praia11 onde seus descendentes continuaram morando e pescando. No turismo, vende-se a imagem do “jangadeiro”.12 Na década de 1920 do século xx, na Praia do Peixe, algumas famílias indígenas ainda viviam por ali em suas cabanas de palha, mas já identificadas como pescadores pobres. Em 1925, políticos decidem substituir o nome Praia do Peixe por Praia de Iracema, em homenagem a personagem da obra José de Alencar. Em 1930, a legislação urbana exige que as cabanas de palhas e seus moradores deixem o espaço vazio para os recuos laterais e outras edificações. A apropriação violenta do espaço concreto é companhia da violência simbólica; nesse mesmo ano é construída a Igreja São Pedro, padroeiro dos pescadores, frequentada pelas famílias ricas de Fortaleza, como os Jeressaiti, Ary, Otoch e Romcy. Durante a segunda guerra mundial, seguindo à moda dos soldados norte-americanos, ali de passagem, a Praia de Iracema torna-se um lugar para deleito do seu ócio da elite13. Em 1932, migrantes novamente fogem da seca e em Fortaleza são confinados em “Campos de Concentração” construídos pelo governo próximos ao mar, como no Campo do Pirambu. Assim como nos campos de concentração nazistas, durante a segunda guerra mundial, esses “retirantes” são obrigados a trabalhar em obras públicas de embelezamento de Fortaleza para deleite estético da elite14. A toponímia Pirambu é de origem tupi-guarani, que significa peixe-roncador, devido ao som emitido pelo peixe sargo-de-beiço ou pirambu. Nessas duas secas, foram construídas 98 ruas pavimentadas em Fortaleza com a exploração da força de trabalho dos “flagelados”, “retirantes”, “sertanejos” migrantes. Os mesmos corpos que construíam essas ruas e outras obras eram segregados em locais distantes de qualquer obra de urbanização. Todo o litoral de Fortaleza continua sendo ocupado pelos “descendentes de índios”, que passaram a conviver com os migrantes, inclusive Tremembé, que já moravam já no Pirambu e no Mucuripe na década de 1940. A maioria dos Tremembé que chegaram nas décadas de 1960, 1970 e 1980 foi acolhida nas casas dos parentes nesses bairros. No Ceará, é antigo o fenômeno de deslocamentos forçados para a população indígena pelas invasões de suas terras, e exploração predatória de seus recursos. Na região da praia, a partir da década de 1950, ressurgem a igreja e a vila de Almofala, soterradas desde 1899. Com isso, pessoas de outros lugares começam a se apossar de terrenos tanto na vila quanto nas redondezas e a registrá-los no cartório de Acaraú-ce como propriedade privada. Em 1965, chegam empresas lagosteiras na praia de Almofala — uma das mais piscosas do litoral —, explorando-a de forma predatória até a escassez de peixes. Na região da mata, na década de 1970, a empresa agroindustrial Ducoco Agrícola15, cercou parte significativa das terras do aldeamento das duas regiões. Uma das conseqüências foi o deslocamento forçado de muitos tremembés em busca de sobrevivência, inclusive para Fortaleza. (valle, 1993; oliveira jr., 2006). candido, Tyrone Apollo Pontes. Trem da seca: sertanejos, retirantes e operários (18771880). Museu do Ceará: Coleção outras Histórias — Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, 2005. rios, Kênia Sousa. Campos de concentração no Ceará: isolamento e poder na Seca 1932. 2º ed. Fortaleza: Museus do Ceará — Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, 2006. 12 ramos, Lidiane da Costa. Mucuripe: verticalização, mutações e resistências no espaço habitado. Dissertação de Mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente. Subárea: Ecologia e Organização do Espaço na Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, 2003. 13 sousa, Elsine Carneiro de. Praia de Iracema: fatores de estagnação de um espaço turístico à beira-mar. Dissertação de Mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente ii na Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, 2007. 86 p. 14 rios, Kênia Sousa. Campos de concentração no Ceará: isolamento e poder na Seca 1932. 2º ed. Fortaleza: Museus do Ceará – Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, 2006. 15 A Ducoco é uma empresa de plantio de coqueiro e industrialização de produtos derivados do coco. No final da década de 1970, esta empresa agroindustrial adquiriu fazendas dentro da terra do aldeamento dos Tremembé de Almofala, expulsando as famílias indígenas da Tapera de sua tradicional localidade. 11
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Chico Albuquerque registro mágico durante as gravações de it’s all true. figurantes ou pescadores, você escolhe. todos marchando em fila indiana em direção à luz pulsante do orson welles.
O movimento indígena dos Tremembé se fortaleceu na década de 1990 e conseguiram o reconhecimento oficial da identidade indígena e a delimitação de suas terras pela Fundação Nacional do Índio, mas ainda não demarcada. Atualmente, eles se orgulham de suas vitórias construídas no processo de transformações de suas identidades como indígenas cidadãs em negociação com o Estado: escolas indígenas, formação de seus professores, postos de saúde, assistência médica diferenciada em Fortaleza conveniada com a Fundação Nacional Saúde — funasa, projetos de agricultura de subsistência, pesca artesanal, de tecelagem, de objetos de palha e cerâmica; e, mais recentemente, o curso de graduação Magistério Indígena Tremembé Superior — mits. Os parentes que permaneceram em Fortaleza não fizeram parte desse processo, vivem na periferia de Fortaleza num contexto de invisibilidade e não reconhecimento de suas identidades e de seus direitos indígenas; assim, como todos os indígenas nessa cidade. Na década de 1980, meninas Tremembé permaneciam meses recebendo apenas alimentação e abrigo como forma de “pagamento” de trabalho doméstico em casas da classe média em Fortaleza. O trabalho servil doméstico de indígenas é nosso vergonhoso contemporâneo e não é exclusivo na cidade de Fortaleza, mas em muitas cidades de diversas regiões do Brasil e de outros países da América Latina. Uma Tremembé que vive há 28 anos em Fortaleza, tinha onze anos quando veio trabalhar nessas condições na casa de um casal de médico na Aldeota, chora ao lembrar que a patroa “raspou meu cabelo”, por ciúmes, “e eu era só uma menina véia”. Desde a literatura dos viajantes colonialistas, os corpos, os comportamentos e o território dos povos originários foram revestidos pela imagem de natureza feminilizada exótica-erótica: “um virgem corpo sedutor” para ser domado, inclusive sua suposta luxúria instintiva e ameaçadora16. Nos anos 1920 e 1930, o projeto elitista de desenvolvimento da nação motivava a questão nas obras dos intelectuais brasileiros “Que país queremos que seja?” e uma interpretação do passado para identificar “Que país é este?”. As interpretações foram produzidas num momento de urbanização do país sobre uma suposta identidade nacional, nas quais a suposta sexualidade exacerbada do brasileiro mestiço seria um obstáculo que emperrava o progresso, uma herança da índia17. Em Retrato do Brasil: Ensaio sobre a Tristeza Brasileira, de 1928, a imagem do brasileiro é de “melancólico e fraco”, construída pela associação do discurso médico sobre a hiperestesia sexual associada ao diagnóstico da melancolia como fraqueza moral na lógica capitalista. A suposta identidade brasileira erótica e instintiva resultaria do clima quente, da terra virgem, da nudez da indígena e da sensualidade da africana. Em Macunaíma: o herói sem nenhum caráter18, de 1928, atribui-se à identidade brasileira uma alegria preguiçosa, em contraste com a melancolia atribuída pelo seu amigo Paulo Prado. No entanto, a origem destes traços opostos seria a mesma: a sexualidade. No final, derrotado na passagem da “natureza” à “civilização”, Macunaíma desiste da vida e se torna a constelação da Ursa Maior. O livro foi elogiado pela crítica, como uma contribuição na invenção de uma identidade nacional. fonseca, Pedro Carlos Louzada de. “Identidades Bestiárias na Colônia: monstruosidade, gender e ordem política na cronística portuguesa sobre o Brasil dos séculos xvi e xvii”, Signótica, 15 (1), 77-90 [= volume 15, número 1]. 2003. 17 rago, Margareth. Sexualidade e identidade na historiografia brasileira dos anos vinte e trinta. Estudos Interdisciplinarios de América Latina y El Caribe, v. 12, n. 1, 2000-2001. Disponível em: <http://www1.tau.ac.il/eial/index.php?option=com_content&task=view &id=427&Itemid=201>. Acesso em 8 de Maio de 2008. 18 Em 1927, Mário de Andrade viajou pelo Norte do país, inclusive pela Amazônia. No diário de viagem, relata que sonhou com uma cidade encantada, na qual belas moças o levaram a um palácio cheio de redes de ouro e prata; depois, nos monumentos públicos, tiveram relações sexuais em uma orgia. Relata também sua ideia de equivalência entre indígenas e a natureza. Macunaíma foi “inspirada” nas narrativas indígenas ouvidas durante esta viagem e na etnografia do antropólogo alemão Koch-Grünberg, que esteve entre o monte Roraima e o médio Orinoco entre 1911 e 1913, quando registrou o mito Makunaima de indígenas ligados à Raposa Serra do Sol (faria, 2006:6-12). 16
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Em Casa-Grande & Senzala, de 1933, a miscigenação das três raças teria desfeito a distância social entre a casa grande e a mata tropical; entre a casa grande e a senzala. Isto teria sido possível pela ausência de vaidade dos portugueses e pelo “furor uterino das índias”. Este discurso misógino falocêntrico coexiste com a celebração de uma suposta “democracia racial” e com o preconceito da hierarquia das culturas, escamoteando as desigualdades econômicas, políticas, raciais e de gênero. Caio Prado Júnior, em Formação do Brasil Contemporâneo, de 1942, inaugura a interpretação marxista da história econômica. Ele explica a miscigenação e a facilidade do português dirigir o “branqueamento”, reproduzindo as teses de Gilberto Freyre, que por sua vez reproduzira as de Paulo Prado, o tio de Caio Prado: “Aliás, particularmente, no caso da índia, é notória a facilidade com que se entregava, e a indiferença e passividade com que se submetia ao ato sexual” (apud rago, 2001: 13). Atualmente, duas imagens de índio continuam em circulação: metáfora de liberdade natural e de atraso a ser superado19 (arruda, 2001: 45-46). Os livros didáticos historicamente ainda reproduzem um índio alegórico e relegado ao passado. A mídia televisiva privilegia imagens exóticas dos indígenas da Amazônia de forma descontextualizada, que não fazem jus aos indígenas dessa região e aos indígenas das diversas regiões, com suas situações e trajetórias muito heterogêneas entre si, como, por exemplo, os do nordeste brasileiro. Quanto às telenovelas, não quero nem comentar as imagens em circulação, como, por exemplo, em “Araguaia”. O movimento indígena tem criado suas políticas de identidades a partir de autodefinições que confrontam definições com as quais não se reconhecem. Estão rasgando a camisa de força das imagens que lhes revestem os discursos colonialistas. Esse movimento de emancipação, isto sempre envolve projetos e escolhas de um modo de ser de um indivíduo e de seus grupos de pertencimentos em relação com outros grupos. Assim, as tensões se dão em campos semânticos de enunciação, de direitos, reconhecimentos e memórias. Por exemplo, quando decidem manter o termo “índio”; desconstruindo os adjetivos negativos que lhes são impostos e construindo adjetivos positivos de autodefinição, com o objetivo unificar os diferentes povos originários no projeto que garanta efetivamente seus direitos coletivos e individuais. Para fortalecer o sentimento de pertencimento coletivo, entre eles se referem como “parentes” aos indígenas de diferentes etnias no Brasil.20 Isto será particularmente importante para os indígenas no Ceará e outros Estados do Nordeste, que passaram a instrumentalizar o termo parente a partir de meados da década de 1980 para se auto-afirmarem no cenário nacional no qual não eram reconhecidos os indígenas no Nordeste. O Ceará foi considerado como um dos poucos estados brasileiros sem índios, de 1860 — quando no governo da província declarou-se extintos os aldeamentos indígenas — até a década de 1980 — quando os Tremembé de Almofala e os Tapebas de Caucaia passaram a reivindicar o reconhecimento de suas identidades indígenas e demarcação de suas terras21. O movimento indígena dos Tremembé se fortaleceu na década de 1990 e conseguiram o reconhecimento oficial da identidade indígena e a delimitação de suas terras pela Fundação Nacional do Índio. arruda, Rinaldo Sérgio Vieira — Imagens do índio: signos da intolerância, in: grupioni, Luís Donisete Benzi; vidal, Lux Boelitz; fischmann (orgs.). Povos indígenas e tolerância: construindo práticas de respeito e solidariedade. São Paulo, edusp, 2001. (Seminários 6; Ciência, Cientistas e Tolerância II). 20 luciano, Gersem dos Santos Baniwa — O Índio Brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; laced/Museu Nacional, 2006. 224 p. — (Coleção Educação para Todos; 12) 21 1993; pompeu sobrinho. funai — Fundação Nacional do Índio. Identificação e delimitação da área indígena Tremembé de Almofala (Itarema-CE). Parecer conclusivo do processo n. 28 / cad-did/daf/93. Ref.: Processo funai/bsb/0056/93. Relator: Jussara V. Gomes. 8 jul. 1993. Diário Oficial da União, Brasília, n. 141, Seção i, p.10521-10524, jul. 1993. 1951; porto alegre, 1992. porto alegre, Maria Sylvia. Fontes inéditas para a história indígena no Ceará. Fortaleza: ufc/neps, 20, 1992. 19
Atualmente, os Tremembé se orgulham de suas vitórias construídas no processo de transformações de suas identidades como indígenas cidadãs em negociação com o Estado: escolas indígenas, formação de seus professores, postos de saúde, assistência médica diferenciada em Fortaleza conveniada com a Fundação Nacional Saúde — funasa, projetos de agricultura de subsistência, pesca artesanal, de tecelagem, de objetos de palha e cerâmica; e, mais recentemente, o curso de graduação Magistério Indígena Tremembé Superior — mits. Os parentes que permaneceram em Fortaleza continuam à sombra da invisibilidade na capital cearense; assim, como migrantes de mais de vinte comunidades indígenas, da zona rural e de pequenas cidades. Como, por exemplos, migrantes originários dos: Tapeba de Caucaia, Pitaguary de Maracanaú, Jenipapo-Kanidé da Lagoa Encantada em Aquiraz; Potiguara de Monsenhor Tabosa, de Novo Oriente; Cariri de Crateus, do Crato, de Crateús; Tabajara de Crateus, Poranga e Quiterianopolis; Canindé de Aratuba, de Canindé; Anacé do Pecém e de Messejana; Tremembé de Almofala, do Córrego do João Pereira, das Queimadas, de São José e Buriti; Tubiba-Tapuia em Monsenhor Tabosa. Os Quixelôs e Calabaça de Quixelô, Jucás de Jucás, Icozinhos de Icó, e tantos outros continuam ainda desarticulados também em suas próprias comunidades. No entanto, em Fortaleza, é vivo o assentimento de pertencimento comum dos Tremembé, compartilhado nas expressões verbais: “sou filho e neto de índio”, “tenho sangue de índio”, “sou da terra de índio”. A afetividade talvez seja a maior potência deles, pelo desejo e apelos por um apoio dos parentes em Almofala, nos ecos da vontade desses em apoiar os parentes em Fortaleza. Talvez se juntem na tendência de indianização nas áreas urbanas, que está em processo em muitas cidades na América Latina, no Caribe e nos Estados Unidos.
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Estatuto da Padaria Espiritual Os Estatutos da Padaria Espiritual, escritos muitos anos antes da Semana de Arte Moderna de 22, deixam claro o caráter pioneiro deste movimento literário modernista, que foi assim o precursor das academias de letras no Brasil. Seguem-se os estatutos: Fica organizada, nesta cidade de Fortaleza, capital da “Terra da Luz”, antigo Siará Grande, uma sociedade de rapazes de Letras e Artes, denominada Padaria Espiritual, cujo fim é fornecer pão de espírito aos sócios em particular, e aos povos, em geral. A Padaria Espiritual se comporá de um Padeiro-Mór (presidente), de dois Forneiros (secretários), de um Gaveta (tesoureiro), de um Guarda-livros na acepção intrínseca da palavra (bibliotecário), de um Investigador das Coisas e das Gentes, que se chamará Olho da Providência, e demais Amassadores (sócios). Todos os sócios terão a denominação geral de Padeiros. Fica limitado em vinte o número de sócios, inclusive a Diretoria, podendo-se, porém, admitir sócios honorários que se denominarão Padeiros-livres. Depois da instalação da Padaria, só será admitido quem exibir uma peça literária ou qualquer outro trabalho artístico que for julgado decente pela maioria. Haverá um livro especial para registrar-se o nome comum e o nome de guerra da cada Padeiro, sua naturalidade, estado, filiação e profissão a fim de poupar-se à Posteridade o trabalho dessas indagações. Todos os Padeiros terão um nome de guerra único, pelo qual serão tratados e do qual poderão usar no exercício de suas árduas e humanitárias funções. O distintivo da Padaria Espiritual será uma haste de trigo cruzada de uma pena, distintivo que será gravado na respectiva bandeira, que terá as cores nacionais. As fornadas (sessões) se realizarão diariamente, à noite, à excepção das quintas-feiras, e aos domingos, ao meio-dia. Durante as fornadas, os Padeiros farão a leitura de produções originais e inéditas, de quaisquer peças literárias que encontrarem na imprensa nacional ou estrangeira e falarão sobre as obras que lerem. Far-se-ão dissertações biográficas acerca de sábios, poetas, artistas e literatos, a começar pelos nacionais, para o que se organizará uma lista, na qual serão designados, com a precisa antecedência, o dissertador e a vítima. Também se farão dissertações sobre datas nacionais ou estrangeiras. Essas dissertações serão feitas em palestras, sendo proibido o tom oratório, sob pena de vaia. Haverá um livro em que se registrará o resultado das fornadas com o maior laconismo possível, assinando todos os Padeiros presentes. As despesas necessárias serão feitas mediante finta passada pelo Gaveta, que apresentará conta do dinheiro recebido e despendido. E proibido o uso de palavras estranhas à língua vernácula, sendo, porém, permitido o emprego dos neologismos do Dr. Castro Lopes. Os Padeiros serão obrigados a comparecer à fornada, de flor à lapela, qualquer que seja a flor, com excepção da de chichá. Aquele que durante uma sessão não disser uma pilhéria de espírito, pelo menos, fica obrigado a pagar no sábado café para todos os colegas. Quem disser uma pilhéria superiormente fina, pode ser dispensado da multa da semana seguinte. O Padeiro que for pegado em flagrante delito de plagio, falado ou escrito, pagará café e charutos para todos os colegas. Todos os Padeiros serão obrigados a defender seus colegas da agressão de qualquer cidadão ignáro e a trabalhar, com todas as forças, pelo bem estar mútuo.19) É proibido fazer qualquer referência à rosa de Maiherbe e escrever nas folhas mais ou menos perfumadas dos álbuns. Durante as fornadas, é permitido ter o chapéu na cabeça, exceto quando se falar em Homero, Shakespeare, Dante, Hugo, Goethe, Camões e José de Alencar porque, então, todos se descobrirão. Será julgada indigna de publicidade qualquer peça literária em que se falar de animais ou plantas estranhos à Fauna e à Flora brasileiras, como: cotovia, olmeiro, rouxinol, carvalho etc. Será dada a alcunha de “medonho” a todo sujeito que atentar publicamente contra o bom senso e o bom gosto artísticos. Será preferível que os poetas da “Padaria” externem suas idéias em versos.
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Trabalhar-se-á por organizar uma biblioteca, empregando-se para isso todos os meios lícitos e ilícitos. Dirigir-se-á um apelo a todos os jornais do mundo, solicitando a remessa dos mesmos à biblioteca da “Padaria”. São considerados, desde já, inimigos naturais dos Padeiros - o Clero, os alfaiates e a polícia. Nenhum Padeiro deve perder ocasião de patentear seu desagrado a essa gente. Será registrado o fato de aparecer algum Padeiro com colarinho de nitidez e alvura contestáveis. Será punido com expulsão imediata e sem apelo o Padeiro que recitar ao piano. Organizar-se-á um calendário com os nomes de todos os grandes homens mortos, Haverá uma pedra para se escrever o nome do Santo do dia, nome que também será escrito na Ata, em seguida à data respectiva. 30) A “Avenida Caio Prado” é considerada a mais útil e a mais civilizada das instituições que felizmente nos regem, e, por isso, ficará sob o patrocínio da Padaria, Encarregar-se-á um dos Padeiros de escrever uma monografia a respeito do incansável educador Professor Sobreira e suas obras. A “Padaria” representará ao Governo do Estado contra o atual horário da Biblioteca Pública e indicará um outro mais consoante às necessidades dos famintos de idéias. Nomear-se-ão comissões para apresentarem relatórios sobre os estabelecimentos de instrução pública e particular da Capital relatórios que serão publicados, A Padaria Espiritual obriga-se a organizar, dentro do mais breve prazo possível, um Cancioneiro Popular, genuinamente cearense. Logo que estejam montados todos os maquinismos, a Padaria publicará um jornal que, naturalmente, se chamará O Pão. A Padaria tratará de angariar documentos para um livro contendo as aventuras do célebre e extraordinário Padre Verdeixa. Publicar-se-á , no começo de cada ano, um almanaque ilustrado do Ceará contendo indicações uteis e inúteis, primores literários e anúncios de bacalhau. A Padaria terá correspondentes em todas as capitais dos países civilizados, escolhendo-se para isso literatos de primeira água. As mulheres, como entes frágeis que são, merecerão todo o nosso apoio excetuadas: as fumistas, as freiras e as professoras ignorantes. A Padaria desejaria muito criar aulas noturnas para a infância desvalida; mas, como não tem tempo para isso, trabalhará por tornar obrigatório a instrução pública primada. A Padaria declara desde já guerra de morte ao bendegó do “Cassino”. É proibido aos Padeiros receberem cartões de troco dos que atualmente se emitem nesta Capital. No aniversário natalício dos Padeiros, ser-lhes-á oferecida uma refeição pelos colegas. A Padaria declara embirrar solenemente com a secção “Para matar o tempo” do jornal “A Republica”, e, assim, se dirigirá à redação desse jornal, pedindo para acabar com a mesma secção. Empregar-se-ão todos os meios de compelir Mané Coco a terminar o serviço da “Avenida Ferreira”. O Padeiro que, por infelicidade, tiver um vizinho que aprenda clarineta, pistom ou qualquer outro instrumento irritante, dará parte à Padaria que trabalhará para pôr termo a semelhante suplício. Pugnar-se-á pelo aformoseamento do Parque da Liberdade, e pela boa conservação da cidade, em geral. Independente das disposições contidas nos artigos precedentes, a Padaria tomará a iniciativa de qualquer questão emergente que entenda com a Arte, com o bom Gosto, com o Progresso e com a Dignidade Humana. Amassado e assado na “Padaria Espiritual”, aos 30 de Maio de 1892. Seguem-se as assinaturas dos padeiros presentes, em número de dezoito, faltando, portanto, duas assinaturas.
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uhuuu! cidadรฃo instigado, 2009
0rรณs fagner, 1977
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Os Monumentos de Forta leza, Ceará Roteiro de performance
Pab lo As s u mpção
Esta performance foi originalmente concebida e apresentada no Alpendre Casa de Arte, em Fortaleza, dentro da série “Heterotopias”, em 26 de Julho de 2010.
[Vídeo. Sobe a luz. Entra o artista.] Fortaleza é uma cidade grande. Uma cidade grande é um agrupamento de incontáveis famílias, pontos comerciais, etnias, religiões, monumentos, aleatoriedades e pontos de pegação. Monumentos são construções coletivas da memória. Pontos de pegação são espaços produzidos para o exercício da cidadania sexual entre anônimos. Eles podem virar monumentos. Práticas sexuais entre anônimos são trocas de sensorialidades e fluidos corporais. Fluidos corporais são materializações do espírito. O espírito é uma coisa misteriosa. Um mistério é um fenômeno de causa oculta. Um mistério é também uma unidade de oração no santo rosário. O santo rosário é uma linha de contas dividida em mistérios gozosos, mistérios luminosos, mistérios dolorosos e mistérios gloriosos. Cada mistério é composto de dez contas (ou orações) e representa uma passagem bíblica. Uma passagem bíblica é uma criação humana. Os mistérios gloriosos representam o tempo que vai da ressureição de Jesus à coroação da Virgem Maria. Maria é o nome da minha filha, se eu tivesse uma. Uma, é artigo gramatical feminino. Feminino é uma categoria de sexo. Sexo é uma criação humana. Humana é a raça de animais que se considera de outra natureza do resto das criaturas. Criatura é como minha mãe chama um filho quando quer dar ênfase ao chamado. Minha mãe é uma cidadã fortalezense que habita a rua Pereira Valente, no bairro do Meireles. Meireles é o bairro com mais alta concentração de riqueza do Estado do Ceará. Ceará é o nome de um time de futebol, também chamado Vovô. Vovô é como os netos chamam o pai de seus pais. Como Nossos Pais é uma canção sentimental de Belchior, que me faz chorar. Choro é uma materialização líquida do sentimento. Sentimento é um tipo de Fortaleza. Fortaleza é uma cidade grande. Uma cidade grande é um agrupamento de incontáveis famílias, pontos comerciais, etnias, religiões, aleatoriedades e pontos de pegação. A rua Assunção, no centro, é um lugar que reúne oito pontos de pegação masculina. O cruzamento da Assunção com Bárbara de Alencar é a esquina onde eu
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O M m t F l C
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contratei um garoto de programa pela primeira vez. Um garoto de programa é, frequentemente, um rapaz bem dotado com habilidade em penetração anal e assalto. A rua José Avelino é o lugar onde um garoto de programa me assaltou e ameaçou me estrangular. Estrangulamento é um procedimento de morte que não me interessa investigar. Morte é uma coisa misteriosa. Um mistério é um fenômeno de causa oculta. Um mistério é também uma unidade de oração no santo rosário. Os mistérios gozosos, no santo rosário, representam o tempo que vai da anunciação do anjo até o encontro do menino Jesus no templo. Gozo é uma pequena morte. Morrer é inevitável. Gozar é opcional, mas a ciência afirma que faz bem à saúde. Saúde é um estado de completo bem estar físico, mental e social. Fortaleza é uma cidade socialmente insalubre. Socialmente é um advérbio de modo. Advérbio é a classe gramatical das palavras que modificam um verbo, adjetivo, ou outro advérbio. Outro é a entidade através da qual eu componho um sentido do mesmo. Sentido é uma coisa sem sentido. Coisa é algo que se perde. O bairro do Montese é o lugar onde eu perdi a virgindade. Perda pode ser algo irritante. Irritação é um estado de ânimo indesejável, às vezes remediável com cannabis. O bairro do Benfica é onde eu cortei o rabo. Em Fortaleza, cortar o rabo é fumar cannabis pela primeira vez. Rabo é sinônimo de ânus. Ânus é algo que deve ser tratado com carinho. Carinho é o que eu sinto agora. Agora é o tempo do vazio. Vazio é o chão do que existe. Existir é uma troca de substâncias com o ambiente. Ambiente é um conceito cosmológico. Cosmologia é um braço da Filosofia. Braço é algo que se estende no espaço, no tempo, e que pode tocar. Tocar é o verbo que se usa antes da palavra punheta. Punheta é um braço da filosofia. Filosofia é uma atividade que diverte. O teatro de bonecos de Augusto Bonequeiro, no Bairro de Fátima, é onde eu me divertia na década de oitenta. A década de oitenta é o tempo em que se usava ombreiras e New Wave nos cabelos. Cabelos, como a neve, é algo que cai. Cair é uma ação involuntária que produz vergonha. Vergonha é um afeto negativo. Negativo, salvo exame médico, é uó. Positivo é uma expressão “militarística” que significa “sim”. Sim é o que me diz Nossa Senhora de Fátima quando eu lhe rogo um pedido. Nossa Senhora de Fátima é um monumento de Fortaleza. Um monumento não é uma escultura de cimento numa praça. A feira noturna da praça de Fátima, aos domingos, é onde eu comprava sacos de plástico com peixes dourados dentro. Peixe dourado é uma coisa misteriosa. Os mistérios luminosos no santo rosário representam o tempo que vai do Batismo de Jesus até a Instituição da Eucaristia. Batismo é um ritual que marca a iniciação de um mergulhador em alto-mar. Alto mar é onde não há sacos plásticos mas sim tubarões e peixes dourados.
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Jonathan Doll
(fotografia patrícia araújo)
apresentação eletrizante de jonathan doll, ladeado por fernando catatau. registro na ocasião de abertura da exposição a 4º graus do equador, em são paulo. no entanto, fazia muito, muito, calor.
Dourado é a cor dos meus tamancos. Meus tamancos são monumentais. Monumento é uma estrutura construída que agrega memória. Memória e matéria é o tema desta peça. Peça é um evento. Um evento escapa ao conhecimento que procura fixar. Fixo é o oposto de movimento. Movimento rima com monumento. O mosaico de Nossa Senhora da Assunção, na parede do forte de mesmo nome, é um monumento colorido e movente. Colorido é o oposto de preto e branco. Esta página que se lê é preta e branca. As cores não são objetos. Objetos podem ser sujeitos. Sujeito é uma coisa misteriosa. A varanda de um apartamento na avenida Aguanambi é o lugar onde minha avó Julieta confessou que não tinha certeza plena da vida após a morte. Minha avó Julieta é uma memória monumental. Memória é a risca traçada numa folha de papel quando a dobramos. Dobra é uma coisa erótica. Eros é um filho da puta. Puta é uma pessoa de profissão digna. Dignidade é um atributo da senhora que fez sinal da cruz com a moeda que lhe dei. Moeda é dinheiro redondo. Dinheiro é um fetiche. Fetiche é uma coisa erótica. Erotismo é uma força que atrai os corpos. O corpo de Fortaleza é o afeto que ela solicita. Fortaleza é uma cidade grande, insalubre e afetiva. Grande é o órgão sexual de Alexandre. Alexandre é um morador do bairro da Maraponga e tem 21 anos. O órgão sexual de Alexandre é um monumento. Monumento é uma nuvem que passa. Nuvem é um discurso vaporoso. Vapor é um tipo de sauna. Sauna é um lugar onde os rapazes tiram a roupa. Roupa é uma coisa que retém o cheiro de quem a usa. Roupa é uma coisa erótica. Erotismo é uma partilha sensorial. Uma coletividade de sujeitos sem roupa partilhando sensorialidades configura uma orgia. Uma orgia é um tipo de intoxicação. Intoxicação é uma loucura fisiológica. Loucura é um suspiro da natureza. Natureza é o Parque do Cocó. Cocó é o bairro onde eu fui preso e chantageado pela polícia por conta de um baseado. Cento e cinquenta reais foi a quantia do suborno. Suborno é um crime de corrupção, aonde uma autoridade recebe um favor ou dinheiro em troca de sua integridade ética. Ética é a investigação dos meios de se alcançar a felicidade e o bem-estar. A felicidade é uma função da alegria ativa e do amor. Amor é uma alegria que associamos a uma causa exterior a nós. Exterior é um lugar fora de Fortaleza. Fortaleza é um lugar interior. Interior é o Iguatu. Iguatu é uma Fortaleza. Fortaleza é um estado de espírito.
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Espírito é uma coisa da matéria. Matéria é algo que pode ser observado. Observar é uma atividade querida aos moradores da praça do conjunto Beira Rio, na Barra do Ceará. Barra do Ceará é o nome do bairro mais populoso da cidade de Fortaleza. Henrique é o nome de uma senhora que vive na Barra do Ceará. A Henrique é um senhor monumento. Senhor é o masculino de senhora. Senhora é o nome de um romance de José de Alencar. Romance é um gênero literário. Gênero é algo que se usa, e do qual se tira poder. Poder é o fundamento místico da autoridade. Autoridade é algo suscetível à corrupção. Corrupção não é uma alegria ativa. Ativa é o oposto de passiva. Passiva é uma palavra que escutei na Toca do Javali, na avenida da Universidade. Universidade é um lugar de esperança. Esperança é algo que move e que faz mover. Movimento é o estado do corpo vivo. Corpo vivo é um corpo afetado pelo mundo. Mundo não é o planeta Terra. Terra é algo presente em jardins. O jardim de minha casa é onde, em 1982, um rapaz me revelou que todas as criaturas morrem. Morrer é um negócio que dá medo. Medo é algo que se sente sem prazer. Prazer é essencial. Essência é superficial. Superfície é uma interioridade. Interior é onde falta chuva. Falta pode ser um alimento. Alimento não é a cesta básica. Carne de sol e baião de dois é um alimento que dá sono, especialmente à tarde. Tarde, em Fortaleza, é algo que arde e arqueja. Arquejo é uma falta de fôlego. Fôlego se recupera no descanso. Dona Jacinta, do Vila Velha, prefere descansar no peitoril da janela. Janela é onde cabe um mundo inteiro. O mundo inteiro é a Praia do Futuro. A Praia do Futuro é onde vejo a lua nascer. Hoje, 26 de julho de 2010, é noite de lua cheia. A lua em Fortaleza é um monumento. [Vídeo. Sai o artista.]
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O Ceará em primeira pessoa
Bitu C as s u ndé
“O critério do cartógrafo é, fundamentalmente, o grau de abertura para a vida que cada um se permite a cada momento.” Suely Rolnik em Cartografia Sentimental: transformações contemporâneas do desejo (São Paulo: Sulinas, 2006).
A infância é regida por um tempo peculiar. Nela a memória revela uma velocidade singular, potencializada, fragmentada por trilhas que se cruzam formando núcleos, alguns relacionados ao afeto, outros conjugados pelo desejo e sedimentados por cores, odores, risos, lágrimas etc. Nessa temporalidade caleidoscópica, a vida tece teias, tramas; alguns fatos são esquecidos, outros legitimados à condição de verdade e carregados para sempre. Como numa dramaturgia, as camadas de tempo revelam roteiros, que se guiam pelas memórias para edificar suas narrativas, elegem fatos para evidenciar questões e com isso vão construindo a história de cada indivíduo. Nessa produção biográfica, alguns elementos se tornam protagonistas e assumem um papel guia, com eixos balizadores que estão acondicionados no lugar, entorno, cotidiano e espaço. Várzea Alegre está a 470 km de Fortaleza. Numa faixa urbana extremada por duas importantes vias, ce-260 e br-230, se localiza na região centro sul do estado do Ceará, e foi lá que nasci e passei toda a infância. É em meados dos anos de 1980 que minhas lembranças mais tardias habitam, com suas riquezas de detalhes e um refinado olhar que desde cedo capturou aspectos que somente na madureza pude entender, questionar e até mesmo me assustar. Naquele período de abertura militar o país claudicante tentava se posicionar e transpirar um pouco de liberdade havia, mesmo que timidamente, a ousadia de pensar além e tentar instaurar uma nova condição. Porém, em Várzea Alegre um anacronismo conduzia a temporalidade, e a sensação que tenho é a de que vivi a década de 1970 e não a de 1980. Naquela cidade vivia-se um tempo diferente, que regia um lugar sem rumo, num cotidiano aflito pelo outro lugar, apesar da televisão em preto e branco anunciar de longe que o mundo estava mudando. Desculpe eu pedir a toda hora pra chegar o inverno Desculpe eu pedir para acabar com o inferno Que sempre queimou o meu Ceará Súplica Cearense (Luiz Gonzaga / Gordurinha) Dentro dessa realidade, havia uma questão sempre presente: a certeza de que era necessário sair, a verdade de que a sobrevivência, a dignidade e o futuro se localizavam em um porto chamado São Paulo. As narrativas que me chegavam, mesmo que fragmentadas por diversos discursos, alimentavam essa ideia do paraíso prometido, da terra onde não havia seca, nem fome, de povo bonito e de trabalho farto. Naquele período, na cidade de Várzea Alegre não havia rodoviária e era de frente à pequena agência da Viação Itapemirim que muitos seguiam o seu futuro, numa viagem lenta e cansativa com inúmeras paradas, três dias Brasil a dentro a desbravar um sonho e o desejo de uma terra mais generosa.
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O a e p m p s
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Foto
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Na verdade, o grande abc paulista era o porto, o desaguar do desejo. A maior comunidade de Varzealegrenses fora de Várzea Alegre na década de 1980 se localizava em São Bernardo do Campo. Um grande fluxo migratório — gerado por um circunstâncias ambientais, econômicas e sociais — desconfigura a paisagem da região centro-sul do Ceará e elabora uma nova condição na qual o desejo é o protagonista e a realidade é a vilã. No Sul maravilha muitos conseguiram colocação nas metalúrgicas, outros no mercado informal, em serviços domésticos, alguns descobriram que na verdade o sonho era um pesadelo e o desejo agora se localizava no regresso. Quando criança, em Várzea Alegre, imaginava que a palavra “Ceará” fosse um verbo, e que esse verbo se conjugava num tempo chamado futuro. Carneiro Amanhã se der o carneiro O carneiro Vou m’imbora daqui pro Rio de Janeiro Amanhã se der o carneiro O carneiro Vou m’imbora daqui pro Rio de Janeiro As coisas vêm de lá Eu mesmo vou buscar E vou voltar em vídeo tapes E revistas supercoloridas Pra menina meio distraída Repetir a minha voz Que Deus salve todos nós E Deus guarde todos vós (Ednardo e Augusto Pontes) Atualmente desenvolvo uma pesquisa para um projeto curatorial que tem como título “Carneiro”. O eixo principal da investigação é observar questões como fluxo, trânsito, deslocamento, territorialização, desterritorialização, apego, desapego, afeto e cartografia, que compõem ferramentas protagonistas para entender ou problematizar a condição de ser “cearense’’. A partir desse rizoma de questões, pontuar como alguns artistas transpõem para suas poéticas elementos que evidenciam esses aspectos, sejam eles transcritos para o cinema, música, literatura, fotografia e artes visuais. Carneiro é símbolo da força, do fogo, representa, na sua mitologia a dualidade entre o positivo e o negativo. Na ritualidade cristã, é uma manifestação do Cordeiro de Deus. Na astrologia é designado por Áries, primeiro signo astrológico do zodíaco e compõe um cenário de natureza intempestiva por instintos e por fortes emoções. Na emblemática música de Ednardo e Augusto Pontes, “Carneiro”, é a projeção do sonho em ser conduzido pela sorte e ganhar no jogo, e assim, catapultado para o outro lugar, Rio de Janeiro, e voltar através de registros, revistas e vídeos. O sonho do outro lugar é dinâmica recorrente na construção poética do cearense, muitas vezes o Ceará é visto como “um rito de passagem”, um lugar que ficou no passado, pois no presente está o desejo do outro horizonte e no futuro o horizonte em si, o Ceará habita o campo do desapego e nele se constrói a sua mitologia, carregada principalmente pela fuga a memória, e por um apego sistemático ao novo, à novidade. Dentro de um pensamento acerca do “Ceará” é impossível não se deter no entorno da movimentação ocorrida no Theatro José de Alencar em 1979, que culminou com o registro do emblemático e histórico disco “Massafeira”. O cearense José Leonilson cedo saiu da sua terra natal, porém o Ceará foi vivenciado com intensidade e sempre esteve presente em suas questões seja na vida ou na arte. Em entrevista a Frederico Morais revela o seguinte dado acerca da condição do cearense: “Por ser cearense, eu sou meio cigano, nômade, andarilho. Me desloco geograficamente com muita facilidade, no Brasil ou
em qualquer outro lugar”. Um dos signos mais utilizados pelo artista em sua poética é a metáfora do mundo representado pelo globo, por uma geografia que se fundia a uma organicidade, por trajetos, vias, rios, deslocamentos. Alguns títulos de obras evidenciam esses índices: Longo caminho de um rapaz apaixonado (1989), Léo não consegue mudar o mundo (1989), Os rios por meu fluido entrego meu coração (1991), O matemático e o andarilho(s.d), A distância entre as cidades (s.d), Como escolher um atalho (1988), Todos os rios levam a sua boca (1988). Outro artista cearense que transcreve em sua poética dados que discutem o seu “lugar” é Efrain Almeida. Sua poética destaca, dentre outras questões, as particularidades da casa dos seus pais em Boa Viagem (ce), no Sítio Olho d’Água. Diversas séries de esculturas e aquarelas relatam aquela paisagem, a fauna e flora, os bichos ali criados, em confronto com posicionamentos sobre o corpo, a religião, o sujeito amoroso e o homoerotismo, pontuando uma subjetividade que aponta um Ceará particular. “Carneiro” é um projeto que condensa diversas questões e linguagens para tratar de um território chamado Ceará, que vai das cidades de Bandeira aos sertanejos de Raimundo Cela, desaguando no “Céu de Suely”. Reverencia a literatura de Alencar e de Queiroz e reflete acerca de Patativa do Assaré e da Massafeira. Pontua com vigor um Ceará contemporâneo que se reinventa no posicionamento político e crítico de Yuri Firmeza e na elaboração do geometrismo poético de Waléria Américo. É nessa ambiência de diversos “Cearás” que se constrói uma verdade pouco questionada, o amor do cearense por sua terra e o desejo de um possível e feliz retorno.
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Clarice Lima e Patrícia Araujo. saia, 2009 fotografia/performance
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Frame de Céu de Suely de Karin Aïnouz congela a exata passagem onde começa a saudade
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Arte em trânsito
Jacqu eline Medeiros Coordenadora de Artes Visuais do Centro Cultural Banco do Nordeste e mestranda do Instituto de Artes da uerj
A cultura brasileira dos últimos vinte anos tem sido feita pelo marketing cultural incentivado pelas leis de renúncia fiscal. Mas como lembra Ricardo Basbaum, às empresas só interessam os aspectos imateriais da relação com a obra — palestras, exposições, debates — pois é aí que percebem a possibilidade de agregar valor às próprias marcas. O grande desafio é o artista instalar nas relações institucionais suas demandas “imateriais” e fazer funcionar a seu favor. Assim, o desafio do Centro Cultural Banco do Nordeste é reinventar e expandir o circuito institucional, fazendo com que seja permeado e modificado pelas poéticas das obras de arte. Tornar-se próximo do artista e juntos “desenhar com cuidado o trânsito e traçado das conexões e redes para que certos efeitos possam tomar corpo e ser deflagrados junto às regiões de funcionamento da obra”, como defende Ricardo Basbaumi em relação ao posicionamento do artista diante do sistema de arte No formato atual de descentralização das políticas culturais brasileiras, cada instituição de arte tem o poder de definir suas políticas de atuação. Mas o que se configura poder? Deleuze definiu uma vez que o poder opera separando o homem de sua potência — que é a força ativa que pode tornar possíveis ou impossíveis as suas ações. Para o professor de filosofia Giorgio Agambenii também existe outra operação dissimulada no poder — é a que torna os homens impotentes — e esta força age sobre os que não podem fazer ou podem não fazer. Trazendo para o campo das políticas culturais, uma instituição de arte também tem o poder de se posicionar em relação à sua possibilidade de não fazer ou de poder não fazer. Mas, sobretudo, o que dá consistência às suas ações é não estar cega às suas incapacidades, mas dar atenção ao que não pode ou pode não fazer. Em Fortaleza o sistema de arte não é pleno em todos os seus segmentos, não confere solidez e continuidade nem para o artista, tampouco para os demais integrantes do universo da arte contemporânea. Este cenário não é de hoje, movimentos de artistas na rota dos maiores centro de arte sempre existiram — a partir de Fortaleza, de Antônio Bandeira na década de 1950 em direção a Paris, passando por José Tarcísio, Eduardo Eloy e Eduardo Frota nas décadas de 1960 a 1980, rumo ao Rio de Janeiro. Contudo, após o grande impulso nas artes visuais em Fortaleza ocorrido nos primeiros oito anos do século xxi, promovido pelo surgimento de cursos de graduação, novos espaços difusores para a produção local e complementados em seguida pelas políticas públicas de editais, esperava-se que fossem suficientes para estabelecer o artista na “Terra da Luz”, mesmo considerando as demandas de deslocamentos do novo século. No entanto ocorreu, após esses primeiros anos, a descontinuidade da maioria das políticas culturais públicas e um movimento Nordeste-Sudeste se estabelece mais uma vez com muita intensidade. Nota-se uma política pública para as artes visuais marcada pelos movimentos de avanços e retrocessos de compromissos dos agentes de fomento, com rara exceção. Ainda que alguns
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artistas buscassem ir além da institucionalização da arte, este ainda é um ponto antagonista, pois ainda é essencial a dependência das artes visuais cearenses ao aparato governamental. Constata-se ainda hoje a inexistência de um mercado e crítica local para esse universo artístico. Diante das dificuldades locais, para esses artistas do novo século, viajar parece ser um projeto existencial e artístico, necessário e arriscado, pois pode revelar o que está apenas latente no cotidiano da produção das artes visuais de Fortaleza. Assim, sonhada ou real, interior ou geográfica, realizadas por necessidade em fuga e exílios, planejada e decidida ou um impulso repentino, a viagem pode ser entendida como uma metáfora da vida e das artes visuais cearenses. Faz parte das viagens o esforço empreendido pelo corpo, o gasto de energia, o consumo do invólucro material da alma. Possuem também um caráter sagrado, pois os seus encontros com o novo lugar adquirem sempre uma dimensão transcendente. Ou ainda o desejo de pisar o centro das artes, o solo do sistema de mercado onde também estão os curadores e críticos. Viajar sem a busca da “terra prometida”, assim os artistas cearenses se tornam flutuantes e dão à cidade o movimento de maré. Coincidem com esse movimento o crescimento gradual da visibilidade de artistas cearenses no cenário artístico nacional. Surge uma arte urbana por excelência que assim como seus autores, se conecta com o ambiente — o jogo de contatos e relações em uma rede, os aspectos sociais, políticos, culturais da obra — das cidades construídas, falsas ou imaginárias. Para além das convenções da arte, os artistas fazem da cidade mais que um pano de fundo, mas a base sobre a qual constroem seu universo imaginário. Afinal, nos lembra o filósofo Giorgio Agamben, o tempo se refere à vida de cada um e ao histórico coletivo. Haveria ação que voltaria a enraizar depois desse fluxo iniciado? Esse movimento “nietzschiano” de “eterno retorno” é que reconduz a vida ao estado originário onde outra ordem e outra maneira de viver podem vir a surgir. Um retorno à casa, à cidade-sonho? A cidade é uma estratégia que se transforma provisoriamente em mundo e quando nos deslocamos entre elas o sentimento de estrangeiro ou de exilado cada vez é mais improvável. O que sobrevive não são os cacos da casa — as lembranças das origens —, mas a construção de outra “familiaridade” aliada com a contemporânea existência. Cada tijolo, cada troço do destroço fará parte do novo retorno, o início de uma outra obra, uma outra cidade, tão difícil de materializar que talvez só possa ser vista representada nas obras desses artistas flutuantes. Assim, a transitoriedade dos artistas é um fenômeno instigante — quanto mais conseguimos virtualmente estar em vários lugares, mais queremos experimentá-lo concretamente —, assume uma condição de preexistência da arte, propaga-se em residências artísticas mundo a fora, torna-se institucionalizada por editais e instituições de arte. Parece uma necessidade contemporânea tornar o mundo menor.
Milena Travassos minutos antes/ ilusão, 2008
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Breves (in) confidências ou as tarefa s do encontro
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O relato sobre o próprio trabalho não foge aos códigos que o modelam, muito embora apresente um olhar outro, um quase sair-se dele e reencontra-lo, uma revisita. Assim, a conversa1*, que efetivamos via nossos pactos afetivos, resgata tempos indissociáveis: de construção e de seus prolongamentos. Mais que compreender uma linha de sutura que poderia dissertar sobre o convívio de linguagens entre os artistas Enrico Rocha, Simone Barreto, Vitor Cesar e Waléria Américo. Mais que reduzir a um número calculável as forças entre os seus campos de atuação. Pretende-se aqui a fruição dos pensamentos moventes desses artistas. Neste lugar compartilhado, quando a constituição de linguagem de um coincide e se alterna com o de entendimento do outro, propõe-se algo que se estica pelos fragmentos de suas falas, que as palavras a seguir tentam abrigar. com waléria américo. O seu trabalho circula por ressonâncias entre projetos, ações e registros que negociam os limites do corpo. Você atua numa constante desconfiança da “ideia primordial”, que guia sua poética, e a partir de julgamento crítico sobre a própria desenvoltura e dinâmica do projeto. Nesse sentido, você consegue observar mudanças de critérios criativos no seu percurso artístico, principalmente no que se refere às questões de materialização do objeto e dos registros das ações? Meu modo de operacionalizar um trabalho é construído, mesmo, em torno dessa “desconfiança da ideia primordial”. Tenho uma ideia, ou melhor, me sinto convocada por uma primeira imagem. Esta imagem ao mesmo tempo já é e ainda não é o projeto. Ela vira projeto conforme eu a injeto de ação, e isso já é um modo de dizer que essas três dimensões que você menciona — projeto, ação e registro —, não conformam etapas separadas no meu trabalho; é como se cada uma delas ficasse sendo o que é conforme se misturasse com as outras. Como eu disse: o projeto vai se desenhando como projeto quando o coloco em ação — e a ação, desse modo, começa muito antes da ação performática propriamente dita, do “executar” do projeto. E também se prolonga para muito depois, no “registro” que funciona para mim apenas quando foge de ser registro, mas também foge de ser uma transformação da ação em ficção. Ele é o que fica daquilo que emergiu, sim, mas é prolongamento também. O trabalho é feito de ação e de projeto, e só se materializa na condição de escapar e propagar. Ou seja, para mim faz mais sentido explicitar meu Os diálogos aqui reproduzidos com quatro dos artistas, que integram a exposição “A 4° do Equador”, aconteceram durante o mês de março de 2011 e estão na ordem em que se deram. Entre pousos e partidas, entre os intervalos de tempo que nos são tão raros. A entrevista foi a metodologia escolhida para construção desse texto por trazer à tona um componente temporal, que permite o acesso à memória dos processos de criação dos artistas escolhidos. São formas de registros que proporcionam uma contemplação do provisório, dinâmico e transitório de suas construções.
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funcionamento como experiência processual, não como etapas sucessivas. Processo que vai crescendo em espiral em torno da imagem, vai se desenhando como experiência. Essa ação é feita de a partir de recursos que desconfiam da imagem para fazer emergir a imagem, submetê-la a muitos redesenhos, interrogá-la por muitas vias, e ir vendo se avultar, assim, o acontecimento do trabalho. Ir gerando uma precisão e uma simplicidade que só terminam de ser construídos nisso que já não é mais “registro”, mas, de novo, imagem que segue atuando. Desconfiar dela e questioná-la é o modo pelo qual vou agindo, mesmo antes de executá-la como ação, e mesmo depois. É o modo pelo qual primeiro encho para depois esvaziar, simplificar, ficar com o mínimo, limpar todo o “Eu”, singularizar para “impessoalizar”. São espirais, porque numa primeira “volta” a imagem me retorna com a indicação de como me encaixo para “fazê-la” em ação, e em outra “volta” é a mesma coisa, só que mais densa: continuar “fazendo” a imagem é agora isso que se chama de “registro”, mas que é tudo menos registro, é encontrar um meio da ação continuar escapando e acontecendo naquele mínimo que fica. Preciso então viver essa imagem, para desentranhá-la e reencontrá-la no que fica, numa compactação simples, suficiente, em que a experiência continue ativa de alguma forma. O trabalho tem sempre a vontade de ser ação e de conservar o ato. Acho, então, que para ser bem precisa com como funciona meu processo, não daria para recorrer a essa linearidade entre as etapas de projeto, ação e registro — seria mais claro se dissesse que é a dimensão da ação, com modulações variadas, que está presente em todos os momentos. É importante dizer que os trabalhos acontecem mesmo, não são ficcionalizados: eu me coloco nas situações e executo as ações “de verdade”, subo, desço, caio, me equilibro ou me penduro, pelo número de vezes que consigo ou acho necessário, e são essas as repetições que ficarão depois no “registro”, mas também não é simplesmente um arquivamento integral do que aconteceu. Há todo um trabalho que continua na edição, que é ao mesmo tempo de sublinhar e de “camuflar”, ou melhor, de reter a vivacidade da experiência. Outra coisa que, para mim, é importante pontuar é a recorrência do corpo, já que o que faço é criar uma situação e me implicar corporalmente nela. O corpo é o lugar desse embate e dessa descoberta, dessa experiência que vai fazer emergir a imagem. Mas não tenho a ingenuidade de ignorar que essa imagem está sendo deslocada para o campo da arte e todas as implicações que decorrem disso. Como você mesma pontuou, o seu trabalho é um desejo materializado ao outro. Quais estratégias você citaria, como as que estão presentes no trabalho “Plano de fuga”, que viabilizam um provável encontro com um segundo olhar? As estratégias que desenvolvo sempre estão ligadas ao trabalho que estou executando no momento, às exigências diferentes que cada imagem ou cada desejo de experiência me colocam. Desde o desenho da ação até o desenho da imagem que vai ficar, o que me preocupa é que as estratégias estejam a serviço de fazer a experiência se propagar e continuar. E isso se materializa numa série de escolhas. Mas o que eu acho importante sublinhar é como essas escolhas vão sendo feitas ao longo do processo. Eu anoto com o corpo, e são essas anotações que vão ser decisivas na materialização do trabalho. Cada trabalho é o que se constrói no gastar tempo em olhar, é o que fica dos lugares em que resolvo morar. Por isso, contém muitas histórias, mas tento sublinhar o que é necessário delas. Vou diluindo no meu corpo, crio uma cena, mas ela não é necessariamente a questão: a questão é muito mais como vou negociando a cada minuto para que isso se realize. Para que isso que era afetação vire sensação, vire experiência, vire diálogo. Prefiro pensar que essas estratégias são o esforço para concretizar a experiência e a imagem, para tornar possível o encontro e o sugestionamento. O trabalho é para ser um convite ao outro. Mas para que ele possa ser um diálogo no final, ele precisa ser um diálogo ao longo de todo o processo. É como se eu cuidadosamente fosse administrando encaixes: desde o momento
Valéria Américo colocar o nome da obra aqui
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de pensar como um desenho pode virar uma ação, até que pessoas precisam estar envolvidas, que materiais vou precisar usar para construir a situação, depois que mídia vai permitir conservar essa experiência. Em todos esses momentos, no sentido de seguir o desejo, é preciso estar muito permeável, me dispor a dialogar com um entorno que é feito de muitos outros: materiais, lugares, pessoas, suportes; mas também sensações, esforço físico, limites do meu corpo, tempos. O tempo nos trabalhos significa um pouco a energia que é gasta para ganhar novas habilidades, descobrir caminhos, ir tornando esse acontecimento possível. Modos de ir construindo o desejo do pontual, do enxugamento da imagem, de converter a imagem em convite. É uma aventura que se torna posição, através de um esforço repetido por ir simplificando o cheio. E se o trabalho no fim é simples, pueril, é porque ele já se despojou o suficiente para ser pura sugestão — uma imagem que pode gerar uma imaginação. Mas esse fim nunca é um término. Porque cada trabalho gera outro e, nesse sentido, fosse sempre inacabado. Há diálogo entre os trabalhos. Eu não quero nunca que seja algo que se encerre. E é nessa teimosia por ao mesmo tempo permanecer e mudar que cada trabalho se torna só uma passagem. Por isso, ao mesmo tempo em que percebo recorrências nas estratégias que aciono, que atravessam vários dos meus trabalhos, também percebo que minhas estratégias estão sempre mudando. Você disse sentir necessidade de decantar suas ideias nos projetos que constrói. Esta afirmação pode ser compreendida como um deslocamento do campo de experimentação/execução artística para a observação e reflexão do seu modus operandi, mesmo entendendo essas esferas como indissociáveis nos seus projetos? A reflexão sobre meus modos de operação tem se convertido cada vez mais no meu modo de fazer, não numa etapa prévia à ação. Refletir já é experimentar e executar. Percebo que isso tem levado a um entendimento de que as coisas não sejam mais feitas por impulso, mas por maturação. Observo que eu preciso de um tempo de habitação: não me deixar seduzir pela primeira imagem como se tudo já estivesse pronto. Então coleciono micro-acontecimentos; o trabalho é um caminho que sempre está em construção conforme vai sendo percorrido. Percebo que preciso gastar tempo no processo e entre os processos, até para permitir que eles venham emergindo. Dilatar. Talvez seja também uma estratégia: quando mais tempo eu passo no enfrentamento das questões, mais vou me enchendo de “outro” e, assim, por mais que eu esteja sozinha na imagem, estou carregada desses atravessamentos. Se obedeço só ao impulso, obedeço mais ao estar sozinha: para me livrar de mim preciso desdobrar a precipitação da intuição, ficar mais tempo para permitir que os outros se misturem ao processo. Esse não ter pressa tem a ver também com equalizar a simplicidade do trabalho, numa negociação que envolve aceitação e surpresa, entender o que é preciso abandonar e o que é possível adquirir no percurso de cada construção. Os encontros durante o percurso me contaminam e é com essa contaminação que coloco meu corpo em experiência. Mesmo que na imagem eu apareça sozinha, estou cheia de outros; do mesmo jeito que a cidade se camufla, mas é nela e com ela que as ações acontecem. Acho que observar como funciono é a própria forma que encontro para colocar o trabalho em movimento. E meu modo de operar vem muito de ficar me interrogando e me revisitando — os outros que vão sendo acionados são pessoas, o entorno, mas também minhas vivências. Tem um componente que é o de deslocar para a arte a brincadeira séria da infância, as memórias do meu corpo, das minhas habitações e das minhas paisagens. E dilatar o tempo é então a maneira de tornar isso tudo matéria de trabalho, não discurso sobre o Eu.
com vitor cesar Movimentos de imersão, integração, apropriação e mesmo de alteração fazem parte do jogo de intimidade que você estabelece com o espaço urbano, como pode ser visto nos vídeos de “Medidas urbanísticas” (2005). Como se dão as negociações e trocas dialógicas que você propõe na construção desses espaços de visibilidade, de possibilidades de respostas e de atuação do seu trabalho? Entendo que meu trabalho faz parte de uma tentativa de descobrir e investigar questões como essas. Esses movimentos — imersão, integração, apropriação e alteração — na verdade, acontecem o tempo inteiro com todos nós. Tento dar visibilidade a esses momentos, dependendo do lugar e das questões que me afetam. No caso de “Medidas urbanísticas”, havia a ideia de tratar questões do espaço urbano, que nos projetos urbanísticos normalmente se lida com escala maior. Eu pretendia me envolver com outra escala, de 1:1. Trabalhar com o vídeo me permitia lidar com essas escala menor. O que permeia tudo isso é a importância dos movimentos do dia-a-dia, na construção de algo coletivo, de um espaço público. A dimensão do cotidiano também é um lugar importante, onde o espaço público se constitui. Minha atuação inicialmente não se relacionava imediatamente com o mundo da arte, portanto não trazia uma formalização pelo viés da arte. Não existia uma clareza que me orientasse a mostrar o que vinha pensando como arte, tinha um maior envolvimento com a arquitetura e o urbanismo. Uma possível consciência artística ainda não era clara. A cidade, Fortaleza, me moveu a pensar algumas proposições. Ao invés de apenas passar pela cidade, eu tentava usá-la de outro modo, e que isso produzisse efeitos que se ampliassem para outros. Depois eu entendi que o que me interessava na cidade tinha mais relação com o que entendemos como espaço público e que meu trabalho é pensado como algo que está no cotidiano. Sempre na tentativa de uma construção aberta para a possibilidade de respostas, mesmo que a resposta seja a indiferença. Costumo propor algumas experiências em que o público pode elaborar um pensamento só depois, não tenho preocupação em saber como serão as reações imediatas. Claro que existe uma vontade de captura. No cotidiano lido com as coisas que me atingem e eu as reelaboro. E isso vai desde algo que surja numa caminhada, vendo alguma situação do dia a dia, ou na leitura de um texto. Essa reelaboração tem a ver com experiências que acumulamos. São situações que muitas vezes posso não enxergar com clareza, mas que me tiram de lugar. Pode ser uma experiência estética ou indignação. São como anotações. Com o tempo, a coisa vai se espacializando. E eu penso em como compartilhar com outros, numa resposta a essas experiências. Sozinho não faz sentido. Se o que acontece já é produzido pelo outro, sem um outro, ela se perde. Temos que pensar junto. É impossível pensar o seu trabalho sem abordar a escala quase individual em que você o organiza. De fato, quando você fala dessa escala, entendo que existe uma imagem de público. Hoje eu tenho consciência que é importante construir diferentes noções de público, em um debate, mesmo que envolva poucas pessoas. Acredito que é importante lidar com escalas menores. O monumento, por exemplo, pressupõe uma grande narrativa oficial e coletiva. A escultura pública vem dessa tradição e trata de temas da nação, da maioria, de um discurso oficial dirigido à coletividade. Mas quando se fala nesta noção de público, parece que a gente imagina uma massa de pessoas, sem rosto. É possível saber com quem estamos falando, e o “Destinatário” trata disso. Um cartaz sem tiragem, o “Destinatário” (cartazes feitos em papel superbond no tamanho 70cm x 50cm, onde se encontra impresso “de____ para ____” — como em pequenos cartões de presente. 2009) indica uma pessoa, quando alguém escreve no cartaz e dá a alguém. Para mim, o trabalho de arte é um compartilhamento de experiência de um para um outro, não se dá sozinho. Não dá pra acontecer de mim para mim mesmo.
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vitor cesar permitido, desde 2002 Cartazes, adesivos, vinil e impressos
Me constituo na coletividade. É muito simples, o outro é alguém que eu reconheço em mim, mesmo de outra cultura, de outro contexto. Tenho consciência de que não apreendemos as coisas sozinhos e que produzimos efeitos na experiência de outras pessoas. Neste mais recente trabalho, apresentado na exposição “A 4 ° graus do Equador”, que questões são propostas ao seu observador? Esse trabalho tem códigos mais relacionados às condições de exibição de arte. Um desafio que me coloco é descobrir meios para, no próprio espaço expositivo, tirar as pessoas da condição de um contexto artístico — mesmo que apenas por alguns instantes. O espaço expositivo deve ser um “meio” para o trabalho de arte. Porque, este espaço já funciona como uma moldura, no meu entendimento. Se um espaço de exposição inevitavelmente coloca essa moldura nos trabalhos, tudo que vai ser visto ali ganha um certo estatuto. Esse estatuto pode orientar para outras percepções do observador. Numa exposição, muitas pessoas parecem não se sentir tão autorizadas a dialogar, diferente se algo acontece na rua. Como diz o Muntadas, o museu é o espaço protegido. O meu desafio é tentar lidar com o trabalho sem esse olhar institucional, sem essa moldura. Tenho interesse em trabalhar com este espaço. Quando algo do cotidiano, para construção de um espaço público, me interessa, penso em como trazê-lo para o espaço institucional, em como trazer essa autorização que se dá fora. Nesse sentido, uma referência é o trabalho do Felix Gonzalez-Torres. Os cartazes que fazia e exibia no espaço expositivo eram entendidos pelo artista como “mais públicos” que os outdoors nas ruas. O espaço público não se estabelece na diferença do aberto e fechado, mas na relação que se estabelece entre diferentes indivíduos. Então, esse trabalho — Sem titulo (Modern Architecture) — é pensado para um contexto de exposição, mas minha proposta é que de algum modo, ele traga outras autorizações. A exposição é um meio de viabilizar, como ideia a ser discutida com o outro. Poderia ser uma publicação, uma conversa, mas nesse caso, é uma exposição. com enrico rocha. Experimentações e procedimentos artísticos são para você estratégias de investigar a vida, as condições de sociabilidade e as experiências do corpo/indivíduo em percepções mais coletivas, em relação com o outro, ou particularizantes. Seu trabalho pode ser pensado como uma proposta para o desdobramento no outro? Acredito que eu, um sujeito que se expressa como primeira pessoa, só é possível em relação com o mundo, no mundo. No mesmo sentido, creio no mundo habitado por outros. Em primeira e última instância, interessa-me a vida e a considero uma experiência estética, pois é somente por meio de um corpo sensível que sou capaz de compreendê-la e me relacionar com o mundo. Como artista, investigo essa experiência constituída como linguagem, afinal, consideramos que os sentidos não são dados, mas produzidos. Nossas ações cotidianas, nossas escolhas mais ordinárias, são tramadas em uma rede complexa de sentidos que ultrapassam a dimensão sensível individual e apresentam-se em necessária negociação com os outros e em constante transformação. Faço a aposta de que o campo da arte é o lugar apropriado para investigarmos as experiências estéticas e, como tento dizer, não há experiência estética isolada do mundo, assim como não há mundo sem a presença do outro. O desdobramento do trabalho no outro, portanto, não me parece condição exclusiva do meu trabalho. Possivelmente, esforço-me para tornar essa questão evidente, trazê-la à tona. Creio, de fato, tratar de uma emergência.
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O seu foco não está necessariamente orientado à produção de materialidades visuais, mas não descarta experiências estéticas. Assim, pode-se pensar as suas proposições artísticas como formatações de encontros, ou mesmo, como propostas de formalização de espaços para diálogos? Que questões pontuam estas operações? Difícil, para mim, perceber um projeto coerente que oriente as ações que realizo, mas façamos o exercício. Afinal, em todos os casos, manifesta-se uma posição singular, um lugar próprio que podemos identificar como meu, ou melhor, que me identifica. Vamos à questão. Ao desenvolver proposições artísticas, motiva-me promover experiências que, como qualquer outra, se realizem esteticamente. Estou sempre intrigado com a minha própria experiência, essa que se realiza a partir do meu corpo, este de onde é possível participar e compreender o mundo. Esse estado de intriga, inquieto, vez em quando se depara, ou gera, situações objetivas prenhas de sentidos, que prometem ora instantes de paz, ora de gozo, ora apontam novos movimentos etc. São algumas dessas situações que tento formalizar e apresentar aos outros, para, quem sabe, deixarem de ser promessas e tornarem-se compromissos, vida partilhada. Penso, então, em situações objetivas, pois considero que não estão circunscritas em dimensões subjetivas, sendo assim possíveis de serem partilhadas. Formalizar essas situações, de modo que outros possam delas participar, é provavelmente o objeto do meu trabalho. Penso em situações, como ações localizadas ou lugares acionados. Há mesmo um interesse evidente em espacializar a experiência. E nessas situações, interessa-me mais promover diálogos que discursar. De todo modo, os discursos são fundamentais aos diálogos. Em “Travessias, derivas e naufrágios”, você estabelece um contrato com o comprador. No que consiste essa negociação? O que está em jogo nessa proposta? Trata-se de um acordo explícito com o público. É necessário alguém comprar a ideia que propomos e reconhecê-la como arte. Retomei esse projeto que há tempos planejei depois que vi a exposição do Eduardo Frota no Alpendre. Ele vendia esculturas a quilo e todos compramos! Estabeleço, então, um acordo com o comprador, que é também interlocutor e parceiro do projeto: se o bilhete for premiado, um percentual do prêmio deve ser meu. Não é assim no mercado? Se a obra valoriza, valoriza o artista e vice-versa. Além disso, ele não está comprando um bilhete, mas um objeto de arte, isso também é assegurado no contrato que estabeleço com ele. E todo objeto de arte também pode ganhar valor. Tento tornar evidente minha compreensão de que toda proposição artística é uma aposta, uma espécie de jogo especulativo, que concorre a participar da trama cultural como algo significativo, conquistando valor simbólico capaz de ser reconhecido publicamente. Não consigo pensar em outra razão que motive um colecionador que não seja especular, seja materialmente, seja simbolicamente. Obviamente a dinâmica cultural é muito diferente de uma loteria, mesmo que nunca desprezemos a sorte. Mas há também outras questões evidentes no trabalho. Sempre achei um bilhete de loteria — tanto o que ainda não concorreu e guarda a possibilidade de ser premiado como o que já concorreu e não tem mais valor algum — um objeto muito interessante simbolicamente. Meu pai costuma jogar na loteria toda semana e sempre convivi com os bilhetes, ora carregados de desejos ora pura fantasia e ilusão. Também penso nos deslocamentos prometidos nesses bilhetes, ou nas miragens que revelam. Os barquinhos tratam disso, literalmente, assim como o título do projeto “Travessias, derivas e naufrágios”. O título sugere trazer para o centro do projeto essa questão do deslocamento, que considero uma questão cara à vida contemporânea. Cara em todos os sentidos. Aqui me interessa pensar diversos deslocamentos, sejam espirituais, materiais, abstratos, concretos, subjetivos, objetivos. Afinal é um projeto artístico e, no mínimo, deve pensar deslocamentos de percepção. Mas também penso em deslocamentos físicos. O circuito de artes atualmente não valoriza, por exemplo, artistas que não se deslocam. Inclusive, pretendo realizar alguma viagem com o dinheiro que o projeto arrecadar. Aliás, há sempre viagens planejadas com bilhetes premiados.
enrico rocha travessias, derivas e naufrágios
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com simon barreto Sua narrativa visual é existencialista. Você expõe em seus desenhos cenas autobiográficas, que parecem sugerir instantes antes do clímax, como se você não entregasse todas as suas questões e anseios, mas conferisse pistas autoconstitutivas de um diário muito pessoal e particular. Nesse sentido, como você busca parcerias afetivas? No trabalho exposto na exposição “A 4 ° graus o Equador”, especificamente, o outro vai ser espectador-cúmplice. Às vezes, penso que se estou construindo páginas de um diário, tais páginas deveriam ser secretas porque alguns segredos são revelados. Então nesse trabalho, os cúmplices guardam meu segredo porque depois da exposição ele será apagado e o segredo fica guardado comigo e com quem visitou a exposição. É como se eu pudesse apagar ou rasgar o papel depois de dizer, mas preciso conquistar esses cúmplices, preciso envolvê-los para que travemos um acordo, uma parceria. Proponho uma aproximação do meu desenho, da minha narração à narração do outro, que ali se delineia. Tenho uma forte referência nos Fragmentos de um discurso amoroso, do Roland Barthes: “A linguagem é uma pele: fricciono minha linguagem contra o outro. Como se eu tivesse palavras à guisa de dedos, ou dedos na ponta de minhas palavras. Minha linguagem treme de desejo. A comoção vem de um duplo contato: de um lado, toda uma atividade de discurso vem realçar discretamente, indiretamente, um significado único, que é ‘eu te desejo’, e libera-o, alimenta-o, ramifica-o, fá-lo explodir (a linguagem goza ao tocar a si mesma); de outro lado, envolvo o outro em minhas palavras, acaricio-o, roço-o, cultivo este roçar, nada poupo para fazer durar o comentário ao qual submeto a relação”. Seus desenhos parecem apresentar uma narrativa muito compenetrada no próprio enquadramento e instante em que acontecem. Mesmo os seus cenários obedecem a uma economia formal, o que sugere uma certa clausura dos sentimentos que habitam esta cenografia. Como você pensa em operar esta intimidade e simplicidade no espaço fora da página, migrando para a parede? Uso o mesmo tratamento do papel na parede, o mesmo lápis, o mesmo espaço em branco e os mesmos vazios... Mesmo que partindo para outra dimensão. O que me interessa em desenhar direto na parede é o espectador perceber a presença do artista, é um site-specific. O espectador descobre o desenho ao seu tempo e à sua maneira. Alguns detalhes são minúsculos, mas muito importantes, então como a parede é minha folha de papel, ele, espectador, deve dedicar um outro tempo pra percorrer o desenho e descobrir esses detalhes. Me interessa também a ideia de quando acabar a exposição esse trabalho acaba, a parede é pintada de novo e o desenho está lá escondido em camadas de tinta. Incorporo ao desenho elementos da própria parede (pequenas rachaduras, texturas, buracos, infiltração), quase como uma memória da parede e dos seus usos.
simone barreto hóspede secreto/ dimensões variáveis/ desenho s/ parede
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enquanto isso, em 1979, gentil barreira registra a turma boa da massafeira conversandoĂ toa num hotel de santa teresa.
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Quando a gente era verde
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Passado. Praia do Futuro. Mergulho no mar agitado que forma em alguns pontos pequenos redemoinhos. A maré está enchendo e na areia estão me esperando Andre, Fabien, Lilia e Marina. A Lia não pôde vir porque está estudando pro vestibular: quer fazer para arquitetura e o curso é muito concorrido. Talvez ela sonhe em construir prédios mais bonitos que esses espigões estilo banheiro que a gente vê brotando por aí. A água está morna e me sinto um pouco dormente por causa da cerveja. Estamos todos felizes, apesar de amanhã ser segunda-feira. Mais tarde vamos para o bar do Celsinho e não temos na vida muitas preocupações. Eu quero ir para a Europa no semestre que vem, a Marina acabou de voltar de lá, o Andre continua jogando StarCraft, a Lilia ganhou um jipe e o Fabien se prepara para mudar de vez para Paris — ele não está muito contente, mas sabe que lá terá faculdades melhores e de graça. O Andre assovia me chamando. Pediram a conta para o garçom e tenho que dar minha parte. Vamos embora mais cedo porque a Lilia precisa levar o irmão para o Iguatemi. Ela ganha o carro, mas tem que pagar o presente assumindo a função de motorista da família. Lamenta sua condição dando uma baforada no Marlboro vermelho. Dá uma moedinha para o menino que guarda o estacionamento, engata a primeira marcha, a segunda, e segue rumo à Santos Dumont. No cd, enquanto o mar fica para trás, estamos ouvindo Cidadão Instigado. Dentro do jipe da Lilia, o Catatau, aquele magrinho cabeludo que anda por aí, repete com sua toada fanha o verso de Sérgio Ricardo que diz: Sofrimento traz sabedoria, filho que sai da terra volta diferente. Volta trazendo uma vontade dentro. Volta trazendo uma vontade dentro. *** Voltamos. Quer dizer, eu voltei. O Fabien continua na França, a Lilia trocou de carro, a Marina foi morar nos Estados Unidos, a Lia abriu um café e o Andre continua a jogar StarCraft. O café da Lia chama Cafetina e é um sucesso. Fica no térreo do sobrado do Alpendre, na Praia de Iracema. Muita gente legal circula ali, por causa do café, por causa do Alpendre, por causa da cerveja. Bailarinos, universitários, poetas, artistas plásticos, estilistas, cineastas, jornalistas, músicos, turistas. A maioria deles ainda não sabe que enveredará para uma carreira específica. A maioria deles é verde. É uma grande turma de amigos verdes, uma rede de pessoas verdes que buscavam conversar, rir, flertar. No meio disso tudo surgem projetos, e muitos desses projetos jamais serão realizados, mas ebriamente sonhados. (Talvez sonhar seja mesmo o que importe no final das contas.) Acho que o trabalho que o Vitor fez diz algo disso. Ele espalhou vários cartazes
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verdes em Fortaleza cuja inscrição assinalava permitido em gordas letras brancas. Eu vejo como uma espécie de carimbo de um comum acordo: está chancelado que é permitido sonhar. Apesar da preguiça, do torpor do calor de Fortaleza e da vida cultural precária que nos assola, acho que nos permitimos sonhar, rir, flertar. Acho que temos muita sorte. E tempo. Estou de ressaca e ainda guardo no estômago o peso do feijão verde do Esquina, preparado pela mãe do Catatau. Ficamos por lá até seis horas da manhã escutando Secos e Molhados, eu acho, ou era Roberto Carlos ou, talvez, Pink Floyd. Depois, fomos para a Praia do Futuro e a Clarice e a Lia tiraram a roupa, ficaram só de calcinha e entraram com as mãos pra cima no mar. Eu não tive vontade, fiquei sentada na areia, bebendo cachaça no copo de plástico e conversando num inglês macarrônico com um gringo amigo de um amigo cujo nome não me lembro mais. *** Já passa do meio-dia, estou com muita dor de cabeça e o interfone não para de tocar. É o Ivo pedindo para subir. Digo ao porteiro que o deixe subir, vou ao banheiro, lavo o rosto para melhorar a cara de ressaca, mas não tem jeito. Quando abro a porta, o Ivo, segurando um saco apinhado de fitas vhs, dá aquela risadinha rouca que só ele tem: — Ô, bicha véa doida! A gente combinou de ver uns filmes lá em casa: uns Fellinis, uns Cronembergs, uns Buñuels. Mas no estado que eu estou, só ouço longe umas palavras gringas atravessando minha consciência: o Ivo vê os filmes pela qüinquagésima vez, enquanto eu durmo na cama com uma garrafa de água do lado e o ventilador roda no três. Aí, no fim do dia, o Renan me chama para uma exposição na Base. Ele inventou uns padrões de azulejo a partir do rosto dele, fez desses padrões uns adesivos e colou no chão. O Tiago bota Smiths para tocar e a gente dança em cima dos azulejos do Renan, com um saco de papel na cabeça e uma latinha de cerveja na mão. *** Em Fortaleza sempre faz calor e a gente permanece caracolando em nossos carros pela cidade, reclamando da falta de árvores, indo e voltando da casa de alguém, carregando uma preguiça monstra e uma vontade verde de fazer alguma coisa, só para a vida fazer mais sentido. (Mas o sol hoje tá tão forte que a gente vai deixar para amanhã.) O vento passou manso e a Flávia foi, o Renan e o Catatau também. Eles sempre mandam e-mail e contam que estão morrendo de frio. Acho que eles mudaram de cor. Agora que moram em São Paulo, estão todos amarelo-limão. Já eu fico aqui na rede, ouvindo o vento cantar na esquadria, e percebo que meus pés não estão mais tão verdes como antigamente. Acho que é hora de partir de novo. Sonho em mudar de cor, ir pro Rio de Janeiro. Não tem mais tanta graça ser só verde. Vou buscar as coisas de lá e voltar em videoteipes e revistas supercoloridas. Quem sabe dá carneiro? A aeromoça passa os avisos de segurança. Penso nos meus amigos verdes, que já não estão tão verdes, olho para as nuvens ralas fora da janelinha do avião, fecho os olhos, finjo que elas são espumas e que estou mais uma vez na Praia do Futuro mergulhando entre pequenos redemoinhos do mar.
cartaz dosábado à noite documentário de Ivo Lopes Araújo, que começou a filmar pintando
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danilo carvalho frame de supermemórias, documentário, 35mm, 20min, ce/brasil, 2010
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“É uma cidade igual a um sonho: tudo o que pode ser imaginado pode ser sonhado, mas mesmo o mais inesperado dos sonhos é um quebra-cabeça que esconde um desejo, ou então o seu oposto, um medo. As cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto, que as suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas e que todas as coisas escondam uma outra coisa.” (Ítalo Calvino — Cidades invisíveis)
A epígrafe refere-se a um dos relatos fantásticos do mercador veneziano Marco Polo ao imperador Kublai Khan. Em meio a narrativas fabulosas, um jogo de interdições configura-se a começar pela impossibilidade de mapear cidades invisíveis, de traçar rotas que não sejam aquelas imaginadas. Nesse desbravamento, é dispensado o recurso de coordenadas geográficas como garantia de uma localização precisa, pois é pela descontinuidade no tempo e no espaço que o encontro com as cidades acontece. Marco Polo, no romance de Ítalo Calvino, demonstra entender o quanto de convenção contém um sistema cartográfico, um acordo com linhas imaginárias traçadas sobre a superfície do globo terrestre. Longe de questionar a exatidão à qual está sujeito o localizar-se por coordenadas. Contudo, resta dúvida sobre a constituição de um espaço mental que, em sua forma cartesiana, parece desautorizar qualquer sensação ou impressão física de um lugar. Há uma incongruência. O aproximar-se implica, ao mesmo tempo, em um distanciar-se. Ou seja, saber que Fortaleza está a 4 graus do equador ou, mais precisamente, a 3°43’04.76’’S, muito informa sobre sua orientação espacial, mas nada diz sobre o que de fato é aquela cidade, os seus desejos e medos. Numa época em que os encontros são facilitados por meio de gps, falar sobre uma aparente inconsistência desse mecanismo pode soar anacrônico. Afinal, diante de um mundo que se convencionou globalizado, desterritorializado, voltar a discussão para as idiossincrasias de um lugar parece inaceitável. Não importa se na Índia existam dezesseis línguas oficiais (e tantas outras vernaculares), o que interessa saber é se todos os indianos falam inglês. São, portanto, de heterodoxias inconciliáveis que certo cenário global se constitui. Ao realizar a exposição “A 4 graus do equador”, o Ateliê397 busca friccionar esse campo de debate propondo uma discussão a partir de questões suscitadas pela produção artística contemporânea. Nos últimos anos, é inegável o esforço em se constituir e se reconhecer um território para a arte, embora seja também um esforço muitas vezes mobilizado por uma ansiedade de ver fortalecido um mercado. Um não exclui o outro, pois não se acredita possível uma situação de neutralidade. Entre a produção artística e suas formas de difusão e comercialização, muitas são as ambivalências e torna-se redutor analisar a questão apenas pela chave econômica. Talvez uma saída seja tentar compreender como a produção de cada momento enfrenta condições diversas de inserção e confronto com determinado circuito. Sob a égide de discursos globalizantes, homogeneizantes que insistem em fixar modos de conduta normatizados e programados para o artista, a própria ideia de circuito parece fechar-se em si resistindo a qualquer possibilidade de ação contrária. O que é falso. Como bem questiona o artista Ricardo Bas-
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baum, “será que o campo da arte está se colocando a um certo público de interessados como um espaço de trabalho com procedimentos e protocolos assim tão padronizados e previsíveis? Será que a recente e ainda incipiente aceleração do processo de institucionalização da arte brasileira está sendo praticado e vivenciado de forma tão mecânica e automatizada, percebido somente como um conjunto de regras a serem seguidas por artistas, curadores e críticos?”1 Mais uma vez, pronunciar-se a partir de uma retórica que se quer hegemônica, sem se deter em investigações mais pontuais, que levem em consideração especificidades e exceções, pode resultar em impressões e conclusões equivocadas. Fortaleza, talvez a exemplo de outras cidades brasileiras, conta com um circuito de galerias comerciais incipiente, não tem museus públicos ou privados capazes de fomentar pesquisas e debates, agenciar a produção contemporânea e engendrar sua circulação, não há a presença de críticos ou curadores, os cursos de artes plásticas são inexpressivos (não existe uma faculdade específica), a política pública limita-se a publicação de editais ou a iniciativas que já surgem sem a concessão de recursos previstos... O cenário não é o mais otimista. Ainda assim há fôlego para a realização de uma produção artística que surpreende pela capacidade de articular questões — sejam elas estéticas ou conceituais — que problematizam aquele contexto estabelecendo potentes diálogos entre forma e conteúdo. De fato, as articulações surgem a partir daquele ponto geográfico específico, a 4 graus do equador, mas de lá extrapolam. Dão a ver que, mesmo diante da mais debilitada ideia de tradição, trabalhos rigorosamente pulsantes tomam parte do que se pode chamar hoje como arte contemporânea brasileira. E nessa sugestão não está implícito um mero artifício retórico de legitimação de determinados trabalhos em um determinado circuito. De modo algum. Até porque essa mesma lógica é subvertida pela estratégia com que a maioria desses artistas pensa a produção e a circulação de seus trabalhos. Tendo no horizonte um campo aberto de possibilidades, as balizas são constituídas pela via de um posicionamento crítico que se dá pela sutileza, pelo desvelamento paulatino. O confronto vai sendo definido à medida que os trabalhos acabam por trazer à tona os dilemas de uma cidade que, se por um lado, se coloca como feita para estampar cartões-postais e atrair turistas, por outro, não consegue propor diretrizes para uma política pública que seja capaz de fortalecer e consolidar um cenário artístico e cultural local. “A 4 graus do equador” atiça algumas dessas reflexões reunindo trabalhos que falam de um mar, de uma cidade, de um espaço urbano, de uma memória perdida (ou resgatada), de um horizonte, de idas e vindas, de um circuito da arte... Falam de um lugar que poderia ser qualquer lugar. E é pela ausência de marcas regionalistas caricatas que a exposição parece reconstituir um território onde de fato os limites se diluem permitindo diálogos que acabam por ir além das referências locais. A proposta da exposição é não se restringir a um meio específico buscando interfaces diversas entre a performance, a fotografia, o vídeo, o objeto, a música. Na abertura, no dia 26 de março de 2011, essa ideia pôde ser constatada de modo muito singular, pois no mesmo espaço do Ateliê397 estiveram reunidas manifestações artísticas múltiplas, todas elas envoltas por um fio condutor - a indicar pontos de contato, e mesmo de distanciamento - a favorecer o alargamento da discussão contemporânea sobre a arte. Essa confluência de ações resultou em um grande cenário capaz de articular operações artísticas que dizem muito de um lugar de origem sem vacilar sobre influências e contaminações outras. A apresentação dos músicos Fernando Catatau e Jonnata Doll, dos 1 Ricardo Basbaum e Clarissa Diniz, “Maio de 2009” in Revista Tatuí, n°7, 2009, p.18. www.revistatatui.com
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Djs Jackson Araujo e Thiago Guiness, da ação de Enrico Rocha e da performance da bailarina e coreografa Clarice Lima (interpretado pela bailarina Patrícia Bergantin), da instalação de Danilo Carvalho são apenas alguns exemplos desses cruzamentos a permitirem que o encontro e a festa aconteçam. Para ampliar a discussão, o livro conta ainda com uma série de textos produzidos por artistas, críticos e por pesquisadores de diversas áreas. Muitos deles já saíram e voltaram para Fortaleza, outros ainda estão à deriva. E o cruzamento entre esses pontos de vistas, cada um tecendo a seu modo uma ideia de lugar, resulta numa contribuição preciosa para o debate aqui articulado. São olhares perspicazes, são opiniões bem argumentadas, são conversas zelosas, são compartilhamentos de experiências que, de maneira muito cuidadosa, desenham uma espécie de cartografia capaz de mapear no imaginário a imensa amplitude de um território ainda por ser conquistado.
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patrícia araujo poeiras, 2009 fotografia colorida
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BANCO DO NORDESTE DO BRASIL S.A. Presidente Jurandir Santiago Diretores João Emilio Gazzana José Sydrião de Alencar Júnior Luiz Carlos Everton de Farias Oswaldo Serrano de Oliveira Paulo Sergio Rebouças Ferraro Stélio Gama Lyra Júnior Chefe do Gabinete da Presidência Robério Gress Assessor Especial para a Área de Comunicação e Cultura Paulo Mota Gerente do Ambiente de Comunicação Social Mauricio Lima Gerente do Ambiente de Gestão da Cultura Tibico Brasil Gerente Executiva CCBNB-Fortaleza Tessi Letícia Barbosa Coordenação de Artes Visuais Jacqueline Medeiros Assessor de Imprensa Luciano Sá Auxiliar de Eventos Kelviane Lima
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Capa e projeto gráfico Renan Costa Lima e Vitor Cesar Assistente Frederico Floeter e Sophie Dang Vu Coordenação editorial: Carolina Soares Edição: Natércia Pontes e Vitor Cesar Revisão Natércia Pontes
S676q Soares, Carolina Coelho, 1977 A 4 graus do Equador / Carolina Coelho Soares. -- São Paulo: Edições397, 2011. 100 p. : il. ; 27,5 cm.
ISBN 978-85-911615-1-51.
Arte contemporânea brasileira. 2. Música. 3. Espaços independentes. I. Título. CDD 709.81
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rua wizard, 397 Vila madalena (11) 3034-2132
renan costa lima vista pro mar, 2003 placa de acrílico com relevo pintada
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