Prefácio Conversas e Controvérsias entre Nativo e Migrante – um jogo de espelho sobre jogos digitais
Prefaciar uma obra que resulta de uma tese da qual participamos nos dá um prazer especial, pois compartilhamos o processo de sua feitura, uma tessitura cuja urdidura é construída não só de conhecimentos, como também de sonhos, dúvidas, inquietações, confabulações diversas. Orientei esse trabalho como quem descobre um mundo novo. Realizei junto ao Eucidio o papel de quem, numa viagem, acompanha o comandante – ele – levantando dúvidas, suspeitas, controvérsias próprias, de quem, aberta para o outro, para o desconhecido não sabe ao certo se para migrar é preciso tomar-se nativo, pois “Que carregamos as coisas, moldura da nossa vida” (Drummond), como minhas pedrinhas de amarelinha, minhas pedras de dama, minhas varetas coloridas do jogo “pega varetas” – meus jogos prediletos na infância. Não me lembro do Eucidio, como nativo digital, se negar à controvérsia, pois para se afirmar como um nativo contracenou com o migrante e dele fez uma imagem. Fez-se também nativo/migrante, um ser múltiplo, aberto, sensível às migrações, às navegações que o levaram ao encontro de outros nativos, os adolescentes com quem jogou inúmeras partidas, para
que pudesse aproximar-se melhor dos migrantes/professores. Foi nesse jogo de espelhos e alteridade que essa obra foi produzida e agora será comunicada para muitos. Nela poderão se encontrar, se reconhecer tanto os nativos quanto os migrantes. O migrante/professor de História é com quem Eucidio estabelece a sua interlocução privilegiada. Ele sabe para quem fala, pois sua representação de si está ligada àquela que construiu a respeito do outro: o professor de História que, como ele, sabe que a velocidade das mudanças tecnológicas repercute nas relações entre as gerações, tendendo ao afastamento de uma em relação à outra. Duplo jogo joga o Eucidio: o do espelho e o jogo digital. Vários são os argumentos que Eucidio expõe para convencer aos migrantes/professores de História de que urge conhecer algumas das práticas culturais dos jovens de hoje: os jogos que eles jogam com temáticas históricas. Sua escolha, dentre vários outros, recaiu sobre Age of Empire III, que trata da expansão mundial do século XVI por grandes impérios, ou como quer o jogo, por determinadas civilizações. Os jogos digitais nos são apresentados como artefatos culturais, como mercadorias da indústria cultural e de entretenimento que envolve cifras vultosas; são também apresentados como artefatos que mudam com tempo, aperfeiçoando sua estética visual, sonora e os modos e regras de jogar de acordo com os novos recursos tecnológicos; mudando conteúdos ou visões de história que se encontram hoje na fileira de combates. Veremos nesse caso que a última versão fará dos indígenas uma civilização que resiste, a seu modo, aos colonizadores. Eucidio, num gesto de compartilhamento, oferece ao outro a possibilidade de conhecer o que há de estrutural no jogo, ou seja, os limites previstos para a movimentação dos jogadores e o grau e natureza de liberdade – ou de inventividade – que é permitido aos jogadores realizarem. Nesse movimento, nos dá a conhecer também, as “armas” e armadilhas, as estratégias e táticas que os jovens usam nos combates bélicos que empreendem entre eles, no intuito de vencer o(s) adversário(s). Se já estão determinados, pela estrutura cognitiva do jogo, os pontos fortes e fracos de cada uma das civilizações (impérios), estão livres os jogadores para negociar qual delas cada um representará, assim
como estão livres para pensar, tomar decisões a respeito das armas e armadilhas, das estratégias e das táticas que os levará à vitória. Manobras que exigem dos jogadores alguns conhecimentos e se não os têm, eles podem recorrer aos recursos oferecidos pelo jogo. Manobras que exigem habilidades, rapidez de raciocínio, destreza, esperteza para perceber o arsenal intelectual e material do outro, nos combates pelo poder bélico econômico e político de cada uma das civilizações/impérios. Raramente, os indígenas parecem ser escolhidos, pois sabe-se que já entram no jogo em desvantagem (os índios não possuem pólvoras!). Eucidio nos oferece um instigante exemplo de um jovem chinês que, ao escolher os índios, criou uma estratégia que os colocou em uma condição original, de combate, levando-o à vitória. Foi uma partida de astúcia, reconhece o seu parceiro (Eucidio). Esse, como outros exemplos presentes ao longo do trabalho têm o poder de provocar conversas e controvérsias entre os leitores nativos e migrantes. Pelos inúmeros indícios recolhidos, de forma indiciária, em suas 657 partidas e 1200 horas de imersão, Eucidio nos brinda com conhecimentos a respeito de como o jogo e seus jogadores operam com as histórias simuladas como Histórias. Onde, em que momentos as histórias se entrecruzam com a História? Que escolhas e com que lógica operam os jogadores de histórias que se transvestem de autores da História? Limites tênues aproximam, outros, abissais, separam as histórias das Histórias. Lidaram com esse complexo jogo de espelhos, por meio de questões incontornáveis para o ensino da História (por que não dizer da História, da teoria da História): o tempo, o espaço, a narrativa, os conceitos, as analogias. Conversas e controvérsias são postas em discussão, entremeadas por apropriações de jogadores jovens, espalhados pelo mundo. Novas sociabilidades e sensibilidades entre os jovens, novos modos de pensar o mundo e operar com a História no mundo real no qual se mesclam as práticas de operar com as histórias no mundo dos simulacros. E os jovens jogadores sabem que são simulacros. Jogam para se divertir e não para aprender História, disseram eles. E nem por isso as histórias narradas, as narrativas construídas pelos jovens parecem inócuas à Eucidio. Foi por essa razão principal que ele nos convidou
para uma navegação fascinante sob o seu leme. É como se navegássemos pelo jogo com uma bússola que indica as coordenadas principais para quem quer viajar por caminhos ainda não experimentados. No entanto, essa viagem exige um investimento alto para quem se dispõe a fazê ‑la: refletir sobre as interconexões entre o mundo da cultura e o mundo escolar; refletir identificando os momentos, os pontos em que o mundo da cultura juvenil solapa, obscurece ou ilumina as práticas escolares de aprendizagem da História. Aí está outro jogo de espelhos: ver-me através da imagem do outro refletida em mim, esperando que o outro também veja refletida nele a minha imagem. Um jogo que educa na relação de alteridade. Asseguro, pois, aos leitores nativos e migrantes que não se arrependerão da viagem, pois ao dela retornar não serão mais os mesmo e quererão continuar as conversas e as controvérsias, no ato de educar as jovens gerações. Lana Mara de Castro Siman