REFLEXÃO E TESTEMUNHO Introdução
Todos os humanos cuja saúde permita estarem a maior parte do tempo em estado de vigília, trazem em si um teatro interior à feição de um imaginário constituído por odores, ruídos, sons, formas quase caleidoscópicas e sobretudo personagens, tanto amados e cultivados quanto temidos. Predominantemente as emoções, mas também certa racionalidade – ambas mais ou menos criativas – fazem nossos espetáculos íntimos. Como diria Freud, segundo as fases de infância e os desenvolvimentos de libido que tenhamos vivido, nosso teatro interior se mostrará mais rico ou mais modesto, mais cromático ou mais neutro em coloridos, mais agitado ou mais desvitalizado. Mas não tenhamos dúvida: o ser humano foi criando a sociedade das imagens (fotografia, cinema, TV e publicidade, por exemplo) pela básica necessidade de exprimir aspectos do seu teatro íntimo, conquanto a publicidade se mostre mais pragmática. À semelhança de um teste psicológico projetivo de Rorshach, as formas e cores estão no mundo como as manchas nos cartões do teste: desafiando-nos a expressar o que está em nosso íntimo e é mobilizado por impressões externas. Então se vai percebendo que, estarmos atentos a nós mesmos e ao nosso entorno pode ser um diálogo que, embora às vezes silencioso, é muito forte. Digo essas coisas para que se entenda o que leva um filósofo e sociólogo (como eu) a escrever um livro de
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reflexões sobre o cinema; na verdade, o que o leva a isso nem é o fato de ter formação sociológica ou estudos filosóficos – coisas que oferecerão interessantes subsídios avaliativos e interpretativos, mas o fato de ser tão ligado à sétima arte. Tenha-se claro que o aficionado não necessariamente é um científico entendedor daquilo que ama, podendo mesmo perceber lacunas significativas em seus conhecimentos a respeito do objeto amado (o que precisamente este autor vê ser o seu caso). Não me dediquei a ser cineasta, mas amo desbandeiradamente essa arte, às vezes encontrando, mesmo em filmes de intuitos comerciais, passagens que me impõem comoção. Nós, os ligados à sétima arte de modo mais intenso, o que devemos a ela, seja positiva ou negativamente? Talvez não seja possível responder a essa pergunta de forma pontual e com sofisticados recursos lógicos; mas a ela sempre poderemos responder baseados em experiência de vida, com base na existencialização do cinema. Com impecáveis raciocínios talvez nem sempre, mas sim com testemunhos de vida. Por razão de história de vida, entre seis irmãos e no seio de uma família multifacetada – sem negligenciar as aprendizagens clandestinas dos brinquedos de rua –, quando, aos nove anos de idade, travei um contato atento com o cinema, trazia já um teatro interior agitado, um tanto rico de imaginação, mas confuso e labiríntico. Entretanto, preciso dizer, com toda verdade, que devo ao cinema uma primeira descoberta do mundo que estava para além do meu bairro, e de como o ser humano pode, com o balaio de suas emoções, fazer construções artísticas. Um grande tanto de beleza, que hoje carrego em meu espírito, eu ganhei dessa quimera tão forte e real; como também sei dever à sétima arte alguns pavores que foram atiçados nas grutas das minhas neuroses por suas impressivas (e fascinantes) fantasmagorias. 16
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Lembro-me de um filme, ainda dos meus dez anos, no qual a cada passo o Big Ben londrino fazia soar solenemente as horas da madrugada neblinosa. Apenas isso foi como um arpão em sentimentos e medos quase ancestrais, e, durante muitas noites, tive dificuldade de me apaziguar e dormir. Cerca de cinquenta anos depois, escrevi um poema intitulado “Tremor”: “Desde criança escuto um sino no fundo do mar. Toca também numa torre por trás da névoa. Sino sina coisa inventada com sucata de alma. Sino símbolo címbalo naufragado se embalando cimbalando se embalando no mar” (Morais, 2003, p. 20).
Tremores e temores ainda mais marcantes, fui devendo ao cinema, ao qual mais amava, pois sentia-o a me despertar e a me tirar das tramas de mim mesmo. O grande Christian Metz escreveu notável ensaio intitulado “A respeito da impressão de realidade no cinema” (2006). Ali, Metz, primeiro, estuda as razões pelas quais a impressão de realidade diante de um filme é muito mais forte do que frente a fotografias. O “detonador” do princípio parece o mesmo: a fotografia. Mas o pensador em 17
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foco nos lembra que o movimento dá uma corporalidade fatual que as formas imóveis não têm; lembrando-nos também que, por uma lei psicológica, o movimento, assim que percebido, produz um conceito de realidade viva em quem o segue. Metz lembra Roland Barthes, dizendo que a fotografia sempre nos remete a um momento passado (um “ter-sido-aqui”), enquanto o filme, em sua dinâmica, suscita um ser-aqui-acontecendo (Ibid., p. 18). Diferentemente do teatro (uma realidade forte demais dentro da realidade), o cinema nos pega no frágil grau de existência destas criaturas fantasmagóricas que se movem na tela, às quais, nós, rapidamente, damos realidade
(Ibid., p. 15-28). A impressão da fotografia, em termos de realidade, seria fraca demais; e a do teatro, forte demais, ao passo que o cinema tem medida certa para a impressão de realidade. Além do que, o cinema manipula tempo e espaço, com a montagem, em sua discursividade; tanto que, filmadas aproximadamente quarenta horas, ao se dar forma final ao filme (mais comumente de duas horas), sobram na sala de montagem aparas aos montes. Em certa altura do século XX, o entusiasmo com a cinematografia era tal que grassou uma extravagante ideia de que o cinema seria uma espécie de superação ou síntese de todas as artes anteriormente existentes (pintura, escultura, fotografia, teatro etc.). Mas a vida tem respostas categóricas: nenhuma boa exposição de pinturas, esculturas ou fotos deixou de ser muito frequentada; seguiu-se lendo os romances e assistindo às apresentações teatrais com grande entusiasmo, levando tudo isso à conclusão, hoje felizmente vigente, de que cada arte tem um tipo de encanto, um modo próprio de existir e de se comunicar. Portanto, nem substituição (o cinema como síntese substitutiva), nem independência fragmentadora; hoje, evoluímos para uma calma interdependência entre expressões artísticas que podem colaborar entre si. 18
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O cinema, arte de direito próprio, pode receber inesti máveis auxílios da música, da literatura, de inspirações picturais ou esculturais, e tem recebido contributos cênicos da arquitetura aplicada; todavia, o cinema não pode reduzir ‑se à música, não deve ser predominantemente literatura, não é pintura – como o demonstra competentemente Jacques Aumont (2004) –, não é escultura e, menos ainda, algo que se identifique com a arquitetura aplicada. Cinema é cinema. Além de ser uma dada arte específica é, provavelmente, aquela que mais profunda e rapidamente tenha sofrido transformações no transcurso do século XX. Tenhamos em conta, antes de tudo, que o século recém-findo é caracterizado, dentre outros elementos, pela velocidade imposta à dinâmica social. No conturbado século XX, desaguaram desde as consequências do advento do experimentalismo científico e da chamada Revolução Científica Moderna (séculos XVI e XVII), passando por revoluções filosófica e política do século XVIII que irradiaram da França para o mundo, passando ainda por aquela que é conhecida como Revolução Tecnológica – de 1750 a 1850 aproximadamente –, a qual foi simultânea às primeiras décadas da Revolução Industrial em sua primeira fase, que percorreu do último quarto do século XVIII até a década de 1930, quando entrou em sua segunda fase com os computadores e a informática, acelerando muito a vida coletiva e individual dos seres humanos até os albores do século XXI. A arte cinematográfica, correspondendo à celeridade do século recém-terminado, passou por numerosas e importantes transformações na centúria passada. Digamos que, em termos de avanços técnicos, o cinema se beneficia de alguns progressos fundamentais, tendo-se, no entanto, beneficiado mais do que chamaria de progressos artísticonarrativos. O tecnicismo tem, em seus avanços, certo tanto de superfluidade, e talvez se possa dizer que nem todo esse 19
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supérfluo tenha colaborado com o que é mais essencial à arte cinematográfica. O cineasta Jean-Claude Carrière afirma: Os avanços técnicos fazem parte, simplesmente, da ordem natural das coisas; nunca significaram que uma forma de arte estivesse “progredindo”. Essa palavra não tem sentido, pelo contrário, é uma armadilha na qual caímos frequentemente (2006, p. 191).
O referido autor conta que, em uma palestra em Los Angeles (EUA), alguém teria perguntado quanto os progressos técnicos teriam sido importantes para o cinema e suas transformações. Carrière, divertindo-se, inventou uma história na qual alguém pergunta a Flaubert se a mudança das penas de ganso pelas de metal mudaria a literatura, e ele respondeu: acho que a literatura não mudou; mas mudou muito a vida dos gansos (Ibid., p. 192). Ainda comentando avanços técnicos, Carrière anota: [...] nós nos rendemos, de bom grado, às novas e sedutoras facilidades. Elas não nos deixam ver mais nada; acreditamos que o problema está re solvido (sem nos perguntarmos que problema). Estranhamos, até, como conseguimos viver e traba lhar sem essa admirável descoberta. E continuamos virtualmente cegos para o essencial: nossa escassez de inventividade verdadeira, nossas lamentáveis idéias repetitivas, nossas histórias cheias de lugarescomuns (Ibid., p. 192).
Quem ainda não se aborreceu com certa repetitiva mediocridade hollywoodiana que, em grande número de filmes, cria uma doce e sedutora carinha de anjo, um caso a que um homem sensível é levado e em que a criatura angelical é transformada em um labirinto de sofrimentos e 20
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ameaças mortais ao amante? Eu já perdi a conta do número de filmes, sobretudo veiculados pela TV, em que apenas o que muda é o sexo do “anjo”, ora ela ora ele. E o mais lamentável é vermos o quanto se gasta, às vezes somas muito elevadas, para realizações tão tediosamente repetitivas – mas que funcionam bem para atrair públicos sem maiores exigências. Então, vejamos bem que, antes de ser o aparato tecnológico que necessariamente produza filmes notáveis ou lhes possibilite a produção, o fundamental passa a ser, conjuntamente: um roteirista de alto nível, um brilhante diretor e um cast de atores dos quais haja arte para se tirar. Mas a tecnologia nada vale? Não, não é isso. Ela vale, sim, como meio ou instrumento para as realizações de artistas inventivos e seguros do que fazem. Naturalmente a cinematografia é feita de altos e baixos, como quase toda a produção humana. E há crises no cinema, assim como há crise em toda a civilização atual. Recorramos ainda uma vez à sabedoria de Jean-Claude Carrière, que diz sobre o cinema: Ele não morreu nem está gloriosamente vivo. Quaisquer que sejam as formas que ele assuma no futuro, por mais atraentes que elas possam nos parecer, ele não estará entronizado, em permanente esplendor, nem condenado à extinção iminente. Como todas as coisas ele está em movimento e em perigo (2006, p. 191).
Tudo sempre dependerá de vários fatores na realização dos filmes e em sua exibição; em sua realização, há desagradáveis tensões entre produtores (os homens do dinheiro) e diretores (os homens da arte); tensões também entre modos e temperamentos de diretores nos sets de filmagem e as possibilidades humanas dos atores; é de considerar-se, também, a filmagem que faça justiça a um excelente roteiro. Na outra ponta, a das exibições, serão 21
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necessárias medidas legais que protejam o cinema denso, e não demagógico, dos “enlatados” que, desinteressados de arte, são feitos apenas para arrepiar ou para fazer gargalhar sem qualquer finura nas comédias. Também são necessários, de fato, aperfeiçoamentos técnicos nas salas de exibição; ao que parece, esse é um modo de defender os cinemas propriamente das competições televisivas. Advirtamos, porém, que com toda a dinâmica dos DVDs, o maior inimigo das exibições públicas não é o cinema por televisão, mas seus próprios mitos; afinal, na época mais esplendorosa de Hollywood (anos 40 a 60), seus atores mais brilhantes e famosos recebiam cachês entre 250 a 350 mil dólares para protagonizarem um filme. Hoje, ao se filmar Tróia, pagou-se ao ator Brad Pitt dezessete milhões e quinhentos mil dólares (e esse não é cachê dos mais altos). Arnold Schwartzenegger (pasmem!) recebe cachê de U$ 30 milhões. Com isso, as salas de cinema, inevitavelmente, voltaram a elitizar-se. Na década de 1950, meus pais davam-me três moedas e eu ia ao cinema, que era um entretenimento artístico barato, mas deixou de ser. Conheço várias famílias cujos membros não mais frequentam salas de cinema por não poderem pagar, para todos, os preços atuais. É uma pena, mas o cinema não é mais um entretenimento artístico para o povo. Foi-se o tempo em que Cesare Zavattini (roteirista) e Vittorio de Sica (produtor e diretor) realizavam um clássico da cinematografia como Ladrões de Bicicleta (1948), cuidadosos de que o povo simples pudesse assistir ao seu filme com duas ou três moedas. Eram cineastas politizados, e nós, ainda muito jovens, mal o percebíamos; ocorre que eram espíritos sutis, que não precisavam transformar uma película em comício para só então considerá-la, na expressão da época, arte engajada. As situações humanas expostas em filmes como o citado, emocionavam-nos de jeito tão discreto que nem 22
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percebíamos estarem se formando, em nós, as importantes estruturas de uma consciência política. Hoje é muito mais fácil de compreender-se que o cinema passou a se constituir em uma das vozes – porventura, poderosa voz – da sociocultura. Nessa trama de signos carregados de significados, a sociocultura, a existência humana se faz múltipla e complexa; é, ela, um cipoal que, tendo criado as realidades midiáticas, as envolve e utiliza. Apesar dos sectarismos ideológicos às vezes escandalosos e até grosseiros, vê-se claramente que a política eliminou a ingenuidade temática do cinema, que a partir mesmo da década de 1910 – a da Primeira Guerra Mundial – passou a servir a temas ideológicos que se estendem desde a política de interesses gerais pela polis até a sectarismos partidários explícitos, mais à direita ou mais à esquerda. A obra de Leif Furhammar e Folke Iaksson (Cinema & Política, 1976) é rico e interessante estudo da trajetória de engajamento político da cinematografia, debruçando ‑se sobre filmes doutrinários desde os mais grosseiros e popularescos aos de fino trato com inteligentes formas doutrinárias. Aborda os serviços cinematográficos: a) na Primeira Grande Guerra (de 1914-1918); b) o boom do cinema soviético após a Revolução Russa de 1917; c) as fortes explorações alemãs do poder doutri nador do cinema; d) as influências temidas de Goebbels, um apaixo nado por cinema, pois o considerava a única arma bonita; e) a Guerra Civil Espanhola; f) os hábeis usos hollywoodianos da doutrinação política; g) a democracia inglesa divulgada com evidente autoexaltação. Logo no prefácio do seu livro, escrevem Furhammar e Iaksson: 23
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A velha idéia de que os filmes podem ser considerados apenas como diversão ou arte, ou eventualmente ambos, é atualmente encarada com crescente ceticismo. É amplamente reconhecido que os filmes refletem também as correntes e atitudes existentes numa determinada sociedade, sua política. O cinema não vive num sublime estado de inocência, sem ser afetado pelo mundo; tem também um conteúdo político, consciente ou inconsciente, escondido ou declarado (p. 6).
Filmes mais políticos e não político-partidários que o citado Ladrões de bicicleta (1948), O processo de Joana D’Arc (Robert Bresson, 1962) e Um dia de cão (Sidney Lumet, 1975) eu não saberia mencionar; e note ‑se que cito três obras históricas (no sentido de definitivas) da cinematografia do século XX. Mas, repito, há aqueles desabridamente sectários – desde a grosseria de O Judeu Suss (1940) à genialidade anterior de O encouraçado Potemkin (Eisenstein, 1929). Essas tantas trilhas multidirecionais que reproduzem a própria existência humana têm fascinado este apreciador que se aventura a escrever. Repensando minha vida, vejo que, na adolescência, eu era uma curiosidade solta como um potro indomado que corria atrás da encantadora conjunção de arte com técnica; uma vez, porém, tendo avançado em estudos, penso ter me tornado um espectador mais arguto. Primeiro, pelas aberturas naturais que meus estudos davam; mas, também, porque, durante meus estudos de faculdade, tive ocasião de matricular-me em um curso intensivo (todas as noites, por três semanas) com um cineasta espanhol do qual – que injustiça horrível – agora não me recordo o nome. A arte cinematográfica é um território que lembra a opinião de Isaac Newton, segundo a qual é assustador vermos que, quanto mais tenhamos aprendido, mais enxergamos o tamanho da nossa ignorância – mais vemos zonas lacunares em nosso aprendizado. 24
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De todo modo, preciso testemunhar que a minha experiência de apreciador de cinema, é das melhores coisas que a vida tem me presenteado. Assim, o presente livro é uma reflexão-testemunho que sentia dever a um tempo (dito pós-moderno) em que nenhuma ideia, valor ou crença é nuclear, em que quase nada é importante, a não ser prazeres imediatos e efêmeros; tempo no qual o estilo de viver faz-me lembrar uma frase irônica com a qual o notável Millôr Fernandes encimava uma página humorística: “Finalmente, um escritor sem estilo” (final mente, um tempo sem estilo – que me perdoem esse deslize de certa tristeza!). Nem os esquemas empresariais do cinema-indústria, fossem os mais primitivos ou os mais avançados de hoje; nem medíocres explorações sensacionalistas ou pornográficas (estas, sideralmente distantes do nu artístico); nem ainda os complexos bastidores de artistas da direção e da interpretação, os quais, às vezes, acendem imensas fogueiras de vaidade e exibem lamentáveis comportamentos (especialmente em Hollywood), nada dessas negatividades conseguiu neutralizar, até hoje, os encantos da cinematografia. Existirmos é um risco; atravessarmos uma rua é um risco. O cinema existe e atravessa ruas e territórios inteiros de perigo, mas ele se constitui numa arte que sobrevive como os mais fundos sentimentos de Eros e de Tânatos nos seres humanos. Saibamos, então, merecê-lo.
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