Apresentação Este livro é fruto do seminário Deleuze vai ao cinema, que ocorreu no âmbito de um programa de mestrado em Educação na Universidade do Vale do Itajaí. Acredita-se que o empreendimento realizado por esse filósofo na temática do cinema seja de interesse para o campo educacional, uma vez que ele reitera uma pedagogia da imagem. A compreensão de tal empreendimento, todavia, não pode estar separada da sua própria filosofia, ela própria uma pedagogia do conceito. Os conceitos de cinema propostos na análise deleuziana são conceitos filosóficos, que demonstram a preocupação do autor em relacionar a filosofia com a arte. Do ponto de vista da filosofia, serão as teses bergsonianas do movimento e do tempo as ideias mais relevantes para pensar o cinema em Deleuze, em dois livros: Imagem-Movimento e Imagem ‑Tempo. Nosso seminário debruçou-se sobre este último, mas os comentários que Deleuze dedica a Bergson estão distribuídos nas duas obras. Os livros de cinema do autor também são conhecidos como Cinema 1 e Cinema 2 e, sobre essa sequência, há muito o que dizer. Publicados na França, na década de 1980, ganharam sua versão em português nos anos 90, mas só recentemente chegam ao campo educacional. No nosso caso, a leitura e Imagem-Tempo, levou-nos a algumas análises fílmicas como forma de experimentação das ideias ali expostas, uma vez que visava o seminário de pós‑graduação em educação. Esse trabalho significou um passo além do livro Para ler Apresentação
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a filosofia de Gilles Deleuze e Felix Guattari, obra que tivemos o prazer e o desafio de escrever. No caso deste Deleuze vai ao cinema, a preocupação é, a um só tempo, metodológica e filosófica. Já que estão envolvidos alunos de graduação e de pós-graduação em processos de aprendizagem. Os livros de cinema de Deleuze são dominados por um argumento que tem a ver com o tempo e o movimento, ambos conceitos filosóficos. Esse argumento extrapola o assunto de cinema e relaciona-se com a própria natureza da vida. Mas o conceito de vida que interessa a Deleuze é o conceito de diferença: a vida intuída como diferença ou como tempo-duração. As bases teóricas do autor em Imagem-Tempo que iremos analisar são, em grande parte, baseadas no filósofo Henri Bergson e em seus conceitos de tempo-duração, movimento e imagem. Em sua inspiração bergsoniana, Deleuze não considera a vida como um conjunto de coisas ou organismos que, em seguida, percebe. Pelo contrário, a vida é a percepção, ou um poder virtual de se relacionar ou de se imaginar. Os corpos são pensados como imagens. Imagens são movi mentos. Essas ligações entre as partes do corpo que formam o organismo humano e sua relação com o mundo são as percepções ou imagens. Portanto, pensar a vida é pensar a relação entre as imagens. Não há, na compreensão de Deleuze-Bergson, a mente, de um lado, e o mundo, do outro; o que há é um potencial para a relação e são essas relações entre as imagens e o tempo que vão compor, para Deleuze, os estilos cinematográficos dos cineastas. O livro está organizado em duas partes: a primeira, de caráter teórico-metodológico, na qual seguimos mais ou menos os passos do autor no livro Imagem-Tempo: aqui são contempladas explanações dos principais conceitos apresentados por Deleuze como imagem ‑movimento e Imagem-Tempo e seus signos; imagem-lembrança, imagem-sonho e imagem-cristal nas suas intersecção com o cinema Apresentação
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moderno no que se refere à sua importância na construção da imagem do pensamento filosófico do autor. Fizemos coincidir os capítulos iniciais de ambos os livros, o de Deleuze e o nosso. Assim, temos em Deleuze os seguintes capítulos iniciais: Para além da imagem-movimento; Recapitulação das imagens e dos signos; Da lembrança aos sonhos (terceiro comentário a Bergson); Os cristais do tempo; Pontas de presente e lençóis de passado (quarto comentário a Bergson); As potências do falso e Cinema, corpo e cérebro, pensamento. Tais capítulos, correspondem aos nossos, a saber: Imagem-Tempo: o livro cristal de Gilles Deleuze; Bergson-Deleuze nos conceitos de cinema; A semiótica do cinema: Peirce, Foucault, Deleuze; Imagens-sonho: a dança e o burlesco no pensamento de cinema de Deleuze e Entradas arquetípicas no mosaico de obras fellinianas. Na segunda parte, ousamos experimentar, ou, como diria Deleuze, roubar, conceitos filosóficos do cinema como ferramentas para a análise de filmes contemporâneos. Com liberdade, acrescen tamos nas análises fílmicas conceitos oriundos de outras obras de Deleuze, como Mil Platôs e O que é filosofia, escritos em parceria com Félix Guattari. Há expectativa de que essas propostas venham ao encontro de possibilidades pedagógicas no âmbito da educação básica e superior. No primeiro capítulo, esclarece-se a preferência de Deleuze pelas imagens-tempo. Mas “preferência” talvez não seja o termo mais correto. As imagens-movimento prolongam-se em imagens-tempo. Não por uma questão cronológica ou por avanços tecnológicos, mas pela arte dos cineastas do pós-guerra que pensaram uma nova relação entre as imagens e o movimento. Interessam muito a Deleuze as relações entre a filosofia e a arte, como campos que se complementam e que deslizam um sobre o outro. Uma teoria do cinema deveria criar conceitos sobre Apresentação
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cinema e os conceitos são o chão da filosofia, na maneira toda particular que Deleuze tem de recolocar o papel da filosofia em sua interação com as artes e a ciência. Como uma tecnologia ou ciência, o cinema será pensado como capaz de libertar o ser humano para potências inumanas, ampliando suas capacidades humanas pelo poder da câmera. Cinema é relação entre imagens e o tempo; o acoplamento do olho humano com essas imagens pode abrir um novo pensamento a respeito de como a vida se conecta. Este, por sua vez, irá abrir uma nova vida, novos potenciais. É de tal criação vital que envolve a filosofia, a ciência e a arte dos cineastas que Deleuze fala ao filosofar sobre cinema. O segundo capítulo deste livro é escrito por um estudioso de Bergson, que irá explicar-nos os quatro comentários de Deleuze a Bergson. Esse capítulo reveste-se de especial importância porque as teses deleuzianas nos dois livros de cinema de Deleuze estão baseadas nas concepções de Henri Bergson. Deleuze desenvolve quatro comentários distribuídos entre os dois livros de cinema: os dois primeiros no livro Imagem-Movimento e os dois últimos no livro Imagem-Tempo, objeto de nossa atenção. Os comentários de Deleuze a Bergson estão no terceiro e quinto capítulos de Imagem ‑Tempo, a saber: Da lembrança aos sonhos (terceiro comentário a Bergson) e Pontas de presente e lençóis de passado (quarto comentário a Bergson). O terceiro capítulo, de caráter mais didático, explora um filme com o aporte comparado de três pensadores: Peirce, Foucault e Deleuze. Para tal, servimo-nos de análises já realizadas para um mesmo filme, expandindo as explicações metodológicas em cada caso, para destacar as especificidades teóricas e metodológicas desses grandes pensadores. Foucault mereceu uma análise à parte, facilitada pelos estudos de N. Gaspar. As relações entre Peirce e Deleuze estão presentes no próprio Deleuze, que discorre sobre Apresentação
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elas. Beneficiamo-nos da compreensão de Cardoso Jr., o qual entende que o encontro entre Peirce e Deleuze é marcado por linhas de força, como a questão dos signos nos dois pensadores e pela admiração que Deleuze nutre pelo pragmatismo americano. Entradas arquetípicas no mosaico de obras fellinianas é uma construção textual criativa que aborda os cristais em formação, um dos conceitos deleuzianos da Imagem-Tempo. As autoras, contudo, fazem uma apropriação dos cristais com muita graça e ludicidade, trazendo para o capítulo, além da ênfase nos palhaços de Fellini, a descrição do mito de Ariadne e o Minotauro, presente na obra do cineasta e no livro Crítica e Clínica de Gilles Deleuze. Aproximar o conceito de punctum de Roland Barthes ao de imagem-tempo de Gilles Deleuze é o desafio proposto no capítulo 5, em nossa parceria internacional. A ousadia do Dr. Patrick Fuery, diretor do Departamento de Artes e Saúde da Universidade de New Castle da Austrália, ao transpor o conceito de punctum de Roland Barthes para a teoria fílmica, ensejou uma parceria com nossos estudos. O conceito foi gestado por Barthes para imagens fotográficas. Nosso desafio foi pensá-lo para imagens cinematográficas. Os textos da segunda parte do livro são experimentações nossas, dentro e fora do seminário Deleuze vai ao cinema. Cinema no ensino superior (Capítulo 6), tenta encontrar as imagens-movimento e as imagens-tempo nos filmes usados por professores do ensino superior em suas aulas universitárias. É uma pesquisa exploratória, que envolve alunos de graduação e pósgraduação e tem como seu maior desafio a leitura dos resultados da pesquisa fílmica entre professores à luz dos conceitos deleuzianos. A pesquisa é integrada por alunos de graduação e pós-graduação da Universidade do Vale do Itajaí, que recebem bolsas de iniciação científica. O Capítulo 7 faz uma reflexão sobre os espaços da infância sugerida no filme As ruas de Casablanca. Pelo título do capítulo, Apresentação
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vê‑se a apropriação que os autores fazem do espaço deleuziano, como um movimento de invenção. Os lugares são pensados como lugares de uma infância habitados pela própria invenção. As imagens do filme são entendidas não como representação da realidade, mas como ponto de vista em movimento. O texto endereça-se aos professores do ensino fundamental e aos gestores de políticas públicas relacionados com a infância. Como o leitor poderá confirmar, os autores desse capítulo são mestres em educação do programa de pós-graduação em educação da Universidade do Vale do Itajaí, com ampla experiência em infância e educação. Para o deleite do leitor, eles são também apreciadores da obra de Gilles Deleuze. O último capítulo deste livro é um convite para continuar estudando Deleuze (e seu maior colaborador – Félix Guattari). O capítulo explora as conceituações de arte, ciência e filosofia de Deleuze e Guattari, no livro O Que é a Filosofia? A autora propõe uma introdução a muitas possíveis outras aulas de ciências, de arte e de filosofia em cursos de Humanidades Médicas. Em sua docência na área de Medicina, a autora traz interessante tabela com as três formas de pensamento, tal como Deleuze e Guattari orientam. A autora traça as possibilidades de intersecção entre as figuras estéticas trazidas pelo cinema em suas conexões com os conceitos filosóficos de Deleuze e Guattari. Tendo apresentado os diversos capítulos do livro, resta-nos desejar ao leitor a mesma alegria que sentimos ao nos reunirmos para ler Deleuze, para assistir aos filmes por ele propostos e, sobretudo, ao estudar tantos conceitos filosóficos instigadores.
As organizadoras
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