Apresentação É na arte que o homem definitivamente se ultrapassa. (Simone de Beauvoir)
É comum conceber a música como experiência estética que proporciona prazer aos que a criam, a executam e a ouvem. Menos frequente é encará-la sob a ótica dos efeitos que produz nas pessoas, tanto no plano psicológico individual como no da sociabilidade, da convivência harmoniosa, da participação comunitária. Temos hoje consciência de que é muito importante e, muito mais, sabemos que não deve ser privilégio de poucos, o acesso à música, mas antes, esta deve ser dirigida a todos. Um meio para que isto aconteça é o trabalho de musicalização, que, quando realizado por profissionais conscientes e competentes, deixa de ser uma mera recreação e favorece uma rica vivência e um manuseio hábil de estruturas musicais, além de estimular o desenvolvimento dos meios mais espontâneos de expressão, recuperando, assim, a música a sua condição de linguagem natural, viva, de pensamentos e emoções.
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O trabalho de musicalização deve ser encarado sob dois aspectos: os aspectos intrínsecos à atividade musical, isto é, inerentes à vivência musical: alfabetização musical e estética e domínio cognitivo das estruturas musicais; e os aspectos extrínsecos à atividade musical, isto é, decorrentes de uma vivência musical orientada por profissionais conscientes, de maneira a favorecer a sensibilidade, a criatividade, o senso rítmico, o ouvido musical, o prazer de ouvir música, a imaginação, a memória, a concentração, a atenção, a autodisciplina, o respeito ao próximo, o desenvolvimento psicológico, a socialização e a afetividade, além de originar a uma efetiva consciência corporal e de movimentação. Convém ressaltar que usufruir da música não é uma questão de talento, para as pessoas em geral, e para a criança ou o jovem, menos ainda. O ser humano que se desenvolve, criança ou adolescente, é essencialmente um músico, pois ser músico é, no fundo, estar sensível aos sons, é se deixar tocar e envolver pela música. A crise que ora atravessamos neste início de novo milênio não é só de caráter econômico ou social, mas de civilização, pois os principais problemas contemporâneos são também culturais e de valores humanos. As pessoas anseiam, mais do que nunca, por bens materiais para sobreviverem, mas desejam igualmente fruir de bens simbólicos, imateriais (culturais) e espirituais. É preciso compreender que a solução dos nossos problemas de modo geral, impõe, de partida, um esforço centrado na resolução das múltiplas necessidades da vida. É nesse contexto que assume importância decisiva a questão do direito à cultura como direito humano, pois o próximo salto da humanidade deverá ser cultural. A transição para um desenvolvimento sustentável deve privilegiar um estilo de vida que leve em conta os valores culturais e fomentar a democratização da cultura sob todos os aspectos. Um dos resultados negativos da globalização é um amplo desenraizamento que desfaz modos de vida locais, expropria milhões
Vera Lúcia Pessagno Bréscia
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de seres humanos de suas referências culturais e de suas próprias vidas. Assim, todo um processo entra em decadência e, em troca, é oferecido um padrão fabricado pelo consumo, que tem na mídia um emulador permanente, pasteurizando todo e qualquer tipo de diferença. Isso reflete uma visão limitada e muito questionável do desenvolvimento da sociedade, que pretende transformar a todos em simples consumidores passivos e nada mais, subordinados à mão invisível da economia, e não em cidadãos ativos e participantes de processos vitais. É de se destacar o descaso das políticas públicas em relação aos jovens das periferias das cidades, jogados ao seu próprio destino, marcado desde cedo pela dura realidade da falta de alternativas e tendo como melancólico horizonte o binômio droga e tráfico. Apesar de tudo isso, há uma dinâmica cultural intensa, representada por movimentos como os dos jovens, artistas, intelectuais, mulheres, indígenas e negros, assim como movimentos ecológicos e experiências verdadeiramente democráticas de governos, interessados em promover a identidade pessoal e o desenvolvimento cultural. Tal ação vem ocorrendo principalmente nos municípios paulistas, tendo em mira a construção de uma cidadania cultural. Nesse contexto, a arte, além de ser a linguagem que pode ser trabalhada de modo que passe a ser mais compreendida e assimilada pelos jovens, traz para um mundo movido obsessivamente pelo ter, e não pelo ser, o encantamento e a criação de verdadeiras comunidades de emoções positivas. É urgente o enfrentamento da grave crise social contemporânea que está destruindo a qualidade de vida, o sentimento de pertencer a uma comunidade e o nosso imaginário, afetado pela erosão das relações interpessoais e pela violência, fenômenos que atingem a maioria das cidades, principalmente as metrópoles. Assim, as políticas culturais são vitais para a transformação da realidade social, para o combate à exclusão social e cultural e para a
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criação e manutenção de um estado de paz duradoura, que deve decorrer da generalização do acolhimento e da pela solidariedade, especialmente em benefício de crianças e jovens. Nota-se entre nós, contudo, a falta de investigações científicas a este respeito. Nesse sentido, a presente contribuição se propõe, ainda que de maneira reconhecidamente limitada, a oferecer subsídios empíricos, originados de pesquisa, ao mesmo tempo que busca explorar um universo que só de raro em raro vem merecendo a atenção dos estudiosos, profissionais e pesquisadores da psicologia entre nós: o da psicologia da música e do ensino e aprendizagem musicais. A experiência de participação em corais, conjuntos, orquestras e outros grupos musicais tem sido mencionada com frequência como fonte de inúmeras vantagens na formação de crianças e adolescentes, inclusive no que respeita à sua participação efetiva em experiências prazenteiras de trabalho em grupo, sendo, além disso, atividade que pode ser desenvolvida em qualquer contexto social, até mesmo nas mais modestas escolas do ensino público. A voz humana, aliás, é uma espécie de instrumento musical que praticamente todos têm à disposição e que deveria ser muito mais usada e trabalhada de maneira construtiva. No passado, até por volta de meados do século vinte, deu-se muito mais atenção ao ensino e à aprendizagem musicais nas escolas, tanto públicas como particulares, tendo singular importância nesse contexto a prática do chamado “canto orfeônico”. Isto, infelizmente, não ocorreu, nas últimas décadas. Presentemente, há um movimento de educadores brasileiros empenhados na retomada do ensino musical nas escolas públicas, de modo que toda criança passe a cantar na escola, pois o canto favorece a autoestima e tem um forte apelo social, além de contribuir para o desenvolvimento educacional e cultural da pessoa e do país. Não se faz pesquisa para sepultá-la num arquivo e sim para que seus resultados sejam difundidos. Nesse sentido, o que se encontra aqui tem em vista expor os fundamentos psicológicos e pedagógicos da educação
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musical e fornecer uma contribuição para as melhores compreensão e divulgação de uma iniciativa arrojada, que vem produzindo bons frutos – o Projeto Guri, a partir de um estudo realizado junto a 400 sujeitos participantes deste, em um município do Estado de São Paulo, que permitiu a coleta de dados pertinentes e uma análise desses dados, de maneira a fornecer subsídios tanto para a iniciativa em questão como para outras contribuições que, agora e no futuro, tenham em vista os melhores interesses das nossas crianças e dos nossos jovens. O interesse da autora pelo tema tem a ver com a sua dupla condição de psicóloga e musicista, devotada mais particularmente ao canto lírico. Foi no contexto de uma escola pública tradicional, na disciplina denominada Canto Orfeônico, que teve início a caminhada que a conduziu mais e mais a múltiplas atividades no âmbito da música. O fato de ter cursado, ao mesmo tempo que realizava os estudos normais, o Conservatório Musical Gomes Cardim em Campinas e, na Pontifícia Universidade Católica de Campinas, o curso de Canto Orfeônico (posteriormente convertido em Faculdade de Educação Musical), redundou na dedicação em paralelo, de um lado, à Psicologia, e de outro lado, à Música, particularmente ao canto lírico. Aliás, os estudos na área musical continuaram sempre presentes até os dias atuais na vida da autora, graças a cursos no exterior, como no caso da Espanha (Barcelona), dos EUA (Orlando), Cuba (Havana) e em outros países e, no Brasil, à participação em festivais e cursos em vários locais. O trabalho que a autora vem desenvolvendo na Secretaria da Cultura do Estado há cerca de vinte anos contribuiu em não pequena medida para intensificar ainda mais os seus empenhos em relação à música e à educação musical. De certo modo, portanto, o tema aqui exposto representa um casamento e uma síntese do que tem sido a experiência profissional de vida da autora e, ao mesmo tempo, fornece ao leitor os fundamentos educacionais e psicológicos de um desenvolvimento musical na infância e na adolescência consciente, seguro e bem orientado.
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Eu sou a música; das artes, a mais antiga. Eu sou mais que antiga, eu sou eterna. Mesmo antes da vida começar nesta Terra, eu já estava aqui – nos ventos e nas ondas. Quando as primeiras árvores, flores e pastos apareceram, eu estava entre eles. E quando o ser humano surgiu, tornei-me imediatamente o veículo mais delicado, mais sutil e mais poderoso para a manifestação das emoções das pessoas. Quando os seres humanos eram pouco mais que animais, eu os influenciei de forma benéfica. Em todas as eras, inspireios com esperança; inflamei o seu amor; dei-lhes voz para suas alegrias; estimulei-os para realizarem valorosas façanhas; e os consolei nas horas de desespero. Representei um grande papel no drama da vida, cujo alvo e propósito eram a grande perfeição da natureza humana. Graças à minha influência, a natureza humana elevou-se, abrandou-se e tornou-se mais aprimorada. Com a ajuda das pessoas, tornei-me uma Arte Superior. Possuo uma grande quantidade de vozes e de instrumentos. Estou no coração de todas as criaturas humanas e nas suas línguas, em todas as terras entre todos os povos; o ignorante e o analfabeto me conhecem, tanto quanto o rico e o erudito, pois eu falo a todos, numa linguagem que todos entendem. Até os surdos conseguirão me escutar, se prestarem atenção às vozes de suas próprias almas. Sou o alimento do amor. Ensinei aos seres humanos a delicadeza e a paz: e os conduzi na direção de feitos heroicos. Levo conforto aos solitários e concilio os conflitos das multidões. Sou um luxo necessário a todas as pessoas. Eu sou a MÚSICA. Anônimo