Filosofia do Diálogo

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Pórtico

Não poderia propor o pensamento raso, nem o meramente fácil. E precisamos diferenciá‑lo do banal. O simples é o que pode ser compreendido diante do caos, do hermetismo e dos jargões que, até hoje, tanto protegeram quanto também proibiram o pensamento (Tiburi, 2008).

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ohann Gutenberg e os demais aperfeiçoadores da imprensa facilitaram-nos as leituras, mas, com isso, surgiu um novo

perigo: o de passarmos a viver mais nas páginas que na vida. Tal perigo é evitado quando as páginas, facultadas pela vida, nos remetam de volta ao viver cotidiano, de modo a podermos descobrir a inexistência de trivialidades no mundo. Aprecio livros capazes de me levar longe, mas abomino aqueles que me deixam lá, distante do pulsar da vida, em nuvens que sobrepairam a tragicomédia humana. Eis por que, inten­ cionalmente, procuro, neste breve livro, evitar tecnicismos filo­ sóficos herméticos que fazem as incompreendidas elegâncias de bons escritores, mas não tão bons comunicadores. No entanto,


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– e atentemos bem para isto – há limites para além dos quais o exercício de dizer, que é a própria filosofia, vê-se degradado em tagarelices amenas, mas que não fazem pensar. De modo que, como está na epígrafe desta apresentação, podemos, nas páginas que seguem, buscar o simples, mas de nenhum modo o raso nem o fácil. Quero dizer que este não é um livro escrito para eruditos ou para eruditos-filósofos, mas para todas as pessoas que se têm despertado para o desejo de melhorar o mundo no qual vivemos, humanizando-o com real interesse pelos demais seres humanos e, por conseguinte, desenvolvendo um processo de neutralização dos egoísmos competitivos que têm desequilibrado e infelicitado as relações inter-humanas. Toda pessoa que fizer uma busca atenta em seu íntimo vai encontrar uma quantidade de outros seres humanos. Os outros, que vemos viver e se expressar “lá fora”, vivem também dentro de nós. Até mesmo certos rostos anônimos que encontramos pelas ruas das cidades, tantas vezes carregados de cansaço ou de melancolia, incomodam o nosso viver e, de forma mais ou menos consciente, interpelam-nos sobre o que temos transformado nosso mundo. Lembro-me de algo ocorrido há precisos vinte e quatro anos. Entrei em um hospital com necessidade de entender-me com uma médica obstetra e, tendo me equivocado de lugar, assentei-me na sala de espera da psiquiatria. Ainda nem me havia dado conta do meu engano, quando entraram e se sentaram à minha frente um rapaz acompanhado de uma senhora. O rapaz, sofrida e angustiadamente, desamarrava de um dos seus pulsos uns fios imaginários; fazia


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gestos e movimentações absolutamente perfeitos para desatar do seu pulso aqueles fios que o atormentavam. Presenciei aquilo durante uns doze minutos e tenho a angústia daquela criatura se movendo em minha lembrança mais de duas décadas transcorridas. Nunca mais vi aquele moço e penso que não mais o verei; mas o seu sofrimento mora em mim ainda hoje. Pois bem; quando percebi ter errado a sala, me movimentei por um largo corredor do hospital, em que encontrei um senhor de cabelos grisalhos com olhos cheios de alegria e um bonito sorriso. O senhor me disse: “Acabo de nascer de novo! Louvado seja Deus!” Enquanto caminhávamos pelo corredor, ele me contou que chegara ao hospital quase sem respirar, quase desfalecido por um engasgo com um pedaço de maçã. Ao que pareceu-me, os médicos, com recursos endoscópicos, o salvaram. Ele insistia em um sorriso quase infantil e, com olhos brilhantes mas lacrimosos, disse-me: “Só quem nasce de novo é que sabe o que é isto, moço!” Após falar com a médica, naquela manhã, percebi que o moço meio desesperado dos fios e o senhor emocionado de alegria – pessoas que nunca mais vi – haviam mexido nos guardados mais delicados da minha alma. Gostei imensamente de perceber que, apesar do mundo seco e árido em que vivemos, meu real interesse pelo outro, por seu sofrer e por seu alegrar-se, trazia-me ricas melodias ao espaço interior. Tais experiências em uma única manhã puseram-me a pensar se os maiores sofrimentos do mundo nesses últimos tempos não corressem por conta do crescente afastamento que as pessoas costumavam pôr entre si. Assim, os anos passaram,


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fiz preciosos conhecimentos com filósofos da “alteridade” e passei a me sentir cada vez mais devedor de escrever um pequeno livro que tratasse das relações inter-humanas e sobretudo da presença dos outros na constituição da nossa compreensão da existência. Este livro convidará seus leitores a saírem, se for o caso, da estreita prisão do seu eu elementar, para que possam, enxergando os outros homens e os apreciando, alcançar melhor visão de si mesmos. De todo modo, isso deverá ser um exercício de equilíbrio. Nas oportunas palavras de Salvatore Natoli (2008, p. 20), Não se dissipar na exterioridade, mas também não se afeiçoar em demasia à própria subjetividade. Para melhor compreender-se, é preciso relativizar‑se. Como

será notado nas páginas deste livro, a modernidade e o século XX criaram situação histórico-social propícia para a dificultação de se ver o outro como um outro eu; as brutalidades, genocídios e os subvalores da chamada sociedade de consumo meteram o medo goela abaixo dos contemporâneos, e o cansaço dos desentendimentos e desamores deu azo aos individualismos atuais. A companhia de grandes pensadores, contemporâneos ou não, é essencial, e, uma vez buscada, deve ser trazida para a conversa de um livro – sempre na proposta de não se dificultar o entendimento desses filósofos. Fazemos injustiça a esses luzeiros do pensamento se os apresentamos sem o menor esforço para fazê-los compreendidos. E que indescritível prazer é cruzar nossas ideias mais modestas com as luzes desses filósofos, na tessitura de um texto que se esforce por oferecer a curiosa e dialética beleza que apresentam os tecidos feitos com fios nobres e, também, fios mais simples.


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Alguns dirão, talvez mesmo muitos, que as propostas que configuram estas páginas, e que essencialmente se voltam para os ideais de solidariedade humana, são praticamente irrealizáveis no tipo espiritualmente esvaziado de sociedade no qual vivemos. Foi principalmente a possibilidade dessa opinião negadora que me fez trazer para este livro os ensinamentos de alguns dos nomes mais importantes da filosofia do mundo contemporâneo − Edmond Barbotin, Ernst Bloch, Rubem Alves, Martin Buber, Emmanuel Lévinas e Georges Gusdorf, os dois últimos sobreviventes de campos de concentração nazistas – não são pensadores que levianamente propusessem o irrealizável. E quem conhece seguramente o irrealizável, se o imprevisto tem sido uma das leis mais importantes do fluir histórico? Eu mesmo nasci durante a Segunda Guerra Mundial e, talvez por isso, tenho estudado em profundidade o século XX, vendo-o ora como inevitável consequência e ora como certo prolongamento mesmo da modernidade. Considero, o século recém-terminado, como um vasto painel de sombras e luzes, vendo seus genocídios e belicosidades como dos momentos mais sombrios da história humana. No entanto, nada do que me estarreceu e impressionou de forma negativamente durável em meus estudos do passado século conseguiu levar-me a um clima interior de desistência; ao contrário, as luzes que localizo e vejo bem na centúria finda conduzem-me a, cada vez mais, crer na perfectibilidade humana, sempre tendo descortinado e aceso no espírito o lema latino Contra speam spes (Esperança contra todo desespero). Em 1900, portanto, o último ano do século XIX, o físico alemão Max Planck iniciou, talvez mesmo de forma despercebida


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para ele, o que passou a ser conhecido como a “revolução científica contemporânea”. Tal revolução foi desdobrada por outros cientistas como Werner Heisenberg, Albert Einstein, Niels Bohr, Wolfgang Pauli e tantos outros, acabando por expandir­ ‑se para quase todas as áreas de conhecimento. Segundo Arthur Koestler, na medida em que os físicos mergulhavam no reino infra-atômico e, por outro lado, os astrofísicos penetravam as dimensões supergaláxicas, foram se deslumbrando com paradoxos univérsicos, e Sir Arthur Eddington concluiu ser, a matéria-prima do universo, o espírito. Desde então, todo o século XX e este início do XXI têm presenciado a luz resplandescente da atual revolução científica. Entretanto, na medida em que o século XX passou a ser abalado por tantas guerras, genocídios e crescente violência social em termos mesmo de crimes, com um marco simbólico tão horrendo quanto Auschwitz-Birkenau, tornou-se difícil para nós – homens e mulheres desse século – apreciarmos as luzes que brilhavam simultaneamente. Eis por que em meu livro Evoluções e revoluções da ciência atual (2007a, p. 54), anotei Os tempos eram tão sofridos que ficava difícil perceber que algo radioso vinha acontecendo desde 1900, algo capaz de mudar os caminhos de uma civilização: a Revolução Científica Contemporânea, a qual só pode ser bem compreendida no pleno imbricamento entre ciência e vida social. Uma nova matriz epistêmica, cuja configuração só aconteceria mais nitidamente na segunda metade do século XX, agia com seu dinamismo desde o primeiro ano deste século, ou mesmo antes.


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E o século passado recebeu também as luzes da Ecologia, agora feita ciência autônoma, tendo-se iniciado como ciência biosférica, depois se desdobrado nas ecologias social e mental, hoje ocupando, seus problemas, os primeiros lugares em toda pauta de discussões internacionais. Mais ainda: em 1950, surgiu a Biologia Molecular e já em 1952 mostrou suas luzes com a descoberta, por Watson e Crick, da estrutura do DNA – o fundamento da vida no nosso planeta. As ciências da educação fazem entrada nas universidades na década de 1960, e os acon­tecimentos tecnocientíficos se seguem tendo por base de propulsão a cibernética computacional. Infelizmente, também prosseguem os desentendimentos sérios entre povos e tribos, bem como entre profis­ sões de fé religiosas, e as nuvens escuras que os acompanhavam e envolviam mal nos deixaram ver as luzes desses tempos. A centúria passada se fez marcar por figuras humanas absolutamente luminosas e marcantes, como o psiquiatra austríaco Viktor Frankl, a tão conhecida e admirada Madre Tereza de Calcutá, Nelson Mandela, Irmã Dulce da Bahia, Albert Schweitzer, Mahatma Gandhi, Francisco Cândido Xavier, Sérgio Vieira de Melo e tantos outros vultos. Deve-se também registrar que, contra todas as dificuldades existentes, nos últimos decênios, verifica­ ‑se uma renhida luta para que a ética volte a ser tomada a sério nos mais variados setores. Anotamos todos esses vultos históricos e acontecimentos, para que os homens e mulheres de agora não venham a cair na cilada de imaginarem que, após um passado imediato (século XX), que aparentemente tenha sido apenas sombrio, não há mais possibilidade de alimentarem esperanças


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luminosas para o futuro. Este livro esforça-se por demonstrar que, no reencontro do caminho que nos leva aos outros seres humanos, há possíveis concretos ainda inexplorados que podem florescer em esperanças que imprimirão sentido maior à nossa vida. Neste pórtico, com o qual apresentamos o essencial da intencionalidade do presente livro, quero registrar também um momento de convite; à superação das dificuldades impostas pelo consumismo pragmático, bem como de virmos a conhecer melhor a nós mesmos mediante o contato franco com o próximo. Espero que possamos caminhar juntos o caminho deste breve livro, de modo que sejam longas as boas consequências da caminhada. Não se duvide jamais de que “O ser humano é um ser-pelo-outro”, como costumava afirmar o filósofo Martin Heidegger. “Alteridade” ou, como preferem Jolif e Lévinas, “outridade”: abrir a porta central do nosso ser para os outros seres humanos. Os espiritualistas encontrarão encantados uma outra forma de comunhão com o Ser Supremo.


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