Prefácio Muito tem se falado sobre a complexidade dos fenômenos sociais e alguns cientistas, como Edgar Morin e Boaventura de Souza Santos, têm se dedicado à crítica ao modelo estabelecido pela ciência dita “dura”, cartesiana, unicausalista e, até mesmo, feito proposições teórico-práticas para a superação de um modelo naturalizante de ciência. Entretanto, mesmo nas Ciências Humanas, observamos ainda modelos de análise dos fenômenos sociais que nem sequer se apropriaram das críticas marxistas, fenomenológicas ou psicanalíticas, vertentes teóricas que já realizavam um questionamento aos modelos rígidos de fazer ciência. O espaço do cientista é mesmo o de questionar, de reavaliar modelos, de produzir conhecimento, realizando a crítica de si mesmo, pela análise dos fenômenos. E é isto o que propõem os autores de Garota de Programa: Uma nova embalagem para o mesmo produto: um estudo acerca da prática prostitucional de garotas de classe B e A. Ao descrever a história da prostituição, os autores o fazem de forma dinâmica, não apenas por meio da trajetória histórica, mas especialmente pela escolha (nada neutra) de um enfoque a partir de temas que perpassaram esta prática ao longo do tempo, e de como os cientistas se debruçaram sobre ela construindo formas de vê-la, analisá‑la, interpretá-la. Estamos em um momento histórico especial, a pós‑modernidade ou hipermodernidade, em que os conceitos não estão fechados e a prostituição pode ser trabalho, prazer, patologia, ou mesmo, estar inserida na “luta” de gêneros. Diante disso, o trabalho realizado e apresentado aqui é novo, especialmente por realizar um
esforço de abarcar os devires das que vivem a prostituição como sua atividade profissional‑afetiva. É no âmago destas relações que se constrói o objeto de pesquisa e não a partir de um determinado fato, dado, ou observação natural de um fenômeno. Os autores se apropriam de vários discursos teóricos, criando diálogos e articulações dinâmicas, sem que se fechem as possibilidades para novos horizontes. O encontro com as garotas de programas trata, então, de um encontro de diálogo, de relações intersubjetivas. Para além do cuidado ético com a pesquisa, há o cuidado com o trato com a subjetividade, buscando, nas vivências dessas mulheres, compreender os significados e sentidos que elas dão à atividade e à própria vida. Elas vivem o prostituir-se, elas vivem cada momento destes como um instante de suas vidas, um momento ímpar de sua existência. Falam de si, das mazelas e de seus projetos de vida, da paixão e do prazer, da dor e do sofrimento de serem prostitutas, mas sobretudo, de serem elas mesmas. Por meio de uma autocrítica do próprio processo e das possibi lidades e impossibilidades trazidas no cotidiano vivenciado por estas mulheres e pelos próprios pesquisadores, contrói-se um profícuo diálogo. Neste sentido, isto é fazer ciência: é engajamento, é vida, é paixão, mas é rigor também, assim como é a socialização daquilo que se interpreta. Trata-se mesmo da atividade esperada do cientista: que ele possa transgredir, saltar, experimentar. Neste trabalho, além de podermos conhecer um pouco mais da vida dessas mulheres, da história do fenômeno da prostituição, podemos experimentar junto uma forma de realizar uma pesquisa. Prof. Dr. Rafael Siqueira de Guimarães Professor Adjunto do Departamento de Psicologia, Universidade Estadual do Centro-Oeste, Campus Irati.
Apresentação
O panorama histórico mostra que a prática da prostituição se expressa como um fenômeno atemporal que ultrapassa os limites geográficos, a repressão, o estigma, a discriminação. Tal como um rio se molda ao ethos de cada época, visto estar ancorada ao binômio – carência econômica versus carência afetiva – próprio das relações sociais do sistema capitalista. Percebe-se que a cartografia traçada pelos autores compromis sados em descrever a história da prostituição até chegarmos ao momento atual, permite-nos desvelar lacunas discursivas que nos remetem a convidar o nosso interlocutor as seguintes indagações: Mulher repudiada, estigmatizada pelos séculos, por que a prática da prostituição perpassa os séculos? Atribuir a essa mulher, estigmatizada, largada, desonrada, sem direito a voz, a causa da prostituição, ressoa em nós como um paradoxo. Em sendo tão desqualificada como pode exercer o domínio sobre seu cativo cliente – o homem? Não é destituílo de seu lugar de dominador? Não seria o seu coautor o homem o responsável também da permanência dessa milenar prática sexual? Se não houvesse a retroalimentação do sistema para mantê-la, sem dúvida, já teria sido radicada, tal como algumas doenças contagiosas já foram. Apontar essas lacunas entre outras no decorrer dos próximos capítulos é nossa intenção. Com isso queremos dizer que sem dúvida
havia e houve até hoje homens de todas as idades, partido político, classes sociais que se submetem ao poder dessa “desqualificada mulher”, para vivenciarem seus momentos de êxtase. Diante desse fenômeno atemporal – mesmo com a independência sexual da mulher moderna – dirigimos nossa atenção para compreender o que mobiliza a jovem de classe média-alta a se prostituir. Seria essa prática uma relação de troca comercial, mantida e retroalimentada pela relação de gênero? Uma doença? Ou um prazer difícil de ser controlado? Outro aspecto é em relação à terminologia usada por essas jovens que se apresentam como garotas de programa e não como prostitutas. Seria uma nova embalagem para vender o mesmo produto? Para explicitar essas questões dentre outras por nós elaboradas no decorrer dos capítulos recorrermos aos resultados da pesquisa de Guimarães 2007, cujo foco principal foi compreender a história de vida de 10 jovens de classe média-alta que se dispuseram a contar suas vivências sexuais e a apontar as razões que as motivaram a eleger, consciente ou inconscientemente, a prostituição como projeto de realização pessoal e laboral.
M. Alves