Currículo e Contemporaneidade

Apresentação Boa parte dos intelectuais do nosso tempo, entre os quais historiadores, filósofos, sociólogos, antropólogos, analistas e críticos da cultura, têm sido unânimes em apontar o século XX como aquele que se sobressai pelo caráter extremado das mudanças verificadas e pelo legado de questões e impasses que persistem gerando perplexidades e desafios. Catástrofes, incertezas e crises, mesclados por admiráveis avanços tecnológicos, assinalam a transição do século XIX para uma nova era, radicalmente distinta da que a precede. A condição cultural que se instaura nesse período produz transformações com consequências em todas as esferas da nossa existência, e ninguém passa incólume por essas movimentações. Obviamente, tal estado de coisas repercute em diferentes âmbitos das políticas contemporâneas. Ao mesmo tempo em que nossas vidas inscrevem-se em um mundo cada vez mais instável, disperso, contingente e imprevisível, uma insidiosa rede de poderes perpassa tanto as instituições consagradas como os novos espaços de atuação social, instalando as tramas que reorganizam o mundo segundo uma nova ordem.

Michael Hardt e Antonio Negri (2002) chamam de Império essa nova forma de supremacia caracterizada por permutas econômicas e culturais globais. Enquanto muitos ainda argumentam que a globalização expressaria independência de controles políticos, os autores defendem a hipótese de que uma nova forma de soberania se constitui com a união de organismos nacionais e supranacionais segundo uma lógica unificada. Não se trata mais do imperialismo que conhecemos, em que a soberania dos estados-nação europeus se estendia para além de suas fronteiras, mas de um Império sem centro e sem limites fixos, que vai incorporando gradativamente o mundo inteiro. Um Império que administra entidades híbridas, hierarquias flexíveis e permutas plurais por meio de estruturas de comando reguladoras 1.

1. HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. Tradução: Berilo Vargas. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 13.

Mas qual o propósito de considerações desta natureza na apresentação de um livro como este? Por que estou invocando questões tão amplas quando se trata de uma coletânea de textos apresentados num evento que reuniu pessoas interessadas em currículo? Simplesmente porque o currículo é um dos artefatos culturais que tem sido flexionado a fim de reunir esforços e organizar ações com o objetivo de definir e controlar o que deve ser ensinado e aprendido para que as sociedades e o mundo assumam determinadas formas e direções. Análises históricas da educação e da pedagogia têm nos mostrado, por exemplo, a íntima conexão entre o emergente projeto moderno de mundo e o surgimento, ao longo dos séculos XIV e XV, das primeiras instituições com contornos escolares nos moldes como os entendemos hoje. A gênese da escola dá-se em um longo processo no qual se mesclam, num jogo complexo, os contornos de uma sociedade que se distinguirá, entre outras coisas, por uma nova forma de relação com o trabalho e de normatização do uso do corpo e dos comportamentos sociais. A maquinaria escolar, com seus rituais, aparatos e práticas, é a instância que, no mundo moderno, têm concentrado a tarefa de nos ensinar a sermos sujeitos de determinado tipo. Seguindo essa lógica, podemos conceber o currículo como um dos artefatos dessa maquinaria, incumbido, em grande parte, de articular um corpo de saberes aos desígnios de seu tempo. Quando, na segunda metade do século XX, o currículo torna-se objeto de estudos especializados, isso acontece, especialmente, no que diz respeito à necessidade de articulá-lo ao delineamento de formas de gestão da escola compatíveis, desta vez, com os ímpetos organizadores e ordenadores de sociedades geridas no marco das políticas neoliberais.

Contudo, há muitos indícios de que as sociedades do século XXI assumam contornos inusitados, imputando-nos o risco e o desafio de começarmos a pensar as questões curriculares segundo outros prismas e múltiplas lógicas. Parece que se distancia cada vez mais de nós a noção de que a educação é um território de ideias seguras, lições certas e verdades inquestionáveis. As Ciências Humanas são parte de um corpo de conhecimentos que foi inteiramente abalado, em que nada mais continua no mesmo lugar. E nós somos parte disso. O próprio campo dos estudos de currículo já começou a debater a necessidade de nos voltarmos para a análise de um certo tipo de currículo que se constitui para além dos muros da escola e dos aparatos pedagógicos formais e institucionalizados. Uma

de suas manifestações seriam as meticulosas pautas midiáticas que ensinam sobre os mais variados temas, forjam consciências e modelam condutas. Não raro, certos segmentos da mídia proveem discursos legitimadores dessa função pedagógica, utilizando como argumento a denúncia de uma crescente incapacidade das instâncias educativas consagradas para fazer frente ao desafio de formar para a contemporaneidade.

Nesse panorama, o I Colóquio Internacional de Políticas Curriculares - promovido pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas Curriculares (GEPPC) e realizado na Universidade Federal da Paraíba em novembro de 2003 - ao colocar o tema Currículo e Contemporaneidade – questões emergentes como foco central do evento, contemplou a discussão que me parece ser das mais relevantes para o momento em que nos encontramos. Além disso, as temáticas escolhidas e abordadas expressam uma concepção de política que ultrapassa amplamente certas tendências ainda vigentes de compreendê-la como privativa das práticas governamentais levadas a efeito pelo Estado. A multiplicidade de perspectivas abordadas por pesquisadores e pesquisadoras brasileiros e estrangeiros é demonstração contundente da atualidade dos debates que vêm sendo realizados no campo dos estudos sobre currículo. Por outro lado, o Colóquio operou um importante deslocamento no eixo geográfico das discussões e eventos sobre currículo no Brasil, usualmente concentrados nas regiões sul e sudeste. Isso reveste-se de importância, especialmente, num país como o nosso, de grande extensão territorial, onde as enormes distâncias entre as universidades e centros de pesquisa frequentemente inviabilizam a participação de contingentes mais numerosos de pesquisadores, docentes e estudantes que vivem em regiões mais afastadas desse eixo.

Por tudo isso, os textos que compõem este livro trazem uma contribuição importante para a comunidade acadêmica da educação em geral e dos estudos de currículo em particular, proporcionando contato com um conjunto de ideias inovadoras e instigantes. Certamente, pesquisadores e pesquisadoras, bem como professoras e professores, se sentirão desafiados a rever posições e estimulados a refletir sobre tantas novas configurações ensejadas pelas relações entre a educação e seu tempo.

Marisa Vorraber Costa